Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | EDUARDA LOBO | ||
Descritores: | LEGÍTIMA DEFESA EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA | ||
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Nº do Documento: | RP20131211154/05.0GARSD.P1 | ||
Data do Acordão: | 12/11/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A exclusão da ilicitude da conduta por legítima defesa [art. 32º do CPenal] exige a presença de cinco requisitos objetivos e um elemento subjetivo, a saber, (i) a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, (ii) a atualidade da agressão, (iii) a ilicitude da agressão, (iv) a necessidade da defesa, (v) a necessidade do meio e (vi) o conhecimento da situação de legítima defesa – os três primeiros requisitos objetivos referem-se à situação em que o agente atua e os dois últimos à ação de defesa. II - Haverá excesso de legítima defesa quando, pressuposta uma situação de legítima defesa, se utiliza um meio desnecessário para impedir ou repelir a agressão. III - Tendo-se como definitivamente assente que "o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar fisicamente o ofendido" fica desse modo excluído o intuito defensivo, demonstrando-se, ao invés, o agressivo, pelo que em tal caso, já não se pode falar em legítima defesa nem em legítima defesa putativa (que se traduz na errónea suposição de que se verificam, no caso concreto, os pressupostos da defesa: a existência de uma agressão atual e ilícita). IV - A perturbação, medo ou susto, não censuráveis, referidos no º 2 do art. 33º do CPenal, respeitam ao excesso dos meios empregados em legítima defesa, isto é, aos requisitos da legítima defesa, melhor dizendo, da legitimidade da defesa: necessidade dos meios utilizados para repelir a agressão. Uma coisa é o erro sobre a existência de uma agressão atual e ilícita com base no qual o agente desencadeia a defesa (legítima defesa putativa) e outra distinta é a irracionalidade, imoderação ou falta de temperança nos meios empregues na defesa, resultante de um estado afetivo (perturbação ou medo) com que o agente atua. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 154/05.0GARSD.P1 1ª secção Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto I – RELATÓRIO No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Coletivo que corre termos no Tribunal Judicial de Resende com o nº 154/05.0GARSD, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferido acórdão, depositado em 05.02.2013, que condenou o arguido: - pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave p. e p. no artº 144º al. d) do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão suspensa na sua execução por igual período e acompanhada de regime de prova; - a pagar aos demandantes C…, D…, E… e F… a quantia de € 2.633,33 a título de indemnização por danos patrimoniais e a quantia de € 15.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida, em ambos os casos, de juros de mora, sendo sobre a primeira quantia desde a data da notificação e sobre a segunda desde a data do acórdão condenatório, até integral pagamento; - a pagar ao demandante Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E. a quantia de € 6.793,94 acrescida de juros legais desde a notificação até integral pagamento; - a pagar ao Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, E.P.E. a quantia de € 1.136,28, acrescida de juros legais desde a notificação até integral pagamento. Inconformado com o acórdão condenatório, dele veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões: 1. O presente recurso tem por objeto matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos; 2. O Ministério Público imputou ao arguido: a) a autoria material de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 22º, 23º nºs 1 e 2, 73º nºs 1 als. a) e b) e 131º, todos do Cód. Penal, com a agravação prevista nos nºs. 3 e 4 do artº 86º da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro e republicada pela Lei nº 17/2009 de 6 de Maio; b) Realizada a audiência de julgamento e, finda a produção de prova, o Tribunal, oficiosamente, no uso da faculdade conferida pelo disposto no artº 358º nº 1 do C.P.P. deliberou proceder a uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação no sentido de “Imputar-se ao arguido a prática de um crime de ofensa à integridade física grave p. e p. pelo artº 144º al. d) do Cód. Penal (presentemente com a agravação prevista nos nºs. 3 e 4 do artº 86º da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro – Regime Jurídico das armas e suas munições, republicada pela Lei nº 17/2009 de 6 de Maio”. Alterações estas que as partes aceitaram; 3. O acórdão recorrido reconheceu que o arguido agiu em legítima defesa mas condenou-o por a ter exercido com excesso apesar de ter reconhecido e aceite que a atuação do recorrente se enquadrava no denominado excesso asténico, devido ao medo, susto e perturbação e não lhe sendo censuráveis tais causas motivadoras – cfr. fls. 19 e 20 do acórdão; 4. Impunha-se nos termos do nº 2 do artº 33º do C.P., subsumir o comportamento do arguido na cláusula geral de exclusão da culpa e sua consequente não punição antes se decretando a sua absolvição, em obediência ao princípio de “sem culpa não há punição – nulla poena sine culpa”; 5. O acórdão viola a al. b) do nº 2 do artº 410º do C.P.P. existindo contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, pedindo-se, em consequência, a sua total revogação; 6. Para a hipótese de assim não suceder, o recorrente sindica as respostas que mereceram os factos nºs. 6, 8 e 9 da acusação pública com idêntica numeração nos factos provados com fundamento nos depoimentos das testemunhas G… e H… e relatórios clínicos, respetivamente, para o facto nº 6, 8 e 9, sendo ambos os depoimentos isentos e imparciais; 7. A resposta dada ao facto nº 6 não traduz, com fidelidade, o depoimento da testemunha, parecendo-nos que a deveria ter respondido da forma que segue ou doutra de sentido idêntico: “Entretanto, o I…, sempre acompanhado da irmã e cunhado, saiu do local, seguiu pelo caminho público procurando encontrar o arguido junta da casa da testemunha G…, tendo esta ao vê-los dito ao arguido “foge, vai-te embora, que eles vêm aí”; 8. Os caminhos eram bem conhecidos pelo ofendido fazendo parte do caminho público quer os degraus quer o troço do caminho em frente à sua casa, sendo aqui que desembocava obrigatoriamente o percurso seguido pelo arguido; 9. Tem-se por incorretamente julgado o ponto do nº 8 onde se afirma que o arguido “…disparou sobre o ofendido quatro tiros seguidos”, pelo facto do Tribunal se ter limitado a fundamentar a sua convicção no Registo Clínico do Hospital Distrital de Lamego desvalorizando, ao contrário, os registo clínicos do H.U. de Coimbra que referem apenas três feridas perfurantes por bala, sendo objetivos e dignos de crédito como o de Lamego. Cfr. fls. 335 dos autos e outras; 10. Na falta de mais elementos clarificadores dos Relatórios Clínicos deveria ter prevalecido o princípio de “in dubio pro reo” dando por assente terem sido disparados ao ofendido apenas 3 tiros por da prova testemunhal nada se ter apurado quanto a esse facto; 11. Para o recorrente, o Tribunal fez uso incorreto do princípio da livre apreciação da prova conferido pelo artº 127º do CPP, o que sindicam; 12. Dos factos que foram dados como não provados tem como incorretamente decidido não se ter dado como provado que o ofendido tenha proferido a expressão “vou-lhe cortar o pescoço” que consta do depoimento da testemunha J… – a 4ª testemunha indicada na acusação do Mº Pº, cujo depoimento está gravado através do sistema integrado de gravação gigital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo referindo a propósito: “Passei à porta dele (I…); ele ia a passar no caminho e ouvi-lhe as expressões …. “hei-de cortar-lhe o pescoço como quem corta a um cão”; 13. Depoimento que o tribunal a fls. 10 da decisão aceita mas desconsidera-o, por completo por, segundo diz, o Tribunal ficou sem perceber qual o exato momento em que a testemunha ouviu esta expressão, parecendo sim que estaria a referir-se ao primeiro momento” cfr. fls. 13, 1º parágrafo do acórdão; 14. Deve considerar-se relevante este facto, independentemente de ter sido proferido no 1º ou 2º momento, momento este que mais não é que a continuação do 1º, por tal circunstância não descaracteriza a carga de violência, perturbação e medo que o seu conteúdo em si mesmo, comporta e que, efetivamente causou no arguido causando um verdadeiro estado de afeto asténico; 15. Ao não valorar e ao não dar como provado que o arguido proferiu aquela expressão o Tribunal violou a al. c) do nº 2 do artº 410º do CPP, de forma lesiva para o recorrente ou, então, houve um erro na sua valoração; ao contrário, do entendimento do Tribunal, deveria ser respondido no sentido seguinte: “provado que proferiu essa expressão, ficando sem saber-se se no 1º ou 2º momento; Em todos os pontos da matéria de facto indicada estamos perante um erro notório de julgamento dessa matéria. 