Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
71/22.9T8SJM-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUELA MACHADO
Descritores: INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
BENEFÍCIOS RECEBIDOS POR UM DOS CÔNJUGES
CONSTRUÇÃO DE PRÉDIO EM TERRENO DE UM DOS CÔNJUGES
BEM COMUM
BENFEITORIA
Nº do Documento: RP2025012371/22.9T8SJM-B.P1
Data do Acordão: 01/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Apesar de o artigo 1791.º, número 1, do CC, dispor que “Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista ao casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento”, não nos parece que, em caso de divórcio, o trabalho executado de forma gratuita, pelo pai da cabeça de casal, nas obras de reconstrução de um imóvel próprio desta, possa ser considerado como um benefício para o recorrido, a integrar na previsão desse preceito.
II - De qualquer modo, a haver um litígio sobre a perda de benefícios recebidos de terceiro durante o casamento, esse litígio apenas poderá ser resolvido com a intervenção do doador, e não em ação que apenas corre entre os ex-cônjuges, face ao teor do art. 1791.º que dá poder ao autor da liberalidade sobre o destino do benefício.
III - No caso de partilha na sequência de divórcio, tem-se mostrado dividida a Jurisprudência sobre se a construção pelos cônjuges casados em comunhão de adquiridos, de um prédio urbano em terreno de um só deles, deve ser considerada uma benfeitoria a ser relacionada como crédito do património comum, ou se, sendo a construção de maior valor do que o terreno onde é edificada, deve a própria construção ser relacionada como bem comum, sem prejuízo do crédito a favor do património do cônjuge dono do terreno, que, caso contrário, ficaria empobrecido.
IV - Entendemos que podem ter aplicação as duas soluções preconizadas, devendo atender-se à situação concreta.
V - Assim, num caso em que num terreno que seja bem próprio de um dos cônjuges, seja construída com dinheiro ou bens comuns, um edifício (casa), de valor efetivamente superior ao do terreno onde é implantado, deve optar-se por considerar o bem comum, sendo o valor do terreno onde foi incorporada a habitação, relacionado no inventário como crédito do cônjuge a quem pertencia, considerando que surgiu uma unidade predial nova, ou seja, um prédio rústico passou a urbano, passando a constituir uma realidade/bem novo.
VI - Já numa situação em que já existia o terreno com um edifício aí construído, bem próprio da cabeça de casal, o qual veio a ser objeto de obras que o melhoraram, suportadas por ambos os cônjuges, deve entender-se que tais obras, ainda que de valor bem superior ao do edifício que já existia, constituem benfeitorias, a serem relacionadas como tal.
A entender-se de outro modo, estar-se-ia a subverter as regras sobre a propriedade dos bens no regime de casamento da comunhão de adquiridos, nomeadamente o disposto nos arts. 1722.º e 1724.º do CC.

(Da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 71/22.9T8SJM-B.P1




Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto




RELATÓRIO:


