Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0442419
Nº Convencional: JTRP00037166
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: RP200409290442419
Data do Acordão: 09/29/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: ANULADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: As nulidades de sentença são de conhecimento oficioso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação do Porto:

Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real foi o arguido, B.........., condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º e 69.º, n.º1, al. a), ambos do Código Penal na pena de 6 (seis) meses e 15 (quinze) dias de prisão, e ainda na proibição de conduzir quaisquer veículos a motor, pelo período de 2 (dois) anos e (6) seis meses.

Inconformado o arguido interpôs o presente recurso rematando a pertinente motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
A pena de prisão aplicada ao arguido deveria ser suspensa na sua execução.
Pesem embora contra o arguido condutas anteriores negativas que vieram a ser condenadas, conclui-se que posteriormente à prática do crime objecto do presente processo, a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição.
O tribunal deveria ter imposto ao arguido o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão da pena de prisão, de regras de conduta destinadas a facilitar a sua reintegração na sociedade, nos termos do art.º 52º, n.º 1 als. b) e g) do Código Penal.
O tribunal recorrido poderia ainda ter determinado que a suspensão da execução da pena de prisão fosse acompanhada de regime de prova, nos termos do art.º 53º do Código Penal, uma vez que seria adequado a facilitar a reintegração do arguido na sociedade.
Foi o arguido condenado em pena excessivamente elevada, devendo a mesma ser suspensa ou substituída por pena inferior.
Deve-se ordenar a suspensão da execução da pena de prisão, embora com sujeição a determinadas regras de conduta e/ou sujeição ao regime de prova, nos termos dos artºs 52º n.º 1, als. b) e g) e 53º do Código Penal, ou caso assim não se entenda, substituir a pena aplicada por pena equivalente ao limite mínimo legal.

Admitido o recurso o Ministério Público respondeu concluindo pela manutenção da decisão recorrida.

Já neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto foi de parecer que o recurso merece parcial provimento, devendo fixar-se a pena próximo do mínimo legal.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPPenal e após os vistos realizou-se audiência, não tendo sido suscitadas nas respectivas alegações novas questões.

Factos provados:
No dia 29 de Junho de 2003, pelas 05.26 horas, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula TX-..-.., de que é proprietário, pela E.N.º 2, na Zona do ....., Vila Real, com uma TAS (taxa de álcool no sangue) de 2,20 g/l.
Vinha da discoteca Y.........., onde havia bebido cerca de quatro cervejas e dois Wiskys e ia para casa.
O arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que antes de iniciar a condução daquele veículo havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade superior ao legalmente permitido, não se tendo abstido, mesmo assim de conduzi-lo.
Sabia também o arguido que a condução de veículos na via pública, nas condições em que o fez, é proibida e punida por lei.
O arguido encontra-se desempregado, encontrando-se com o subsídio de desemprego; não tem filhos; tem o 8.º ano de escolaridade; vive na companhia da sua mãe e avó.
Tem os seguintes antecedentes criminais (todos) por crime de condução em estado de embriaguez:
Em 30 de Julho de 1998, no Proc. Sumário n.º .../98, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Real e por factos ocorridos em 30 de Julho de 1998, foi condenado em 5 meses de prisão cuja execução se suspendeu pelo período de 18 meses.
Em 27 de Novembro de 1998, no Proc. Comum Singular n.º 1.../98, do mesmo juízo e tribunal por factos ocorridos em 18 de Novembro de 1997, foi condenado em 80 dias de multa à taxa diária de 1.000$00.
Em 21 de Março de 2002, no Proc. Comum Singular n.º .../01.2GTVRL do 1.º Juízo do mesmo Tribunal por factos ocorridos em 20 de Maio de 2001, foi condenado em 7 meses de prisão cuja execução se suspendeu pelo prazo de 3 (três) anos com a condição de entregar 700 Euros à Prevenção Rodoviária Portuguesa.
Por sentença datada, 15 de Dezembro de 2003 lavrada pelo subscritor da presente, ainda não transitada em julgado, foi condenado na pena de 8 (oito) meses de prisão, a qual se suspende na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, por factos ocorridos no dia 19 de Novembro de 2001, pelas 23.40 horas.
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O Direito
O recorrente limitou expressamente o recurso, conforme lhe é permitido pelo art.º 403º n.º 1 e n.º 2 al. e) do Código Processo Penal, à questão da suspensão da pena de prisão.
Segundo o recorrente deve ser suspensa a execução da pena de prisão, embora com sujeição a determinadas regras de conduta e/ou sujeição ao regime de prova, nos termos dos artºs 52º n.º 1, als. b) e g) e 53º do Código Penal, ou caso assim não se entenda, substituir a pena aplicada por pena equivalente ao limite mínimo legal.
Quid iuris?
Dispõe-se no art.º 50º n.1 do Código Penal:
O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.
O tribunal desatendeu o comando normativo citado expendendo a propósito que para tanto ponderou as anteriores condenações pela prática de crimes da mesma natureza do que ora se condena o arguido, o que revela uma persistência e intensidade de violação dos deveres legais, o que também agrava em termos de censura da conduta deste arguido e acentua as exigências de prevenção, quer geral quer especial.

