Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
913/07.9TBOVR.P1
Nº Convencional: JTRP00043656
Relator: MARIA EIRÓ
Descritores: COMPRA E VENDA
ERRO SOBRE AS QUALIDADES DO OBJECTO DO NEGÓCIO
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
LEGISLAÇÃO EUROPEIA
PROTECÇÃO DO CONSUMIDOR
APLICAÇÃO DA LEI
TRATAMENTO MAIS FAVORÁVEL
Nº do Documento: RP20100223913/07.9TBOVR.P1
Data do Acordão: 02/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 354 - FLS 32.
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTIGOS 247º, 251º, 287º, 916º, 917º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - No caso sub judice resulta que a vendedora/ declaratária conhecia a essencialidade para o autor das características em falta e que este comprava induzido por este erro, pelo que existe um erro relevante nos termos do artº 247º e 251º do Código Civil .
II - Resulta ainda que a vendedora tinha conhecimento da vontade e exigência do comprador e, sabedora da ausência dessas características asseverou que o veiculo as possuía, verificando-se, pois, uma conduta dolosa da vendedora.
III - Assim sendo, o prazo para a propositura da acção é fixado genericamente no artº 287, nº 1 do Código Civil ex vi art. 917º do mesmo diploma, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento do dolo, sem necessidade de qualquer denúncia (artº 916º do Código Civil).
IV - Na União Europeia a legislação sobre a protecção dos consumidores é constituída por Directivas que são subsequentemente transpostas para a ordem jurídica de cada estado membro. Directivas que até à data, nesta matéria, têm estabelecido um grau mínimo de protecção.
V - As directivas nesta matéria não visam a harmonização total.
VI - Assim, se o regime especial (nacional) dos bens de consumo (consequência da transposição da Directiva) tem por objectivo assegurar apenas uma protecção mínima do consumidor, será sempre aplicável a lei comum que lhe estabelecer tratamento mais favorável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº913/07.9TBOVR.P1
Relatora: Maria Eiró
Adjuntos: João Proença e Graça Mira


