Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
812/20.9T8PVZ-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: RECURSO DE MATÉRIA DE FACTO
DEVERES DO CABEÇA DE CASAL
REMOÇÃO DO CABEÇA DE CASAL
Nº do Documento: RP20240404812/20.9T8PVZ-D.P1
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O recurso sobre a matéria de facto é instrumental face à decisão de mérito e não deve ser apreciado se os factos já provados são suficientes para desencadear a procedência da apelação.
II - Na valoração da actuação da cabeça de casal são relevantes as consequências reais ou potenciais da sua gestão tendo em conta o valor dos bens da herança.
III - Viola de forma grave os seus deveres, a cabeça de casal que esvazia de conteúdo patrimonial uma sociedade detida pelo de cujus e herdeiros, a favor de outra, cujos sócios são apenas ela, inicialmente, e depois, um dos interessados, reconhecendo a existência de benfeitorias em valor superior a 600 mil euros
IV - É revelador da inaptidão da cabeça de casal para o exercício do cargo a outorga de uma procuração a favor do interessado seu filho, nos termos da qual o autoriza a praticar todos os actos inerentes a esse cargo mesmo que celebrando negócios consigo próprio e com dispensa total de prestação de contas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 812/20.9T8PVZ-D.P1


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Sumário:

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1. Relatório

AA, id a fls 2, veio deduzir incidente de Remoção de cabeça de casal contra BB, id nos autos, peticionando a remoção da Requerida do cargo de cabeça-de-casal e nomeada em substituição a filha mais velha do inventariado, CC.

Alegou factos que, em seu entender, integram a incompetência e a má gestão pela Requerida, como cabeça de casal, do património hereditário, designadamente, que a Requerida em articulação e comunhão de esforços com o seu filho e interessado DD, privou a sociedade A..., Ld.ª, dos rendimentos necessários para pagar as rendas dos contratos de locação financeira para aquisição de dois imóveis resolvendo os contratos de comodato respeitantes a imóveis do acervo hereditário de EE, cujo óbito ocorreu em 23 de Março de 2016. Tal conduziria à negociação livre desses imóveis a quem pagasse o seu valor residual e a sociedade perderia o valor das rendas até então pagas, consubstanciando um prejuízo para essa sociedade superior a dois milhões de euros. O que não sucedeu, porque a Requerente e as suas irmãs, asseguraram o pagamento do remanescente dessas rendas, do valor residual e do IMI assegurando o cumprimento dos contratos por parte da A..., Lda..

Relativamente às rendas mensais que passou a receber na qualidade de cabeça de casal respeitante a esses imóveis do acervo hereditário de EE, do seu recebimento, nunca prestou contas.

Na qualidade de cabeça de casal, a Requerida conferiu ainda a favor do identificado filho uma procuração com poderes especiais, nomeadamente, sobre a herança, em que foi dispensado da prestação de contas e tem praticado atos que têm vindo a empobrecer a herança, com particular incidência sobre as participações sociais e os bens das empresas em causa. Designadamente, no uso dessa procuração procedeu à venda de todos os equipamentos e mercadorias da sociedade, sem que o valor arrecadado tenha entrado nas contas da sociedade, tendo este filho feito ainda um conjunto de movimentos na conta da Banco 1... da referida sociedade, nomeadamente, para pagamento de serviços em benefício de outras entidades, num total de Eur.17.522,32, sem prestar qualquer tipo de contas à sociedade ou à contabilidade da sociedade em causa.

A Requerida, como cabeça de casal e enquanto gerente da sociedade A... não procedeu ainda à ratificação do processado de ação executiva intentada por esta sociedade contra a sociedade B... Ld.ª, para a cobrança de rendas em divida, ação que, por isso, foi extinta, tendo no âmbito dessa ação sido a sociedade exequente confrontada com documento subscrito pela Requerida e filho DD, de quitação das rendas devidas pela sociedade B..., Ld.ª e de redução da renda, assim como de alteração da duração do contrato e reconhecimento de pretensas benfeitorias, lesando os interesses patrimoniais da sociedade A..., Ld.ª, em valor superior a € 1.000.000,00.

A requerida, na sua qualidade de cabeça de casal e o identificado filho, adquiriram um elevador à empresa C... destinado à atividade da B..., Ld.ª, empresa de que são sócios, cuja fatura foi remetida à sociedade A..., Ld.ª, tendo os herdeiros conhecimento que foi esse elevador

encomendado e adjudicado por esse filho e pago pela cabeça de casal, que não tem bens e tem como únicos rendimentos os que lhes advém do acervo hereditário.

Mais alega que, a cabeça de casal deixou a descoberto uma conta solidária em nome dos herdeiros, onde eram debitadas as despesas de água, luz, gás, e outras referentes a bens da herança, conta que era provisionada com os rendimentos da herança, os quais ficaram todos concentrados na cabeça de casal que é a única que recebe os proventos da massa hereditária. E com cabeça de casal não realizou obras de reparação urgentes que lhe incumbia realizar.

Veio a cabeça de casal apresentar contestação, no qual pugna pela manutenção da sua designação como cabeça de casal no inventário, refutando cada ponto do alegado pela Requerente e juntando prova documental.

Designou-se dia para inquirição de testemunhas e foi depois proferida decisão que julgou o incidente improcedente.

Inconformada veio a interessada interpor recurso, o qual foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos (artigos 629.º, n.º 1, 638.º, n.º 1 e 7, 631.º, n.º 1, 644.º, n.º 1, al. a) e 645.º, n.º 1, al. a), todos do CPC), tendo sido fixado efeito devolutivo.


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2.1. A apelante apresentou as seguintes conclusões:

I - Ao pressente recurso deve ser atribuído efeito suspensivo, porquanto ao ser reconduzida ao cargo de cabeça de casal a recorrida, tal originara prejuízos para a herança que se repercutirão na Recorrente na qualidade de herdeira, mas também nos restantes interessados, nomeadamente as suas irmãs.

II - A Recorrida, foi removida provisoriamente do cargo de cabeça de casal, por Acórdão proferido pelo TRP a 11.10.2022 – no âmbito do procedimento cautelar comum Proc. n.º º 812/20.9T8PVZ-A.P1, no domínio do qual, os Venerandos Juízes Desembargadores, fundamentaram a remoção do cargo de cabeça de casal, nas condutas particularmente gravosas praticadas pela Recorrida, que "... redundaram em prejuízo significativo para a herança e, consequentemente, para os demais herdeiros ...", ou seja

III - A Procuração outorgada a favor do filho DD, a alteração/ aditamento ao contrato de arrendamento celebrado entre a sociedade A..., Lda e a B... , Lda; sociedade detida exclusivamente pela Recorrida e pelo filho; o não pagamento dos encargos dos contratos de locação financeira, e os pagamentos efectuados em benefícios de outras sociedades.