No âmbito dos autos de inventário para partilha de bens comuns, na sequência de divórcio, que AA intentou contra BB, ambos melhor identificados nos autos, foi nomeada cabeça de casal a referida BB.
Apresentada a relação de bens, pela cabeça de casal, veio o requerente do inventário reclamar contra a dita relação de bens, acusando a omissão de bens móveis que identifica, de duas contas bancárias, reclamando, ainda, quanto ao ativo apresentado, nomeadamente, quanto às verbas nº 1 e nº 5.
Respondendo à reclamação, veio a cabeça de casal apresentar relação de bens corrigida, relacionando, nomeadamente, alguns bens móveis e os saldos das duas contas de depósito à ordem.
O reclamante veio, ainda, reclamar dessa relação de bens corrigida.
Levadas a cabo as diligências que se tiveram por convenientes, veio a ser proferido, em 11-06-2024, o despacho que decidiu a reclamação de bens, com o seguinte teor:
“Conhecendo da Reclamação à Relação de Bens:
Como enquadramento, é importante recordar que a cabeça-de-casal BB e o interessado AA celebraram matrimónio entre si no dia 23/08/2014, sem convenção antenupcial, pelo que o regime de bens do seu casamento foi o da comunhão de adquiridos – art.º 1717º do C. Civil -, e o seu divórcio foi judicialmente decretado no dia 23/02/2022, após conversão do divórcio sem consentimento do outro cônjuge em divórcio por mútuo consentimento, tendo a ação de divórcio sido proposta no dia 27/01/2022, data à qual se tem de ater para a consideração dos efeitos patrimoniais entre os cônjuges, os quais retroagem à data da propositura do divórcio – art.º 1789º, nº 1 do C. Civil - e que o inventário para separação de meações destina-se, precisamente, a partilhar os bens, ativo e passivo, existentes àquela data.
Na “Relação de bens comuns corrigida” apresentada pela Cabeça-de-casal em anexo à Resposta à Reclamação à Relação de bens, em anexo ao requerimento de 18/10/2022, a mesma admitiu praticamente a existência de todos os bens cuja falta de relacionação foi inicialmente acusada a 31/08/2022, incluindo o saldo existente na conta bancária do “Banco 1...” e do “Banco 2...”, à data de 28/02/2022.
Não obstante a “Relação de bens comuns corrigida”, na “Reclamação” de 27/10/2022 o interessado AA continuou a acusar a falta de relacionação dos seguintes bens:
- as cortinas do quarto da filha que foram pagas pelo interessado AA
- falta a bomba de calor e os painéis térmicos e voltaicos
- falta o frigorífico
- falta a máquina de lavar roupa
- faltam copos de cristal de vinho branco, tinto, copos de gin
- faltam chávenas de café e colheres.
- faltam os decantares.
A verba 10 da Relação de bens comuns corrigida alega ser seu bem próprio.
Alega, ainda, que a Cabeça-de-Casal não pode incluir na verba nº 1 do ativo, a saber:
“benfeitorias realizadas no prédio urbano sito no lugar ..., ... ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...81, que é bem próprio da Ré”, os seguintes eletrodomésticos:
(i) placa de indução da marca “Siemens”;
(ii) forno da marca “Siemens”;
(iii) micro-ondas da marca “Siemens”;
(iv) exaustor da marca “Siemens”;
(v) bomba de calor da marca “Solius”;
(vi) painéis solares da marca “Solius
Alega que estes bens não fazem parte das benfeitorias referidas porque os mesmos não fazem parte integrante do imóvel.
Quanto às cortinas, da prova produzida a Cabeça-de-casal não demonstrou que as mesmas lhe foram oferecidas, como alegou, razão pela qual deverão as cortinas ser aditadas à relação de bens.
Não obstante a testemunha CC, mãe da Cabeça-de-casal, tenha referido que ofereceu à filha “pratos”, “copos” e “roupas de cama”, com todo o devido respeito, que é muito, não nos pareceu credível que tal doação tenha sido feita só a favor da filha, pois, considerando o tipo de bens em causa e as regras da experiência, é normal a doação desses bens a favor do casal – artºs 1722º, nº 1, al. b), 1725º e 1729º, nº 1, ambos do C. Civil.
Por isso, deverão ser aditados à relação de bens os “copos de cristal de vinho branco, tinto, copos de gin, chávenas de café, colheres e os decantares”, cuja existência não foi impugnada, o mesmo sucedendo com o “frigorifico” e a “maquina de lavar roupa”.
A “bomba de calor” e os “painéis térmicos e voltaicos” foram considerados na perícia de louvação das “benfeitorias” a que alude a verba nº 1 da Relação de Bens, estando o respetivo valor incluído na amplitude da avaliação das ditas, o mesmo sucedendo com a “placa de indução”, o “forno”, o “micro-ondas”, e o exaustor, tudo da marca “Siemens”, mesmo não sendo “partes integrantes” do prédio, pois pese embora não integrem a sua estrutura, aumentam a utilidade do prédio, o seu nível de conforto e comodidade, com reflexos na avaliação “em alta” das referidas benfeitorias, tendo o Exmº Senhor Perito louvado referido no respetivo relatório tratar-se de “cozinha equipada com eletrodomésticos de custo médio/alto.”
Porque o interessado AA não logrou demonstrar que era seu bem próprio, a verba nº 10 da Relação de bens comuns corrigida deverá permanecer relacionada – art.º 1725º do C. Civil.
Não tendo o mesmo logrado demonstrar que a verba nº 5 da Relação de bens foi paga pelo seu pai, tal verba deverá permanecer relacionada.
Quanto às “benfeitorias” a que alude a verba nº 1 da Relação de bens, de toda a prova produzida em sede de audiência, seja das declarações do interessado AA, seja do depoimento das testemunhas DD, EE, FF, CC, e GG, resultou que as mesmas consubstanciaram na reconstrução e ampliação de uma casa antiga de dois pisos, com logradouro e anexos, que é bem próprio da Cabeça-de-casal, por haver sido doada pela sua mãe, tal como, aliás, consta do respetivo registo predial.
Todo o trabalho de pedreiro foi feito pelo pai da Cabeça-de-casal, a testemunha FF, o qual referiu que o fez graciosamente, não levou dinheiro à filha, nem ao genro, tendo as partes pago os materiais, a mão de obra do servente, a máquina, os eletricistas, os picheleiros e os engenheiros.
Não obstante em “esclarecimento” tenha dito que ofereceu o trabalho à filha, com todo o devido respeito, que é muito, tal também não nos pareceu credível, considerando as regras da experiência e o momento histórico em que a obra foi efetuada, pois o normal aí, nesse contexto, seria a liberalidade ser feita a favor do casal.
Também a testemunha CC, mãe da Cabeça-de-casal, referiu que ajudou nas obras de pedreiro, tendo referido que o marido fez o trabalho a título gratuito.
Donde, com todo o devido respeito, não há que “descontar” ao valor das “benfeitorias” apurado pelo Exmº Senhor Perito louvado o valor do trabalho (mão-de-obra) desenvolvido pelo pai da Cabeça-de-casal a título gracioso nas obras, pois o mesmo foi efetuado a título de liberalidade a favor do casal.
Nos esclarecimentos que prestou aos autos através do requerimento com a referência citius 14802482 veio o Exmo. Senhor perito clarificar que atribui às benfeitorias realizadas, na constância do casamento de Autor e Ré, no prédio urbano, bem próprio da Ré, sito no lugar ..., ... ..., freguesia ..., concelho ..., o valor de € 296.629,00 (duzentos e noventa e seis mil seiscentos e vinte e nove euros), esclarecendo que o valor da construção existente antes da intervenção com o valor do terreno é de €59.640,00, correspondendo €47.090, 00 ao valor do terreno e €12.550, 00 ao valor da construção antiga.
O que significa que, para efeitos do disposto no nº 1 do art.º 1726º do C. Civil, o valor das “benfeitorias” comuns (€296.629,00) é superior ao valor do bem próprio da Cabeça-de-casal (€59.640, 00), assumindo, assim, o bem a natureza de bem comum do casal, ficando, todavia, ressalvada a compensação entre patrimónios, tal como previsto no nº 2 daquele preceito legal – cfr., neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 28/05/2013 (Relator: Rodrigues Pires), in www.dgsi.pt.
Os saldos bancários a considerar serão os existentes à data de 27/01/2022, data da propositura da ação de divórcio, demonstrados no processo através dos respetivos ofícios bancários.
Na “Conferência de Interessados” será discutido o valor dos demais bens.
Custas do incidente a cargo de ambos os Interessados, em partes iguais, fixando-se a atinente taxa de justiça em 2 (duas) U.C.’s.
Notifique, sendo a Cabeça-de-casal para, no prazo de 10 dias, apresentar nova Relação de Bens em conformidade com o ora decidido.”.
*