16. Revemo-nos nas doutas considerações jurídicas plasmadas no Acórdão de fls. 14, 15, 16, 17 e 18, respeitante à legítima defesa que aceitamos ter existido na conduta do arguido, questionamos apenas se existiu ou não excesso de legítima defesa e se este, a existir, foi doloso ou culposo, tendo, para nós, que o arguido não exorbitou dos meios utilizados e, se utilizados, o foi motivado pelo medo, susto e perturbação como o reconhece o Acórdão recorrido; 17. Na circunstância concreto em que os factos se processaram não era exigível ao arguido/defendente rápida e minuciosa valoração dos bens em jogo e meio utilizado para sua salvaguarda e cujo juízo valorativo deve reportar-se à situação “ex ante” onde rápido só é o tempo e o medo da perda de vida e o susto e perturbação a única medida da reação. “A posteriori” poderá ser possível e teoricamente fácil aquilatar da medida precisa e justa do modo de defesa mas só então porque aí o relógio para … 18. O nosso sistema jurídico protege quer a integridade física e a vida do ofendido mas também a do arguido e contra este estava em execução um crime não só de ofensa à sua honra, como também à sua integridade física e de morte como um cão e corte do pescoço, ou seja, o “iter criminis” iniciara-se e iria consumar-se da forma acima descrita; 19. Convenhamos que este cenário não era favorável em nada a uma valoração rápida, minuciosa e ponderada dos bens e meio em jogo, vindo à tona de qualquer homem o instinto da sobrevivência não existindo tempo e espaço para a frieza do raciocínio de forma a encontrar, com ponderação, a medida justa da sua reação e resposta; 20. Para o caso do Tribunal de 2ª instância não sufragar a posição do recorrido, o que sempre teremos de aceitar como hipótese de trabalho, trazemos também a Vosso Juízo a medida da pena aplicada ao arguido que beneficiando de atenuação especial, conforme Acórdão, a fls. 20, não se encontra bem graduada nos termos combinados de artºs. 144º al. d), 72º e 73º, todos do C.Penal devendo o seu limite máximo não ultrapassar os 36 a 40 meses. Atento o passado do arguido, ser primário, o relatório da Segurança Social imporiam, igualmente, a desnecessidade da aplicação da medida prevista a nº 2 da decisão (fls. 31); 21. O recorrente deve ser absolvido conjuntamente com a absolvição penal, mas para o caso do Tribunal de recurso assim o não entender, atento o baixo grau de culpa do recorrente e, ainda, o comportamento agressivo do ofendido para com a esposa e familiares, entendemos que, por razões de equidade, os danos morais nunca deverão ir acima dos seis mil euros (€ 6.000,00). * Na 1ª instância, o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo pela respetiva improcedência. * Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ser ordenado o reenvio parcial uma vez que a decisão recorrida padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação e, caso se entenda que as referidas deficiências podem ser removidas no âmbito do presente recurso, seja alterada a decisão e o arguido condenado como autor material de um crime de ofensa à integridade física grave p. e p. no artº 144º al. d) do Cód. Penal, mantendo-se a sanção aplicada, em obediência ao princípio da proibição da reformatio in pejus.* Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta. * Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência. * II – FUNDAMENTAÇÃO * O acórdão sob recurso considerou provados os seguintes factos: (transcrição) 1. Por volta das 20.30 horas, do dia 25 de Setembro de 2005, o arguido encontrava-se num prédio rústico, sito no …, freguesia …, concelho e comarca de Resende; 2. A poucos metros desse prédio, encontrava-se I… (melhor identificado a fls. 46), acompanhado da sua irmã K… e do marido desta, L…; 3. O arguido e o I… andavam de relações cortadas; 4. Ao avistar o arguido, o I…, de viva voz, dirigiu-se-lhe nos seguintes termos: «Ele está a ouvir-me. Hei-de matá-lo como se mata um cão. Ninguém se mete com os M…»; 5. Em face disto, o arguido abandonou o local e dirigiu-se para a sua residência, ali perto, tomando um caminho diferente do habitual, para evitar encontrar-se com aqueles três indivíduos; 6. Entretanto, o I…, sempre acompanhado da irmã e cunhado, saiu também do local, tomando depois o mesmo caminho percorrido pelo arguido; o L… levava uma vara de madeira na mão; 7. A dado momento, o arguido voltou-se para o I… e disse-lhe «pára, pára» e, de seguida, quando se encontrava a cerca de dois metros, de distância deste, empunhou a pistola de defesa semi-automática, marca Astra, calibre 6,35 mm Browning, com o número de série ….. e com as demais características descritas no relatório de exame pericial de fls. 433 a 436, que se dá por reproduzido, sua propriedade, a qual estava devidamente municiada com balas do referido calibre e pronta a disparar; 8. Ato contínuo, o arguido apontou o cano da dita pistola na direção da zona do baixo-ventre do corpo do I…, premiu o gatilho e disparou sobre ele quatro tiros seguidos; 9. Um dos projéteis atingiu a região inguinal esquerda do corpo do I…, um outro atingiu-o na coxa esquerda, no seu terço médio, outro projétil atingiu a coxa direita do ofendido, na sua face interna e região do terço médio e, por fim, a última bala foi atingir a mão esquerda do mesmo; 10. De seguida, o arguido entrou na sua residência e, imediatamente, telefonou para o Posto da GNR de Resende, dando conhecimento do sucedido e dizendo que queria entregar-se às autoridades; 11. Prontamente, uma patrulha da GNR deslocou-se então à casa do arguido e recebeu das mãos deste e apreendeu a referida pistola, com o respetivo carregador, o livrete de manifesto dessa arma, sete munições intactas de calibre 6,35 mm e um invólucro de bala do mesmo calibre e procedeu à sua detenção; 12. O ofendido I… foi conduzido ao Centro de Saúde de Resende, onde deu entrada pelas 20,40 horas do dia 25 de Setembro de 2005 e depois de aí lhe terem sido prestado os primeiros socorros, foi logo transferido para o Hospital Distrital de Lamego; 13. Foi atendido no Serviço de Urgência deste Hospital, pelas 21,44 horas desse mesmo dia, em choque hipovolémico, tendo sido submetido a uma intervenção cirúrgica, de exploração inguinal esquerda, em resultado da qual foi detetada laceração da artéria femural esquerda e feita a laqueação da mesma; 14. Dada a gravidade do seu estado clínico, foi transferido de helicóptero do INEM, entubado, sedado e ventilado, para os Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), onde deu entrada pelas 4,13 horas do dia seguinte (dia 26); 15. De imediato, entrou no Bloco Operatório, onde foi intervencionado pelo Serviço de Cirurgia Vascular dos referidos Hospitais, que lhe fez um enxerto ilío-femural esquerdo com veia safena interna homolateral invertida; 16. O pós-operatório foi complicado por acidose metabólica, coagulopatia e insuficiência respiratória, pelo que teve de ser internado no Serviço de Medicina Interna do dito HUC, onde permaneceu desde o dia 27 de Setembro até ao dia 8 de Outubro de 2005; 17. Após esta data, regressou ao referido Serviço de Cirurgia Vascular, onde ficou internado até ao dia 12 desse mês de Outubro, tendo tido alta hospitalar nesse dia, sendo transferido para a consulta externa, onde foi observado, com alta definitiva, em 2 de Dezembro de 2005; 18. Como consequência direta e necessária da descrita agressão, advieram para o ofendido os ferimentos e as lesões corporais mencionados nos relatórios e elementos clínicos e hospitalares de fls. 44/45, 59/62, 74/75 e 325/398 e no relatório de exame médico-legal de fls. 67/70, que aqui se dão por reproduzidos, designadamente, feridas perfurantes por arma de fogo, na região inguinal esquerda, com hemorragia em jacto, na coxa esquerda, no seu terço médio, na coxa direita, na sua face interna e região do terço médio e ferimentos na mão esquerda, que lhe determinaram doença pelo período de 68 dias, todos com incapacidade para o trabalho profissional, tendo havido ainda perigo concreto para a sua vida; 19. Do mesmo modo, resultaram para o ofendido as seguintes sequelas ou consequências permanentes: duas (2) cicatrizes operatórias na região inguinal esquerda, com 12 e 4 cm; duas (2) cicatrizes, com 1 cm cada, uma na região palmar e outra na região dorsal do 2º metacarpiano da mão esquerda; paratesias no dedo polegar e indicador dessa mão, com ligeira limitação dos movimentos; cicatriz com 1 cm, na face anterior do terço médio da coxa direita; cicatriz, com 1 cm, no terço médio da face anterior da coxa esquerda; limitação dos movimentos de flexão da coxa esquerda, quando são forçados os movimentos; limitação dos movimentos do membro inferior esquerdo, com deficiência vascular; dificuldades em se levantar, caminhar, subir e descer escadas ou rampas e em urinar; dor na região inguinal esquerda, com irradiação para o membro inferior esquerdo, com formigueiros no respetivo pé; 20. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar fisicamente o ofendido I…, tendo perfeito conhecimento de que a arma de fogo de que previamente se muniu e que utilizou, quando usada contra a integridade física de qualquer pessoa, era idónea a causar lesões graves e profundas, como causou, provocando-lhe perigo para a vida; 21. Este só não veio a falecer, em resultado da conduta do arguido, devido à pronta e eficaz assistência clínica e hospitalar que lhe foi prestada, na forma anteriormente relatada, designadamente, devido às duas intervenções cirúrgicas a que foi submetido, com êxito, no Hospital Distrital de Lamego e nos Hospitais da Universidade de Coimbra e aos cuidados intensivos de que beneficiou nesta última unidade hospitalar; 22. O arguido não ignorava que a sua conduta o fazia incorrer em responsabilidade criminal; 23. O ofendido I… nasceu no dia 27 de Junho de 1955 e faleceu no dia 27 de Junho de 2009 (cfr. fls. 809); 24. À data da ocorrência dos factos, era pessoa sem aparentes limitações físicas, dedicando-se à agricultura e criação de animais, atividade de onde retirava cerca de € 500,00 por mês; 25. Como resultado da agressão de que foi vítima, o ofendido ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 7 pontos; 26. Por força das lesões infligidas, o ofendido I… sofreu fortes dores e suportou incómodos, aborrecimentos e inquietações, apresentando sistematicamente queixas; 27. Sempre como resultado das lesões sofridas, o ofendido viu-se confinado a uma cama até ao dia 2/12/2005, data em que teve alta clínica; atenta a sua limitação funcional, usou uma bengala como auxílio para a marcha; 28.No decurso dos acontecimentos, o ofendido temeu pela sua vida, julgando que iria morrer baleado; nos meses que se seguiram aos acontecimentos, dormiu mal, com pesadelos; 29. O ofendido I… faleceu no estado de casado sob o regime de comunhão geral com a demandante C…, em primeiras e únicas núpcias de ambos, sem ter deixado testamento ou qualquer outra disposição de última vontade; deixou como herdeiros, para além da mencionada consorte, os três filhos demandantes D…, E… e F…; 30. Em consequência da agressão de que foi vítima, I… recebeu diversos tratamentos nos Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E., importando a assistência na quantia de €6.793,94; 31. Em consequência da agressão de que foi vítima, I… recebeu diversos tratamentos no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, E.P.E., importando a assistência na quantia de € 1.136,28; 32. O arguido é de origem rural e viveu durante a infância e juventude junto dos pais e irmãos, adquirindo precocemente hábitos de trabalho, apoiando a família nas suas atividades agrícolas e pecuárias, que permitiram garantir a sua sustentabilidade; 33. A partir de 1969, ingressou na PSP, onde fez uma carreira estável e linear, reformando-se há cerca de 17 anos; 34. O arguido é casado e mantém a coesão familiar; 35. O arguido é um indivíduo bem considerado e respeitado pela generalidade das pessoas que o rodeiam, não lhe sendo conhecidos comportamentos desviantes à vida em sociedade; 36. O arguido não tem antecedentes criminais. * Foram considerados não provados os seguintes factos: (transcrição) Não resultou provado que o motivo pelo qual o arguido e o I… andavam de relações cortadas fosse questões relacionadas com a propriedade de terrenos (ponto 3º da acusação); Ou que o ofendido I… tenha perseguido o arguido, em atitude ameaçadora, ou que tivesse proferido, durante o percurso, a seguinte expressão «Vou-lhe cortar o pescoço» (ponto 6º da acusação); Ou que o arguido tenha dito ao I… “…ou eu mato-te” (ponto 7º da acusação). * A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição) A convicção do tribunal resultou da conjugação de todas as declarações prestadas em sede de audiência com a documentação junta aos autos. Em primeiro lugar, temos as declarações do arguido B…, o qual referiu que ele e o I… andavam de relações cortadas, por causa de alegadas “cargas de porrada” que aquele infligia na mulher (sabe disso, porque a mulher do falecido I… é irmã da sua mulher); por causa destes desentendimentos, o I… já o tinha ameaçado várias vezes antes disso. Naquele dia, estava o I…, a irmã K… e o marido L…, enquanto que, junto dele, estavam os seus cunhados G… e o H…; ouviu o I… a provocá-lo, dizendo que o havia de matar como quem mata um cão; como tinham de passar junto de um portal perto do local onde estava o I…, tomou um caminho para evitar cruzar-se com ele; os seus cunhados G… e H… foram pelo caminho dito normal; quando estava novamente a chegar junto da sua cunhada G…, apareceu esta que dizia: “foge daí que eles vêm aí”; afirma que o L… uma vara na mão, enquanto que o I… trazia um pau na mão, ao mesmo tempo que dizia: “vou matá-lo, vou matá-lo, vou-lhe cortar o pescoço”. Naquele momento, encontrava-se junto à porta de casa da G…, sendo que ela se esgueirou para dentro de casa; quando eles estavam já a cerca de 2 ou 3 metros, deu dois tiros para o ar, mas eles continuaram a avançar sobre si e foi quando ele teve necessidade de dar mais três tiros para os pés; refere que a lesão da mão esquerda que apresentava o I… foi provocada cerca de um ano antes por causa de outra situação que nada tem a ver com o que se discute nos presentes autos. Depois disto, o L… só dizia que o havia de matar e o I… ainda disse: “deixa comigo que eu ainda hei-de acabar com ele”; de seguida, foi para casa, que fica ali perto, e telefonou para a GNR, porque estava com medo; afirma que não sabia se tinha acertado ou não, porque ele ficou na mesma e ficou de pé. O arguido refere ainda que nunca apresentou queixa em momento anterior, mas andava sempre armado, porque já suspeitava que algum dia pudesse acontecer algo semelhante; por fim e quanto às suas condições pessoais, diz que envia dinheiro para o filho que está em Angola; teve entretanto problemas de saúde em 2012; todos estes factos trouxeram-lhe infelicidade. O ofendido I… faleceu entretanto, pelo que não pode dar o seu contributo para o esclarecimento dos factos. Mas temos um depoimento clarificador por parte de G…, 75 anos, doméstica, cunhada do arguido; aliás, os sujeitos processuais foram unânimes ao considerar isentas e credíveis as declarações desta testemunha. Refere então que o I… andava chateado com o arguido por causa das respetivas mulheres, sendo que, numa outra altura, já tinha ouvido o I… a dizer que lhe havia de fazer a vida negra. A depoente confirma as pessoas que estavam no local; esclarece que quando estava a tirar um balde das batatas, ouviu o I… a dizer que havia de matar o B… como se fosse um cão, que ninguém se metia com os M…., que lhe havia de fazer a vida negra, que era um filho da puta, um corno; nesta altura, o arguido estava a falar com o seu marido H… e a depoente ficou preocupada com a situação; disse a testemunha ao arguido: “eu vou-me embora, mas tu vai por ali para evitar confusões”. E o arguido assim fez, desviando-se por outro lado; passado não muito tempo, voltou a ver o B… junto das escadas que passavam ao lado de sua casa onde ela já estava e disse-lhe para se ir embora, para não parar junto de si, porque eles vinham perto, continuando nesta altura com receio que houvesse confusão e que pudesse sobrar também para si; o L… trazia uma vara na mão, mas não era no ar; afirma que não viu nada na mão do I…. O B… “rompeu” então, afastou-se e subiu as referidas escadas; ela entrou para dentro de sua casa e o I… e o L… passaram à frente de sua casa, subindo também as escadas (afirma que, do fundo das escadas para cima, tomaram todos o mesmo caminho – o B… morava para aquele lado e o I… ia