IV - Quanto á procuração outorgada a favor do filho, os Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto consideraram " .. O problema está em que a escolha feita pela cabeça-de-casal propiciou a prática de actos que se têm revelado prejudiciais para a herança, como a apropriação pelo referido DD do produto da venda da totalidade do equipamento fabril da empresa. Deixando a porta aberta para a prática de outros actos em prejuízo da herança"; sendo certo que tal procuração não foi revogada pela Recorrida.

V - Estando ciente tanto a Recorrida como o filho, que a remoção do cargo de cabeça de casal operada, era apenas provisória, obviamente que tanto a Recorrida como o filho, abstiveram-se, tanto quanto é do conhecimento da Recorrente, de praticar novos actos em prejuízo da herança.

VI - Não se pode ignorar, que a Recorrente e as irmãs, tiveram por mero acaso conhecimento de que o equipamento fabril da sociedade A..., Lda; tinha sido vendido.

VII - Outras das condutas da Recorrida, a reclamar um severo juízo de censura, segundo os Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto: - " ...prende-se com a alteração dos termos do contrato de arrendamento celebrado com a B..., em benefício próprio e de seu filho, únicos detentores da referida sociedade. Com efeito, para além da redução da renda em 50%, a cláusula que previa as benfeitorias passavam a fazer parte integrante do arrendado, não conferindo ao arrendatário qualquer direito a ser indemnizado, foi substituída por outra que reconheceu o direito à compensação por benfeitorias realizadas no montante de € 680.000,00 ..."

VIII - Referem ainda, o facto de a Recorrida, ter deixado de pagar as rendas dos contratos de leasing, que só não entraram em incumprimento por que as outras interessadas garantiram o pagamento, enquanto fazia movimentos bancários em benefício de outras entidades.

IX - As condutas que propiciaram a remoção da Recorrida do cargo de cabeça de casal, ainda se mantêm, pese embora, já tenha decorrido 1 ano desde a data em foi proferido acórdão pelo TRP.; atendendo a que: - A procuração outorgada pela Recorrida a favor do filho DD, mantém-se, não foi revogada, - O aditamento ao contrato de arrendamento celebrado com a sociedade B..., Lda, também subsiste, sendo que não houve qualquer iniciativa por parte da Recorrida em, regularizar com a Recorrente as irmãs o montante que despenderam com o pagamento das rendas dos contratos de locação financeira.

X - A não concessão de efeito suspensivo ao recurso representará um prejuízo considerável para a herança e para os herdeiros; nomeadamente quando a Recorrida enquanto sócia gerente da sociedade A...,, Lda, e face ao pagamento das rendas em falta e remanescente do preço pela Recorrente e pelas irmãs, exercer a opção de compra dos imóveis adquiridos em locação financeira.

XI - A Recorrente e as irmãs não terão qualquer controlo sobre o destino dos imóveis, dado a Recorrida reunir em si as qualidades de cabeça de casal e representante comum da quota do sócio falecido, seu marido.

XII - A Recorrente e as irmãs, nem mesmo, em sede de inquérito judicial intentado contra a sociedade - Art.º 216º n.º do CSC, poderão sindicar a actuação da Recorrida, dado não terem a qualidade de sócias da sociedade, mas apenas titulares em comum e sem determinação de parte ou direito da quota social.

XIII - A Recorrente, oferece-se para prestar caução, a qual deverá incidir sobre o quinhão hereditário da Recorrente e das irmãs, em incidente a deduzir, sendo que não consegue á priori determinar o montante do prejuízo que a atribuição de efeito devolutivo ao recurso lhe causara.

Do Recurso à Matéria de Facto (…)[1]

XLVII - A sentença proferida pela Mma. Juiz, para além de nula por omissão de pronuncia – Art.º 608º n.º 2 e 615º nº 1 al d) do CPC, violou, também, salvo o devido respeito, o disposto nos Arts.º 342º e 2086º als. b) e d) do Cod. Civil.

XLVIII - A nulidade por omissão de pronuncia - Art.º 615º nº 1 al d) do CPC , resulta de a Recorrente, no que diz respeito á falta de pagamento das rendas pela sociedade B..., Lda; ter por diversas vezes ter requerido que a sociedade A..., Lda fosse notificada para juntar aos autos extractos bancários comprovativos das transferências ou depósitos das rendas, sem que a Mma. Juiz na sentença se tenha pronunciado acerca do mesmo, como se descrimina supra no recurso da matéria de direito, factos I a X cujo teor se considera aqui reproduzidos para os devidos e legais efeitos, e para os quais se remete expressamente.

XLIX - O Juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação – Art.º 608º n.º 2 do Cod. Proc. civil, sendo nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar” - primeira parte da al. d) do n.º 1 do Art.º 615º do CPC

L - No sentido de que estamos perante um caso de omissão de pronuncia, e como tal de nulidade da sentença, quando tribunal omite o conhecimento de um requerimento probatório, sentenciou o Ac. do TRC, prolatado 08.07.2021 relator: Moreira do Carmo, Proc. n.º 5281/19.3T8VIS. C1 - vide também neste sentido comentário do Prof. Teixeira de Sousa , no blogue do IPCC, ao Ac. TRG, prolatado a 19.3.2020, Proc.305/15.6T8MNC-E, relator: António Barroca Penha

LI - Os pressupostos de que depende a remoção do cargo da cabeça de casal elencados no Art.º 2086º n.º 1 als. b) e d) do Cod. Civil, encontram-se efectivamente preenchidos

LII - A herança enquanto universalidade jurídica de bens, é representada, pela cabeça-de-casal, a quem cabe a administração da herança até à sua liquidação e partilha, nos termos do disposto no art. 2079º do CC.

LIII - Nos casos em que o património hereditário, é constituído por estabelecimentos comerciais ou empresas pode dizer-se que essa actividade é indissociavel da boa e corrente gestão dessas empresas. A exigir, por conseguinte que quem as administra esteja á altura do cargo, e possua as qaulidades necessárias para o exercico de desempenho cabal de tais funções e que seja capaz de administrar o património hereditário com competência, prudência e zelo. sob pena de prejudicar séria, grave e irreparavelmente os direitos dos restantes herdeiros - vide Ac. do TRL, prolatado a 14.02.2013, relatora: Ana Luisa Geraldes, Proc. n.º 1309/12.6TVLSB-A.L1-8

LIV - Na sentença proferida, para ilustrar o fundamento da falta de competência para o cargo de cabeça de casal, é citado Ac. de idêntico teor, ou seja Acórdão da Relação de Guimarães de 5.3.2020 - cfr. pag. 37, paragrafo 2.

LV - Antunes Varela e Pires de Lima, in " Codigo Civil Anotado", IV volume, pag. 145, afirmam que a incompetência pressupõe que a pessoa nomeada, revele no desempenho do cargo, não possuir as qualidades necessárias para o preenchimento da função que lhe foi confiada.