B………., casado, residente na ………., n.° .. – ….., …. – … Ovar, intentou acção declarativa com processo ordinário, a que foi atribuído o nº 913/07.9TBOVR, do 3º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Oliveira de Azeméis contra
l.º- C………., L.DA. com sede na Rua ………., Apartado …., …. – … Oliveira de Azeméis; e
2.°- D………., residente em ………., concelho de Oliveira de Azeméis, alegando essencialmente o seguinte:
Em 24.1.2003, o A. adquiriu à 1ª R., comerciante de automóveis, um veículo automóvel, através do 2º R., seu vendedor comissionista.
Aquando da compra, a viatura, um Seat ………., foi adquirida e escolhida, tendo em consideração vários equipamentos, acessórios e sistemas de segurança activa e passiva, nomeadamente e pela orientação do 2.° R., com inclusão de série dos sistemas “ESP” e “TCS”, ou seja, controle de estabilidade e controle de tracção, que aquele aconselhou como integrantes do veículo.
O veículo veio a demonstrar um comportamento estranho durante a sua condução, denotando insegurança e descontrolo que não são próprios dos sistemas ESP e TCS e levaram mesmo ao despiste em estrada.
Apesar do interesse do A. e das suas várias solicitações junto da A., só a 15 de Dezembro de 2006, na sequência de testes por ela efectuados, foi transmitido ao A. que a viatura não possui “ESP” e “TCS”.
O A. foi enganado pelo 2º R. A vontade de adquirir o veículo foi determinada pela afirmação da R., através do seu vendedor, de que o mesmo estava dotado daquele equipamento de segurança. Ao saber da sua falta, o A sentiu-se profundamente angustiado e desesperado; o que se tem reflectido no seu relacionamento com amigos e familiares, além do que o fez perder a confiança na condução do automóvel, com o qual interveio até num acidente por insegurança do mesmo.
Estima o dano não patrimonial na quantia de € 2.500,00.
E concluiu assim:
«NESTES TERMOS e nos melhores de direito, deve presente acção ser julgada procedente por provada e em consequência:
A) Deve ser anulada a compra e venda do veículo automóvel de marca SEAT, modelo ………., matrícula ..-..-UO, com as consequências daí decorrentes;
B) Condenarem-se ambos os R.R. solidariamente a pagar ao A. uma indemnização no valor de € 2.500,00;
Juntou documentos.
Regularmente citados, os R.R. contestaram a acção em conjunto, nos termos que constam de fl.s 34 e seg.s.
Invocaram em 1º lugar a excepção da incompetência territorial. Em seguindo lugar, excepcionaram a prescrição e a caducidade do direito invocado pelo A.
Entendem que ao contrato de compra e venda do veículo é de aplicar o regime de bens de consumo consagrado no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, relevando o momento da entrega da coisa ao consumidor para o cômputo do prazo de dois anos para a falta de conformidade com o contrato relativamente às desconformidades já existentes naquela data.
A reclamação no âmbito da garantia esgota-se também no prazo de dois anos a contar da recepção da coisa pelo consumidor.
Vendida em Janeiro de 2003, a viatura foi entregue ao A. em Fevereiro seguinte. Como a acção foi intentada em Maio de 2007, com citação dos R.R. nesse mesmo mês, já então (e desde Janeiro/Fevereiro de 2005) estava prescrito o direito que o A. invoca para demandar os R.R.
Ainda que assim não fosse, já em Março de 2006 se constatou que a viatura não tinha instalado o equipamento “ESP” e “TCS” e de tal facto foi informado o A., razão pela qual não foi debitado qualquer valor de custo desse exame ao veículo.
Apesar de dispor de dois anos de garantia para denunciar defeito ou desconformidade do veículo ao vendedor, a contar do seu conhecimento, o A. apenas denunciou a referida desconformidade em 28.12.2006, com o envio de uma comunicação escrita por correio registado com A/R.
Assim e ainda de acordo com o referido Regime dos Bens de Consumo, precludiu também, por caducidade, o direito do A.
Por impugnação, os R.R. opuseram-se, em larga medida, á matéria de facto alegada pelo demandante.
O sistema de segurança em causa não fazia parte do modelo adquirido pelo A., sendo que este não poderia desconhecer esse facto.
O A. não solicitou a aplicação daquele equipamento, tendo sido informado das características técnicas integrantes da versão base do veículo. Em momento algum os R.R. prestaram informação ao A. de que a viatura tinha instalados os referidos equipamentos
“ESP” e “TCS”. Nunca o induziram em erro, nem sonegaram o que quer que fosse.
Em reconvenção, para o caso da acção ser procedente, resolvendo-se o contrato, deve atender-se à desvalorização causada no veículo pelo demandante reconvindo, pois que o tem usado desde Fevereiro de 2003 de uma forma regular.
Ao preço actual do mercado, o veículo tem um valor máximo de € 12.400,00 e a 1ª R. não poderia deixar de ser compensada pela desvalorização decorrente da referida utilização que estimou em € 15.575,45, a suportar pelo A. (novo, o veículo custou € 27.975,45).
E concluíram assim:
«Nestes termos, e em todos os melhores de Direito:
a – Deve ser julgada procedente a excepção de incompetência territorial deduzida pêlos R.R. e o processo ser remetido para o Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira de Azeméis;
b – Devem ser julgadas procedentes as excepções de prescrição e de caducidade deduzidas pelos R.R., devendo os mesmos ser absolvidos do pedido formulado pelo A.;
c – Caso assim se não entenda, por mera cautela de patrocínio, deve julgar-se procedente, por provada, a defesa por impugnação articulada pêlos R.R. e os mesmos absolvidos do pedido;
Sem prescindir, caso… assim não entenda, o que apenas por mera cautela de patrocínio, deve ser julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional deduzido, condenando-se o
Reconvindo a efectuar o pagamento à 1ª R/Reconvinte da quantia de 15.575,45 € (quinze mil quinhentos e setenta e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos). A título de compensação, conforme o disposto no artigo 274°, n°2, b) do C.P.Civil.»
Notificado, opôs-se o A. nos termos que constam de fl.s 59 e seg.s.
Quanto às excepções da prescrição e da caducidade, o A. defendeu a aplicação do regime da compra e venda de coisa defeituosa a que se referem os art.ºs 913º a 922º, do Código Civil.
Na matéria da reconvenção, o A. entende que o valor actual do veículo, com cerca de 100.000 km, é, pelo menos, de €17.000,00.
Termina no sentido de que a reconvenção deve improceder, concluindo que, no mais, vale a petição inicial.
Por decisão de fl.s 65, transitada em julgado, foi considerado territorialmente competente este Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis, para onde vieram remetidos os autos.
Dispensada a audiência preliminar, foi admita a reconvenção e proferido despacho saneador, no qual se relegou para final o conhecimento das excepções da prescrição e da caducidade.
*
Oportunamente foi proferida sentença em que se decidiu:
A- Julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
“1- DECLARA-SE ANULADA A COMPRA E VENDA DO VEÍCULO ..-..-UO, MARCA SEAT MODELO ………., DEVENDO A 1ª R., C………., L.DA, DEVOLVER AO A. O DINHEIRO QUE DELE RECEBEU A TÍTULO DE PREÇO DO VEÍCULO, E O A., B………., RESTITUIR O MESMO VEÍCULO;
2- CONDENA-SE A 1ª R. A PAGAR AO A. UMA INDEMNIZAÇÃO NO VALOR DE € 1.000,00;
3- ABSOLVE-SE O 2º R., D………., DOS PEDIDOS.
B- Julgar a reconvenção totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se o A. reconvindo do respectivo pedido.
*
Custas
Da acção, pelo A. e pela 1ª R., na proporção de 1/4 para o primeiro e 4/4 para a segunda (art.º 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Da reconvenção, pela 1ª R., a reconvinte, por nela ter decaído totalmente”.
*
Desta sentença interpôs recurso de apelação a ré C………. concluindo nas suas alegações:
A) Referem-se as presentes alegações à douta sentença, com data de 01-06-2009, que julgou parcialmente procedente a acção intentada por B………. . Por não se conformar com a decisão do MMº Juiz do Tribunal a quo, que estriba a sua decisão com base em fundamentos/pressupostos que a ora Recorrente coloca em crise por não concordar com a posição perfilhada.
B) O MMº Juiz do Tribunal a quo incorreu em erro na determinação e aplicação do Direito no caso sub judice.
C) Desde logo incorreu em erro na determinação do Direito no caso sub judice porque afasta, do caso vertente, a aplicação do Decreto-Lei nº 67/2003 de 08 de Abril que resulta da transposição da Directiva Comunitária 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, e introduz alterações na legislação nacional já vigente à época da celebração do contrato de compra e venda entre A. (Recorrido) e R. (Recorrente).
As directivas comunitárias são normas que vinculam o Estado-Membro e os cidadãos do espaço da União Europeia, impondo o seu respeito e a sua aplicação aos órgãos estatais legislativos, executivos (incluindo as administrações) e judiciais/jurisdicionais, em homenagem aos princípios da aplicabilidade directa do direito comunitário e do primado do direito comunitário sobre o direito nacional que lhe é (ou possa ser) contrário, tal qual decorre de farta jurisprudência emanada do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
D) O Decreto-Lei nº 67/2003 de 08 de Abril, que resulta da transposição da Directiva Comunitária 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, tem por “objectivo a aproximação das disposições dos Estados membros da União Europeia sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas. (…) O presente diploma procede a tal transposição através da aprovação de um novo regime jurídico para a conformidade dos bens móveis com o respectivo contrato de compra e venda (…) O regime jurídico aprovado respeita as exigências da referida Directiva n.º 1999/44/CE. Entre as principais inovações, há que referir a adopção expressa da noção de conformidade com o contrato, que se presume não verificada sempre que ocorrer algum dos factos descritos no regime agora aprovado.”
– sublinhado nosso. (in epígrafe do Decreto-Lei nº 67/2003 de 08 de Abril, na sua redacção original)
No que respeita aos bens móveis, transpõe-se um novo regime jurídico para a conformidade dos bens móveis com o respectivo contrato de compra e venda, sem olvidar que não haverá responsabilidade do vendedor se o comprador, no acto da celebração do contrato, tiver conhecimento das limitações do bem.