para cima porque era onde tinha o gado). Ainda ouviu o B… a dizer: “pára aí, pára aí”; depois ouviu um tiro e ficou aflita; passado algum tempo, ouviu o I… a dizer que tinha sangue quando ele ia a chegar à porta de sua casa; a depoente ainda viu sangue no chão, mas já não viu a ambulância, porque ficou transtornada com toda a situação. H…, 77 anos, cunhado do arguido e marido da anterior testemunha, afirma que estava no local juntamente com a sua mulher e com o arguido; ouviu o I… a dizer: “hei-de matar aquele corno, aquele filho da puta”, referindo-se ao arguido B…; a mulher disse-lhe então para ir por outro lado, porque não queriam que eles se pegassem uns com os outros e ele “azangou” (com esta expressão, pretende significar que o B… saltou num desnível de cerca de 2 metros). O depoente saiu também do local e, quando já ia desviado um bocado, a caminho das suas casas onde ia “empalhar o gado” (dar de comer aos animais), ouviu tiros; veio para trás e deparou com o I… deitado no chão; não viu qualquer pau ou vara nas mãos do I… ou do L1…. J…, 57 anos, doméstica (a mulher do arguido é sua prima), ouviu o I… dizer que havia de cortar o pescoço ao B… como quem corta o pescoço de um cão; mais tarde, foi a casa da sua filha e viu o I… ferido. O…, 80 anos, doméstica, estava em casa a falar com a filha ao telefone; depois, saiu de casa para fechar a porta do galinheiro; foi então que ouviu o I… a dizer que havia de matar o B… como quem mata um cão, mas não viu mais ninguém, nem tão pouco ouviu quaisquer tiros; ao ouvir aquelas expressões, logo pensou que se dirigia ao B…, porque sabia que andavam de relações azedas. Prosseguindo com as testemunhas arroladas pela acusação, surgem duas testemunhas que apresentam uma versão muito diferente do sucedido, facto a que não será alheia a maior proximidade do falecido I…. Assim, K…, 62 anos, doméstica, irmã do I…, refere que, na altura dos factos, estava com o marido e com o I… a comer; quando iam para cima deitar comida aos bois, o marido L… levava uma vara pequena na mão, como sempre acontece; foi quando viram o B… que saiu de casa e disse: “mãos o ar!”; ato contínuo, a cerca de 1,5/2 metros de distância, disparou 4 tiros; “foste tu, agora são vocês”, disse o arguido, virando-se para ela e para o seu marido; ela ficou com medo, o irmão ficou ferido e ela fugiu dali, desceu as escadas e foi telefonar aos bombeiros. O irmão foi depois transportado para Resende; de Resende para Lamego e dali para Coimbra; esteve em Coimbra como “Deus na cruz”, todo ligado a máquinas; não se podia alimentar nem mexer durante muito tempo; ele criava animais e era saudável, trabalhando todos os dias; sustentava a família com algum dinheiro que ganhava; teve dores e esteve muitos dias sem trabalhar; depois disto acontecer, o irmão nem conseguia dormir; ele ficou com receio de morrer. L…, 67 anos, marido da anterior testemunha, afirma que, naquele dia, estava com o I… e com a sua mulher; o depoente levava uma varinha nas mãos, como muitas vezes sucedia e que servia para se encostar (outras vezes trazia uma sachola); o I… ou a sua mulher nada traziam nas mãos; quando iam a passar para ir “empalhar o boi”, o B… saiu ao seu encontro e deu 4 tiros no I… quando estava cerca de 3 ou 4 metros; “agora foi ele e agora sois vós”, disse ele; depois do sucedido, o I… queixava-se de dores e sentia-se abatido; nunca mais foi o mesmo homem. P…, cabo da GNR do Posto de Resende, afirma que acorreram ao local na sequência do que lhe foi dito por um colega; existia um homem que tinha efetuado uns disparos e que se queria entregar; foram lá a casa do arguido e ele entregou-lhes a arma e as munições voluntariamente; o depoente afirma que nem chegou a entrar em casa e, segundo se recorda, o arguido não aparentava estar sobressaltado. Ora, começando pelo depoimento das testemunhas K… e L…, diga-se que não colhe a ideia de que o arguido os tenha abordado na rua e, sem mais nem porquê, logo desate a disparar contra o I…, ameaçando-os também de seguida, porque isto apenas sucede naqueles casos em que alguém, de forma premeditada, pretende deliberadamente tirar a vida a outra pessoa (se eles não se tivessem ainda visto naquele dia, como perceber que o arguido estivesse à espera deles naquele momento?) – ao invés, no caso que presentemente nos ocupa, é para todos evidente que os disparos são o culminar de uma sucessão de factos, tal como relatam as demais testemunhas. Porém, a versão trazia a julgamento pelo arguido também não convence na sua plenitude, porquanto nenhuma testemunha confirmou, por exemplo, que o I… trouxesse algum pau na mão, antes falando na pequena vara que o L… trazia na mão para se apoiar; também não colhe a ideia de ter disparado num primeiro momento dois tiros para o ar e depois mais três tiros em direção ao arguido – ninguém, repete-se, dá consistência a esta descrição. No que concerne às lesões sofridas pelo ofendido na sequência dos disparos, diga-se que, pese embora os registos clínicos dos HUC fazerem referência a “apenas” três perfurações (uma em cada coxa e uma da fossa ilíaca esquerda – fls. 62), o certo é que o Serviço de Urgência do Hospital Distrital de Lamego, que observou o I… logo depois da ocorrência, fala também de lesões da mão esquerda (fls. 60), ainda que esta ferida não tenha sido perfurante. O tribunal pode até admitir que o ofendido I… pudesse ter já um ferimento na mão; Q…, 79 anos, empresário de máquinas agrícolas, recorda-se que, a dada altura, conversou com o I… e viu-o com um braço ao peito, por causa de um tiro que tinha dado na mão (tinha dito ao médico que se tinha ferido com uma cavilha); esta conversa terá ocorrido cerca de meio ano antes desta ocorrência; viu-o já depois com a mão curada. Mas qualquer ferimento ocorrido em data anterior estaria já seguramente cicatrizado, pelo que não é crível que o pessoal médico, que viu o ofendido imediatamente depois de ter sido alvejado, se tenha equivocado nas lesões observadas. E a verdade é que o relatório do IML de fls. 67-70 fala precisamente em três cicatrizes na mão esquerda, o que é compatível com lesões provocadas em diferentes momentos. Por outro lado, o tribunal não tem por certo que o I…, acompanhado da sua irmã e cunhado, tenham “perseguido o arguido, em atitude ameaçadora”; com efeito e pese embora a testemunha G…, já junto a sua casa, tenha aconselhado o arguido a subir as escadas para não se voltarem a cruzar, tal ficou a dever-se ao que se tinha passado momentos e não propriamente por se ter apercebido de uma qualquer perseguição, tanto mais que disse que também o I… tomou aquele caminho que passa à frente de sua casa por causa do seu gado. Como ninguém, à exceção do arguido, fala em qualquer pau na mão do ofendido I…, fazendo tão só referência a uma pequena vara na mão do cunhado L… utilizada para se apoiar; nesta sequência, também não foi corroborada em sede de audiência por qualquer testemunha a expressão “vou-lhe cortar o pescoço” alegadamente proferida neste segundo momento – note-se que a J… afirma que ouviu o I… dizer que havia de cortar o pescoço ao B…. como quem corta o pescoço de um cão, misturando as expressões dos pontos 4º e 6º da acusação, ficando o Tribunal sem perceber qual o exato momento em que a testemunha ouviu esta expressão, parecendo sim que se estaria a referir ao primeiro momento. Como não ficou demonstrado que o arguido tivesse também dito ao I… que se ele não parasse, o matava – uma vez mais, a testemunha G… apenas ouviu a expressão; “pára aí, pára aí”. Por tudo, o tribunal não tem pois dúvidas em considerar que o arguido efetuou efetivamente quatro disparos em direção ao ofendido, não com intenção de lhe tirar a vida, o que de resto determinou já a alteração não substancial dos factos e subsequente enquadramento jurídico, mas antes para o ofender na sua integridade física – se quisesse atirar a matar, para mais um agente aposentado da PSP, bem sabia que deveria apontar a arma mais para cima, em direção à cabeça e tronco da vítima; de qualquer forma, o tribunal retomará mais adiante esta problemática, onde se abordará igualmente o problema de uma hipotética legítima defesa. Quanto aos pedidos cíveis formulados, o tribunal atendeu a toda a documentação junta aos autos, designadamente fls. 712, 716 e o teor do relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito cível junto a fls. 822-825. Mais considerou o depoimento de S…, 47 anos, doméstica, companheira de um irmão do falecido I…, a qual afirmou que ele ficou impossibilitado de andar durante muito