Foi deste despacho que a cabeça de casal BB, veio interpor o presente recurso, o qual foi admitido como de apelação, com subida imediata e nos próprios autos, uma vez que foi atribuído ao recurso, efeito suspensivo do processo.
Apresentou a recorrente as seguintes conclusões das suas alegações:
“I – O presente recurso vem interposto, nos termos e sob a égide do disposto no artigo 1123.º, número 3, do CPC, do douto despacho que determinou os bens a partilhar.
A. Das obras realizadas no prédio próprio da Recorrente
II – Quanto contraiu matrimónio com o Recorrido, a Recorrente era exclusiva proprietária e legítima possuidora do prédio urbano, composto de casa de habitação de dois pisos, com logradouro, sito no lugar ..., ... ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...81, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...13, o que o douto despacho recorrendo deu como provado.
III – O douto despacho proferido deu como provado que as obras realizadas no prédio próprio da Recorrente foram de “reconstrução e ampliação”.
IV – O relatório pericial apresentado pelo Exmo. Senhor Perito – para cujo efeito teve acesso a todas peças, escritas e desenhadas, do pedido de licenciamento das obras em causa – qualificou, porém, que as obras executadas pelo dissolvido casal no prédio próprio da Recorrente foram de “de alteração e ampliação”.
V – Não foi produzida nos autos outra prova suscetível de abalar o juízo formulado em sede de relatório pericial, motivo pelo qual não podia o Tribunal a quo ter dado como provado que as obras executadas pelo dissolvido casal revestiram a natureza de “reconstrução”.
VI – A perícia tem como finalidade a perceção ou averiguação de factos, ou a sua valoração, de modo a constituir prova a que se deve atender, sempre que a perceção, averiguação ou apreciação de determinados factos exigirem especiais conhecimentos.
VII – Não obstante o facto de o artigo 489.º do CPC prever que a perícia, enquanto meio de prova, é livremente apreciada pelo Tribunal, a verdade é que, sempre que este pretenda afastar-se do juízo pericial, deve motivar com particular cuidado a sua divergência, indica as concretas razões pelas quais decidiu contra a prova pericial.
VII – Ao não o fazer, o douto despacho recorrendo não deu cumprimento ao disposto no artigo 607.º, número 4 do CPC.
B. Das obras realizadas no prédio próprio da Recorrente pelo pai desta
VIII – A Recorrente relacionou como comuns as benfeitorias efetuadas pelo dissolvido no seu prédio próprio, o que fez com a menção expressa de que o valor atribuído às referidas benfeitorias não incluía o valor das obras efetuadas pelo seu pai, a título gracioso, as quais a haviam tido como beneficiária.
IX – O Recorrido reclamou da relação de bens, referindo, quanto a este particular, apenas, que não entendia “a redução do valor indicado em rodapé de €12 000,00 por obras efetuadas pelo “pai da Ré”.
X – O Exmo. Senhor Perito atribuiu à mão de obra oferecida pelo pai da Recorrente o valor total de € 59.199,60 (cinquenta e nove mil cento e noventa e nove euros e sessenta cêntimos).
XI – O douto despacho recorrendo deu como provado que a liberalidade efetuada pelo pai da Recorrente não foi feita exclusivamente a este mas antes ao casal, “[d]onde (...) não há que “descontar” ao valor das “benfeitorias” apurado pelo Exmo. Senhor Perito louvado o valor do trabalho (mão-de-obra) desenvolvido pelo pai da Cabeça-de-casal a título gracioso nas obras.
XII – Ao contrário do que resulta ou decorre da fundamentação do douto despacho recorrendo, incumbia ao Recorrido o ónus de provar que a liberalidade do pai da Recorrente fora feita a favor do casal porquanto foi aquele quem, em sede de reclamação, questionou a falta de relacionação do valor daquelas obras.
XIII – Na ausência de qualquer prova de que a liberalidade em causa fora feita pelo pai da Recorrente “a favor do casal”, não podia o Tribunal a quo ter dado tal facto como provado.
XIV – O artigo 1722.º, número 1, alínea b), do CC, dispõe que, na comunhão de adquiridos, por regra, são bens próprios dos cônjuges os bens que lhes advierem depois do casamento por doação.
XV – Por força do artigo 1729.º, número 1, do CC, os bens havidos por um dos cônjuges por doação ou deixa testamentária apenas entram na comunhão “se o doador ou testador assim o tiver determinado; entende-se que essa é a vontade do doador ou testador, quando a liberalidade for feita em favor dos dois cônjuges conjuntamente”.
XVI – Nos termos conjugados do disposto nos citados artigos 1722.º, número 1, alínea b), 1729.º, número 1, e 342.º, número 1, todos do CC, incumbia ao Recorrido alegar e provar que as obras efetuadas pelo pai da Recorrente foram por este doadas ao casal e não apenas à Recorrente; o que o Recorrido não fez.
XVII – Ao decidir que as obras efetuadas pela testemunha FF no prédio próprio da Recorrente, no valor total de € 59.199,60 (cinquenta e nove mil cento e noventa e nove euros e sessenta cêntimos), foram por aquele doadas ao casal, o douto despacho recorrendo violou, ou aplicou de forma errada, os referidos três preceitos legais.
XVIII – Mesmo que o Tribunal a quo pudesse ou houvesse de considerar que a liberalidade fora feita por FF à Recorrente e ao Recorrido, a verdade é que nunca as obras efetuadas pelo pai da Recorrente poderiam, após o divórcio, permanecer um bem comum do dissolvido casal, sob pena de violação do disposto no artigo 1791.º, número 1, do CC.
XIX – Subjaz à norma do artigo 1791.º do CC a ideia de “despatrimonialização” do casamento, segundo a qual “o casamento não é um meio eticamente legítimo de adquirir património26”.
XX – A doação feita pelo pai da Recorrente após a celebração do casamento, mesmo que também feita ao Recorrido, em consideração do seu estado de casado com a Recorrente, recai no âmbito das liberalidades previstas no artigo 1791.º do CC, pelo que caducou por força da dissolução do casamento por divórcio.
XXI – A perda dos benefícios previstos no número 1 do artigo 1791.º do CC opera automaticamente com o decretamento do divórcio, sem necessidade de qualquer manifestação da vontade das partes nesse sentido.
XXII – O douto despacho recorrendo violou o disposto no artigo 1791.º, número 1, do CC.
C. Da qualificação do prédio no qual foram efetuadas as benfeitorias como bem comum
XXIII – Na sequência da relacionação, pela Recorrente, das benfeitorias efetuadas no seu prédio próprio durante a constância do matrimónio – às quais atribuiu o valor de € 253.000,00 –, veio o Recorrido, em sede de reclamação, limitar-se a discordar do valor atribuído às benfeitorias; não acusou a falta de relacionação do prédio como bem comum do dissolvido casal.
XXIV – O processo de inventário, tal como atualmente regulado nos artigos 1082.º a 1135.º do CPC, está configurado como uma verdadeira ação declarativa; decorrida a fase dos articulados, só podem ser suscitadas exceções e meios de defesa que sejam supervenientes e ou que a lei admita expressamente à sua admissibilidade.
XXV – O Recorrido não reclamou tempestivamente da ausência de relacionação, como bem comum, do prédio no qual foram realizadas as benfeitorias, apenas o tendo feito em requerimento posterior à resposta à reclamação.