LVI - O Supremo Tribunal de Justiça, em acordão prolatado a 28.06.1994, relator Miranda Gusmão que "... igual incompetência revelará se com a sua conduta ameaçar lesar os interesses dos restantes herdeiros, ou da herança em si. E essa lesão ou simples ameaça atém-se ao prejuízo causado à herança ou á potencialidade desse prejuízo".

LVII - À cabeça de casal, cabe também, administrar a herança com prudência e zelo, como decorre do Art.º 2086º n.º 1 al. b) do Cod. Civil, o que significa que deve zelar pelos interesses e bens que lhe foram confiados, mas que não lhe pertencem, integram o património hereditário, pelo que o seu dever de administrar o património com zelo, visa a protecção dos demais titulares do direito á herança; o que manifestamente não ocorreu in casu.

LVIII - O objecto dos presentes autos, é não só a analise da atuação da Recorrida na qualidade de cabeça de casal, mas também de sócia gerente da sociedade A..., Lda; sendo ambas as qualidades indissociáveis.

LIX - Tal correlação, prende-se também com o facto de o valor real da quota que integra o acervo hereditário, não corresponder ao seu valor nominal. estando intimamente ligado aos activos, isto é, ao património da sociedade, e à competência de quem a gere - vide neste sentido Evaristo Mendes em artigo intitulado "Valor das participações sociais", publicado em revista cientifica da UCP, ano 2015

LX - A determinação do valor da quota pelos interessados, em sede de conferência de interessados, seja por acordo, licitação ou avaliação o ponto de partida será sempre o valor real da quota, sendo certo que caso a quota detida pelo de cuius fosse amortizada, teria que se considerar o disposto no Art.º 1021º do Cod. Civil, para que remete o Art.º 105 n.º 2 do Cod. das Sociedades Comerciais, aplicável ex vi Art.º 235º n.º 2 do mesmo diploma.

LXI - Segundo o Art.º 1021º nº1 do Cod. Civil, no caso de morte do sócio o valor da sua quota é fixado com base no estado da sociedade à data em que ocorreu ou produziu efeitos o facto determinante da liquidação, in casu a falecimento do inventariado,

LXII - A declaração de quitação emitida pela Recorrida, não é de per se apta a demonstrar o pagamento das rendas da Sociedade B..., Lda; não tem o valor probatório que lhe é conferido, porquanto declaração de quitação foi subscrita pela Recorrida em 15.05.2017, sendo que o reconhecimento “presencial” da assinatura daquela foi efectuado 4 dias depois, em 19.05.2017.

LXIII - O reconhecimento presencial, 4 dias após ter sido aposta no documento a assinatura da Recorrida, por si compromete a validade do reconhecimento, pois o mesmo deveria ter sido feito no momento da assinatura, ou não sendo possível nesse momento o acesso ao sistema informático (facto que deve ser mencionado no documento que formaliza o ato), nas quarenta e oito horas seguintes –cfr. artigo 4.º da Portaria n.º657-B/2006, de 29 de Junho, e Art.º 38º n.º 3 do DL n.º 76-A/2006, de 29 de Março.

LXIV - No atinente, à força probatória plena da declaração de quitação, a força ou eficácia probatória plena atribuída às declarações documentadas pelo nº1, do art. 376º, do CC limita-se à materialidade, à existência, dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas.

LXV - Por outro lado, a força probatória estabelecida no artigo 376.º, n.º2, do Código Civil, apenas se reporta inter-partes, ou seja, nas relações entre declarante e declaratário, mas não no confronto de terceiros.

LXVI - Considerando ás regras do ónus da prova, consagradas no Art.º 342º do Cod. Civil, era a Recorrida que tinha que provar que enquanto gerente da sociedade A..., Lda; tinha mandatado o filho para proceder à venda do imobilizado da empresa, prova que não realizou, tal venda foi efectuada com recurso á procuração que a Recorrida outorgou por si e na qualidade de cabeça de casal.

LXVII - A não contabilização do valor de venda do equipamento fabril da sociedade A..., Lda, resulta da confissão efectuada pela Recorrida no artigo 77º na contestação, confissão que não foi retirada, nem se produziu prova em contrario, como resulta do depoimento de FF, única testemunha arrolada pela Recorrida ouvida em audiência de julgamento ( coordenadas 02:10 a 05:06 e 05:24 a 08:37, do depoimento prestado pela testemunha com inicio a 15:07 horas e termino 15:32 horas, no dia 13.10.2023)

LXVIII - Segundo o Art. 352º do Cod.. Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

LXIX - O art. 356º, nº1 do Cod. Civil, acrescenta que “a confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual ou, em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado”, estabelecendo o n.º1 do art. 357º do Cod. Civil, que “a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar”.

LXX - Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil”, Anotado, pág. 86.; quanto á confissão judicial feita nos articulados, ensina que a mesma “consiste em o réu reconhecer, na contestação, como verdadeiros, factos afirmados pelo autor na petição inicial, ou em o autor reconhecer, na réplica, como verdadeiros, factos afirmados pelo réu na contestação (…)”

LXXI - Antunes Varela in “ Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 548.; Subjacente à confissão de factos feita nos articulados pelo mandatário e que vincula a parte está a ideia de que, estando o mandatário por via de regra em íntimo contacto com a parte sobre a matéria de facto da acção, ele conhece a realidade desta, tendo assim o seu reconhecimento da realidade de um facto desfavorável ao respectivo constituinte, em princípio, a mesma força de convicção que tem a confissão.

LXXII - Integrando o património hereditário empresas, a actividade da cabeça de casal é indissociável de uma boa e corrente gestão dessas empresas, no caso em apreço, como resulta da prova produzida em julgamento e reconhecido pela Mma. Juiz, a Recorrida nunca administrou a sociedade, tem uma idade avançada e apenas a quarta classe, não possui qualificação ou quaisquer conhecimentos profissionais ou de gestão que lhe permitam assegurar, pessoal e adequadamente a boa administração da sociedade cuja quota integra o acervo de bens da herança.

LXXIII - A falta de zelo e prudência na administração do património hereditário, é patente em relação ao prédio sito na Rua ..., ... , tendo em conta não só o depoimento de CC (Coordenadas 34:02 a 39:35, do depoimento prestado entre as 09:39 horas e as 11:10 horas) , como também do relatório sobre as patologias verificadas no referido imóvel, doc. n.º 73 junto com a P.I; factos que não foram postos em causa pela Recorrida na contestação, que nem mesmo impugnou o relatório apresentado.

LXXIV- É a Recorrida, na qualidade de cabeça de casal que tem que zelar pelo património hereditário, verificar se aquele encontra-se ou não em bom estado, e se necessita ou não de obras, é dever que compete à Recorrida, e não às herdeiras.