tempo; dizia que tinha muitas dores que o impediam também de dormir convenientemente (acordava com pesadelos por causa dos tiros); antes de levar o tiro, o I… era um homem forte, robusto e cheio de saúde; trabalhava na agricultura e era o sustento da casa; a mulher ia ajudando o marido no que podia; não sabe quanto é que ele poderia ganhar, mas diz que um trabalhador agrícola poderia, quando solicitado, pode receber cerca de € 25,00 por dia (neste ponto da remuneração, pese embora não ser apresentado qualquer documento de suporte, o tribunal tem por ajustado um valor de € 500,00 mensais, valor que ronda o salário mínimo nacional); depois dos tiros, nunca mais foi o mesmo homem para trabalhar; viu a sua forma de vida completamente alterada. Por fim, as testemunhas de defesa abonaram o comportamento do arguido. T…, 59 anos, chefe de polícia na pré-aposentação; trabalhou com o arguido durante muito tempo, considerando-o uma pessoa honesta, bem-educada; mais esclareceu que, no tiro instintivo, o alvo é uma silhueta, enquanto que no tiro de precisão o alvo é um ponto preciso. U…, 68 anos, agente da PSP aposentado, tem o arguido como boa pessoa, sendo um homem respeitador e bem inserido na sociedade. O já referido Q… tem o arguido como pessoa honesta, respeitador e de bom relacionamento com os outros. O tribunal mais considerou o teor do relatório social junto a fls. 810-813, ou ainda o CRC do arguido junto a fls. 878 dos autos. * III – O DIREITO * O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2]. Considerando, porém, que o Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, suscita a questão da existência, no acórdão recorrido, de vícios a que alude o artº 410º nº 2 do C.P.P., importa apreciar em primeiro lugar a questão suscitada, já que a sua eventual procedência é suscetível de determinar o reenvio dos autos à 1ª instância nos termos do artº 426º do C.P.P. Alega o Sr. PGA que a decisão padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, na medida em que, ao condenar o arguido por ter atuado com excesso de legítimas defesa, proferiu uma decisão de direito que os factos dados como provados não comportam, por não se encontrarem descritos factos suscetíveis de configurarem qualquer agressão, atual ou iminente na pessoa do arguido, que lhe pudesse conferir o direito de praticar os atos que praticou, no exercício de legítima defesa. Por outro lado, no entender do Sr. PGA, a decisão padece ainda do vício de contradição insanável entre os factos provados, a fundamentação e a decisão pois, para além de não constar dos factos provados qualquer agressão atual ou iminente, empreendida pela vítima, nem qualquer facto que configure o animus defendendi, dá-se como provado que, ao disparar quatro tiros de pistola, o arguido “agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar fisicamente o ofendido” e como não provado que “o ofendido I… tenha perseguido o arguido, em atitude ameaçadora, ou que tivesse proferido durante o percurso, a seguinte expressão «vou-lhe cortar o pescoço»”. Acresce que tal factualidade está em flagrante contradição com a afirmação de que o arguido agiu com intenção de se defender, pois que se “agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente o ofendido”, não pode simultaneamente afirmar-se que disparou com a intenção de se defender. Vejamos: Como vem sendo afirmado exaustivamente pela doutrina e jurisprudência, os vícios da decisão a que alude o nº 2 do artº 410º do C.P.P. têm que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[3], tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada. O vício previsto na al. a) do preceito consiste na insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito. A matéria de facto provada não permite uma decisão de direito, necessitando ser completada. A insuficiência deve existir internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Tem de se verificar matéria de facto insuficiente para a decisão por haver lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito[4]. “É a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre facto(s) alegado(s) ou resultante(s) da discussão da causa que seja(m) relevante(s) para a decisão ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão. O vício nada tem a ver com insuficiência de prova (se não é feita prova bastante de um facto e, sem mais, ele é dado como provado, haverá então um erro na apreciação da prova) nem com insuficiência dos factos provados para a decisão de direito proferida (em que também há erro já não na decisão sobre a matéria de facto mas, sim, na qualificação jurídica desta”[5]. A aferição do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, faz-se cotejando os factos acolhidos na decisão com aqueles que são objeto do processo, ou seja, com aqueles que foram alegados pela acusação e pela defesa, bem como os que resultarem da prova produzida em audiência, sendo estes aqueles que, de acordo com o disposto no nº 4 do art. 339º do C.P.P., a discussão da causa tem por objeto. “Na pesquisa do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artigo 410º nº 2 alínea a) do Código de Processo Penal, há que averiguar se o tribunal, cingido ao objeto do processo desenhado pela acusação ou pronúncia, mas vinculado ao dever de agir oficiosamente em busca da verdade material, desenvolveu todas as diligências e indagou todos os factos postulados por esses parâmetros processuais, concluindo-se pela verificação de tal vício - insuficiência - quando houver factos relevantes para a decisão, cobertos pelo objeto do processo (mas não necessariamente enunciados em pormenor na peça acusatória) e que indevidamente foram descurados na investigação do tribunal criminal, que, assim, se não apetrechou com a base de facto indispensável, seja para condenar, seja para absolver”[6]. Já a “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. No caso em apreço, porém, o que se verifica, salvo o devido e merecido respeito pela opinião emitida pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, não obstante a aparente insuficiência de factos provados para a decisão de direito proferida, o que se verifica, dizíamos, é um manifesto erro de direito, no que respeita à subsunção jurídica da factualidade apurada. Com efeito, ao efetuar o enquadramento jurídico dos factos que considerou provados, o tribunal entendeu que o arguido agiu em legítima defesa, quando o certo é que não consta da matéria de facto provada qualquer agressão ilícita, atual ou iminente praticada pelo ofendido, e que o arguido tenha agido com o intuito de afastar ou evitar essa agressão. Ou seja, a matéria de facto provada não comporta a decisão de direito proferida, não porque aqueles factos sejam insuficientes para a decisão, mas porque os mesmos foram obejto de uma errada integração jurídico-penal. Conclui-se, assim, que não há contradição insanável da fundamentação quando o que se verifica, de facto, na decisão, é uma errada subsunção jurídico-penal dos factos provados. Nesse caso, tratar-se-á apenas de um erro de direito, que se situa para além da questão de facto e, por isso, dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do C.P.P. Considerando, porém, que o arguido impugnou a matéria de facto provada, importa proceder à respetiva apreciação, para se concluir se, em caso de procedência da impugnação, a alteração da matéria de facto que vier a ter lugar, permitirá ou não configurar uma situação real de atuação em legítima defesa. * De acordo com as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões que o mesmo pretende ver reapreciadas, consistem em saber: - se se mostram corretamente julgados os factos descritos nos pontos 6, 8 e 9 da MFP[7]; - se deve considerar-se provado o facto “não provado”: «que o ofendido I… tenha perseguido o arguido e que proferiu a expressão “vou-lhe cortar o pescoço”, ficando sem saber-se se no 1º ou 2º momento»; - se o excesso de legítima defesa com que o arguido agiu foi doloso ou meramente culposo; - se a pena concreta aplicada é excessiva, não devendo ultrapassar os 40 meses de prisão; - se a indemnização fixada a título de danos morais não deverá fixar-se acima dos € 6.000,00. * Quanto à impugnação da matéria de facto: Antes de mais importa realçar que, como se refere nos doutos acórdãos do S.T.J de 15.12.2005 e de 09.03.2006 (procs. Nº 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos relatados por Simas Santos e acessíveis in www.dgsi.pt), e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros». A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto[8]. E, como se refere no Ac. desta Relação do Porto de 26.11.2008[9] «não podemos esquecer a perceção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido diretamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores», fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reações, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam»[10]. Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário. Quando, no artigo 412º, nº 3, b), do C.P.P., se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade. A esta luz, vejamos o que alega o arguido/recorrente. Sustenta o recorrente que o facto provado nº 6 deveria ter a seguinte redação, de forma a expressar fielmente o depoimento da testemunha G…: «entretanto, o I…, sempre acompanhado da irmã e cunhado, saiu do local, seguiu pelo caminho público procurando encontrar o arguido junto da casa da testemunha G…, tendo esta ao vê-los dito ao arguido “foge, vai-te embora, que eles vêm aí». Ora, após termos procedido à audição do depoimento prestado em audiência pela testemunha G…, verifica-se que esta testemunha, em momento algum referiu que o I… seguiu pelo referido caminho de forma a encontrar o arguido junto à casa da testemunha. O que esta testemunha referiu foi que “quando estava junto ao seu tanque a lavar umas batatas, acompanhada do seu marido e do arguido, depois de ter passado pelo I…, que se encontrava acompanhado pela K… e pelo marido desta, L…, ouviu o I… dizer, referindo-se ao arguido B…: “Eu hei-de matá-lo, hei-de matá-lo como quem mata este cão!” Entretanto, a testemunha foi-se embora por um caminho em direção à sua casa, o marido foi atrás dela e o arguido foi por outro caminho. Quando a testemunha chegou à porta da sua casa (sala), pousou o balde no chão e encostou-se numa casa. “Nisto, o B… entrou também pelas escadas acima, ia a chegar perto de mim, eu olhei assim para baixo e disse-lhe assim: “Vai breve, vai-te embora, olha que eles já vêm ali”. Já vinham perto uns dos outros. Porque o B… ia a parar ali ao pé de mim. À pergunta da Srª Procuradora: Mas eles vinham também normalmente a andar, não é? A testemunha G… respondeu: Se eles não viessem a andar, se estivessem parados, eu não lhe dizia nada. Srª Procuradora: Quando eles vinham mais atrás do arguido, eles vinham calados, ou como é que vinham? Testemunha: Eu nem dei tempo de ouvir nada. Quando o B… passou para cima, eu peguei no balde e rompi, entrei para dentro da minha cozinha. E eles passaram à porta da cozinha para cima e eu pousei o balde no chão e fiquei assim estática, com a porta aberta. Nisto, ouvi o B… dizer: “Para aí, para aí!” E não ouvi dizer mais nada. Só ouvi um tiro e eu, consoante ouvi o tiro, sentei-me em cima de um banco que lá estava, extraviada da cabeça. Não ouvi mais nada. Já não defini mais nada. Não sabia quem tinha levado o tiro, nem quem o tinha dado. Srª. Procuradora: Então só foi um tiro que a Srª. ouviu? Testemunha: Eu depois já não atinei mais nada. Srª Procuradora: Para onde é que eles iam? O L… e os outros? Testemunha: Eles depois pegaram a dizer que iam empalhar um boi. Se eles iam ou não, eu não sei. Advogado dos demandantes: O percurso que o I… estava a fazer era em direção à loja onde estavam os bois? Testemunha: Era em direção à loja onde estavam os bois. Advogado do arguido: O que é que a Srª. sentiu para dizer ao B…: “Vai-te embora, vai-te embora, que eles vêm aí!” Porque é que lhe disse isso? Testemunha: Eu disse-lhe aquilo porque eles vinham a chegar e eles já tinham estado a barafustar em baixo e eles chegavam lá, começavam por lá a “machucá-los” e quem apanhava era eu também. E então mandei-o embora para não me incomodar a mim. […] O caminho que o B… levou para ir para casa, não foi o mesmo que levou o I…. Advogado do arguido: Sabe se os outros apressaram o passo ou se vieram no passo igual? Testemunha: Isso não posso dizer porque eu entrei para dentro da cozinha e não estive a ver como eles andavam. Advogado do arguido: Ele disparou os tiros. Porquê? Estaria com medo? Testemunha: Então eu é que sei? Eu não advinho porque é que foi!! Ou seja, para além de a testemunha G… ter dito que o arguido e o I… tomaram caminhos diferentes até chegarem ao local onde foram disparados os tiros, não conseguiu dizer (por não saber) se o I… e os seus acompanhantes vinham ou não em passo apressado, eventualmente em perseguição do arguido B…. Como bem se refere na motivação da decisão recorrida «o tribunal não tem por certo que o I…, acompanhado da sua irmã e cunhado, tenham “perseguido o arguido, em atitude ameaçadora”; com efeito e pese embora a testemunha G…, já junto a sua casa, tenha aconselhado o arguido a subir as escadas para não se voltarem a cruzar, tal ficou a dever-se ao que se tinha passado momentos e não propriamente por se ter apercebido de uma qualquer perseguição, tanto mais que disse que também o I… tomou aquele caminho que passa à frente da sua casa por causa do seu gado». No que respeita à expressão que a testemunha G… refere ter dirigido ao arguido B… “Vai breve, vai-te embora, olha que eles já vêm ali”, para além de tal facto não constar da acusação, nem ter sido alegado pela defesa (cfr. contestação de fls. 791 e 792), pese embora tenha resultado da discussão da causa, é de todo irrelevante para o apuramento da responsabilidade criminal do arguido, na medida em que nem o próprio arguido alega ter sido determinado à prática dos factos ao ouvir aquela expressão. Ora, a descrição da matéria de facto que, em cumprimento do disposto no artº 374º nº 2 do CPP, o tribunal deve efetuar, satisfaz-se com a enunciação dos factos provados e não provados, com relevo para a decisão, sendo que são relevantes para a decisão os factos suscetíveis de sustentar uma condenação penal ou uma absolvição, bem como os factos necessários para a determinação da sanção. Não cumpre o desiderato legal a transcrição do relato das testemunhas ou das expressões que as mesmas eventualmente terão proferido no momento da prática dos factos, designadamente se não interferiram com a ocorrência dos mesmos. Finalmente, ainda se dirá, que das referidas expressões proferidas pela testemunha G… não é possível concluir que o ofendido I… e os seus acompanhantes viessem, efetivamente, em perseguição do arguido, como muito bem se explica na parte da motivação atrás transcrita. Improcede, assim, a pretendida alteração do ponto 6 da MFP. * Quanto aos pontos 8 e 9 da MFP: Sustenta o recorrente que o tribunal recorrido não poderia ter dado como provado que disparou quatro tiros, quando os registos clínicos do H.U. de Coimbra fazem referência apenas a 3 orifícios de entrada de projétil e a prova testemunhal produzida nada traz de concreto e objetivo a este respeito. Antes de mais, importa referir que o tribunal recorrido descreveu na motivação da decisão de facto os motivos que levaram a concluir terem sido disparados quatro tiros e não três, em direção ao corpo do ofendido. Como ali se refere «no que concerne às lesões sofridas pelo ofendido na sequência dos disparos, diga-se que, pese embora os registos clínicos dos HUC fazerem referência a “apenas” três perfurações (uma em cada coxa e uma da fossa ilíaca esquerda – fls. 62), o certo é que o Serviço de Urgência do Hospital Distrital de Lamego, que observou o I… logo depois da ocorrência, fala também de lesões da mão esquerda (fls. 60), ainda que esta ferida não tenha sido perfurante. O tribunal pode até admitir que o ofendido I… pudesse ter já um ferimento na mão; Q…, 79 anos, empresário de máquinas agrícolas, recorda-se que, a dada altura, conversou com o I… e viu-o com um braço ao peito, por causa de um tiro que tinha dado na mão (tinha dito ao médico que se tinha ferido com uma cavilha); esta conversa terá ocorrido cerca de meio ano antes desta ocorrência; viu-o já depois com a mão curada. Mas qualquer ferimento ocorrido em data anterior estaria já seguramente cicatrizado, pelo que não é crível que o pessoal médico, que viu o ofendido imediatamente depois de ter sido alvejado, se tenha equivocado nas lesões observadas. E a verdade é que o relatório do IML de fls. 67-70 fala precisamente em três cicatrizes na mão esquerda, o que é compatível com lesões provocadas em diferentes momentos». Conclui-se assim que o tribunal recorrido não desvalorizou os registos clínicos do HUCoimbra, mas conjugou-os com os registos do Hospital Distrital de Lamego, para concluir terem sido efetuados quatro disparos em direção ao ofendido. Refira-se, aliás, que o próprio arguido admite ter efetuado