Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ISABEL SILVA | ||
Descritores: | FACTO ESSENCIAL FACTOS CONCRETIZADORES DESPESAS E ENCARGOS DO COMPROPRIETÁRIO ABUSO DE DIREITO | ||
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Nº do Documento: | RP20240606408/23.3T8VCD.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/06/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Não é de confundir o vício de contradição entre os fundamentos e a decisão com o erro de julgamento na apreciação da matéria de facto. II - Ficando provado que na altura do divórcio, as partes acordaram que «a casa de morada de família, sita (…), fica atribuída ao cônjuge marido, até à venda ou partilha» não se pode daí extrapolar que tenha existido um acordo de que todas as despesas e encargos com o empréstimo obtido para a compra desse imóvel ficavam a cargo do Réu. III - Tendo o Réu, cônjuge marido, deduzido reconvenção a peticionar o pagamento dessas despesas e encargos, a possível existência desse acordo constitui um facto essencial, na medida em que é integrador duma exceção perentória impeditiva do direito peticionado pelo Réu na reconvenção. IV - Só os termos desse acordo é que poderiam ser considerados factos concretizadores, sujeitos à disciplina do art.º 5º nº 2 al. b) do CPC. V - Ainda que a fruição da coisa esteja a ser feita exclusivamente por um, e perante a inexistência de acordo em sentido diverso, cada comproprietário tem de participar nos encargos e despesas da coisa na proporção da sua quota: art.º 1405º nº 1 do CC. VI - Em ação de divisão de coisa comum, não se verifica abuso de direito por parte do Réu que pretende obter da Autora a proporção da sua quota no pagamento das despesas e encargos que suportou sozinho. Ao contrário, seria a Autora quem ficaria enriquecida, pois iria receber um valor pelo preço atual da fração, no qual não comparticipou. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Apelação nº 408/23.3T8VCD.P1 ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO I – Resenha do processado 1. AA, e marido, BB, instauraram ação especial de arbitramento para divisão de coisa comum contra CC. Alegaram que a Autora mulher e o Réu, à data ainda solteiros, adquiriram uma fração autónoma, na proporção de metade cada um. Para a compra, contraíram dois empréstimos bancários, com hipoteca da fração e fiança dos pais da Autora mulher. A fração é bem indivisível e a Autora não pretende continuar na indivisão. Terminaram peticionando que «o imóvel seja declarado indivisível, devendo proceder-se à sua adjudicação ou venda, tudo com as legais consequências.» O Réu deduziu contestação, onde reconheceu a indivisibilidade da fração e a compra no estado de solteiros. Para além disso, alegou ter sido casado com a Autora mulher até 2015, tendo-lhe a fração sido atribuída a ele, a título de casa de morada de família, no processo de divórcio. Que a Autora abandonou a fração em 2014 e, desde essa altura, não assumiu quaisquer encargos associados à mesma, todos suportados pelo Réu. Face a isso, deduziu reconvenção, com fundamento nos pagamentos que tem suportado sozinho, relativos aos dois empréstimos bancários (€ 32.192,12), ao condomínio (€ 3.072,94), pretendendo haver da Autora metade desses valores (€ 17.632,53) como compensação nas tornas. Terminou pedindo «deve a Requerente/Reconvinda ser condenada a pagar ao Requerido/Reconvinte, a quantia de € 17.632,53». Os Autores responderam, impugnando parcialmente o alegado e suscitaram a inadmissibilidade da reconvenção. A M.mª Juíza emitiu despacho em que decidiu admitir a reconvenção, determinar que os autos prosseguissem sob a forma de processo comum, nos termos do art.º 926º nº 3 do CPC e agendar audiência prévia. Este despacho não foi questionado. Nessa audiência prévia, a M.mª Juíza decidiu: «(…) O estado dos autos permite conhecer do mérito da causa quanto aos pedidos formulados na petição inicial, sem necessidade de mais provas, pelo que segue sentença parcial nessa parte. (…) Questão a solucionar - Decidir a questão da divisibilidade, ou não, da fracção objecto dos autos, ao abrigo do disposto no art. 926.º e 927.º, ambos do Código de Processo Civil e quinhão que pertence a cada um dos interessados. De facto 1) No dia 15.04.2008, AA e CC, ambos no estado de solteiros, adquiriram a fração autónoma designada pelas letras “AA”, correspondente a uma habitação no r/c direito, Bloco ..., com entrada pelo número ..., habitação do tipo T-Dois, Logradouro “L-...”, garagem ..., do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho de Vila do Conde, inscrito na matriz predial urbana de Vila do Conde sob o artigo ...-AA e descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ...-AA/Vila do Conde. 2) O prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ...-AA/Vila do Conde e que corresponde à fração autónoma designada pelas letras “AA”, correspondente a uma habitação no r/c direito, Bloco ..., com entrada pelo número ..., habitação do tipo T-Dois, Logradouro “L-...”, garagem ..., do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho de Vila do Conde, está inscrito a favor de AA e CC, pela apresentação n.º 19 de 2008/03/26, por compra. De Direito Estatui o art. 209.º do Código Civil que «São divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam.» Deste modo, nos termos da citada norma, a divisibilidade pressupõe a possibilidade de fracionamento: sem alteração da substância; sem diminuição de valor; e sem prejuízo para o uso a que se destinam. Por outro lado, o art. 1422.º-A, n.