XXVI – O direito processual do Recorrido acusar aquela falta de relacionação precludiu, o que prejudica a possibilidade de o Tribunal decidir no sentido de considerar o prédio em causa como bem comum, sob pena de violação do princípio do dispositivo previsto no número 1 do artigo 609.º do CPC.
XXVII – O douto despacho recorrendo violou a lei processual, por erro de aplicação do disposto nos artigos 564.º, alínea c), e 573.º do CPC, enfermando da nulidade prevista na alínea d) do número 1 do artigo 615.º do CPC.
Acresce que,
XXVIII – O douto despacho recorrendo convocou a aplicação do artigo 1726.º do CC para considerar que o prédio próprio da Recorrente deveria ser relacionado como bem comum do casal.
XXIX – Ao contrário da interpretação ínsita no douto despacho recorrendo,“o que a norma [em causa] prevê é apenas a aquisição e não a situação diversa da construção no terreno de um dos cônjuges. E, em segundo, lugar, ela (está a referir-se à aplicação da norma do art. 1726º do CC) conduz à alteração do estatuto de um bem que era próprio e que passa a ser comum, o que suscita algumas interrogações quanto à sua compatibilidade com o princípio da imutabilidade do regime de bens e, sobretudo, com aquela ratio que entendemos ser subjacente ao não funcionamento entre cônjuges da usucapião ou da acessão industrial imobiliária. Um cônjuge deve poder anuir na aplicação de bens comuns, por exemplo, para a conservação ou para a ampliação de um prédio próprio que seja, por hipótese, a casa de morada de família, sem se expor ao risco de assim perder a propriedade exclusiva do bem, deixando de ser próprio (o que seria reintroduzir por esta via algo de muito próximo nos seus resultados da acessão industrial)”(destaques nossos) – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de fevereiro de 2016 (proc. n.º 3036/11.2TBVCT.G1.S1), relatado pelo Senhor Juiz Conselheiro Prof. Dr. Júlio Gomes, apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de novembro de 2022 (proc. n.º 1530/20.3T8VNF.G1.S1), relatado pelo Senhor Juiz Conselheiro Jorge Arcanjo, disponível no sítio de internet https://jurisprudência.pt/acordao/211638 e em https://www.dgsi.pt.
XXX – De acordo com aquela que tem sido a jurisprudência claramente maioritária dos tribunais superiores, as obras levadas a efeito ou executadas em prédio próprio de um dos membros de um casal dissolvido devem ser tratadas como benfeitorias, devendo esse valor ser relacionado como direito de crédito e bem comum no património a partilhar e mantendo-se o imóvel como bem próprio do interessado que era já titular do prédio.
XXXI – Constituem particulares exemplos da referida jurisprudência os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de janeiro de 1993, de 23 de março de 2004, de 13 de fevereiro de 2014, e 16 de dezembro de 2016, de 30 de abril de 2019, de 6 de maio de 2021, de 13 de outubro de 2022 e de 29 de novembro de 20222728.
XXXII – Para todos os referidos arestos, “o valor da construção de um prédio urbano realizada por ambos os cônjuges, na vigência do seu casamento, celebrado no regime de bens de adquiridos, em imóvel pertencente a um só deles, deve ser relacionado, no inventário subsequente ao divórcio, como benfeitoria, de forma a que se opere a compensação devida ao património comum” (destaque nosso).
XXXXIII – Esta solução impede que um dos cônjuges fique beneficiado no momento da partilha e, por outro lado, preserva a observância ou, se se preferir, a compatibilidade com o princípio estrutural do direito patrimonial da família que é o da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultante da lei, com consagração no artigo 1714.º do CC.
27 Todos disponíveis em https://www.dgsi.pt
28 Também as segundas instâncias têm perfilhado, em grande escala e com particular expressão, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que se vem de enunciar, do que constituem exemplos os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 09 de novembro de 2017, da Relação de Coimbra de 20 de abril de 2016 e 20 de junho de 2017, e da Relação do Porto de 09 de janeiro de 2006 e de 11 de maio de 2020.
XXXIII – O direito matrimonial não é sede de previsão e regulamentação de um novo modo de adquirir a propriedade de bens e de derrogar o princípio de que o direito de propriedade tem em si a virtualidade de absorver tudo o que por força da natureza ou do homem se venha a incorporar na coisa beneficiada.
XXXIV – A solução adotada pelo Tribunal a quo transforma o casamento “[n]um modo de adquirir bens”29, o que a lei manifestamente não pretende, como o disposto no artigo 1791.º do CC claramente atesta.
XXXV – No caso concreto, nem sequer se pode afirmar que as obras efetuadas no prédio próprio da Recorrente alteraram a sua natureza, de prédio rústico para prédio urbano ou, se se preferir, de terreno para construção para moradia; é que o prédio próprio da Recorrente já correspondia a uma moradia de dois pisos, edificada em terreno de família, na qual o dissolvido casal efetuou as obras de alteração e ampliação.
XXXVI – Recusa-se que, por via do casamento sob o regime da comunhão de adquiridos ou da separação de bens, e da sua subsequente dissolução, um dos cônjuges possa perder um bem que, originariamente, era exclusivamente seu.
XXXVII – As obras efetuadas pelo dissolvido casal no prédio próprio da Recorrente hão-de ficar sujeitas ao domínio que recai sobre aquele prédio, porque perderam a sua autonomia.
XXXVIII – Por força do prescrito no artigo 216.º, número 3, do CC, as benfeitorias efetuadas no prédio próprio da Recorrente merecem a qualificação de benfeitorias úteis.
XXXIX – Com exceção das realizadas graciosamente pelo pai da Recorrente, as obras foram realizadas com recurso a empréstimo bancário, suportado por Recorrente e por Recorrido, relacionado como verba 1 do Passivo.
XL – As mesmas devem figurar da relação da bens como benfeitorias comuns, ficando a Recorrente, enquanto proprietária do prédio, obrigada a conferir ao património comum o que a este património deve em razão das obras terem sido feitas por ambos os membros do dissolvido casal, à custa de bens comuns.
XLI – Mal andou o douto despacho recorrendo, ao considerar que o prédio próprio da 29 Para utilizar novamente a expressão feliz e conseguida de Eliana Gersão.
Recorrente no qual foram efetuadas obras de alteração e ampliação na constância do matrimónio, deveria ser relacionado como bem comum do casal, interpretando e aplicando de forma errónea o disposto no artigo 1726.º do CC, e violando, salvo o devido respeito, o prescrito nos artigos 1714.º, 1717.º, 1721.º e 1722.º, alínea a), todos do CC.
XLII– Também o regime da acessão industrial imobiliária é inaplicável ao caso concreto porquanto (i) a Recorrente é proprietária do prédio no qual foi efetuada, pelo dissolvido casal, e (ii) já existia uma moradia construída no prédio pelo que não houve inovação em solo ou terreno alheio, como a acessão pressupõe.
Nestes termos, e nos mais, de Direito, aplicáveis, deve o recurso subordinado interposto pelo Autor ser considerado procedente, ao mesmo tempo ou da mesma mão que o recurso interposto pela Ré deve ser considerada totalmente improcedente, assim se fazendo sã e correta J U S T I Ç A !