cinco disparos, pese embora tenha especificado que dois deles foram para o ar e três em direção aos pés do ofendido. Da descrição factual e da motivação da decisão recorrida resulta que o tribunal não teve dúvidas sobre este facto, tendo, na dúvida, decidido contra o arguido, pelo que não se mostra violado o princípio “in dubio pro reo”. * Pretende ainda o arguido/recorrente que se considere provado o facto que o tribunal recorrido considerou “não provado”, isto é, que «ao perseguir o arguido em atitude ameaçadora, o I… tenha proferido a seguinte expressão “vou-lhe cortar o pescoço”. Alega que, tendo a testemunha J… referido que ouviu o I… dizer “hei-de cortar-lhe o pescoço como quem corta a um cão”, não se tendo provado se o fez no 1º ou no 2º momento, devia ter-se considerado provado que: o ofendido “proferiu essa expressão, ficando sem saber-se se no 1º ou no 2º momento”. Ora, para além de tal facto, assim formulado, nada de útil trazer para a decisão da causa, o tribunal recorrido já considerara provado no ponto 4 da MFP que “Ao avistar o arguido, o I…, de viva voz, dirigiu-se-lhe nos seguintes termos: «Ele está a ouvir-me. Hei-de matá-lo como se mata um cão. Ninguém se mete com os M…». Tais expressões, como resulta dos pontos 1 e 2 da MFP, foram proferidas quando todos se encontravam num prédio rústico (que pode considerar-se o 1º momento) e não quando já estavam junto às casas do arguido e da testemunha G… (que pode considerar-se como 2º momento). Acresce que o depoimento da testemunha J…, nessa parte, está em flagrante contradição com o depoimento da testemunha G… que refere não ter ouvido qualquer expressão proferida pelo I…, quando se encontrava perto da sua casa. Improcede, por isso, e também nesta parte, a impugnação da matéria de facto. * Da legítima defesa e do respetivo “excesso”:Considerou-se na decisão impugnada que o arguido atuou em legítima defesa, embora com excesso motivado pelo medo. Vejamos: Terá ocorrido, de facto, uma situação de legítima defesa? E a ter havido, verifica-se, face à matéria de facto provada, uma situação de «excesso de legítima defesa»? Quanto à causa de exclusão da ilicitude, há que dizer o seguinte: Dispõe o art. 32.º do Código Penal: «Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro». Adianta depois o artigo 33.º do mesmo diploma: «1. Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada. 2. O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis». A legítima defesa – causa de exclusão da ilicitude tipicamente prevista na letra dos artigos 31º e 32º do CP - tem por requisitos, como claramente decorre do texto legal, a ocorrência de uma agressão (sendo ela toda a lesão ou perigo de lesão de um interesse próprio ou de outra pessoa protegido pelo ordenamento jurídico – H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal Parte General - 4ª edição - 1993, p. 303) levada a cabo por um comportamento humano voluntário e consciente, devendo esta ser atual, isto é, estar a realizar-se, em desenvolvimento ou iminente (a iminência da agressão afere-se, habitualmente, pela ocorrência de situação perigosa, a qual se caracteriza pela prática de atos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes siga o ato agressivo, isto é, a agressão, ilícita, ou seja, não ter o agressor direito a infligir ou a praticar a agressão, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou se tratar de um inimputável[11], só evitável ou neutralizável através de uma ação ou ato de defesa, ato que, atenta a sua função, qual seja a de impedir ou repelir a agressão, deve limitar-se à utilização do meio ou meios, suficientes para evitá-la ou neutralizá-la, consabido que em consequência desse ato ir-se-ão atingir bens ou interesses do agressor. A legítima defesa não é nem pode redundar numa ação punitiva, a ela se encontrando subjacente o princípio do maior respeito pelo agressor[12]. Desta forma, «meios adequados» para impedir ou repelir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes, eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor, serão considerados desnecessários e, como tal, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido[13]. Igualmente, devem ser considerados inadequados os meios que, apesar de pouco danosos para o agressor, não dispõem de quaisquer possibilidades de impedir a agressão ou de dissuadir o agressor. Por isso, tem-se decidido que o juízo sobre a adequação do meio de defesa não pode deixar de ter em consideração as circunstâncias concretas de cada caso: o bem ou interesse agredidos, o tipo e a intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de atuar, a capacidade físico-atlética do agressor e do agredido, bem como os meios de defesa disponíveis e as demais circunstâncias relevantes ocorrentes[14]. No fundo, trata-se de um juízo objetivo e ex ante, pelo que o julgador se terá de colocar na posição que assumiria uma pessoa prudente perante as circunstâncias concretas ocorrentes, sem esquecer que a exigência de utilização do meio menos gravoso para o agressor não pode levar a fazer recair sobre o agredido riscos para a sua vida ou integridade física, a significar que o defendente não está obrigado a recorrer a meios ou medidas cuja eficácia para a sua defesa é duvidosa ou incerta. A defesa só é legítima se surgir como indispensável para a salvaguarda de um interesse jurídico do agredido ou de terceiro - o meio menos gravoso para o agressor. A necessidade da defesa tem de ajuizar-se segundo o conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão e, em particular, na base da necessidade desta, da perigosidade do agressor e da sua forma de atuar, bem como dos meios de que se dispõe para a defesa, e deve aferir-se objetivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido. No que concerne ao elemento subjetivo, não obstante grande parte da nossa jurisprudência e certo setor da doutrina continuem a exigir a ocorrência de animus defendendi, isto é, a vontade de defesa, muito embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, tais como indignação, vingança e ódio[15], a verdade é que se tem vindo ultimamente a entender, na esteira da doutrina mais recente[16] que o elemento subjetivo da ação de legítima defesa se restringe à consciência da «situação de legítima defesa», isto é, ao conhecimento e querer dos pressupostos objetivos daquela concreta situação, o que se justifica e fundamenta no facto de a legítima defesa ser a afirmação de um direito e na circunstância do sentido e a função das causas de justificação residirem na afirmação do interesse jurídico (em conflito) considerado objetivamente como o mais valioso, a significar que, em face de uma agressão atual e ilícita, se deve ter por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os atos que, objetivamente, se mostrem necessários para a sua defesa[17]. Decidiu, deste modo, o Ac. Rel. Coimbra de 17.09.2003[18]: «A exigência do animus defendendi revela-se, aliás, desprovida de sentido, uma vez que se ocorrem os requisitos da «situação de legítima defesa» – agressão atual e ilícita, verificando-se que o defendente não teve outro remédio que defender-se (necessidade de defesa) –, pouco importa, obviamente, que tenha sido motivado por indignação, vingança ou ódio (neste preciso sentido Quintero Olivares, Derecho Penal Parte General (1992), 461). Por isso, o texto do art. 32º, do Código Penal, ao aludir «… ao facto praticado, como meio necessário, para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro», ao contrário do expressamente defendido por Leal Henriques/Simas Santos que ali detetam a exigência do animus defendendi, não significa outra coisa que a consciência da agressão e a necessidade de defesa». Seremos forçados, neste particular, a defender uma tese algo mista, concordante com a doutrina de Fernanda Palma, exarada no artigo «Legítima Defesa», incluído na obra «Casos e Materiais de Direito Penal»[19]: «A legítima defesa exige uma efetiva consciência pelo defendente da situação defensiva. Não se configura como defesa nem uma proteção inconsciente e causal do agente relativamente a uma agressão nem a provocação pré-ordenada pelo defendente de uma situação de legítima defesa. Não será, exigível, propriamente, um animus defendendi, no sentido de a defesa ser a exclusiva motivação do defendente, mas é necessário que a conduta que se opõe à agressão ilícita seja explicável como defesa na linguagem social – o que impõe uma ação conscientemente dirigida à defesa, em que a agressão seja motivo determinante do agir». Ora, a ausência