LXXV - Capelo de Sousa in “ Lições de Direito das Sucessões”, vol. 2º, p. 55, em relação à administração do património hereditário pela cabeça de casal ensina “ Sendo de qualificar como ordinária a administração cometida ao cabeça-de-casal, no seu conteúdo cabem não só os poderes e deveres especificamente previstos na lei, mas também os poderes para a prática de actos e negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens que constituem o acervo hereditário”(sublinhado nosso); património hereditário que deve ser administrado com zelo e prudência - Art.º 2086º n.º 1 b) do Cod. Civil.

LXXVI - Ficou demonstrado que a Recorrida, não está suficientemente qualificada para efectuar uma boa gestão da herança e da sociedade, e que não administrou o património hereditário com zelo, pelo que deveria ter procedido o incidente de remoção de cabeça de casal.

LXXVII - Em face, de tudo o antecedentemente exposto, deve a sentença proferida ser declarada nula por omissão de pronuncia, e declarado procedente o incidente de remoção de cabeça de casal.


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2.2. A apelada não apresentou contra-alegações.

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3. Questões a decidir

1. Apreciar se existe ou não a nulidade da sentença.

2. Apurar depois, se os factos já provados e aceites pela apelante são suficientes para determinar a procedência da apelação.

3. Caso assim não seja, apreciar o recurso sobre a matéria de facto valorando o seu eventual resultado.


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4. Da nulidade

Pretende a apelante que existe uma “nulidade por omissão de pronúncia - Art.º 615º nº 1 al d) do CPC , resulta de a Recorrente, no que diz respeito á falta de pagamento das rendas pela sociedade B..., Lda; ter por diversas vezes ter requerido que a sociedade A..., Lda fosse notificada para juntar aos autos extractos bancários comprovativos das transferências ou depósitos das rendas, sem que a Mma. Juiz na sentença se tenha pronunciado acerca do mesmo”.

Note-se, pois, que na tese da mesma estamos perante uma nulidade processual e não da sentença, pois, estamos perante um requerimento probatório efectuado antes da produção de prova.

Isto porque a decisão final do incidente tem por objecto as questões previstas no art.º 608.º, n.º 2 do CPC. E, conforme é pacifico entre nós[2] o conceito de questões “deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial”.

Isto é abarca apenas as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir e não, como no caso, qualquer tipo de pedido processual anteriormente formulado.

In casu, os documentos que a apelante pretende fazer juntar dizem respeito fundamentalmente à prestação de contas da cabeça de casal e não directamente à matéria do presente incidente[3], sendo que esse requerimento foi formulado no requerimento inicial (em 28.11.2022), mereceu a resposta da cabeça de casal em 19.12.22 e foi objecto do despacho de 13.3.23, o qual deferiu a requerida junção.

Note-se aliás que a junção dos documentos faz parte do incidente processado no apenso “prestação e contas”, no âmbito do qual o representante legal das mesmas foi condenado numa multa por despachos de 5.7.23 e 25.9.23.

Logo, não existe qualquer omissão sobre a pretensão processual da parte.

Improcede, pois, a requerida nulidade da sentença.


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5. Do recurso sobre a matéria de facto

É posição consensual entre nós, que a apreciação da impugnação da matéria de facto, depende sempre de um juízo de utilidade, assumindo natureza instrumental face à prevalência da decisão sobre o fundo da causa[4].

Nestes termos o Ac. do STJ de 14/3/2019, proc. 8765/16.1T8LSB.L1.S2 (MARIA DO ROSÁRIO MORGADO),  é claro: “Se os factos cujo julgamento é impugnado não forem susceptíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação pela Relação da decisão proferida pela 1.ª instância (cfr. art. 130.º do CPC)”.

Ora, é isso que acontece no presente caso, pois, como veremos, os factos provados na decisão recorrida permitem já, sem qualquer alteração, a procedência da pretensão da apelante.


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6. Motivação de facto

1) A Requerida exerce desde 6.07.2017 por nomeação nos autos principais de inventário, as funções de cabeça de casal referente à herança aberta por óbito de EE, seu marido, ocorrida em 23 de Março de 2016.

2) Do acervo hereditário faz parte um conjunto de bens móveis, imóveis, e participações sociais do de cujus em diversas sociedades, entre as quais, a sociedade A....

3) Desde a data da morte do de cujus e até ter sido intentada a 31.05.2022 a ação especial de prestação de contas que corre termos sob o apenso C do presente Proc. n.º 812/20.9T8PVZ, a Requerida não prestou quaisquer contas aos demais herdeiros, tendo- apresentado estas em sede de contestação a essa ação.

4) Em 12 de Julho de 2000, o inventariado e sua mulher, a aqui Requerida, celebraram com a sociedade A...., Lda. vários contratos de comodato de bens imóveis que eram propriedade exclusiva do casal, para esta sociedade poder suportar o pagamento das rendas de locação financeira de dois imóveis que estavam ser adquiridos pela referida sociedade em regime de locação financeira, designadamente os contratos de locação financeira celebrados em 17.09.2009 e 13.04.2012 através do Banco 2..., e do Banco 3..., agora Banco 4....

5) Tais contratos foram celebrados com a faculdade de a referida A..., Lda., poder celebrar contratos de arrendamento em seu nome, o que a sociedade efetivamente fez, com a celebração destes, respetivamente a 1.09.2009, 20.12.2012, 20.04.2010 e 20.10.2012, e fez suas as rendas.

6) A sociedade A..., Lda., sobre o imóvel adquirido em regime de locação financeira através do Banco 2..., sito em ..., construiu uma estrutura de eventos denominada de All Got, sendo que, por interesse e conveniência de todos os herdeiros e inventariado e cônjuge deste, foi constituída uma sociedade comercial denominada B..., Lda., a qual tem por objeto assegurar a exploração do espaço e bem assim, organizar os eventos.

7) Esta sociedade foi constituída ainda em vida do de cujus, tendo como sócio um profissional do ramo da hotelaria por forma a poder viabilizar uma mais rápida rentabilização do local e como outro sócio, o filho DD.

8) Assim que tal foi alcançado, cessou a participação do outro sócio, passando a sociedade em causa a ser só gerida pelo referido DD, tendo ficado como sócio o irmão GG, com uma quota pequena da sociedade.

9) Com a morte do irmão GG a 3.01.2017, sucedeu a este, como herdeira universal, a sua mãe, a aqui Requerida.

10) Para o efeito, a sociedade A..., Lda. celebrou a 1.05.2010 com a sociedade comercial B..., Lda., um contrato de arrendamento do imóvel referido em 7), sem estipulação de prazo, acordando a renda mensal de € 5.750,00 e anual de € 69.000,00, sendo as rendas de Maio, junho e Julho suportadas pelo senhorio como contrapartida das benfeitorias a realizar pela sociedade B... no referido estabelecimento comercial.