O recorrido apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
A matéria de facto a considerar, é a que resulta do relatório que antecede.
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DO MÉRITO DO RECURSO:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635.º, nº 4, 637.º, nº 2, 1ª parte e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões a decidir:
- Se o tribunal a quo decidiu contra a prova pericial, no que diz respeito às obras realizadas no prédio próprio da recorrente, quando as classifica como de reconstrução;
- Se o valor das obras realizadas no prédio próprio da Recorrente pelo pai desta, deve ser incluído, ou não, no valor das benfeitorias;
- Se o despacho recorrido, na parte em que qualificou o prédio no qual foram efetuadas as benfeitorias como bem comum, padece de nulidade, por excesso de pronúncia, e se deve ser revogado e substituído no sentido de que tais obras devem figurar na relação de bens como benfeitorias comuns.
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A recorrente refere que o objeto do seu recurso versa sobre as três situações expostas como questões a decidir.
a) Começa a recorrente por referir que o tribunal a quo decidiu contra a prova pericial, no que diz respeito às obras realizadas no prédio próprio da mesma, quando as classifica como de “reconstrução e ampliação”, ao passo que o senhor perito, no relatório pericial se refere a “uma construção de alteração e ampliação”, entendendo, consequentemente, que o tribunal a quo não podia dar como provado que foram realizada sobras de reconstrução.
Embora a apelante não o refira expressamente, parece-nos que estamos perante a impugnação da matéria de facto que foi considerada na decisão recorrida, a qual terá que obedecer ao disposto no art. 640.º do CPC, ou seja, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considerar incorretamente julgados; os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, e, ainda, a decisão que deve ser proferida sobre os factos impugnados.
No caso, a recorrente indicou o facto com o qual não concorda (que se tratou de uma reconstrução), indicou o meio de prova a reapreciar (relatório pericial) e a redação que o facto deve ter (que foi uma alteração e não uma reconstrução), pelo que se mostram cumpridos os requisitos para a reapreciação da matéria de facto.
Posto isto, o art. 2.º do Dec. Lei nº 555/99, de 16-12 (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação), apresenta algumas definições, entre as quais, nas als. c) e d), respetivamente, as definições de obras de reconstrução e obras de alteração.
Assim, de acordo com tal preceito, são:
c) «Obras de reconstrução», as obras de construção subsequentes à demolição, total ou parcial, de uma edificação existente, das quais resulte a reconstituição da estrutura das fachadas;
d) «Obras de alteração», as obras de que resulte a modificação das características físicas de uma edificação existente, ou sua fração, designadamente a respetiva estrutura resistente, o número de fogos ou divisões interiores, ou a natureza e cor dos materiais de revestimento exterior, sem aumento da área total de construção, da área de implantação ou da altura da fachada.
Ora, lido o relatório pericial que consta dos autos, constata-se que do mesmo consta:



Ou seja, o que resulta do relatório pericial é que as obras, para além de ampliação, foram também de alteração, mas igualmente de reconstrução, já que se fala em demolição e ampliação, o que significa que houve também reconstrução das partes demolidas.
Em qualquer caso, afigura-se irrelevante para a decisão, tratar-se de obras de reconstrução ou de alteração, pelo que, não devendo o Tribunal praticar atos inúteis (art. 130.º do CPC), não se justifica a alteração da expressão utilizada pelo tribunal a quo.
Improcede, assim, esta parte do recurso.

b) A apelante também não se conforma com o facto de o tribunal recorrido ter decidido que não há que descontar ao valor das benfeitorias, apurado pelo Senhor Perito, o valor do trabalho (mão-de-obra) desenvolvido pelo pai da cabeça-de-casal a título gracioso nas obras, por ter considerado que o mesmo foi efetuado a título de liberalidade a favor do casal.
Mas, salvo melhor entendimento, não assiste razão à recorrente.
Sendo embora a construção existente um bem próprio da cabeça de casal/recorrente, as obras aí levadas a cabo foram-no na constância do casamento, para o casal aí residir, já que se tratava da casa de morada da família, foram suportados por ambos os membros do casal os custos com os materiais utilizados, pelo que, as regras da experiência comum permitem, efetivamente e como decidiu o tribunal a quo, concluir que a mão de obra levada a cabo pelo pai da recorrente, na construção da melhoria das condições da habitação, se destinava ao casal.
Se é certo que o recorrido possa não ter feito a prova concreta de tal facto, certo é também que não se provou que o pai da recorrente tenha atuado com vista a efetuar os trabalhos em causa, de forma gratuita, apenas para a sua filha, e não para o genro.
Nas concretas circunstâncias em que o pai da recorrente prestou o serviço de forma gratuita, não é verosímil que o tivesse feito com a intenção de o estar a fazer como uma doação à sua filha, sendo, antes, natural que o tenha feito como uma ajuda ao casal que, desse modo, poupava algum gasto na realização das obras, não tendo aplicação o disposto no art. 1722.º, nº 1, al. b) do Código Civil.
E também não colhe a alegação da recorrente no sentido de que mesmo que o Tribunal a quo pudesse ou houvesse de considerar que a liberalidade fora feita por FF à Recorrente e ao Recorrido, a verdade é que nunca as obras efetuadas pelo pai da Recorrente poderiam, após o divórcio, permanecer um bem comum do dissolvido casal, sob pena de violação do disposto no artigo 1791.º, número 1, do CC.
Dispõe tal preceito que “Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista ao casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento”.
Tal como já referido, não nos parece que o trabalho executado pelo pai da recorrente possa ser considerado como um benefício que o recorrido haja recebido em vista ao casamento ou em consideração do estado de casado, nas circunstâncias em que foi prestado.
De qualquer modo, a haver um litígio sobre a perda de benefícios recebidos de terceiro durante o casamento, esse litígio apenas poderá ser resolvido com a intervenção do doador, e não em ação que apenas corre entre os ex-cônjuges, face ao teor do art. 1791.º que dá poder ao autor da liberalidade sobre o destino do benefício.
Mantém-se, pois, a decisão proferida pelo tribunal recorrido, também nessa parte.

c) A última questão alegada no recurso pela cabeça de casal/recorrente, consiste em apreciar se o despacho recorrido, na parte em que qualificou o prédio no qual foram efetuadas as benfeitorias como bem comum, padece de nulidade, por excesso de pronúncia, e se deve ser revogado e substituído no sentido de que tais obras devem figurar na relação de bens como benfeitorias comuns.
No que diz respeito à invocada nulidade, diz a recorrente que o Recorrido não reclamou tempestivamente da ausência de relacionação, como bem comum, do prédio no qual foram realizadas as benfeitorias, apenas o tendo feito em requerimento posterior à resposta à reclamação, pelo que entende que precludiu o direito do recorrido acusar aquela falta, o que prejudica a possibilidade de o tribunal decidir no sentido de considerar o prédio em causa como bem comum, sob pena de violação do princípio do dispositivo.
Vejamos:
O artigo 615.º do CPC prevê as causas de nulidade da sentença, dispondo, no que para o caso interessa, que:
“1 - É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
(…)”.
Posto isto, é unânime considerar-se que “as nulidades da sentença são vícios intrínsecos da formação desta peça processual, taxativamente consagrados no nº 1, do art. 615.º, do CPC, sendo vícios formais do silogismo judiciário relativos à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento, de facto ou de direito, nem com vícios da vontade que possam estar na base de acordos a por termo ao processo por transação” (vide Ac. do TRG de 04.10.2018, disponível em dgsi.pt).
Ou seja, as nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC e reportam-se a vícios estruturais ou intrínsecos da decisão, também, designados por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.
A nulidade da sentença por omissão ou excesso de pronúncia, da previsão da alínea d) do nº 1 do citado art. 615.º do CPC, ocorre quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questão que devesse apreciar, ou conheça de questão de que não podia tomar conhecimento.
Ora, compulsados os autos, constata-se que o recorrido veio, através de requerimento de 03-05-2023, requerer que em face da perícia e respetivos valores atribuídos ao imóvel, antes e após a realização das obras, o próprio imóvel deveria ser relacionado como bem comum, e não as benfeitorias.
Ou seja, o tribunal a quo não se pronunciou sobre questão cuja apreciação não lhe tivesse sido requerida, pelo que não se verifica a invocada nulidade por excesso de pronúncia.