dessa consciência impede a justificação por legítima defesa. Assim, e em suma, poderemos dizer que a exclusão da ilicitude de uma conduta, ao abrigo do artigo 32º do Código Penal, exige a presença de cinco requisitos objetivos e um elemento subjetivo, a saber, a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, a atualidade da agressão, a ilicitude da agressão, a necessidade da defesa, a necessidade do meio e o conhecimento da situação de legítima defesa, sendo que os três primeiros requisitos objetivos se referem à situação em que o agente atua e os dois últimos à ação de defesa. Já haverá excesso de legítima defesa quando, pressuposta uma situação de legítima defesa, se utiliza um meio desnecessário para impedir ou repelir a agressão. Estabelecidos os princípios à luz dos quais há que analisar a factualidade apurada, vejamos se os requisitos da legítima defesa se verificam ou não, sendo certo que para haver excesso de legítima defesa é necessário que ocorram os pressupostos da legítima defesa, uma vez que o excesso só poderá verificar-se em relação aos meios empregados na defesa. Como se disse, a agressão deverá ser atual e é atual quando é iminente, já se iniciou ou ainda persiste. Como sustenta Figueiredo Dias[20], a agressão é iminente quando o bem jurídico se encontra já imediatamente ameaçado. A iminência da agressão afere-se, habitualmente, pela ocorrência de situação perigosa, a qual se caracteriza pela prática de atos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes siga o ato agressivo, isto é, a agressão; uma defesa será, à partida, legítima até ao momento em que a mesma se revele imperiosa ou fundamental para travar definitivamente a respetiva agressão. No caso sub judice, não há dúvidas de que a vítima proferiu expressões ameaçadoras da vida ou da integridade física do arguido. Momentos antes da ocorrência dos factos, a vítima disse, aludindo ao arguido e de forma a ser ouvido por este: “Hei-de matá-lo como se mata um cão”. Contudo, não praticou qualquer ato de execução do qual pudesse logicamente inferir-se que viria a agredir o arguido por forma a causar-lhe a morte. E nem sequer, quando se aproximou da casa do arguido, vinha munido com qualquer arma ou objeto suscetível de ser empregue com aquela finalidade. Inexistindo quaisquer atos de execução da anunciada agressão, os tiros que o arguido disparou não constituíram meio necessário para repelir qualquer agressão por parte do ofendido I…. Por outro lado, tendo-se como definitivamente assente que “o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar fisicamente o ofendido I…” fica desse modo excluído o intuito defensivo, demonstrando-se, ao invés, o agressivo, pelo que em tal caso, já não se pode falar em legítima defesa. E também não se pode afirmar ter o arguido agido em legítima defesa putativa. A legítima defesa putativa traduz-se na errónea suposição de que se verificam, no caso concreto, os pressupostos da defesa: a existência de uma agressão atual e ilícita. A perturbação medo ou susto não censuráveis, de que fala o nº 2 do artigo 33º do Código Penal respeitam ao "excesso dos meios empregados em legítima defesa, isto é, aos requisitos da legítima defesa, melhor dizendo, da legitimidade da defesa: necessidade dos meios utilizados para repelir a agressão. Uma coisa é o erro sobre a existência de uma agressão atual e ilícita com base no qual o agente desencadeia a defesa (legítima defesa putativa) e outra distinta é a irracionalidade, imoderação ou falta de temperança nos meios empregues na defesa, resultante do estado afetivo (perturbação ou medo) com que o agente atua. Provado que o arguido, “agindo de forma livre, voluntária e consciente, com conhecimento de que a arma de fogo que utilizou, quando usada contra a integridade física de qualquer pessoa, era idónea a causar lesões graves e profundas, como causou, provocando-lhe perigo para a vida”, está perfeitamente configurado o dolo direto, tanto no seu elemento inteletual como no seu elemento volitivo, nos termos do artigo 14º nº 1 do Código Penal. Da factualidade apurada só pode chegar-se à conclusão de que não ocorreu uma situação enquadrável na legítima defesa. A conclusão de direito a que chegou o tribunal recorrido (ao efetuar o enquadramento jurídico dos factos provados) e que o arguido/recorrente se esforça por manter ao invocar atuação em legítima defesa, esquece por completo que não se provaram factos que a façam funcionar ou suscitem fundadas dúvidas sobre ela e que, em nome do princípio in dubio pro reo, que lhes é extensivo, reverteriam em favor do arguido. Face à factualidade apurada, não ocorrendo os pressupostos da legítima defesa, que leva em consequência à não existência desta, é óbvio que também não pode verificar-se o excesso de legítima defesa. Fica assim prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pelo recorrente. Aliás, concluindo-se não ter o arguido agido em legítima defesa e com excesso de meios empregues, não se justifica a atenuação especial da pena de que beneficiou na decisão recorrida. Considerando, porém, que só foi interposto recurso pelo arguido, o princípio da proibição da reformatio in pejus constante do nº 1 do artº 409º do C.P.P. não permite que se possam retirar consequências desfavoráveis em termos de medida da pena. A proibição da reformatio in pejus, é uma medida protetora do direito de recurso em favor do arguido, visando garantir ao arguido recorrente ou ao Ministério Público quando recorre no exclusivo interesse daquele, que o arguido não será punido com sanções mais graves pelo tribunal superior competente para conhecer do recurso. Razão por que, considerando ter-se o arguido constituído autor material de um crime de ofensa à integridade física grave p. e p. no artº 144º al. d) do Cód. Penal, se mantém a pena de 4 (quatro) anos de prisão imposta na 1ª instância, pena essa suspensa na respetiva execução e acompanhada de regime de prova nos termos ali definidos. * IV – DECISÃO * Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B… e, alterando embora o enquadramento jurídico-penal dos factos provados, mantêm a pena imposta no acórdão recorrido. Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s – artº 8º nº 9 do RCP e tabela III anexa. * Porto, 11 de Dezembro de 2013(Elaborado e revisto pela 1ª signatária) Eduarda Lobo Alves Duarte ___________ [1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada). [2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95. [3] Cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 3ª ed., 334 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., pág. 81. [4] Cfr. Germano M. Silva, ob. cit., Vol. III, pág. 325. [5] V. Ac. do STJ de 04.11.98, Proc. nº 1415/97, 3ª secção. [6] Cfr. Ac. RP 6/11/96, Proc. nº 9640709, sumariado em www.dgsi.pt. [7] Leia-se Matéria de Facto Provada. [8] V. Ac. S.T.J. de 21.01.2003, Proc. nº 02A4324, rel. Afonso Correia, acessível in www.dgsi.pt [9] Relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pgs. 176 e segs. [10] Cfr. Ac. S.T.J. de 09.07.2003, Proc. nº 3100/02, rel. Leal Henriques, acessível em www.dgsi.pt [11] Cfr., entre outros, Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado - 8ª edição/1995, p. 277. [12] V. H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal Parte General - 4ª edição - 1993, p. 308. [13] Qualquer meio que transponha a barreira da estrita necessidade – necessidade do meio mas também necessidade da própria defesa - entrará num excesso de legítima defesa. [14] Cfr. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa (1995), 318 e H. Jescheck, ibidem, 308. [15] Cfr. Acs. do S.T.J. de 03.07.1991, 25.06.1992 e 21.01.1993, proferidos nos processos n.ºs 41982, 42682 e 42837 e da Relação de Coimbra de 10.10.1984, sumariado no BMJ. 340/448. [16] V. Taipa de Carvalho, ibidem, 375/387 e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal (1992), 189/191. [17] Figueiredo Dias opina que «o conhecimento pelo agente dos elementos do tipo justificador há-de constituir a exigência subjetiva mínima indispensável à exclusão da ilicitude, o mínimo denominador comum de toda e qualquer acusa justificativa» (Direito penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, p. 371). [18] Proferido no Proc. nº 2021/03, rel. Oliveira Mendes, disponível em www.dgsi.pt. [19] Coordenação de F. Palma/José Manuel Vilalonga e Carlota Pizarro de Almeida, Almedina, 2000, p. 167-168 [20] Ob. cit., pág. 411. [21] Cfr., neste sentido o Ac. STJ de 25.06.1997, com sumário disponível em www.dgsi.pt. |