11) A Requerente e as suas irmãs. CC e HH, em Assembleia Geral Extraordinária, da A..., Ld.ª, convocada pela Requerida na qualidade de socia gerente e realizada em 30.05.2017, fizeram nomear a irmã CC como representante comum da participação social do de cujus e deliberaram nomear como gerente II, marido desta representante, com o voto contra do irmão DD por si e em representação da Requerida, na qualidade de sócia.

12) A Requerente munida das deliberações sociais tomadas em Assembleia Geral de 30.05.2017 e 06.07.2017, em conjunto com o novo socio gerente nomeado e as suas irmãs, alteraram a forma de obrigar da sociedade passando a exigir a assinatura conjunta de dois gerentes e de seguida nomearam a irmã, HH, por forma a que esta em conjunto com II pudessem gerir sozinhos a sociedade.

13) Por carta datada de 29.09.2017, a Requerida, por carta registada com aviso de receção, comunicou à sociedade A..., Lda., e aos herdeiros a resolução dos contratos de comodato com fundamento na clausula 5ª dos contratos de comodato referidos em 5), solicitando a entrega dos imóveis que identifica discriminadamente.

14) E paralelamente, na qualidade de cabeça de casal, celebrou a 17.11.2017, 28.02.2018 e 23.02.2018, respetivamente, aditamentos aos contratos de arrendamento que a sociedade A..., Lda., havia celebrado anteriormente e referidos em 5), com os mesmos arrendatários e com fundamento na referida resolução.

15) A Requerida estava ciente que, quer o imóvel de ..., quer o imóvel da ..., se encontravam a ser adquiridos pela empresa A..., Lda. através dos identificados contratos de locação financeira e com as rendas dos prédios entregues em comodato.

16) Na sequencia do referido em 13) e 14) a Requerente e as suas irmãs, asseguraram o pagamento do remanescente das rendas em causa, assegurando o cumprimento dos contratos de locação financeira por parte da A..., Ld.ª assim como o pagamento do valor residual e IMI dos imóveis, objeto dos contratos de locação financeira.

17) Os imóveis objeto dos contratos de comodato identificados em 5) e 14) eram propriedade do casal composto pelo inventariado e Requerida, casados sob o regime de comunhão de bens, e fazendo parte agora do acervo hereditário pertencem em comum e sem determinação de parte ou direito à Requerida, suas três filhas e filho sobrevivo, e à Requerida na proporção da sua meação e quota legitimária.

18) A Requerida, por si e na qualidade de cabeça de casal, em 28.04.2017, outorgou procuração com poderes especiais pela qual conferiu a favor do seu filho DD, poderes para dar de arrendamento, tratar do processos de habilitação de herdeiros junto dos bancos, movimentar contas em que a requerida fosse titular ou cotitular, levantar dinheiros, abrir contas em seu nome ou em nome da herança, representá-la perante Seguradoras, Camaras Municipais, entidades publicas ou repartições publicas, e conservatórias, representar a sua mãe em reuniões familiares ou destinadas a discutir as partilhas e no âmbito de eventuais processos de inventario, e constituir mandatários em seu nome, dar e receber tornas e dar quitação, representá-la em assembleias das sociedades onde a própria e as heranças detenham participações sociais, autorizando o mesmo a celebrar negócios consigo próprio e dispensando-o da prestação de contas.

19) A sociedade A..., Lda. através dos gerentes II e HH, intentou, contra a sociedade B..., Lda., ação executiva, para cobrança de rendas alegadas como em divida desde junho de 2012 até Julho de 2017, na sequência de carta de resolução e de notificação judicial avulsa, a qual correu termos sob o n.º 19297/17.0T8PRT do Juiz 5 de Execução do Porto, e que foi extinta, por não ratificação do processado pela cabeça de casal enquanto gerente da sociedade A.... Lda.

20) Em sede de oposição a essa ação executiva, foi a sociedade A..., Lda. confrontada com a existência de um documento datado de 15.05.2017, pelo qual a Requerida, na qualidade de socia gerente dessa sociedade, declarou que a sociedade B..., Lda. tinha as rendas vencidas até maio de 2017 totalmente liquidadas.

21) E foi ainda confrontada, com a celebração pela Requerida, na qualidade de sócia gerente da sociedade A..., Ld.ª, de um aditamento ao contrato de arrendamento datado de 1 de Maio de 2017 com a sociedade B..., Lda. representada pelo seu filho DD, pelo qual, altera a duração do contrato de arrendamento dado como provado em 10), efetua a redução da renda mensal para € 2.600,00, mensais, e reconhece à sociedade B..., Lda. o direito à compensação por benfeitorias realizadas no imóvel no montante de € 680.000,00.

22) Foi interposta pela Requerida e pelo filho DD ação de anulação de deliberações sociais que correu termos sob o n.º 1906/17.3T8STS-A, no Juiz 2 do Juízo de Comércio de Santo Tirso, no âmbito do qual foi proferida decisão, confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6 de Fevereiro de 2021, ora transitado em julgado, que anulou as deliberações referida em 11) e 12).

23) Foi intentada a 19.10.2017 injunção pela empresa C..., Lda. para cobrança de duas faturas com data de vencimento a 31.03.2016 e 10.06.2016, remetidas à sociedade A..., Lda., em vida do inventariado, respeitantes à instalação de um elevador da marca ... no imóvel locado referido em 6), que à data foi encomendado pelo filho DD.

24) A Requerida, na pendencia dessa referida ação, procedeu ao pagamento do valor em divida de € 17.205,04 com cheques por si emitidos a titulo pessoal.

25) Após a decisão referida em 22), a 10.09.2020, o filho DD, em representação da socia gerente, sua mãe, procedeu à venda de todo o equipamento fabril da A..., Ld.ª

26) A Requerente e as suas identificadas irmãs foram notificadas para regularizarem a situação de descoberto de conta da Banco 1..., titulada pelos herdeiros, sob pena de bloqueio do uso do cartão de crédito, decorrente da comunicação ao Banco de Portugal do descoberto não regularizado.

27) Bloqueio que veio a suceder, obrigando a Requerente e suas irmãs a resolver a situação do descoberto, por forma a poderem recuperar a sua posição de crédito, o que de outro modo não poderiam lograr.

28) Entre Maio e Julho de 2017, a Requerida, na sua qualidade de única sócia gerente, fez um conjunto de movimentos, nomeadamente, pagamentos de serviços em benefício de entidades terceiras e transferência bancária de €10.000, para si própria para realização de obras em imóvel da herança.

29) A cabeça de casal, nasceu no ano de 1932 e tinha à data em que assumiu as funções de cabeça de casal nos autos principiais de inventário, 85 anos de idade, tendo à data da entrada do presente incidente, 90 anos.