º 3 do Código Civil estabelece que «Não é permitida a divisão de fracções em novas fracções autónomas, salvo autorização do título constitutivo ou da assembleia de condóminos, aprovada sem qualquer oposição.» Ora, nada foi alegado no sentido de que a fracção seja divisível, nem tão pouco que a divisão é possível nos termos do título constitutivo da propriedade horizontal ou por deliberação de assembleia de condóminos, aprovada sem qualquer oposição. Acresce mesmo que as partes estão de acordo que a fracção de que a Autora e Réu são comproprietários é indivisível. Deste modo, a fracção objecto destes autos, é, pela sua própria natureza e pelas características e bem ainda por imposição legal, um prédio/fracção indivisível. Considerando que se trata de uma única habitação, temos de considerar que o prédio objecto da presente acção é, pela sua natureza e características, indivisível em substância, nos termos do art. 209.º a contrario do Código Civil. Decisão Assim, e sem necessidade de maiores considerações, declara-se que a fração autónoma designada pelas letras “AA”, correspondente a uma habitação no r/c direito, Bloco ..., com entrada pelo número ..., habitação do tipo T-Dois, Logradouro “L-...”, garagem ..., do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho de Vila do Conde, inscrito na matriz predial urbana de Vila do Conde sob o artigo ...-AA e descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ...-AA/Vila do Conde indivisível em substância. (…) Apurada a indivisibilidade do prédio objecto dos presentes autos, importa então fixar os quinhões que cada uma das partes tem na fracção em apreço. Assim sendo, e ao abrigo do disposto no art. 927.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil, temos de fixar os quinhões, nas seguintes proporções: - 1/2 para AA e - 1/2 para CC. Decidido que está o mérito da acção (petição inicial), têm os autos de prosseguir para conhecimento do mérito da reconvenção.» Posto isso, passou a definir o objeto do litígio e os temas de prova e os autos prosseguiram, sem reclamações. Foi realizada audiência de discussão e julgamento e a M.mª Juíza proferiu sentença em que decidiu: «Pelo exposto, julga-se a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a Autora AA, a pagar ao Réu CC a quantia de €.17.235,28 (dezassete mil duzentos e trinta e cinco euros e vinte e oito cêntimos).» Já neste Tribunal foram ouvidas as partes sobre a possibilidade de declaração da ilegitimidade do Autor BB. 2. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes conclusões: I. - Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo, a 17/11/2023, que julgou a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Reconvinda/Recorrente AA, a pagar ao Reconvinte/Recorrido CC a quantia de €.17.235,28 (dezassete mil duzentos e trinta e cinco euros e vinte e oito cêntimos). II. - A Recorrente jamais poderá aceitar a sentença proferida, dado que entende que a mesma, além de não aplicar corretamente a lei à matéria de fato assente, a decisão nela proferida, representaria uma imoralidade e injustiça absolutamente inaceitável para a Recorrente. III. - Com o presente recurso, a Recorrente tem em vista, não apenas a interpretação e a aplicação da lei aos factos já dados como provados, mas, também, a reapreciação da prova produzida, documental e testemunhal, com vista à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para e os efeitos do estatuído v.g. no artigo 662.º, do C.P.C. IV. - A Recorrente não aceita a sentença proferida, dado que entende que a mesma viola expressamente o disposto nos artigos 334º e 1405 nº1º do Código Civil e artigos 4º, 5º, 6º, 411º, 413º e 414.º todos do CPC; sendo nula nos termos do artigo 615.º n.º 1 al. c) do CPC. V. - Do ponto 8) da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal “a quo”, lê-se: “Pelo menos, desde 16.04.2015, foi unicamente o Réu quem habitou, permaneceu e usou a fracção referida em 1) e 3).” VI. - No ponto 9) da factualidade dada como provada, consta: “E também foi o Réu quem sempre suportou todos os encargos associados à fracção referida em 1) e 3).”, pese embora encontra-se amputado, faltando o elemento juridicamente relevante. VII. - No ponto 9) na matéria de facto dada como provada, sempre se deveria ler o seguinte: “E também foi o Réu quem sempre suportou todos os encargos associados à fracção referida em 1) e 3), por acordo entre a Autora e o Réu na sequência do descrito no ponto 8), uma vez que relevância jurídica do facto emerge do acordo entre a Autora/Recorrente e o Réu/Recorrido visto ser este último que ficou a residir e a beneficiar em exclusivo do imóvel e não do pagamento dos encargos. VIII. - O elemento fulcral é o acordo para a residência e uso daquele imóvel pelo Recorrido consubstanciando a sequência do assentimento o pagamento dos encargos por quem dele se serviu, in casu, o Réu. IX. - A Recorrente não pode conceber como é que o tribunal “a quo” retira a consequência jurídica de que o Recorrido detém um crédito sobre a Recorrente por despesas suportadas com a fração quando é a própria decisão em crise que na motivação para a decisão de facto relativamente aos factos provados em 8) a 12) refere que que valorou conjuntamente o depoimento das testemunhas DD e EE, pais da Autora mulher que “de forma totalmente espontânea disseram que depois do divórcio foi o Reu quem ficou a viver na fração (a filha arranjou outro local para viver) e foi ele quem suportou as despesas.” X. - A prova testemunhal produzida esclareceu, de forma cabal e esclarecida, que a Recorrente e o Recorrido convencionaram que o Recorrido ficava a residir no imóvel e responsabilizava-se pelo pagamento dos encargos do imóvel na totalidade (veja-se o depoimento de DD, gravado no sistema habilus media studio, na sessão de julgamento de 11.10.2023, com duração de 00:00:00 às 00:08:41, passagens de 00:03:40 a 00:05:04 e de EE, no seu depoimento com duração