Questão diferente, ainda relacionada com a consideração do imóvel como bem comum, é saber se o tribunal incorreu em erro de julgamento de direito, também alegado pela recorrente.
O tribunal recorrido baseou a sua decisão no disposto no art. 1726.º, nº 1 do Código Civil, preceito que dispõe que “Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações.”.
Tem-se mostrado dividida a Jurisprudência sobre esta questão, nas situações em que é edificada uma habitação, por ambos os cônjuges, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, em terreno próprio de um deles, considerando uma posição que tal edificação constitui benfeitoria a ser relacionada como crédito do património comum, e outra que sendo a construção de maior valor do que o terreno onde é edificada, deve a própria construção ser relacionada como bem comum, sem prejuízo do crédito a favor do património do cônjuge dono do terreno, que, caso contrário, ficaria empobrecido.

A título de exemplo de decisões que consideram que estamos sempre perante benfeitorias, passamos a citar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-11-2022, Processo 1530/20.3T8VNF.G1.S1, Relator: Jorge Arcanjo, disponível em dgsi.pt, onde se decidiu que: “A edificação de obra (casa) por dois cônjuges, casados no regime de comunhão de bens adquiridos, em terreno próprio de um deles, constitui benfeitoria e dá lugar a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio) com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, pois de outra forma haveria um injustificado enriquecimento sem causa.”.
E também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23-10-2012, Processo 1058/09.2TBTMR-A.C1, Relator: VIRGÍLIO MATEUS, que decidiu:
“1.- Todas as benfeitorias são despesas, feitas para conservar ou melhorar uma coisa (benfeitorias necessárias ou úteis) ou apenas para recreio do benfeitorizante (benfeitorias voluptuárias).
2.- Tendo os cônjuges, enquanto casados sob o regime de comunhão de adquiridos, construído uma moradia num terreno pertencente ao património próprio de um deles, essa construção constitui uma benfeitoria útil e não pode basear a aquisição da propriedade do prédio por acessão a favor do casal.
3.- As benfeitorias, pelo menos algumas delas, como essa construção de moradia, podem ser encaradas sob a perspectiva de coisas e sob a perspectiva de despesas.
4.- O valor das despesas materiais feitas pelo casal com a dita construção da moradia é um bem comum do casal, nos termos dos artigos 1724º al. b) e 1733º/2 do Código Civil.
5.- Esse valor deve ser relacionado como crédito do património comum do casal.
6.- O prédio urbano resultante da construção da moradia no terreno pertencente a um dos cônjuges não integra os bens adquiridos a que se refere o artigo 1724º do CC e não é bem comum do casal.”.
E, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-07-2023, Processo 155/23.6T8CBR.C1, Relator: FONTE RAMOS, onde consta que:
“1. A realização, na pendência do casamento, de uma construção (prédio urbano) no terreno doado a um dos ex-cônjuges, em que o casamento fora celebrado segundo a comunhão de adquiridos, haverá que ser qualificada como benfeitoria que se integra na comunhão.
2. Tal edificação insere-se na titularidade do proprietário do terreno, por força do princípio dos direitos reais da especialização ou individualização, dando lugar a um crédito de compensação, pelo que o valor da construção realizada (por ambos os cônjuges), na vigência do seu casamento, deve ser relacionado, no inventário subsequente ao divórcio, como benfeitoria, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum.
3. O referido enquadramento, consentâneo com a ordenação dominial definitiva, respeita os princípios do direito sobre as coisas, designadamente, da tipicidade (art.º 1306º CC) e da especificidade ou individualização.”.
Já em sentido diferente, a considerar a construção como bem comum, se tiver valor superior ao terreno, podemos citar o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-10-2022, Processo 1042/18.5T8AVR-E.P1, Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS, onde se decidiu que:
“I - Malgrado o legislador tenha estabelecido, nos artigos 1721º a 1731º do Código Civil, um conjunto de regras destinadas a definir quais os bens que, no regime da comunhão de adquiridos, integram a categoria de bens próprios e quais os bens que se afirmam serem comuns, certo é que, na práxis judiciária, têm surgido algumas situações onde essa categorização não se revela líquida, como sucede nos casos em que se discute qual a natureza de uma edificação construída com dinheiro ou bens comuns dos cônjuges, em terreno que é bem próprio de um deles.
II - Na resolução dessa problemática importa apurar qual o regime jurídico aplicável à obra incorporada no solo, a fim de sabermos em que património se integrará o prédio urbano resultante dessa incorporação.
III - Com a implantação do prédio urbano surge um direito de propriedade novo, perdendo o prédio rústico toda a sua autonomia, para dar lugar, conjuntamente com a edificação, a uma nova unidade jurídica indivisível.
IV - Por aplicação da regra de Direito Matrimonial vertida no artigo 1726º do Código Civil, com vista a definir a natureza dessa nova unidade jurídica, há que apurar, em cada caso concreto, qual a participação de maior valor nas entradas efetuadas para a aquisição ou construção do bem.
V - Assim, consoante a contribuição mais alta seja a do património próprio (terreno) ou do património comum (dinheiro ou bens comuns utilizados na construção da casa), o bem deverá ser qualificado como próprio ou comum, havendo, concomitantemente, a devida compensação ao património empobrecido de acordo com o regime estabelecido no artigo 1689º, do Código Civil.”.
E, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28-05-2013, Processo 3255/08.9TJVNF-B.P1, Relator: Rodrigues Pires, que decidiu:
“I - Quando os cônjuges eram casados no regime da comunhão de adquiridos e procederam à construção de uma casa em prédio próprio da mulher, que integrou uma casa que anteriormente aí existia, é aplicável a este bem o regime previsto no art. 1726° do Cód. Civil.