30) Exerceu a profissão de costureira e posteriormente de encarregada da produção.

31) A Requerida tem a antiga quarta classe.

32) A Requerida é gerente de direito desde ../../1959.

33) Investidos nos poderes de gerência nos termos referidos em 11) e 12), II, HH e CC, retiraram a contabilidade da sociedade do gabinete de contabilidade onde se encontrava e nomearam novo técnico oficial de contas, impedindo desde essa data e até Fevereiro de 2020 a Requerida de exercer a gerência da sociedade A..., Lda., de movimentar contas bancarias da sociedade e de aceder à contabilidade da empresa.

34) A sociedade comercial A..., Lda. não tem atividade comercial desde antes da morte do inventariado.


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7. Motivação Jurídica

O presente caso demonstra a relevância e antagonismo entre duas perspetivas epistemológicas distintas da ciência jurídica.

Segundo a corrente formalista o sistema jurídico constituiu uma realidade hermenêutica plena, e autocontida, com uma lógica interna autónoma face aos sistemas sociais. Por isso a logica interna e o sentido hermético pode ser obtidos com a mera interpretação do sentido legal.

Esta foi a concepção adoptada pela decisão recorrida nos termos da qual o incidente de remoção improcedeu porque, fundamentalmente, existiria uma autonomia entre o activo da herança e o acervo de uma sociedade detida pela mesma e seus herdeiros. Omitindo-se que a personalidade das sociedades comerciais existe com a função de permitir o exercício de direitos, em regras patrimoniais; desses entes, dos seus credores e dos titulares do capital social.

Com efeito, na concepção funcionalista o sistema jurídico é concebido, não como algo independente da sociedade, mas como uma resposta racional às necessidades e conflitos sociais por forma a solucionar problemas sociais específicos. Nessa medida a função social visada pela norma é a mais relevante para determinar a sua concreta aplicação.

Ora, in casu estamos perante um incidente de remoção da cabeça de casal, com o fundamento na alegada violação dos seus deveres de gestão.

Esses deveres mais não são do que a imposição de deveres de cuidado inerentes à gestão de qualquer património alheio, neste caso, até sua partilha, divisão e adjudicação concreta a cada um dos herdeiros.

Tudo isto porque «Nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a partilha, uma vez que até aí a herança constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota parte do património hereditário»[5].

E, a “contitularidade do direito à herança significa tanto como um direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si mesma considerada”.[6]

           Deste modo a função jurídica dos deveres de gestão da cabeça de casal visa proteger a integralidade do acervo hereditário, limitando, até á efectiva partilha, os actos do cabeça de casal aos necessários para uma gestão ordinária.

Portanto, se esta é a função parece desde já seguro que a venda de bens, o perdão do valor das rendas, e o reconhecimento de benfeitorias no valor de mais de 600 mil euros não protege o património da herança sob o prisma de uma mera gestão ordinária.


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            2. Da violação dos deveres pela cabeça de casal

Dispõe, nesta matéria o Artigo 2086.º, do CC que:

1. O cabeça-de-casal pode ser removido, sem prejuízo das demais sanções que no caso couberem:

a) Se dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança ou de doações feitas pelo falecido, ou se, também dolosamente, denunciou doações ou encargos inexistentes;

b) Se não administrar o património hereditário com prudência e zelo;

c) Se, havendo lugar a inventário obrigatório, o não requereu no prazo de três meses a contar da data em que teve conhecimento da abertura da sucessão, ou não cumpriu no inventário, ainda que não seja obrigatório, os deveres que a lei de processo lhe impuser;

d) Se revelar incompetência para o exercício do cargo.


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Densificando estes conceitos a nossa doutrina e jurisprudência têm entendido que:

A alínea b) do art. 2086 do CC “ prevê (…) o caso de, sendo embora competente profissionalmente, o cabeça de casal se meta em aventuras perigosas ou se desleixe no cumprimento dos deveres que lhe incumbem”[7]. (…) “dum modo genérico pode dizer-se que administra mal aquele que vota ao abandono as propriedades ou nelas não realiza simples obras de conservação; quem deixa deteriorar os móveis, por não os preservar de possíveis estragos; quem não faz, a tempo e horas, as culturas dos campos, os grangeios da vinha, as podas do arvoredo, as recolhas dos produtos, a armazenagem conveniente e, até, a própria venda quando a sua conservação os deteriore. Não administra bem o que deixa de fazer pontualmente o pagamento das contribuições, sujeitando a herança ao gravame dos juros de mora ou às consequências do relaxe; será mau administrador o que não leve a sua prudência ao ponto de manter em ordem e em dia o pagamento dos prémios dos seguros, o que deixa de cumprir as variadíssimas obrigações impostas por numerosos diplomas quanto a manifestos, declarações e participações”, (…)  “Tenha-se, porém, como certo que a má administração (…) tem de deduzir-se de factos que inequivocamente a revelem e não de simples considerações de ordem geral, insusceptíveis de serem captadas através de prova e sem relevância para se ajuizar da conduta do cabeça-de-casal”.

De tal modo que: “a falta de prudência e zelo no exercício do cargo de cabeça-de-casal (art.º 2086, nº 1, al. b), do Código Civil), enquanto fundamento de remoção, há de revelar-se nas faltas que comete por incúria e negligência, com gravidade de tal modo significativa que justifique aquela penalização[8].

Sendo que “o prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo são factores primaciais a atender na aplicação da referida pena”.[9]

Porque “a pena só terá aplicação quando a falta cometida revista gravidade e, raras vezes, resultará em consequência da involuntária omissão ou demora no cumprimento dos deveres”.[10]

A incompetência pressupõe que a pessoa nomeada revele, no desempenho do cargo, não possuir as qualidades necessárias para o preenchimento da função que lhe foi confiada, o que ocorre quando “com a sua conduta ameaçar lesar os interesses dos restantes herdeiros”[11].

Ora, in casu, resulta já dos factos provados que:

2) Do acervo hereditário faz parte um conjunto de bens móveis, imóveis, e participações sociais do de cujus em diversas sociedades, entre as quais, a sociedade A....

4) Em 12 de Julho de 2000, o inventariado e sua mulher, a aqui Requerida, celebraram com a sociedade A...., Lda. vários contratos de comodato de bens imóveis que eram propriedade exclusiva do casal, para esta sociedade poder suportar o pagamento das rendas de locação financeira de dois imóveis que estavam ser adquiridos pela referida sociedade em regime de locação financeira, designadamente os contratos de locação financeira celebrados em 17.09.2009 e 13.04.2012 através do Banco 2..., e do Banco 3..., agora Banco 4....