de 00:00:00 às 00:11:50, a passagens de 00:02:26 a 00:04:50 e de 00:05:00 a 00:09:26) XI. - O Recorrido, em sede de declarações de parte, confirmou que foi convencionado que o Recorrido ficava a residir no imóvel e responsabilizava-se pelo pagamento dos encargos do imóvel na totalidade, tanto que, inclusivamente, a Recorrente lhe entregava as cartas do IMI da sua parte do imóvel que a mesma recebia em sua casa (a qual era diferente do prédio em causa nos autos) e o Recorrido liquidava e que nunca o Recorrido interpelou a Recorrente para liquidar qualquer valor que tenha suportado de encargos no imóvel (veja-se as declarações de parte do Réu no seu depoimento gravado no sistema habilus media studio, na sessão de julgamento de 11.10.2023, com duração de 00:00:00 às 00:45:27, a passagens de 00:01:20 a 00:06:40 e 00:07:00 a 00:20:26, 00:26:40 a 00:27:22 e 00:34:00 a 00:35:09, 00:35:18 a 00:42:00 e 00:44:00 a 00:45:00) XII. - A manutenção da decisão em causa além de grosseiramente violadora da jurisprudência e do direito vigente, gera uma injustiça social, isto porque: i. A Recorrente deixou de residir e de ter acesso ao imóvel desde 2014, data em que terminou a união conjugal; ii. O Recorrido usou, fruiu e dispôs da coisa de forma plena desde então, sem que a Recorrente tenha, desde 2014, acesso ao bem do qual é comproprietária; iii. A Recorrente, fruto do fim da união conjugal, pagou renda e teve encargos com a sua habitação; XIII. - O juízo de prognose deveria ter levado o tribunal “a quo” para chegar ao ponto 9) da matéria de facto dada como provada, a relevância jurídica deste facto emerge do acordo entre a Recorrente o Recorrido visto ser este último que ficou a residir e a beneficiar em exclusivo do imóvel e não do pagamento dos encargos, sendo assim o acordo o seu elemento fulcral e por esse motivo, consequentemente o pagamento dos encargos por quem dele se serviu, ou seja, o Recorrido. XIV. - O ponto 9) dos factos, deveria ser completado passando a: “E também foi o Réu quem sempre suportou todos os encargos associados à fracção referida em 1) e 3), por acordo entre a Autora e o Réu na sequência do descrito no ponto 8).”, atenta a produção de prova acima identificada. XV. - Dos factos provados em 8) a 12), sendo reformulado o ponto 9) como imediatamente acima se pormenorizou, na sequência da prova produzida e supra detalhada, resulta por demais evidente o acordo entre a Recorrente e o Recorrido para a residência, uso e benefício exclusivo deste último e por isso o pagamento dos encargos por si. XVI. - Subsumindo o direito a estes mesmos factos 8) a 12), importa trazer à colação o seguinte, que o artigo 334º do Código Civil dispõe que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” XVII. - O Recorrido ao pretender com a reconvenção que deduziu a restituição dos valores que pagou com os encargos do imóvel constantes dos pontos 10) 11) e 12) da matéria de facto dada como provada quando foi o único que desse mesmo imóvel se serviu após o divórcio com a Recorrente, constitui um claro abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, XVIII. - O Recorrido foi o único que desse mesmo imóvel se serviu após o divórcio com a Recorrente, ficando assim a residir e a beneficiar do mesmo em exclusivo, como acordou com a Recorrente que pagaria os encargos com o imóvel que habitou. XIX. - O Recorrido ao pretender receber da Recorrente, metade dos montantes despendidos para fazer face aos encargos do imóvel quando foi o Recorrido que exclusivamente dele se serviu.!!!!!!, constitui um atropelo aos mais elementares princípios de direito. XX. - Devendo assim ser alterada a decisão da primeira instância, revogando-se a decisão condenatória no concernente à reconvenção deduzida pelo Reconvinte/Recorrido contra a Reconvinda/Recorrente. XXI. - As alegações deste recurso expressam que, nestes autos, a produção de prova quanto ao facto do Recorrido residir, usar e beneficiar do imóvel, em exclusivo, após o divórcio com a Recorrente, e que por isso, suportou os encargos, foi por demais evidente. XXII. - Salvo o devido respeito, tudo o que foi aqui alegado, traduz a absoluta impossibilidade de se alcançar o entendimento da sentença que ora se recorre, esta não respeitou a prova produzida em julgamento, nomeadamente os depoimentos das testemunhas DD e EE quando é a própria sentença que refere que os valorou, consubstanciando a sua contradição evidente. XXIII. - Face ao antes exposto, não andou bem a sentença recorrida ao declarar parcialmente procedente a reconvenção, por violação dos artigos 334º e 1405 nº1º do Código Civil e artigos 4º, 5º, 6º, 411º, 413º e 414.º todos do CPC; bem como a sentença está ferida de nulidade nos termos do artigo 615.º n.º 1 al. c) do CPC por os fundamentos estarem em oposição com a decisão, uma vez que o Tribunal “a quo” ignora as declarações das testemunhas DD e EE, já em detalhe supra transcritas, quando na motivação para a decisão de facto relativamente aos factos provados em 8) a 12) valora conjuntamente o depoimento destas mesmas duas testemunhas. Termos em que, deve o presente recurso ser acolhido e lavrar-se acórdão que dê provimento às pretensões da Recorrente nos precisos termos das conclusões fazendo-se assim JUSTIÇA! 3. O Réu não contra-alegou. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. 4. OS FACTOS Foram os seguintes os factos considerados na sentença: Factos provados 1) No dia 15.04.2008, AA e CC, ambos no estado de solteiros, adquiriram a fração autónoma designada pelas letras “AA”, correspondente a uma habitação no r/c direito, Bloco ..., com entrada pelo número ..., habitação do tipo T-Dois, Logradouro “L-...”, garagem ..., do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho de Vila do Conde, inscrito na matriz predial urbana de Vila do Conde sob o artigo ...