E) No que concerne aos PRAZOS DE EXERCÍCIO DOS DIREITOS enunciados por parte do comprador, a legislação aludida é lapidar e inquestionável:
Tratando-se de coisa móvel, o comprador pode exercer os direitos supra referidos no prazo de dois anos a contar da entrega do bem (artigo 3º, nº 2 e artigo 5º, nº 1, ambos do Decreto-Lei nº 67/2003 de 08 de Abril, na redacção original de tal diploma em vigor à época)
Por outro lado, no que concerne ao EXERCÍCIO DE DIREITOS E SUSPENSÃO DE PRAZO, o consumidor deve denunciar a falta de conformidade do bem ao vendedor no prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, a contar da data em que a tenha detectado.
Note-se ainda que os direitos do consumidor caducam se no prazo referido não fizer a competente denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses (sem que tenha existido qualquer actuação judicial) -artigo 5º, nº 3 e nº 4 do Decreto-Lei nº 67/2003 de 08 de Abril, na redacção original de tal diploma em vigor à época.
F) Esta é a legislação especial, consagrada em diploma próprio, decorrente da transposição de uma directiva comunitária e que não integra o Código Civil, que em concreto deve regulamentar as questões controvertidas em apreço na presente lide.
Aliás, na senda do princípio que também enforma o nosso ordenamento jurídico: a lei especial derroga a lei geral…
G) Ademais, o MMº Juiz do Tribunal a quo incorre novamente em erro na aplicação do Direito no caso sub judice ao não relevar que:
-O veículo automóvel da marca Seat, modelo ………., com a matrícula ..-..-UO foi vendido pela 1ª R. (ora recorrente) ao A. (ora Recorrido) na data de 24.01.2003 e entregue em Fevereiro do mesmo ano;
-Ao contrato de compra e venda do veículo automóvel identificado, celebrado entre a 1ª R. e o A., aplica-se o regime de bens de consumo consagrado no Decreto-Lei nº 67/2003 de 08 de
Abril, na redacção original de tal diploma em vigor à época;
-Para a determinação da falta de conformidade com o contrato, alegada pelo A., releva o momento da entrega da coisa ao consumidor;
-As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois anos a contar da data de entrega de coisa móvel consideram-se já existentes nessa data;
-No que concerne ao prazo de garantia dos bens móveis (lapso de tempo durante o qual, manifestando-se alguma falta de conformidade, poderá o consumidor exercer os direitos que lhe são reconhecidos), este foi fixado em dois anos a contar da recepção da coisa pelo consumidor.
Quando, como se constata e resulta dos autos:
-a viatura foi vendida pela 1ª R. ao A. na data de 24.01.2003 e entregue em Fevereiro do mesmo ano;
-o A. intentou acção judicial no Tribunal Judicial de Ovar em 07 de Maio de 2007;
-os RR. foram citados da acção instaurada em 18 de Maio de 2007;
O direito que o A. invoca para demandar os RR. já prescreveu em Fevereiro de 2005, não podendo demandar judicialmente os RR. (nomeadamente a ora Recorrente) por qualquer desconformidade de que a viatura padecesse.

H) Ainda que assim não se considerasse, o MMº Juiz do Tribunal a quo incorre novamente em erro na aplicação do Direito no caso sub judice ao não relevar que:
-pelo menos desde 15 de Dezembro de 2006 o A./ Recorrido tinha conhecimento da inexistência dos equipamentos «ESP» e «TCS» na viatura

-o A./Recorrente intentou acção judicial no Tribunal Judicial de Ovar em 07 de Maio de 2007;
-os RR. foram citados da acção instaurada em 18 de Maio de 2007;
De acordo com o preceituado no Regime dos Bens de Consumo (Decreto-Lei nº 67/2003 de 08 de Abril, na redacção original de tal diploma em vigor à época), resultaria precludido, por caducidade, qualquer direito eventualmente conferido ao A./Recorrido.

I) De acordo com o preceituado no regime de bens de consumo, consagrado no Decreto-Lei nº 67/2003 de 08 de Abril, na redacção original de tal diploma em vigor à época, dentro do prazo de garantia (dois anos), o consumidor deve denunciar qualquer defeito ou desconformidade ao vendedor no prazo de dois meses a contar do conhecimento, no caso de venda de coisa móvel, sendo que os direitos do consumidor caducam findo qualquer dos prazos referidos nos números anteriores sem que o consumidor tenha feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses.” (artigo 5º, nº 3 e 4):
E, como resulta expressamente da lei, o prazo da caducidade não se suspende nem se interrompe a não ser nos casos em que a lei o determine – art. 328º do Código Civil. A única forma de evitar a caducidade é praticar, dentro do prazo correspondente, o acto que tenha efeito impeditivo. E, se tal prazo respeita ao exercício de uma acção judicial, a única forma de evitar a caducidade é propor a mesma dentro do prazo – art. 332º (Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito civil, vol. II, p. 571), o que não aconteceu.
Incorreu em erro na aplicação do Direito o MMº Juiz do Tribunal a quo pois tinham já decorrido todos os prazos conferidos ao Recorrido para o exercício de qualquer (eventual) direito…