Sustenta o recorrente, argumentando pela suspensão:
O tribunal deveria ter imposto ao arguido o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão da pena de prisão, de regras de conduta destinadas a facilitar a sua reintegração na sociedade, nos termos do art.º 52º, n.º 1 als. b) e g) do Código Penal.
O tribunal recorrido poderia ainda ter determinado que a suspensão da execução da pena de prisão fosse acompanhada de regime de prova, nos termos do art.º 53º do Código Penal, uma vez que seria adequado a facilitar a reintegração do arguido na sociedade.

Importa, em nosso entender, abordar previamente uma questão que se configura como prévia àquela que é posta pelo recorrente: a não realização do oportuno cúmulo jurídico.
Não se percebe porque é que no caso não se procedeu a apensação dos presentes autos, com os autos onde foi proferida sentença datada de 15 de Dezembro de 2003, ou então não se procedeu ao oportuno cúmulo das penas, de todas as penas em concurso: o princípio a que se deve obediência é o da economia processual, não o da multiplicação de processos, dos procedimentos, dos recursos.
Havendo lugar à realização de cúmulo jurídico, das diversas penas em concurso, mas não se tendo procedido ainda a essa operação, a questão posta neste recurso - suspensão ou não da pena aplicada - terá uma resposta naturalmente provisória, pois só em face da pena única, se pode, se deve decidir definitivamente da suspensão, ou não suspensão da pena única. Só o cúmulo de todas as penas em concurso possibilita adequada consideração global dos factos praticados pelo condenado e da sua personalidade em ordem a aquilatar da suspensão ou da não suspensão.
A decisão a proferir neste recurso, revestiria necessariamente uma natureza provisória e precária, pois de seguida, após a baixa do processo, impunha-se a realização do cúmulo jurídico, perdendo ela autonomia em virtude da nova apreciação dos factos e da personalidade do arguido.
Depois, apreciar apenas um segmento da realidade - que é aquilo que se nos pede neste recurso - quando a realidade já é, e desde antes da decisão recorrida, muito mais ampla, multipolar, é uma autêntica perda de tempo. Importa previamente decidir a medida da pena única, a medida da pena acessória, e se a pena única deverá ser suspensa incondicionalmente, com condições ou não deverá sequer ser suspensa.
Só depois é que ganha sentido a apreciação do recurso. E as coisas estão neste pé, porque o tribunal recorrido não curou da oportuna realização do necessário cúmulo jurídico, ou então, caso entenda que não é realizar cúmulo, porque não disse que não cabia a realização de cúmulo jurídico.
Quando a decisão final estiver em concurso com outras decisões, havendo lugar a cumulo jurídico, impõe-se a sua previa realização sob pena de a decisão a proferir em recurso nada decidir em definitivo. Esta conclusão é imposta pela consideração do princípio da economia processual, dado que a decisão a proferir em recurso não deixa de ser provisória, pois de seguida há que proceder a cúmulo, perdendo a decisão proferida em recurso a sua autonomia, o que pode equivaler a uma inutilidade. E como da nova e posterior decisão, que fixa a pena única, também há recurso, o que temos é uma eventual duplicação de procedimentos, senão mesmo um primeiro recurso potencialmente inútil, o caso do presente, que verdadeiramente nada decide. Uma eventual decisão de suspensão da execução da pena, neste recurso, não obriga a que o tribunal da 1ª instância, numa apreciação global dos factos e da personalidade do recorrente, opte pela pena detentiva; assim como uma hipotética decisão de não suspensão da execução da pena neste recurso, não tem de ser seguida pelo tribunal da 1ª instância, numa apreciação global dos factos e da personalidade do recorrente, aquando da fixação da pena única. Em português corrente é uma pura perda de tempo.