-AA e descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ...-AA/Vila do Conde.2) Na escritura outorgada em 15.04.2018 consta que «…destinando-se o bem imóvel adquirido, a habitação própria permanente; (…) e que o mesmo bem imóvel é adquirido com recurso a um empréstimo concedido pelo Banco 1..., S.A.». 3) O prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ...-AA/Vila do Conde e que corresponde à fração autónoma designada pelas letras “AA”, correspondente a uma habitação no r/c direito, Bloco ..., com entrada pelo número ..., habitação do tipo T-Dois, Logradouro “L-...”, garagem ..., do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho de Vila do Conde, está inscrito a favor de AA e CC, pela apresentação n.º 19 de 2008/03/26, por compra. 4) Na descrição predial referida em 3) constam ainda averbadas pela apresentação n.º 20 de 2008/03/26, a hipoteca voluntária a favor do Banco 1..., S.A. relativa ao capital e €85.000,00 e com o montante máximo assegurado de €.116.450,00 e pela apresentação n.º 21 de 2008/03/26, a hipoteca voluntária a favor do Banco 1..., S.A. relativa ao capital e €.28.379,49 e com o montante máximo assegurado de €.38.879,40. 5) Para aquisição da fracção referida em 1) e 3), a Autora mulher e o Réu contraíram dois empréstimos junto do Banco 1..., S.A.. 6) No processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, convertido em mútuo consentimento, que correu termos sob n.º 237/15.8T8MTS, na tentativa de conciliação realizada em 16.04.2015, AA e CC acordaram, para além do mais, que «a casa de morada de família, sita na Rua ..., r/chão dto.º, ..., em Vila do Conde, fica atribuída ao cônjuge marido, até à venda ou partilha.» 7) No processo n.º 237/15.8T8MTS, em 16.04.2015 foi proferida sentença, transitada em julgado em 18.05.2015, que decretou o divórcio por mútuo consentimento de AA e CC e homologou definitivamente os acordos supra referidos. 8) Pelo menos, desde 16.04.2015, foi unicamente o Réu quem habitou, permaneceu e usou a fracção referida em 1) e 3). 9) E também foi o Réu quem sempre suportou todos os encargos associados à fracção referida em 1) e 3). 10) O Réu suportou todos os pagamentos relativos aos dois empréstimos celebrados pela Autora mulher e pelo Réu junto do Banco 1..., S.A., nomeadamente com capital, juros, seguros e imposto de selo, no valor global de €.33.406,85 (sendo €.25907,57 relativo ao empréstimo de €.85.000,00 e €.7.499,28 relativo ao empréstimo de €.28.379,49) entre 02.06.2015 e 02.03.2023. 11) O Réu suportou os pagamentos com o condomínio no valor de €.25,00. 12) O Réu suportou os pagamentos com o IMI da fracção referida em 1) e 3), dos anos de 2016 a 2021, no valor de €.519,36, relativos ao ½ de que Autora mulher era titular. Factos Não Provados Da prova produzida em audiência de julgamento não resultou provado que o Réu pagou de condomínio e IMI a quantia de €.3.072,94.II. FUNDAMENTAÇÃO 5. Apreciando o mérito do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC). No caso, são as seguintes as questões a decidir: ● Da ilegitimidade do Autor BB ● Nulidade da sentença ● Reapreciação da matéria de facto ● Reapreciação do mérito da decisão ● Do abuso de direito por parte do Réu 5.1. Da ilegitimidade do Autor BB Como regra geral, a legitimidade, enquanto pressuposto processual, «(…), exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.» [1] Assim, a legitimidade das partes será apurada em função do pedido e da causa de pedir pois só em função desses dois elementos é possível averiguar do interesse direto, da utilidade ou prejuízo resultantes da ação. Quer o interesse direto e a utilidade/prejuízo terão de ser aferidos em função da causa de pedir e pedido formulados pelo Autor, a versão fáctica por ele trazida aos autos. No caso, estamos perante a divisão de coisa comum, uma fração autónoma adquirida, em regime de compropriedade, pela Autora mulher, ainda no estado de solteira. Nessa medida, apesar de a Autora ser neste momento casada com o Autor, o facto é que a fração em causa constitui para todos os efeitos um bem próprio da Autora mulher: art.º 1722º nº 1 al. a) do Código Civil (CC). Por outro lado, a ação de divisão de coisa comum é uma ação pessoal e não real. Nesta perspetiva, tratando-se de um bem pessoal, nenhuma relação existe entre o Autor BB e a fração a dividir e daí que não tenha qualquer interesse direto em deduzir ou contradizer o pedido, pois a sorte da ação não lhe acarretará nenhuma utilidade ou prejuízo. O mesmo se diga quanto ao pedido reconvencional que, aliás, o Réu dirigiu apenas quanto à Autora mulher. Consequentemente, declara-se o Autor BB parte ilegítima para a presente ação, absolvendo-o da presente instância: art.º 577º al. e) e 576º nº 2 do CPC. 5.2. Nulidade da sentença Invoca-se a nulidade da sentença nos termos da al. c) do nº 1 do art.º 615º do CPC, que engloba duas situações distintas: contradição entre os fundamentos e a decisão ou ininteligibilidade decorrente de ambiguidade/obscuridade. Depreende-se das alegações (que não das conclusões) que a Recorrente se refere à primeira vertente, “por os fundamentos estarem em oposição com a decisão, uma vez que o Tribunal a quo ignora as declarações das testemunhas DD e EE, já em detalhe supra transcritas, quando na motivação para a decisão de facto relativamente aos factos provados em 8) a 12) valora conjuntamente o depoimento destas mesmas duas testemunhas”. Ou seja, a Recorrente cifra a contradição no tocante à matéria de facto. Sucede que o vício da al. c) do nº 1 do art.