Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00040115 | ||
Relator: | ISABEL PAIS MARTINS | ||
Descritores: | DOCUMENTO FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO | ||
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Nº do Documento: | RP200703070645571 | ||
Data do Acordão: | 03/07/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | REJEITADO O RECURSO. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | Uma petição inicial elaborada e assinada por advogado é um documento para os efeitos da alínea b) do nº 1 do artº 256º do CP95. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO I 1. No processo comum n.º ./04.9TAMAI, do ..º juízo do Tribunal Judicial da Maia, após julgamento, perante tribunal singular, por sentença de 21 de Março de 2006, foi decidido, no que, ora releva: - absolver o arguido B.........., como autor material, da prática de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal; - condenar o arguido B………., como autor material, da prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00, o que perfaz a multa global de € 1.500,00. 2. Inconformado, o arguido veio interpor recurso da sentença, rematando a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões: «1 - A falsificação de documento é um crime intencional em que o agente necessita de actuar com a intenção de causar prejuízo ou de obter para si um benefício ilegítimo. «2 - Neste caso concreto, e segundo a sentença ora recorrida, o arguido terá agido não com o intuito de causar um prejuízo mas antes para obter um benefício. «3 - Ora o arguido não agiu para obter qualquer vantagem patrimonial ou não patrimonial. «4- O arguido agiu antes para alegadamente evitar prejuízos próprios que seriam os seguintes: «- não ser pressionado, «- não ser responsabilizado pelas consequências decorrentes da não interposição atempada da respectiva acção judicial relativa à resolução da questão que lhe fora confiada pela queixosa que se prendia com o ressarcimento pela perda de mercadoria transportada num camião incendiado. «5 - A sentença recorrida não refere nenhuma pressão concreta nem o modo e a altura em que essa pressão foi exercida. A existência de qualquer pressão também não decorre nem dos documentos junto[s] aos autos nem do depoimento de nenhuma das testemunhas ouvidas em sede de audiência. «6 - Não ficou demonstrado que a falsificação do carimbo tenha trazido ou pudesse trazer ao arguido ou a qualquer outra pessoa qualquer benefício. «7- A falsificação não impediu nem podia impedir a responsabilização do arguido pela prescrição do direito da queixosa porque a prescrição decorre do decurso do tempo e só se interromperia com a efectiva propositura da acção, facto de que o arguido tinha plena consciência por força dos seus conhecimentos jurídicos enquanto advogado. «8 - Por outro lado, a matéria de facto dada com provada não é suficiente para considerar que o direito da queixosa já tivesse prescrito ou seja que a queixosa tenha sofrido ou pudesse vir a sofrer algum prejuízo por culpa da incúria do arguido. «A sentença não quantifica nem invoca nenhum prejuízo concreto da queixosa, nem afirma de forma peremptória que o direito da queixosa já estivesse prescrito. «A sentença recorrida não determina qual o direito da queixosa passível de prescrever, qual o prazo de prescrição aqui em causa e a data de início e termo para a contagem desse prazo. «O arguido só teria um benefício se se furtasse a uma responsabilidade que lhe pudesse ser assacada. Não estando o direito prescrito, o arguido não poderia ser responsabilizado nem teria razão para evitar uma responsabilização ainda impossível. «9 - Pelo que a sentença não pode concluir como o fez que o arguido usou de um artifício com a intenção de se furtar a uma responsabilidade quando essa mesma sentença não demonstra que essa responsabilidade existia. Tanto mais que a douta sentença recorrida não fornece com grau de certeza os elementos que lhe permitam determinar a possibilidade dessa responsabilidade vir a concretizar-se e quando. Pois nada diz que o arguido ainda não pudesse estar em tempo até 30 de Julho (data em que a queixosa prescindo (sic) dos seus serviços) de interpor a acção, evitando assim de forma legítima essa responsabilização. «10 - Do acima exposto, resulta não provado por insuficiência de prova o dolo do arguido. «11- Pelo que, dando provimento ao recurso, V. Exas. devem absolver o arguido do crime de falsificação de documento.» 3. Admitido o recurso, e na sequência da notificação dessa admissão, foram apresentadas respostas, pelo Ministério Público e pela assistente “C………., Ld.ª”, ambas no sentido de o recurso não merecer provimento. 4. Nesta instância, na oportunidade conferida pelo artigo 416.º do Código de Processo Penal[1], o Exm.º Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de o recurso não merecer provimento. 5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente não respondeu. 6. No exame preliminar, a relatora suscitou a questão prévia da rejeição do recurso, por ser manifesta a sua improcedência, remetendo os autos à conferência, a fim de ser apreciada e decidida. II Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo decidir a questão prévia suscitada em exame preliminar. 1. No caso, uma vez que não houve renúncia ao recurso em matéria de facto, este tribunal conhece de facto e de direito (artigo 428.º, n.ºs 1 e 2, do CPP). Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP que: «A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.» As conclusões devem ser, por isso, um resumo explícito e claro dos fundamentos do recurso, indicando, com precisão, as razões por que se pede o provimento do recurso. Como tem sido repetidamente afirmado, são as conclusões da motivação que definem e delimitam o âmbito do recurso, ou seja, as questões que o recorrente quer ver discutidas no tribunal superior. «São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem de apreciar.»[2] Se o recurso tiver por objecto a impugnação da decisão sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar, sob pena de rejeição, as normas jurídicas violadas, o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada, e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada (artigo 412.