De outro modo, adaptando as palavras de Camus [O Mito de Sísifo ensaio sobre o absurdo, Livros do Brasil, pág. 147], estamos condenados a trabalho inútil, empurrar sem descanso o processo até á audiência, de onde voltará à comarca, onde, aí, um dia destes, se concluirá pela necessidade de realização de cúmulo jurídico, depois de novo recurso aqui previsivelmente voltará.....
Numa conclusão parcelar podemos assentar em que estando em causa penas curtas de prisão, interposto recurso de uma decisão, que está em concurso com outras decisões, sem se ter realizado o respectivo cúmulo em ordem a determinar a pena única, a decisão proferida nesse recurso é pouco menos que inútil, pois logo de seguida vai ser desconsiderada na subsequente decisão para determinar a pena única. O princípio da economia processual... e o direito do arguido a ter a sua situação processual definida no mais curto espaço de tempo, impõem que, no caso, se proceda precisamente ao contrário: primeiro há que determinar a pena única...
Não vemos como possa ser de outro modo. Caso o presente recurso tivesse seguimento - o que, como deixamos exposto, é para nós uma inutilidade, pois a decisão a proferir teria um valor pouco mais que simbólico, já que o juízo feito em recurso, a favor ou contra a suspensão, não é transponível, nem obriga na decisão do cúmulo, pois cobre apenas uma parte da realidade mais ampla e global, apreciada na audiência de realização do cúmulo - e depois não se procedesse de imediato a cúmulo jurídico, então os imbróglios potenciais poderiam ser muito sérios.
Os efeitos perversos de não se ter determinado, em tempo oportuno, a pena única, podem não ficar limitados ao exposto, mas desencadear os conhecidos imbróglios jurídicos do liberta/prende: a continuação do recurso e v.g. a confirmação do decidido pode conduzir a que o condenado cumpra esta pena de prisão e depois seja libertado, de seguida preso para cumprir a(s) pena(s) restante(s), quando logo de início se devia ter efectuado o cúmulo jurídico, que não foi feito, sendo o arguido o único prejudicado pois acaba por cumprir todas as penas em concurso sucessivamente, sem ver satisfeito o seu direito a uma pena única.
Há ainda o perigo, bem real infelizmente, em virtude de não se ter efectuado o cúmulo jurídico, e das deficientes informações entre processos, de o recorrente cumprir pena de prisão com outras penas suspensas, com o mais inacreditável cenário a ganhar foros de realidade: cumprir a pena aplicada em tempo mais remoto, cuja suspensão entretanto foi revogada por decisão que transitou em julgado, enquanto a pena mais recente continua suspensa...
Ora este incorrecto procedimento, desrespeitando a melhor interpretação e as boas práticas processuais, viola em elevado grau o direito do arguido a uma pena única, em tempo oportuno, de modo a não ser prejudicado em termos de liberdade condicional. Como estamos perante penas curtas de prisão, a concessão de liberdade condicional está dependente em qualquer dos casos do cumprimento de seis meses de prisão o que quase inviabiliza a aplicação deste instituto, art.º 61º n.º 2 do Código Penal.

Feito o diagnóstico importa agora tratar do remédio jurídico. Do exposto ressalta a evidência que o tribunal deixou de se pronunciar sobre questão que importava que tivesse apreciado: a determinação da pena única já que nos parece haver concurso. Essa omissão constitui nulidade da sentença, art.º 379º n.º 1 al. c.) do Código Processo Penal. Apesar de não arguida é de conhecimento oficioso, art.º 379º n.º 2 do Código Processo Penal.
Como na determinação da pena única são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, art.º 77º n.º 1 do Código Penal, oportunamente será considerada no tribunal recorrido, depois de ouvidos os sujeitos processuais, a necessidade de se reabrir a audiência apenas para esse fim.

Decisão:
Anula-se a sentença devendo ser proferida nova decisão que conheça do concurso de crimes em ordem a ser aplicada uma pena única a que acresce pena acessória, artºs 77º n.º 4 e 78º n.º 3 do Código Penal.

Sem tributação.
Honorários da tabela.

Porto, 29 de Setembro de 2004.
António Gama Ferreira Ramos
Rui Manuel de Brito Torres Vouga
Joaquim Rodrigues Dias Cabral
Arlindo Manuel Teixeira Pinto