J) Incorreu ainda em erro na apreciação da prova no caso sub judice o MMº Juiz do Tribunal a quo quando:
-Sabendo-se que o A./Recorrido em Dezembro de 2003 terá tido um incidente com a viatura que adquiriu à 1ª R.;
-A viatura acidentada deu entrada nas instalações da Recorrente para reparação;
-pelo menos desde Dezembro de 2003 já o Recorrido teria que ter conhecimento que a viatura não tinha instalados os sistemas “ESP” e “TCS”…
-o A./Recorrido foi interveniente em acidente de viação na data de 23 de Novembro de 2006;
-o A./Recorrido sofreu dois acidentes em cerca de três anos!!!!!!!!!!;
-não é admissível que o A. possa desconhecer a inexistência de tal equipamento na viatura – quando é o próprio que se afirma conhecedor e experiente na condução de veículos com sistemas que integram “ESP” e “TCS” – tinha inclusive um Mercedes com tais equipamentos… -terá necessariamente que saber destrinçar quando uma viatura os integra ou não;

-Como resulta do artigo 12º da P.I. do Recorrido, em 09.03.2006 este entregou a viatura nas instalações da Recorrente, informando que o “ESP não funciona”, a fim de se verificar a situação.

-Como a viatura não tinha instalado o equipamento “ESP” e “TCS”, não lhe foi debitado qualquer montante (cfr. venda a dinheiro nº ……….., emitida em 14-03-2006, junta como documento nº 3 na P.I.).
-Mais: facilmente se intui que caso a viatura tivesse instalado o equipamento “ESP” e “TCS”, ao ter sido solicitado pelo cliente a sua verificação, ser-lhe-ia debitado o custo da apreciação técnica...

L) Uma vez mais incorreu em erro na apreciação da prova e, concomitantemente, na aplicação do Direito o MMº Juiz do Tribunal a quo, pelo que a Recorrente deveria ter sido absolvida do pedido, quando qualifica a actuação da Recorrente como dolosa.
A tipificação de dolo não deve presumir-se, exigindo-se o afastamento de quaisquer dúvidas para classificar uma actuação como dolosa. O facto de se ter dado como provado (em nosso entender mal por falta de prova bastante) que no acto do negócio o primeiro R. ter dito que a viatura possuía o equipamento em causa nos presentes autos, a realidade é que não resulta de tal matéria provada que a 2ª R. tivesse actuado dolosamente. O Dolo não se presume, tem de resultar provado de forma inequívoca.

Aliás, bastaria ao MMº Juiz a quo atentar no teor da factura junta aos autos com a Contestação da R. / Recorrente como Documento nº 1 (factura nº ………, emitida em 31-01-2003)

Facilmente poder-se-á apreender que, caso a viatura integrasse algum equipamento “extra”, este teria necessariamente que constar na mesma, de forma descriminada, em quantidade e qualidade (identificando qual o equipamento e qual o respectivo preço). Esse seria um custo a imputar ao cliente – e, como se vê, não foi imputado qualquer custo!!!!!!

A única opção de fábrica identificada na factura reporta-se à pintura metalizada!!!
Relativamente aos extras, nenhuma menção é feita, razão pela qual também nenhum acréscimo de custo é reflectido na factura!!!!!!!!!!!
Na factura identificada não se faz qualquer menção ao equipamento “ESP” ou “TCS”!!!!!!!
Ora, sintomático da boa fé negocial existente desde o início o Recorrido sabia qual o equipamento que integrava a viatura que adquiriu, porque lhe foi entregue a factura.

M) Por outro lado, o Mmo Juiz a quo ao considerar a existência de Dolo na actuação do 1º R e ao atribuir a responsabilidade à 2ª R, ora Recorrente, fá-lo, com o devido respeito, com ligeireza uma vez que oblitera completamente uma das partes do negócio. Em boa coerência o MMº Juiz a quo deveria considerar a existência de dolo na actuação do A./Recorrido pelo facto de este, não obstante ter conhecimento do que considerava ser um elemento negocial não cumprido, ter continuado a utilizar (AINDA UTILIZA) a viatura de forma plena!!!!

Mais: beneficiou de todas as suas utilidades (NOTE-SE QUE A FALTA DOS ELEMENTOS INVOCADA NÃO CONTENDIA, E NÃO CONTENDE, MINIMAMENTE COM A UTILIZAÇÃO PLENA DA VIATURA) e voluntariamente nunca teve ensejo de reduzir o negócio ou anulá-lo.

Pactuar com a actuação do A./Recorrido e aceitar a decisão do MMº Juiz a quo é abrir a porta para a prática de fraudes, permitindo a supostos lesados o gozo de bens dos quais retiram todas as utilidades e um qualquer dia, já após gozarem todos os seus benefícios, iniciam processo judicial para tentarem obter ressarcimento, enriquecendo sem causa e obtendo um benefício ilícito.
Esta actuação é naturalmente violadora dos mais elementares princípios do direito e permite a utilização de um processo judicial, não para exercer um direito legítimo, mas sim para obter um benefício ilícito.

N) Incorreu ainda em erro o MMº Juiz do Tribunal a quo quando, na hipótese de procedência do pedido do Recorrido, indeferiu o pedido reconvenciaonal deduzido pela Recorrente.