º 615º reporta-se à contradição lógica entre os fundamentos e a decisão. O juiz, após descriminação dos factos provados, inicia a subsunção desses factos às normas de direito que considera aplicáveis ao caso, para terminar por concluir/decidir se ao Autor assiste ou não razão. Tal como ocorre no silogismo em que a conclusão é a consequência necessária das premissas, maior e menor, a decisão tem de ser a consequência lógica dos fundamentos. Trata-se, portanto, de uma questão de lógica de raciocínio, ou seja, «Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.» [2] Coisa diferente da concordância lógica entre os fundamentos e a decisão é o erro de julgamento na apreciação da matéria de facto. A decisão tomada é consentânea com a linha de raciocínio por que se enveredou, pelo que não existe violação da lógica jurídica do mesmo. Se a linha de abordagem seguida não é a mais correta, é questão que colide com a reapreciação da matéria de direito (erro de julgamento). Não se verifica a aludida nulidade. 5.3. Reapreciação da matéria de facto Resulta difícil a interpretação do que pretende a Recorrente neste âmbito. Refere-se o facto provado 8, mas nada se diz sobre qual o vício que se lhe imputa. E, afinal, vê-se que a Recorrente aceita (até pretende) que “Pelo menos, desde 16.04.2015, foi unicamente o Réu quem habitou, permaneceu e usou a fração referida em 1) e 3)”. E essa circunstância resulta indubitável de toda a prova produzida. Acresce que, tendo tal exclusividade de residência sido invocada pelo Réu na contestação, a Autora apenas impugnou a alegação de nunca ter assumido quaisquer encargos associados à mesma. Nada a alterar, portanto, ao facto provado 8. E, por isso, a discordância essencial é apenas quanto ao facto provado 9, para o qual se propõe a seguinte redação: “E também foi o Réu quem sempre suportou todos os encargos associados à fracção referida em 1) e 3), por acordo entre a Autora e o Réu na sequência do descrito no ponto 8).” Ora, do facto provado 8 apenas se extrai que desde 16/04/2015 foi unicamente o Réu quem habitou, permaneceu e usou a fração. Depois, há que referir que a questão desse eventual acordo ─ (que na altura do divórcio tenha sido acordado que todas as despesas e encargos ficavam a cargo do Réu, por ser ele que ficou a residir e a beneficiar em exclusivo do imóvel) ─ nunca foi alegada pelas partes, em especial pela Autora, a quem incumbia o respetivo ónus, para refutar o pedido reconvencional. Porém, tal poderia não constituir obstáculo face à autonomia decisória dos Tribunais da Relação em sede da matéria de facto (art.º 662º do CPC). Trave mestra do nosso processo civil é o princípio do dispositivo que, em sentido estrito, significa que, quer a instauração dum processo, quer os contornos do litígio, são da exclusiva iniciativa privada. Porém, também é hoje consensual que o princípio do dispositivo não vigora em termos absolutos, prevenindo essencialmente que, perante a verificação de um obstáculo não tido em conta pelas partes, as mesmas sejam ouvidas antes da tomada da decisão. Nesse contexto, ressaltam do art.º 5º do CPC dois comandos essenciais no que toca à alegação da matéria de facto: ● Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. ● Oficiosamente, o juiz pode/deve considerar: i.Os factos instrumentais; ii.Os factos complementadores ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; iii.Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. Os factos essenciais são aqueles que integram os elementos constitutivos do direito do Autor ou das exceções invocadas. Os factos instrumentais são «factos que não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes, e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção (constitutivos). Por outras palavras: têm apenas a função possível de factos-base de presunção, e, como tais, dada a sua função instrumental e auxiliar da prova, estão subtraídos ao princípio dispositivo.» [3] Já os factos complementadores ou concretizadores a que alude a alínea b) do nº 2 do art.º 5º CPC são, também eles, factos essenciais, pertencem à fattispecie da previsão normativa que constitui a causa de pedir ou a exceção. [4] ou seja, complementam ou concretizam os factos essenciais. Lopes do Rego exemplifica com o lesado que se limita a alegar que teve danos com a privação do veículo, mas não os elenca ou discrimina. Daí que, quanto a eles, o juiz só os possa atender nas circunstâncias referidas na alínea b) do nº 2 do art.º 5º CPC, ou seja, desde que resultem da instrução da causa e desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar. Visto isto, incumbe a classificação do facto pretendido ─ que na altura do divórcio tenha sido acordado entre as partes que todas as despesas e encargos ficavam a cargo do Réu, por ser ele que ficou a residir e a beneficiar em exclusivo do imóvel. E, a nosso ver, a existência dum acordo só pode ser classificada como um facto essencial, na medida em que é integrador duma exceção perentória impeditiva do direito peticionado pelo Réu na reconvenção. Vejamos: A ação inicia-se como ação especial de divisão de coisa comum duma fração autónoma, adquirida por Autora e Réu, ainda solteiros, em regime de compropriedade. O Réu deduziu contestação, onde reconheceu a indivisibilidade da fração e a compra no estado de solteiros. Porém, mais alegou que depois contraíram casamento, que perdurou até 2015, sendo que no processo de divórcio a fração lhe foi atribuída a ele, a título de casa de morada de família. Que a Autora abandonou a fração em 2014 e, desde essa altura, não assumiu quaisquer encargos associados à mesma, todos suportados pelo Réu. Face a isso, deduziu reconvenção, com fundamento nos pagamentos que tem suportado sozinho, relativos aos dois empréstimos bancários (€ 32.192,12), ao condomínio (€ 3.072,94), pretendendo haver da Autora metade desses valores (€ 17.632,53) como compensação nas tornas. Em réplica, a Autora pugnou exaustivamente pela inadmissibilidade da reconvenção, mas apenas impugnou que tenha sido o Réu a suportar sozinho os encargos e despesas da fração. Não alegou sequer a existência dum acordo. Ora, face ao regime da compropriedade ─ e só disso se trata, pois que os termos da ação respeitam apenas à compropriedade, e não a uma comunhão conjugal ─, decorre do art.