II - Verificando-se que a prestação dos bens comuns é superior à prestação dos bens próprios na contribuição para a aquisição/construção da casa deve esta ser considerada como bem comum.
III - Porém, o proprietário do prédio, ao abrigo do nº 2 do art. 1726° do Cód. Civil, deve ser compensado pela deslocação que foi feita do seu património próprio para o património comum do casal.”.
No mesmo sentido, decidiu também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-10-2020, Processo 2124/15.0T8LRA.C1, Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE, quando refere que:
“I - A jurisprudência tem decidido, quase invariavelmente, que a construção pelos cônjuges casados em comunhão de adquiridos de um prédio urbano em terreno de um só deles, deve ser considerada uma benfeitoria, e que, por isso, esta deve ser descrita como bem comum no inventário consequente ao divórcio do casal, mantendo-se o terreno como bem próprio, conclusão a que chega, essencialmente, em função da orientação que distingue benfeitoria e acessão por via da relação jurídica com a coisa: basicamente são benfeitorias os melhoramentos feitos por pessoa relacionada juridicamente com a coisa; são acessões os melhoramentos feitos por pessoa não relacionada com a coisa.
II – Será, no entanto, preferível que, para justificar o incremento de valor patrimonial em bem alheio, se utilize a orientação que se vale da função ou da finalidade dos regimes das benfeitorias e da acessão: basicamente, são benfeitorias os melhoramentos que não interferem na substância da coisa; são acessões os melhoramentos que alteram essa substância.
III – Assim, na situação dos autos dever-se-á definir o regime a aplicar em função da ideia de que uma obra que resulta incorporada num terreno, passando a constituir com ele uma realidade incindível e provocando a sua alteração jurídica de prédio rústico para urbano, não pode fazer-se equivaler a uma benfeitoria, e que é o conceito de acessão, no que tem de essencial, que melhor satisfaz a compreensão daquele fenómeno.
IV – Esta conclusão não obriga a que se aplique o regime da acessão industrial imobiliária como vem gizado no art. 1339º e ss CC, mas a enquadrar a questão no direito matrimonial, que influencia a generalidade das relações obrigacionais ou reais de que os cônjuges são ou foram titulares, daí resultando um regime diferente daquele que decorreria da aplicação isolada do direito comum.
V – A solução de considerar terreno e edifício nele construído como um bem comum, por via do disposto no nº 1 do art. 1726º/CC, é a que quadra melhor às expetativas dos cônjuges e também aos interesses dos credores, a que não são alheias as normas dos arts 1721º e seguintes.
VI – Desde o momento em que o valor do prédio urbano construído sobre o prédio rústico é maior do que o valor do terreno onde foi incorporado deve o cabeça de casal no inventário aditar como bem comum o imóvel rústico e o imóvel urbano e relacionar como crédito do cônjuge a quem pertencia o terreno o valor actualizado deste, nos termos e para o efeito do nº 2 do art. 1726º CC.”.
Posto isto, e voltando ao caso em apreciação, entendemos que podem ter aplicação as duas soluções preconizadas nos diversos acórdãos citados, devendo atender-se à situação concreta.
Assim, concordamos que num caso em que num terreno que seja bem próprio de um dos cônjuges, seja construída com dinheiro ou bens comuns, um edifício (casa), de valor efetivamente superior ao do terreno onde é implantado, deve optar-se por considerar o bem comum, sendo o valor do terreno onde foi incorporada a habitação, relacionado no inventário como crédito do cônjuge a quem pertencia, considerando que surgiu uma unidade predial nova, ou seja, um prédio rústico passou a urbano, passando a constituir uma realidade incindível.
Já numa situação como a dos autos, quando já existia o terreno com um edifício aí construído, bem próprio da cabeça de casal, o qual veio a ser objeto de obras que o melhoraram, suportadas por ambos os cônjuges, deve entender-se que tais obras, ainda que de valor bem superior ao do edifício que já existia, constituem benfeitorias, a serem relacionadas como tal.
A entender-se de outro modo, estar-se-ia a subverter as regras sobre a propriedade dos bens no regime de casamento da comunhão de adquiridos, nomeadamente o disposto nos arts. 1722.º e 1724.º do CC.
Quando, na constância do casamento, passa a existir nos bens do casal, um bem novo, como será o caso da habitação construída no terreno próprio de um dos cônjuges, compreende-se que deva considerar-se bem comum, nos termos do art. 1724.º.
Contudo, se a habitação já existia e era bem próprio de um dos cônjuges, tendo apenas sido melhorada e/ou ampliada, então estamos perante benfeitorias.
Procede, assim, parcialmente a apelação, devendo ser revogada a decisão recorrida, na parte em que decide que tendo em conta o valor atribuído às benfeitorias e o valor do terreno e da construção já existentes, para efeitos do disposto no nº 1 do art.º 1726º do C. Civil, sendo o valor das “benfeitorias” comuns superior ao valor do bem próprio da Cabeça-de-casal, assume o bem a natureza de bem comum do casal, embora ficando ressalvada a compensação entre patrimónios, tal como previsto no nº 2 daquele preceito legal, a qual, nessa parte, será substituída por outra que decide considerar o valor das obras realizadas no imóvel que era bem próprio da cabeça de casal, como benfeitorias.

*



DISPOSITIVO:

Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando a decisão recorrida na parte em que decide que tendo em conta o valor atribuído às benfeitorias e o valor do terreno e da construção já existentes, para efeitos do disposto no nº 1 do art.º 1726º do C. Civil, assume o bem a natureza de bem comum do casal, a qual, nessa parte, será substituída por outra que decide considerar o valor das obras realizadas no imóvel que é bem próprio da cabeça de casal, como benfeitorias.

Custas pela recorrente e pelo recorrido, na proporção de metade.








Porto, 2025-01-23
Manuela Machado
António Paulo Vasconcelos
Paulo Dias da Silva