Na verdade, resulta inequivocamente dos autos que:
-desde o início de Fevereiro de 2003, data da entrega da viatura automóvel pela Recorrente ao Recorrido, aquela se encontrar na titularidade e posse deste, que frui dela, fazendo quilómetros, provocando o desgaste e desvalorização que advêm da sua utilização; -neste período, o veículo foi (ainda é) utilizado de forma regular pelo Recorrido, diariamente, pelo que tem elementos que necessitam de ser substituídos devido ao uso e tem elementos que viram a sua duração encurtada pelo referido uso;
-como o Recorrido expressamente reconhece, a viatura de que é proprietário foi interveniente em acidente de viação, do qual resultaram danos materiais (Artigos 15º a 20º da P.I.);
-o veículo automóvel foi vendido pela Recorrente ao Recorrido pelo preço de 27.975,45 € (vinte e sete mil novecentos e setenta e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos);
-À data da apresentação da contestação por parte da Recorrente o valor da viatura cifrava-se em quantia não superior a 12.400,00 € (tal qual decorre da matéria de facto dada como provada);
-com a devolução da viatura, a Recorrente teria de arcar com um prejuízo que se cifrava, à data da entrada da contestação, num montante de 15.575,45 € (quinze mil quinhentos e setenta e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos).

O) Seria absolutamente desproporcionado, constituindo verdadeiro enriquecimento sem causa, a manutenção de uma decisão que contemplasse a resolução do contrato, a restituição da viatura e a imposição à ora Recorrente de restituir o montante recebido sem que pudesse receber qualquer compensação pela desvalorização da viatura, mais ainda quando o Recorrido sempre a utilizou –
AINDA UTILIZA – de forma plena, dela retirando todos os benefícios possíveis.

A manutenção da decisão do Tribunal a quo configuraria uma preterição dos princípios da proporcionalidade e da adequação, potenciando um manifesto desequilíbrio na tutela dos interesses contrapostos.

Estaríamos em presença de um lucro que se produziria na esfera jurídica patrimonial do Recorrido que excederia largamente o (eventual) dano que teria sofrido.

Estaríamos em presença de um verdadeiro (mas ilegítimo e injustificado, porque também desproporcionado) enriquecimento sem causa, resultando in casu um locupletamento do Recorrido à custa da Recorrente.

A restituição in totum do montante pago pelo Recorrido à Recorrente, sem considerar as vantagens que aquele obteve (ainda obtém) com a utilização da viatura não pode obter colhimento.

As vantagens patrimoniais conferidas ao Recorrido excederiam largamente a justa protecção dos seus interesses, contrariando mesmo o sentido do bom senso jurídico.