º 1405º nº 1 e 1406º nº 2 do CC que ambos os comproprietários são responsáveis pelos encargos da coisa na proporção das suas quotas, mesmo que a coisa esteja a ser usada apenas por um. Para assim não ser, a Autora devia ter alegado a existência de um acordo em sentido contrário ao disposto na lei. Só a existência desse acordo (exceção perentória impeditiva) poderia servir para impedir o efeito visado pelo Réu (pagamento de metade das despesas que suportou). Portanto, a existência do acordo era um facto essencial, cujo ónus de alegação e prova competia à Autora. Só os termos desse acordo é que poderiam ser considerados factos concretizadores, sujeitos à disciplina do art.º 5º nº 2 al. b) do CPC. A existência de um acordo, e o teor do que foi acordado, é uma questão de facto, e não de direito. Nessa medida, tratando-se de um facto essencial, não alegado, o mesmo nunca poderia ser considerado pelo Tribunal, nem em 1ª instância, nem por esta Relação, sob pena de violação do princípio do dispositivo. «II - Os factos essenciais têm de ser alegados pelas partes (artigo 5.º, nº 1 do CPCivil) e, como tal, não pode o juiz tomá-los em consideração na respetiva decisão mesmo que eles resultem da instrução e discussão da causa, sendo que, os que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado apenas podem ser considerados desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar.» [5] «II. O poder de convidar ao aperfeiçoamento dos articulados, para serem supridas insuficiências ou imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada, tem de ser entendido em rigorosos limites e isto porque esta invitação apenas pode ter lugar quando existam insuficiências ou imprecisões que possam ser resolvidas com esclarecimentos, aditamentos ou correções. Ou seja, anomalias que não ponham em causa, em absoluto, o conhecimento da questão jurídica e a decisão do seu mérito, mas que permitam que este conhecimento e decisão (com o convite, se aceite) sejam realizados de forma mais eficaz. III. Com a explicação de serem essenciais os factos que integrarem, naturalisticamente, os institutos jurídicos que servem de base à ação ou à exceção e com a distinção dos que, mesmo sendo complementares (ou concretização dos que as partes alegaram), não constituem os elementos típicos do direito que se pretende fazer valer em juízo, reconhecemos que não pode haver convite a aperfeiçoamento da petição para serem incluídos factos essenciais uma vez que a sua alegação cabe em exclusivo a quem tem o ónus de os introduzir em juízo.» [6] Por outro lado, no que toca ao acordo no processo de divórcio, o que consta é apenas o reproduzido no facto provado 6 (decorrente da respetiva certidão) – “acordaram, para além do mais, que «a casa de morada de família, sita na Rua ..., r/chão dto.º, ..., em Vila do Conde, fica atribuída ao cônjuge marido, até à venda ou partilha.»”. Daqui nada se infere sobre como iriam ser suportados os encargos e as despesas originadas pela titularidade da fração. Ou seja, para além do que consta da certidão do processo de divórcio, tudo o mais estaria sujeito às regras da interpretação das declarações de vontade (art.º 236º e seguintes do CC), a necessitar de alegação factual e respetiva prova. Concluindo, improcede a pretendida alteração ao facto provado 9. Quanto aos factos provados 8 a 12, a Recorrente não questiona a veracidade do que deles consta. O que ela refere não colide com a impugnação da matéria de facto, mas apenas com a relevância jurídica de tais factos. Ou seja, na sequência de se alterar o facto provado 9 (com a existência dum acordo de que todas as despesas e encargos ficavam a cargo do Réu, por ser ele que ficou a residir e a beneficiar em exclusivo do imóvel), condenar a Recorrente no pagamento das despesas referidas em 8 a 12, constituiria um abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium. Nada a alterar, portanto. 5.4. Os factos e o direito § 1º - A Recorrente diz-se inconformada com a condenação a suportar metade das despesas originadas pela fração, atendendo a que quem dela usufruiu exclusivamente foi o Réu, tendo ela vivido noutra casa, cuja renda teve de suportar sozinha. E reputa a sentença de violadora da jurisprudência e do direito vigente, geradora de injustiça social. Mas não podemos concordar. Reiteramos que estamos perante uma situação de compropriedade (a fração foi adquirida por Autora e Réu no estado de solteiros), e não de comunhão conjugal, sendo diferentes ambos os regimes. [7] Existe compropriedade quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa: art.º 1403º nº 1 do CC. E, segundo o art.º 1406º nº 1 do CC, mesmo na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. Ora, no caso dos autos existiu mesmo acordo expresso da Autora que o Réu passasse a viver na fração, de forma exclusiva, desde 2014 (factos provados 6 e 8). Depois, independentemente da fruição da coisa apenas por um e inexistindo acordo em sentido diverso, a lei é clara: cada comproprietário tem de participar nos encargos e despesas da coisa na proporção da sua quota: art.º 1405º nº 1 do CC. «1. O acordo provisório estabelecido no âmbito de acção divórcio litigioso quanto à utilização da casa de morada de família não perde automaticamente a sua eficácia com o trânsito em julgado da sentença. 