10) Para o efeito, a sociedade A..., Lda. celebrou a 1.05.2010 com a sociedade comercial B..., Lda., um contrato de arrendamento do imóvel referido em 7), sem estipulação de prazo, acordando a renda mensal de € 5.750,00 e anual de € 69.000,00, sendo as rendas de Maio, junho e Julho suportadas pelo senhorio como contrapartida das benfeitorias a realizar pela sociedade B... no referido estabelecimento comercial.

13) Por carta datada de 29.09.2017, a Requerida, por carta registada com aviso de receção, comunicou à sociedade A..., Lda., e aos herdeiros a resolução dos contratos de comodato com fundamento na clausula 5ª dos contratos de comodato referidos em 5), solicitando a entrega dos imóveis que identifica discriminadamente.

14) E paralelamente, na qualidade de cabeça de casal, celebrou a 17.11.2017, 28.02.2018 e 23.02.2018, respetivamente, aditamentos aos contratos de arrendamento que a sociedade A..., Lda., havia celebrado anteriormente e referidos em 5), com os mesmos arrendatários e com fundamento na referida resolução.

15) A Requerida estava ciente que, quer o imóvel de ..., quer o imóvel da ..., se encontravam a ser adquiridos pela empresa A..., Lda. através dos identificados contratos de locação financeira e com as rendas dos prédios entregues em comodato.

16) Na sequencia do referido em 13) e 14) a Requerente e as suas irmãs, asseguraram o pagamento do remanescente das rendas em causa, assegurando o cumprimento dos contratos de locação financeira por parte da A..., Ld.ª assim como o pagamento do valor residual e IMI dos imóveis, objeto dos contratos de locação financeira.

17) Os imóveis objeto dos contratos de comodato identificados em 5) e 14) eram propriedade do casal composto pelo inventariado e Requerida, casados sob o regime de comunhão de bens, e fazendo parte agora do acervo hereditário pertencem em comum e sem determinação de parte ou direito à Requerida, suas três filhas e filho sobrevivo, e à Requerida na proporção da sua meação e quota legitimária.

         Ou seja, a cabeça de casal alterou voluntariamente a destinação do acervo da herança esvaziando de qualquer rendimento a sociedade A..., impedindo a mesma de continuar a custear as despesas de aquisição do imóvel que se encontrava a adquirir.

         Com efeito, só através da intervenção pessoal das interessadas é que “a Requerente e as suas irmãs, asseguraram o pagamento do remanescente das rendas em causa, assegurando o cumprimento dos contratos de locação financeira por parte da A..., Ld.ª assim como o pagamento do valor residual e IMI dos imóveis, objeto dos contratos de locação financeira”.

         Com a sua gestão a cabeça de casal colocou em risco o património da herança, criando as condições que impediram essa sociedade de possuir meios para solver as suas obrigações, de cujo incumprimento resultaria a eventual perda de um imóvel gerador de uma renda anual de aproximadamente 68 mil euros, o que implica que o valor económico desse imóvel atingiria mais de um milhão de euros.

         E, note-se optou por efectuar esses actos, cedendo a fruição e exploração económica  desse espaço da sociedade detida pelos herdeiros e que faz parte do acervo hereditário para uma outra sociedade B..., Lda que era inicialmente detida apenas por si e pelo seu filho interessado, sendo que em 24 de Julho de 2018, a cabeça de casal, transmitiu essa sua quota para a sociedade D... - UNIPESSOAL LDA, NIPC: ...68 sociedade que tem como único sócio, o seu filho também interessado.

         Com esse acto de gestão a cabeça de casal logrou transferir um direito com o valor económico de uma sociedade que fazia parte do acervo da herança, para outra que é detida apenas pelo seu filho, interessado.

É, pois, claro que estamos perante uma sonegação de bens e não apenas um acto de gestão danosa.

           

2.2. Acresce que a situação patrimonial dessa sociedade, sob a gestão da cabeça de casal, produziu os seguintes resultados:

A) A mesma nem sequer teve disponibilidade para liquidar o pagamento da instalação de um elevador (factos provados 23 e 24)

b) e “A Requerente e as suas identificadas irmãs foram notificadas para regularizarem a situação de descoberto de conta da Banco 1..., titulada pelos herdeiros, sob pena de bloqueio do uso do cartão de crédito, decorrente da comunicação ao Banco de Portugal do descoberto não regularizado” (facto provado nº 26).

Depois, se dúvidas houvesse bastaria relembrar que a cabeça de casal outorgou procuração a favor do seu filho[12], o qual “25) Após a decisão referida em 22), a 10.09.2020, o filho DD, em representação da socia gerente, sua mãe, procedeu à venda de todo o equipamento fabril da A..., Ld.ª”.

A cabeça de casal outorga poderes ao seu filho, em termos tais que o dispensa “de prestação de contas”, e este no uso de tais poderes vendeu todo o equipamento fabril da sociedade que faz parte do acervo da herança, sem que, note-se, o produto dessa venda tenha sido registado a favor da sociedade.

Este acto, por si só implicaria a apropriação do património da herança pela cabeça de casal.

As consequências económicas desses actos para a herança são relevantes.

Basta dizer que o dano que podia ter sido causado pelo incumprimento dos contratos de locação é saliente tendo em conta o valor locativo de parte desse edifício.

Depois, a alienação do equipamento fabril tem um valor indeterminado mas resulta provada a sua alienação sem a alegação ou prova da contabilização desse valor a favor da herança.[13]

Por fim, a real situação patrimonial da sociedade é de tal maneira periclitante que a mesma não consegue solver os seus encargos (pagamento da factura de aquisição do elevador), necessita de suprimentos das interessadas para pagar despesas legais e de locação financeira e possuiu uma conta a descoberto.

         Isto ao mesmo tempo que esse activo imobiliário está arrendado a uma sociedade detida unicamente pelo interessado seu filho e cuja renda note-se foi até reduzida em metade.

           

2.3. Da alteração do contrato de arrendamento

Note-se aliás que a cabeça de casal nunca tentou explicar as razões para a alteração dos termos do contrato de arrendamento celebrado com a B..., em seu benefício e de seu filho, (na data únicos detentores da referida sociedade). Basta dizer que os termos desse acordo foram (facto provado nº 21):

a) a redução da renda em 50%,

e b) as benfeitorias que antes ficariam a fazer parte do locado sem qualquer indemnização; passaram a ser objecto de compensação no montante de € 680.000,00 (ponto 20 da matéria de facto indiciada).

Ou seja, com essa simples alteração contratual (que é um acto de gestão) a cabeça de casal, unilateralmente prejudicou a situação patrimonial da sociedade que faz parte do acervo da herança, em favor da sociedade detida exclusivamente pelo seu filho, em várias centenas de milhares de euros (680 mil euros só a título de benfeitorias).

Ora, é pacifico e decorre dos art. 1024º nº 1 e 2079º, ambos do CC que o arrendamento até seis anos de duração pode ser praticado pelo cabeça de casal relativamente a imóvel que integre a herança.