O conceito de reparação do dano é indissociável da (boa) realização da justiça material. Aquele não pode (não deve) ser sobrevalorizado – a sua aplicação não pode (não deve) concretizar uma situação fáctica tal que acabe por traduzir-se em excesso de tutela dos interesses que visa proteger.
Caso contrário, estaríamos a preterir a (boa) realização da justiça material.
Termos em que, a considerar-se improcedente a matéria anteriormente vertida nesta peça processual, o que apenas por mera lógica de patrocínio se admite, sempre seria de revogar a decisão do MMº Juiz a quo substituindo-a por outra que considere a desvalorização da viatura e a atribuição de uma compensação à ora Recorrente, sendo que o concreto valor da compensação deverá ser relegado para liquidação e execução de sentença (por forma a determinar qual o real valor actual da viatura).
Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida pelo Mmo Juiz a quo, propugnando a Recorrente, nomeadamente, pela procedência das excepções deduzidas e a sua absolvição do pedido.
Caso assim se não entenda, o que apenas por mera hipótese de patrocínio se admite, sempre seria de revogar a decisão do MMº Juiz a quo substituindo-a por outra que considere a desvalorização da viatura e a atribuição de uma compensação à ora Recorrente, sendo que o concreto valor da compensação deverá ser relegado para liquidação e execução de sentença (por forma a determinar qual o real valor actual da viatura).
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FACTOS PROVADOS
1- A 1ª R. dedica-se com intuitos lucrativos, ao comércio de veículos automóveis;
2- O 2.° Réu foi vendedor comissionista da 1ª R;
3- No dia 24.01.2003 o A. adquiriu à 1.ª R. um veículo da marca SEAT, modelo ………., de cor preta, matricula ..-..-UO…
4- …pelo preço de € 28.615,00;
5- Na ocasião da compra, o A. solicitou que o veículo tivesse pintura metalizada e as jantes fossem trocadas…
6- …suportando o custo adicional de € 299,28 por cada um (ou seja, valor total de €598,56);
7- Todo o processo negocial e da venda decorreu directamente com o 2° R. no Stand de vendas da 1 ª R., na cidade de Santa Maria da Feira;
8- O veículo identificado em 3º foi entregue ao A., em Fevereiro de 2003;
9- O veículo identificado em 3º não contém equipamento «ESP» e «TCS»;
10- O «ESP» é um sistema baseado na tecnologia de dois Sistemas de segurança activa testados e comprovados:
-um sistema de antibloqueio de travões ABS, que previne que as rodas bloqueiem durante a travagem, e
-um sistema de controlo de tracção TCS, que garante que as rodas não deslizem ao arrancar;
11- O «ESP» foi concebido para, em situações de perigo em curva ou piso escorregadio corrigir a trajectória do veículo;
12- Em 28 de Dezembro de 2006, o A. enviou à 1ª R., a missiva junta como doc. n° 5 com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por reproduzido, por carta registada por aviso de recepção;
13- Em resposta, a 1ª R. enviou, em 4/01/2007, ao A., a missiva junta como doc. n° 6 com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
14- O A. vive em Ovar;
15- No dia 16/12/2003 ou 17/12/2003, o A. deslocou-se pessoalmente no veículo identificado sob o item 3º à oficina da 1ª R. onde questionou os seus responsáveis sobre a alegada ocorrência aludida em 27º a 31º, ou seja, alegada falha do sistema de «ESP»;
16- Em 09.03.2006, o A. entregou o veículo descrito em 3º nas instalações da 1ª R., solicitando que fosse efectuada a verificação de sistema “ESP” e “TCS” (“esp por vezes não funciona”), concomitantemente com outras solicitações (informações sobre o kit potência, temperatura exterior, etc.);
17- Na ocasião mencionada em 15º, a recepcionista da 1ª R. inscreveu na ordem de reparação as informações que lhe foram prestadas pelo A., tal qual foram transmitidas por este;
18- Conforme resulta do doc. n° 3 junto com a petição inicial na venda a dinheiro ………, emitida em 14-03-2006, a 1ª R. fez constar que o «ESP por vezes não funciona», e os demais elementos de verificação, os mesmos foram transmitidos e verificados nomeadamente a temperatura exterior oscila entre 11°C e 12°C e a informação sobre o kit de potência.
19- Desde o início de Fevereiro de 2003 até à presente data que o veículo descrito sob o item 3º foi utilizado de forma regular pelo A./Reconvindo…
20- Fazendo quilómetros;
21- Durante o processo negocial, o 2° R. informou o A. de que o veículo descrito sob o item 3º integrava de série os sistemas “ESP” e “TCS” (ou seja, controle de estabilidade e controle de tracção, respectivamente) …
22- Tendo como objectivo que o A. adquirisse esse veículo;
23- Face às características do veículo em causa, mormente, a integração dos sistemas «ESP» e «TCS», o A. decidiu comprá-lo;
24- Na ocasião mencionada atrás (acto de entrega) o 2° R. elucidou o A. sobre a generalidade dos seus dispositivos, nomeadamente, alarme e fecho de portas, climatronic, sistema limpa vidros, sistemas de «ESP» e «TCS», alguns órgãos de mecânica, etc.
25- No decurso da explicação, o A. questionou o 2° Réu como poderia controlar o «ESP» (ou seja, ligar e desligar), uma vez que julgava existir um botão para controle deste tipo de dispositivos;
26- O 2° Réu informou-o de que a viatura apesar de possuir o sistema “ESP”, não possuía o botão para o respectivo controlo e por esse motivo, o «ESP» não era visível e não era possível desligá-lo;
27- A 14 de Dezembro de 2003, cerca da 01h00m, o A. conduzia o veículo identificado em 3º;
28- …circulando atrás de si um outro veículo tripulado por um antigo colega da empresa…
29- …em pavimento molhado…
30- …quando ao contornar uma rotunda…
31- …efectuou um pião de 180°;
32- Face ao aludido em 27º a 31º, no dia 15/12/2003, por via telefónica, informou e questionou os responsáveis da oficina da
1ª R. sobre a falha do sistema de «ESP»…
33- Na ocasião mencionada em 32º e 15º, o chefe da oficina respondeu ao A. no sentido de que era uma coisa rara que não deveria ter sucedido e de que poderia ter sido um excesso da parte do A. que o sistema não tivesse tempo de corrigir;
34- O A. utilizava na altura um outro veículo de marca Mercedes, equipado com o sistema ESP;
35- …o qual, nas situações de perigo descritas em 11º actuava nos termos aludidos em 10º e 11º;