3. A persistência da situação não confere ao cônjuge não utilizador da casa de morada de família o direito de ser compensado segundo as regras do enriquecimento sem causa, uma vez que a situação encontra justificação na sua própria inércia relativamente ao accionamento do mecanismo processual previsto no art. 1413º do CPC.» [8] Ou, como se diz de forma assertiva no acórdão citado na sentença, «(…) a circunstância de um dos comuneiros, num contexto em que cada um é titular de uma quota de 50%, suportar sozinho (ou em maior parte) as amortizações do mútuo hipotecário contraído para aquisição do imóvel, não tem a virtualidade de alterar a proporção da respectiva quota, majorando-a na mesma proporção dos encargos que suporta além da metade que lhe compete.» [9] Donde se conclui que a sentença recorrida não violou qualquer preceito legal, nem é contrária à jurisprudência. Quanto à injustiça da situação será tratada no ponto seguinte, porque com ele correlacionada. § 2º - Quanto ao abuso de direito Considera a Recorrente que a pretensão do Réu a haver dela metade das despesas que suportou com o imóvel constitui um claro abuso de direito, na medida em que o usou de forma exclusiva, tendo a Autora que suportar sozinha as despesas com o arrendamento de outra casa. De salientar que esta questão também só foi ventilada em sede de recurso, pelo que este Tribunal terá de a tratar usando apenas a matéria de facto de que dispõe. O art.º 334º do CC prescreve ser ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente s limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Uma das funções do Direito é a de assegurar as expectativas criadas pelas pessoas nas relações sociais. E, perspetivada essa função, importa, não a componente ético-social da tutela da confiança, mas o seu plano jurídico-normativo: a criação de normas jurídicas tem como função a consolidação das expectativas das pessoas. Assim, não é indiferente se os indivíduos sujeitam ou não as suas relações à tutela do Direito, adotando os comportamentos instituídos pelas normas vigentes. De acordo com a doutrina, o abuso de direito pode assumir as vertentes de venire contra factum proprium ─ a postura de quem adota um comportamento que entra em contradição com outra conduta anteriormente assumida ─, a de suppressio ─ o comportamento de quem não exerce o seu direito durante um tal lapso de tempo, que cria na contraparte a (legítima) expectativa de que ele não mais será exercido ─, a de tu quoque ─ considerando-se que a pessoa que violou determinada norma jurídica não possa depois exercer o direito tutelado por ela norma nem fazer-se valer da situação jurídica criada com essa violação ─, e a de desequilíbrio ─ visando-se acautelar que o benefício colhido por quem exerce o direito, não comporte um sacrifício desmesurado para o obrigado (grave desproporção), ─ todas elas manifestações do princípio da responsabilidade pela confiança. [10] A Recorrente invocou a vertente de venire contra factum proprium, que nos parece não poder manifestamente ser acolhida, na medida em que o uso exclusivo por parte do Réu resultou de acordo expresso por parte da Autora e nada se provou sobre ele se ter comprometido a suportar sozinho os encargos e as despesas. Donde, inexistir contradição com outra conduta anteriormente assumida. Também manifesta a inexistência de tu quoque, pois que nenhuma norma se vê violada pelo Réu. Na perspetiva da suppressio, temos que a Autora abandonou a fração em 2014, tendo desde então o Réu vindo a pagar as despesas sozinho. A ação foi instaurada em 2023, não havendo menção de que nestes 9 anos o Réu tenha exercido o seu direito à comparticipação da Autora na metade das despesas. Sucede que, como tem decidido a jurisprudência, o simples decurso do tempo não basta para que se considere verificada a suppressio, sendo também necessária «a verificação de indícios objetivos de que esse direito não irá ser exercido. Indícios objetivos esses que geram na contraparte (beneficiário do não exercício) a confiança na “inação do agente”.» [11] Aliás, se assim não fosse, deixaria de ser necessário o instituto da prescrição, que se basta, essa sim, com o simples decurso de certos períodos de tempo. Acresce que no caso ficou provado que o Réu vive na casa por acordo no processo de divórcio, tendo ficado acordado que isso aconteceria até à venda ou partilha da fração. Nessa medida, é fácil prefigurar a possibilidade que nessa altura fariam o “acerto de contas”. Mas ainda que assim não fosse, também poderia imputar-se à Autora a suppressio, dado que esperou idêntico lapso de tempo para exercer o seu direito à divisão de coisa comum. Por fim, a vertente do desequilíbrio, visando-se acautelar que o benefício colhido por quem exerce o direito, não comporte um sacrifício desmesurado para o obrigado (grave desproporção). Aqui releva também o sentimento de justiça a que alude a Recorrente. E, neste caso, estamos em crer que só a possível ignorância da lei pode justificar que a Recorrente se sinta injustiçada com a condenação, dado que a solução contrária é que originaria grave desequilíbrio, como passaremos a tentar demonstrar. Já o dissemos. Decorre do art.