Mas, “ponto é que, ao fazê-lo - ao dar de arrendamento imóvel integrado na herança - o cabeça de casal esteja verdadeiramente a agir no interesse desta, da sua conservação e frutificação, e não no seu interesse próprio ou/e no interesse do terceiro a quem por via do arrendamento transmite, em princípio validamente, a detenção do imóvel[14].

Pois, “o  património não pode ser colocado, antes da partilha, ao serviço ou satisfação dos interesses de qualquer dos herdeiros ou cônjuge meeiro”.[15] (nosso sublinhado)

É, pois, claro, simples e evidente que a cabeça de casal actuou com a violação saliente dos mais normais e prudentes deveres de gestão, tendo até transferido o património da herança (benfeitorias) no valor de 680 mil euros para uma sociedade unicamente detida por um dos herdeiros.

            Pretender reduzir esta actuação a uma querela entre duas empresas, como centros autónomos de imputação, é omitir que uma delas faz parte do acervo hereditário e a outra (que se enriqueceu em várias centenas de milhares de euros) possui o capital social afecto apenas à cabeça de casal e seu filho e, mais tarde, só a este.

            E, isso, seria desvirtuar a função social e jurídica que cabe ao cabeça de casal como gestor e protector de um património alheio.


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            3. Da inaptidão da cabeça de casal para o cargo

Acresce que, o caso particular do exercício de deveres de gestão de estabelecimentos comerciais ou empresas foi também analisado entre nós, sendo pacifico que:

“Na situação de o património hereditário integrar estabelecimentos comerciais ou empresas, será necessário que quem as administra esteja à altura do cargo e possua as qualidades necessárias para o exercício e desempenho cabal de tais funções, de molde a praticar uma administração do património hereditário com competência, prudência e zelo, em ordem à salvaguarda dos direitos dos restantes herdeiros, que não devem ser prejudicados de forma grave e irreparável, sendo, por decorrência a actividade do cabeça de casal indissociável de uma boa e corrente gestão dessas empresas”.

Ora, in casu está demonstrada a elevada idade da cabeça de casal e, mais importante, que esta outorgou uma procuração a favor do seu filho nos termos da qual este pode realizar todos os actos inerentes a esse cargo.

É, pois, a própria cabeça de casal que com esse acto, admite que não desempenha pessoalmente essa função e que não possui, como decorre dos factos provados, “conhecimentos profissionais ou de gestão que lhe permitam assegurar, pessoal e adequadamente, a boa administração das sociedades comerciais cujas participações sociais integram o acervo de bens da herança”.

Acresce que essa procuração foi outorgada já em 2017 (facto provado nº 18) e em termos tais que o seu filho interessado foi autorizado “a celebrar negócios consigo próprio e dispensando-o da prestação de contas”.

Este acto jurídico, pela sua gravidade e consequências (expresso, por exemplo, na venda do imobilizado da empresa), implica por si só a conclusão que a cabeça de casal demonstra uma “incompetência, enquanto inaptidão para o exercício do cargo, terá de decorrer da matéria de facto alegada e provada nos autos.”[16]

Na verdade, esta não pode desconhecer que estava obrigada legalmente a prestar contas e, por isso, ao “delegar” actos relevantes de gestão da herança nunca poderia fazê-lo com a dispensa dessa mesma prestação.


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Face ao exposto é manifesta a desnecessidade de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, pelo que se considera expressamente essa questão prejudicada.

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8. Deliberação

Pelo exposto este tribunal julga a presente apelação integralmente provida e, por via disso, determina a remoção do seu cargo da Requerida das funções de cabeça-de-casal, nomeando-se em sua substituição a filha mais velha do de cujus Sra. CC.

Sem custas face à integral procedência da apelação.

Porto em 4.4.24.
Paulo Teixeira
Carlos Portela
Manuela Machado
____________
[1] Conclusões que se dão por integralmente reproduzidas e não se transcrevem pelos motivos supra expostos.
[2] Ac do STJ DE 11.10.22, Nº 602/15.0T8AGH.L1-A.S1 (Isaías da Pádua). Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. Ed., Almedina, págs. 713 a 737, Abrantes Geraldes, Recursos em Processos Civil, 6ª. Ed. Atualizada, Almedina, pág.136.
[3] Como demonstra o articulado superveniente apresentado pela parte nesse apenso e já admitido por despacho de 5.3.24, conforme tramitação oficiosamente consultada.
[4] Ac da RC de 2014.05.27, proc. n.º 1024/12.0T2AVR.C1 (Moreira do Carmo) e de 2012.04.24, n.º 219/10.6T2VGS.C1 (Beça Pereira).
[5] Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, 185.
[6] Ac do STJ DE 30.1.2013, nº 1100/11.7TBABT.E1.S1 (Álvaro Rodrigues).
[7] Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. III, Almedina, Coimbra, pág. 26
[8] Ac da RP de 7.10.21, nº 1450/12.5TJPRT-J.P1 (Filipe Caroço) e Ac da RP de 18.5.2023 1694/21.9T8VCD-G.P1 (Aristides Rodrigues Almeida).
[9] Acs. do STJ de 28.6.1994; de 9.3.1998 e de 3.2.1999, in www.dgsi.pt.
[10] Ac da RL de 23.32017º, nº 745/13.5TJLSB-A.L1-6 (Maria Gomes)
[11] Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado”, IV Vol., pág. 145.
[12] Facto provado nº 17: “A Requerida, por si e na qualidade de cabeça de casal, em 28.04.2017, outorgou procuração com poderes especiais pela qual conferiu a favor do seu filho DD, poderes para dar de arrendamento, tratar do processos de habilitação de herdeiros junto dos bancos, movimentar contas em que a requerida fosse titular ou cotitular, levantar dinheiros, abrir contas em seu nome ou em nome da herança, representá-la perante Seguradoras, Camaras Municipais, entidades publicas ou repartições publicas, e conservatórias, representar a sua mãe em reuniões familiares ou destinadas a discutir as partilhas e no âmbito de eventuais processos de inventario, e constituir mandatários em seu nome, dar e receber tornas e dar quitação, representá-la em assembleias das sociedades onde a própria e as heranças detenham participações sociais, autorizando o mesmo a celebrar negócios consigo próprio e dispensando-o da prestação de contas”.
[13] Como decorre da consulta do apenso prestação de contas.
[14] Ac Da RL de 8.10.2015, nº 1076-09.0TBOER-J.L1-8 (Teresa Pais).
[15] Ac da RC de 5.7.2005, nº 2075/05 (Ferreira de Barros).
[16] Ac da RL de 14/02/2013, nº 1309/12.6TVLSB-A.L1-8 (analisando a gestão de uma farmácia), Ac da RG de 5.3.2020, nº 524/11.4TBAMR-F.G1 (Jorge Teixeira).