36- Algumas vezes, após o referido sob os itens 32º e 33º, o A. sentia que, em situações de curvas mais sinuosas, o veículo descrito em 3º não se comportava nos termos evidenciados em 10º e 11º;
37- Em virtude do que o A. procedeu nos termos expostos sob o item 16º;
38- Em 23 de Novembro de 2006, o A. tripulava o veículo identificado em 3º a uma velocidade não superior a 80 km/h;
39- …em pavimento molhado…
40- …o A. ao aperceber – se do eixo traseiro do seu veículo em rotação, manteve a posição do volante na expectativa que o «ESP» controlasse a situação…
41- …seguidamente, o veículo continuou descontrolado…
42- … sofreu um despiste, fazendo um pião de cerca de 90º;
43- …indo, seguidamente, em direcção a uma valeta onde embateu com a frente numa parede aí existente…
44- …danificando a frente do veículo;
45- Em consequência do aludido em 38º a 44º, no mesmo dia, o veículo deu entrada nas instalações da R. C………. a fim de serem reparados os danos ai mencionados;
46- Na mesma ocasião, o A. solicitou a verificação do sistema do «ESP»;
47- A verificação do sistema não podia ser efectuada no “Centro ……….”;
48- Perante isso, o A. solicitou a peritagem/reparação dos danos e a verificação do sistema do «ESP»;
49- A 1ª R. procedeu, de seguida, à reparação dos danos do acidente naquele “Centro” (chaparia e pintura);
50- … e entregou o veículo ao A. após aquela reparação, no dia 6 de Dezembro de 2006;
51- De seguida, o A. levou o mesmo veículo à outra oficina, de mecânica, da 1ª R. C………., em Oliveira de Azeméis, em 14 de Dezembro de 2006, para testar o «ESP»;
52- …tendo sido efectuado, na mesma data, um teste de estrada, não conclusivo…
53- …motivo pelo qual o veículo permaneceu até dia 15 de Dezembro de 2006 para serem efectuados mais testes;
54- No dia 15 de Dezembro de 2006, a 1ª R. entregou o veículo descrito em 3º ao A., transmitindo-lhe que o veículo não possui «ESP» e «TCS»;
55- Na data da compra do veículo descrito em 3º, um veículo com as mesmas características, mas que tivesse o equipamento adicional de «ESP» custava cerca de € 500,00 a € 1.000,00 mais do que aquele;
56- Se o A. soubesse que o veículo descrito sob o item 3º não tinha aquele equipamento de série, teria adquirido um veículo com o referido adicional apesar do seu acréscimo de custo;
57- Os Réus sabiam que o A. só compraria o veículo se este tivesse o equipamento de «ESP» e «TCS»;
58- O A. já então e ainda hoje aprecia muito veículos automóveis, designadamente o veículo do modelo desportivo referido em 3º;
59- … limpando-o e lavando-o com frequência;
60- … e mandando efectuar pequenas reparações no veículo;
61- Ao saber que o veículo não possuía o «ESP» e «TCS», o A. ficou revoltado…
62- …e em razão do aludido em 58º a 60º, sentiu-se angustiado…
63- O A. ficou triste;
64- Sentiu mal-estar;
65- …uma má disposição…
66- Em resultado do estado de ânimo aludido sob os itens 62º a 65º o A. mostrou-se impaciente e agressivo junto de alguns amigos, colegas de trabalho e na família, designadamente da esposa;
67- Pelo menos no ano de 2006 e nos tempos que se seguiram o A. trabalhava na cidade do Porto;
68- Até ao dia 23 de Novembro de 2006, o A. deslocava-se ao trabalho através do veículo descrito em 3º, pela auto-estrada…
69- … despendendo o tempo médio de 25 minutos em cada viagem;
70- A partir do momento em que soube da falta de «ESP», o A. perdeu a confiança no veículo descrito sob o item 3º;
71- Em função do que passou a circular mais devagar;
72- Na venda a dinheiro referida em sob o item 18º não foi debitado qualquer valor relativamente à verificação do sistema ESP por a máquina não ter acusado qualquer anomalia;
73- O referido em 19º e 20º tem vindo a desgastar as peças e os órgãos vitais do veículo identificado sob o item 3º;
74- Havendo peças dele que, irão necessitar de ser substituídas;
75- …e levando a que o veículo, valha um montante não superior a €12.400,00.
*
O recurso.
I. A recorrente insurge-se contra a decisão da matéria de facto, pretendendo a sua alteração ao abrigo do disposto no artº 712º, nº1ª) do CPC, alegando erro na sua apreciação.
Entende que o tribunal deu como provado que o autor teve conhecimento em 15 de Dezembro de 2006 que o veículo não dispunha do equipamento “ESP” e “TCS”, quando na realidade o autor teve um acidente em Dezembro de 2003, altura em que devia ter conhecimento que o veículo não tem o sistema de “ESP” e “TCS”dado que além do mais é pessoa entendida em veículos automóveis.
Além do mais na factura junta a fls.41 com a contestação, referente à compra do veículo, está excluída qualquer referência ao equipamento dos autos, o que indicia que o mesmo não fez parte do acordo.
As provas fornecidas para a alteração da matéria de facto são insuficientes. Não podem, por isso, proceder os argumentos da recorrente. Não podemos dar o “salto” pretendido pela recorrente C………. . A decisão recorrida analisou toda a prova globalmente considerada, e reapreciando a prova produzida não vemos qualquer razão para alterar a decisão da 1ª instância no sentido pretendido pelo recorrente.
Convém esclarecer que a alteração da matéria de facto pela Relação só deve ocorrer em casos de manifesto erro na apreciação da prova, quando haja flagrante desconformidade entre os elementos probatórios e a decisão.
Por isso se vem entendendo que o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto limita – se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, Ac. STJ de 20. 05. 95 in www.dgsi.pt.
É que a apreciação da prova na Relação envolve um “risco de valoração” de grau mais elevado que na 1ª instância, em que estão presentes os princípios da imediação, concentração e oralidade, ao contrario daquela que não tem essa possibilidade do contacto directo com as testemunhas, sendo do conhecimento comum que os depoimentos não se analisam apenas em palavras, acrescendo-lhe todo um conjunto de manifestações comportamentais e reacções do depoente que são decisivos ou interferem na omissão de um seguro e fiável juízo de valor sobre o depoimento prestado, nomeadamente sobre a sua credibilidade e a que o tribunal de recurso não tem acesso.
Não existe erro na apreciação da matéria de facto no sentido apontado pelo que deve manter-se inalterada.