º 1405º nº 1 do CC que cada comproprietário participa nas vantagens e encargos da coisa. Significa isso que a Autora, sendo proprietária de 50% da fração autónoma tem as vantagens decorrentes desse direito de propriedade, designadamente usar, fruir e vender. E, numa hipótese de venda, receberá 50% do respetivo preço. No caso em concreto, na ação de divisão de coisa comum, que é indivisível, a primeira questão será a de fixar o valor da adjudicação ou venda. Uma de 3 soluções se prefigurarão: ● Por acordo ou por sorteio, a Autora manifesta interesse em ficar proprietária exclusivo da fração, caso em que pagará 50% do valor da fração ao Réu. ● Por acordo ou por sorteio, o Réu manifesta interesse em ficar proprietário exclusivo da fração, caso em que pagará 50% do valor da fração à Autora. ● Se nenhum deles manifestar interesse, a fração será vendida a terceiros, repartindo-se o preço por Autora e Réu em partes iguais. Claro que, como a compra foi efetuada com recurso a mútuo bancário, e que esse empréstimo ainda não está integralmente liquidado, haverá que proceder, sendo o caso, à liquidação do empréstimo, ou à subtração do valor em dívida, conforme vier a ser acordado com o credor Banco. Assim, quer no caso da fração vir a ser adjudicada ao Réu, quer venha a ser vendida a terceiros, a Autora terá direito a 50% do preço, deduzido da dívida ainda existente ao Banco. E, como resulta das regras da experiência, o valor da fração será hoje muito superior ao que era na data da compra. Ora, a fração foi adquirida em 2008, e a Autora deixou de comparticipar no pagamento do preço (diga-se, das prestações do mútuo) em 2014 (6 anos). Significando que só comparticipou em parte do valor da compra/prestações do mútuo. Enquanto que o Réu, tem suportado sozinho esse valor das prestações desde 2014 até ao momento (9 anos à data da propositura da ação). Donde se vê que se a Autora não tivesse de comparticipar agora no valor daquilo que foi pago pelo Réu, tudo se passaria como se ambos tivessem contribuído em igual medida no preço da aquisição. Ou seja, seria a Autora quem ficaria enriquecida, pois iria receber um valor pelo preço atual da fração no qual não comparticipou. Donde terá de se concluir pela inexistência de abuso de direito por parte do Réu, pois nenhum benefício indevido está a exigir da Autora. Ao contrário, ao não pagar agora a metade das prestações e demais encargos pagos pelo Réu, seria a Autora a obrigar o Réu a um sacrifício e uma grave desproporção relativamente àquilo que vai receber com a adjudicação ou venda da fração. «12. Se assim não for, na conferência de interessados, no caso de se adjudicar o imóvel a um dos comproprietários, o valor de tornas a entregar ao outro não terá em conta o verdadeiro cerne do litígio, tudo se passando como se ambos tivessem contribuído igualmente na proporção da quota respetiva. Porém, segundo o que cada uma das partes alega, tal não aconteceu. Não existe razão para lançar mão de outro processo judicial com vista à resolução daquilo que, efetivamente, separa as partes: o encontro entre o “deve” e o “haver”, entre a contribuição de cada um para o valor da sua quota. (…) 24. São claramente menores os inconvenientes decorrentes da admissão da reconvenção e da tramitação sob a forma de processo comum do que aqueles que resultariam da sua não admissão. Na verdade, na mesma ação são decididas todas as questões que ao caso importa, procede-se à divisão da coisa comum e compensa-se o invocado crédito por despesas suportadas pelo Requerido para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído à Requerente, sem necessidade de propositura de nova ação.» [12], sublinhados nossos. Reitera-se que aqui está em causa apenas uma situação de compropriedade e de divisão duma fração. Pelo que, não há que atender ao regime de bens do casamento, nem a outros “encontros de contas” como se fosse uma partilha duma comunhão conjugal. Esta tem sido, aliás, a solução seguida pela jurisprudência, que tem vindo a aceitar a reconvenção na ação de divisão de coisa comum, como forma de se obter a compensação por aquilo que um dos comproprietários pagou a mais relativamente aos encargos com a fração. [[13]] 6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC) ……………………………… ……………………………… ……………………………… III. DECISÃO 7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida. Custas a cargo da Autora, face ao decaimento. Porto, 06 de junho de 2024 Isabel Silva António Carneiro da Silva António Paulo Vasconcelos _________________ [1] Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 51. [2] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 704. [3] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 275/276. No mesmo sentido, Teixeira de Sousa, “Introdução ao Processo Civil”,1993, pág. 52. [4] Cf. Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª edição, 2004, Almedina, pág. 252 a 254. [5] Acórdão do Tribunal Relação do Porto, de 05/02/2024, processo nº 2304/19.0T8VFR.P1, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem. [6] Acórdão do STJ, de 08/02/2024, processo nº 600/14.1TVPRT.P1.S1. [7] Sobre essa diferença de regime, veja-se o acórdão do STJ, de 07/03/2019, processo nº 1065/16.9T8VRL.G1.S1. [8] Acórdão do STJ, de 17/01/2013, processo nº 2324/07.7TBVCD.P1.S1. [9] Acórdão da Relação de Lisboa, de 13/07/2023, processo n.º 1845/20.0T8AMD-A.L1-7. [10] Menezes Cordeiro, "Da Boa Fé no Direito Civil", vol. II, Teses, Almedina, pág. 719 a 853, bem como in "Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa In Agendo", Almedina, 2006, pág. 49 a 63. [11] Acórdão do STJ, de 04/11/2021, processo nº 17431/19.5T8LSB.L1.S1. No mesmo sentido, e do STJ, acórdãos de 06/12/2022, processo nº 327/14.4T8CSC.L1.S3, de 20/04/2021, processo nº 7268/18.4T8LSB-A.L1.S1 e de 19/10/2017, processo nº 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1. [12] Acórdão do STJ, de 26/01/2021, processo nº 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1. [13] Veja-se, a título de exemplo, o acórdão do STJ, de 26/01/2021, processo nº 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1 e o desta Relação do Porto, de 30/06/2022, processo nº 179/22.0T8OVR.P1, bem como a extensa jurisprudência e doutrina neles citada. |