II. Estamos no âmbito de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel celebrado entre o autor como comprador e a 1º ré, como vendedora, cujo preço se encontra pago tal como decorre da definição dada pelo artº 874º do C.C.
Pela presente acção o autor, na qualidade de comprador, pede a condenação dos réus, além do mais a ver declarado a anulação do contrato com o fundamento na falta de qualidades do veiculo que lhe assegurou o vendedor 2º réu, ao serviço da 1ª ré, na altura da celebração do contrato.
A vendedora assegurou que o veiculo, detinha equipamentos “ESP” e “TCS” que se traduzem em dois sistemas de segurança activa, um de antibloqueio de travões de ABS, que previne que as rodas bloqueiem durante a travagem e um sistema de controlo de tracção RCS, que garante que as rodas não deslizem ao arrancar.
O autor procedeu à compra tendo em conta estas características, sendo certo que se o autor soubesse que este concreto veículo não tivesse este equipamento de serie, teria adquirido um veículo (ainda que) com o adicional do seu acréscimo de custo.
Os réus sabiam que o autor só compraria o veículo se este tivesse o equipamento de “ESP” e “TCS”.
Conclui-se que estas qualidades motivaram em termos essenciais a celebração do negócio, isto é, se o autor tivesse conhecimento da inexistência dessas características, não teria comprado o veículo em causa, sendo certo que o 2º réu, vendedor, tinha inteiro conhecimento desta situação.
O caso reconduz-se ao não cumprimento do contrato de compra e venda, dado que foi efectuada prestação diferente da convencionada entre as partes.
Uma das particularidades de não cumprimento no contrato de compra e venda reconduz-se ao regime de coisa defeituosa.
Ocorrendo incumprimento defeituoso e, de entre as soluções postas á disposição do comprador assiste-lhe o direito de pedir a anulação do contrato nos termos conjugados dos arts. 913º e 905º do C.C.
Para o comprador exercer estes direitos deve previamente denunciar os defeitos sob pena de caducidade.
A especialidade da venda dos autos consiste em ser realizada por uma sociedade comercial e um particular, destinando-se o veiculo a fins particulares, logo no âmbito de uma venda de bem de consumo e aplicável o respectivo regime, tal como foi decidido na 1ª instancia e não foi posto em causa nas alegações de recurso.
Sustentam os recorrentes, por um lado, que não há lugar à anulação do contrato, dado que dos factos provados não se pode inferir a existência de dolo, e por outro que, mesmo que assim se entendesse, o certo é que sendo a compra e venda de um bem de consumo é aplicável o regime do direito de consumo, com exclusão do regime comum.
Neste caso os prazos de caducidade já se encontram ultrapassados.
Vejamos. Começando com a existência do dolo no contrato.
Estamos perante um contrato de compra e venda de coisa específica e, portanto subsumível ao regime particular de incumprimento prevista no artº 913º do CC.
Dispõe o art 913º do CC que, nº “Se a coisa sofrer de vicio que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as necessárias adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes”. E o art. 905º do mesmo diploma estabelece “Se o direito transmitido estiver sujeito a algum ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, o contrato é anulável por erro ou dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade”.
No caso dos autos o veículo, não tem as qualidades asseguradas pela vendedora, ora 1ª ré, de acordo com o art. 913º, citado e como tal a compra e venda é de coisa defeituoso.
Vamos averiguar se existe dolo relevante nos termos dos artigos 247º e 251º do CC de forma a fazer funcionar o art. 905º do CC, com o exercício do direito à anulação.
Analisando, de acordo com o art. 236º do CC, a vontade das partes através do acordo negocial (contrato) concluímos que o veículo tem qualidades diferentes das ajustadas, sendo certo que o vendedor assegurou que aquele concreto veículo as possuía.
No caso sub judice resulta que a vendedora/ declaratária e ora ré, conhecia a essencialidade para o autor das características em falta e que este comprava induzido por este erro, ou seja, a vendedora conhecia que o autor só pretendia comprar um veiculo com aquelas características.
Existe um erro relevante nos termos do artº 247º e 251º do CC.
Resulta ainda que a vendedora tinha conhecimento da vontade e exigência do comprador e, sabedora da ausência dessas características asseverou que o veiculo as possuía, induzindo o autor a compra-lo, donde tal como decidido na sentença recorrida, existe uma conduta dolosa da vendedora.
Assim sendo, o prazo para a propositura da acção é fixado genericamente no artº 287º, nº 1 do CC ex vi art. 917º do mesmo diploma, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento do dolo, sem necessidade de qualquer denuncia (artº916º do CC).
Do exposto resulta que de acordo com as disposições citadas a acção está em prazo, não ocorrendo a caducidade.
A recorrente questiona a aplicação deste regime civil comum por entender que aqui é aplicável o direito de consumo ao abrigo do qual os prazos de denúncia do defeito e de propositura da acção já se encontravam transcorridos.
Na União Europeia a legislação sobre a protecção dos consumidores é constituída por Directivas que são subsequentemente transpostas para a ordem jurídica de cada estado membro. Directivas que até à data, nesta matéria, têm estabelecido um grau mínimo de protecção.
As directivas nesta matéria não visam a harmonização total.
A lei 67/2003 corresponde justamente à transposição para o direito interno da Directiva 1999/44/CE que no seu artº 8º dispõe, nº 1 “O exercício dos direitos resultantes da presente directiva não prejudica o exercício de outros direitos que o consumidor possa invocar ao abrigo de outras disposições nacionais relativas à responsabilidade contratual ou extracontratual.” E o nº 2 estatui “ Os Estados Membros podem adoptar ou manter, no domínio regido pela presente directiva, disposições mais estritas, compatíveis com o Tratado, com o objectivo de garantir um nível mais elevado de protecção do consumidor.”
Isto quer dizer que Os Estados Membros podem legislar para os consumidores uma maior protecção da estabelecida na Directiva.
Assim, se o regime especial (nacional) dos bens de consumo (consequência da transposição da Directiva) tem por objectivo assegurar apenas uma protecção mínima do consumidor, será sempre aplicável a lei comum que lhe estabelecer tratamento mais favorável.
No caso concreto ao ser permitido, no direito civil, um prazo mais longo de propositura da acção, sem necessidade de denúncia do defeito, e na medida em que estabelecem normas de nível mais elevado de protecção do consumidor, é este o direito aplicável.
A este propósito refere ainda o Considerando 19 da Directiva “os Estados Membros devem poder fixar um prazo durante o qual os consumidores devem informar o vendedor de qualquer o vendedor de qualquer falta de conformidade;” e ainda “os Estados Membros podem assegurar aos consumidores um nível de protecção mais elevada não introduzindo uma obrigação desse tipo”.
É aplicável ao caso dos autos o CCivil e, por conseguinte não ocorre a referida caducidade.
Improcedem, pois as alegações de recurso, nesta parte.
II. Vejamos por ultimo a procedência do pedido reconvencional.
Em reconvenção, e atento o pedido de anulação do autor, a 1ª ré pretende ser indemnizada pelo valor correspondente à desvalorização do veículo – o veículo era novo e à data da compra e venda tinha o valor de € 27.975,45, sendo o seu valor actual de € 12.400,00. A diferença corresponde a € 15.575,45. Esta desvalorização é imputável ao autor que o utilizou e com ele circulou.
Regulamenta esta situação o artº 1269º do CC ex vi art.289º, nº3 e por isso o comprador só responde pela deterioração do veiculo se tiver procedido com culpa.
Não espelha a matéria de facto a culpa do autor na desvalorização do veículo. Comprou o veículo e utilizou-o no convencimento que lhe pertencia e que o mesmo possuía as qualidades que lhe foram asseguradas no contrato, sendo a desvalorização inerente à circulação do veículo.
Como factos constitutivos do direito dos réus, aos mesmos incumbia a sua prova, a sua prova de acordo com o artº342º, nº2 do CC, não o tendo feito deve a acção ser decidida contra si de acordo com o art. 516º do CPC.
Na improcedência das alegações de recurso confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 2010.02.23
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa
Maria da Graça Pereira Marques Mira