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP). Versando o recurso matéria de facto, deve ser estruturado nos termos definidos pelos n. os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP. É a seguinte a redacção dos n. os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP: «3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: «a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; «b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida; «c) As provas que devem ser renovadas. «4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.» No requerimento de interposição de recurso, ao indicar as normas ao abrigo das quais interpunha o recurso, o recorrente invocou, nomeadamente, o artigo 412.º, n.º 2, e n.º 3, alínea b), do CPP, o que sugere que pretenderia impugnar a sentença, de direito e de facto. Todavia, nem nas conclusões nem na própria motivação se demonstra o cumprimento das referidas imposições legais. O recorrente não chega a invocar qualquer norma jurídica que tivesse sido violada (artigo 412.º, n.º 2, alínea a), do CPP) e não ensaia, sequer, uma tentativa de cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 412.º do CPP. 2. Na sentença recorrida foram dados por provados os seguintes factos: «1 – O arguido prestou serviços de advocacia à queixosa “C………., Lda.”, com sede em ………., até Julho de 2003. «2 – Em data não concretamente apurada do ano de 2002, mas posterior a 11 de Junho de 2002, a queixosa, na pessoa do seu então sócio-gerente D………., entregou ao arguido um serviço para resolução extra-judicial ou judicial de um litígio contra a Companhia de Seguros X………., por causa de um incêndio de uma mercadoria. «3 – Em data não concretamente apurada, mas posterior a 28 de Maio de 2003, no seu escritório de advocacia, sito na comarca da Maia, tendo em vista não vir a ser pressionado pela queixosa e não vir a ser responsabilizado pelas consequências decorrentes da não interposição atempada da respectiva acção judicial (de forma a evitar a invocação pela seguradora da prescrição do direito que a queixosa se arrogava), o arguido elaborou uma petição inicial e, com a sua própria mão e a ajuda de uma régua, apôs na mesma um carimbo com os dizeres “Tribunal da Comarca de Vagos; 07 MAR 2003; entrada n.º ……; O Of. Justiça – com a respectiva rubrica”. «4 – Em 28 de Maio de 2003, o arguido enviou um fax à ofendida, pedindo-lhe o dinheiro correspondente à taxa de justiça, no montante de Eur. 319,23, referindo que já havia proposto a acção em Tribunal. «5 – Posteriormente, em 17 de Julho de 2003, a pedido da ofendida, o arguido remeteu àquela por fax uma cópia da aludida petição, com o respectivo carimbo comprovativo, elaborados nos termos mencionados em 3), com o intuito de a fazer crer que tinha efectivamente entrado em Tribunal com o processo. «6 – Na sequência das diligências efectuadas, a queixosa veio a descobrir que tal não correspondia à verdade e que o carimbo tinha sido aposto pelo arguido da forma supra descrita. «7 – Aquele carimbo não é verdadeiro, não foi ali colocado pelo respectivo funcionário da secretaria do Tribunal de Vagos, sendo que naquela comarca os carimbos têm características diferentes ao daquele, mas sim forjado pelo próprio punho do arguido. «8 – O arguido sabia que o carimbo era falso e visou com a sua conduta não ser pressionado pela queixosa e não vir a ser responsabilizado pelas consequências decorrentes da não interposição atempada da respectiva acção judicial. «9 – O arguido sabia que ao colocar na petição inicial um carimbo por si elaborado à mão, da forma como o fez, pretendia provar perante a ofendida a entrada daquela petição em juízo. «10 – O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente no intuito de não ser pressionado pela queixosa e de [e] não vir a ser responsabilizado pelas consequências decorrentes da não interposição atempada da respectiva acção judicial, nomeadamente não sofrendo um prejuízo na sua esfera patrimonial correspondente ao montante em que tivesse de indemnizar a queixosa. «11 – O arguido colocou em crise a confiança que os carimbos de instituições públicas merecem, tais como os dos Tribunais, perante a generalidade das pessoas, o seu destino e a prova que deles resulta. «12 – Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. «13 – Na sequência do pedido aludido em 2), o arguido tentou obter a resolução extra-judicial do litígio junto da seguradora X………., mas sem ter obtido sucesso. «14 – Nessas circunstâncias, em 6 de Fevereiro de 2003, a ofendida solicitou ao arguido que intentasse as competentes acções judiciais. «15 – O arguido restituiu a quantia de Eur. 319,23 à ofendida em 14 de Junho de 2004. «Mais se provou que: «16 - O arguido é casado, [tem] um filho a cargo. «17 – Reside numa casa de que é proprietário, despendendo mensalmente a quantia de Eur. 750,00 para amortização do empréstimo contraído com a sua aquisição. «18 – Despende ainda a quantia mensal de Eur. 375,00 para pagamento do crédito contraído para aquisição de material de escritório. «19 - Exerce a profissão de advogado, auferindo o vencimento mensal de cerca de Eur. 1.500,00. «20 – Tem o curso de Direito como habilitações literárias. «21 – Não tem antecedentes criminais.» 3. Perante os factos provados a condenação do recorrente, pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, do Código Penal, não pode sofrer contestação. Os factos dados por provados preenchem os elementos objectivos e subjectivo do tipo-de-ilícito. O conceito de documento – elemento normativo do tipo de ilícito objectivo – é dado pela alínea a) do artigo 256.º Documento, no que ora releva, é a declaração corporizada em escrito, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente. Documento é pois a declaração de um pensamento humano que deverá estar corporizada num suporte. Enquanto objecto material do crime de falsificação de documentos, o documento é a própria declaração, independentemente do material em que está corporizada, como representação de um pensamento humano. O que permite integrar na noção de documento não só o documento autêntico ou autenticado do direito civil, com força probatória plena, mas qualquer outro que integre uma declaração idónea a provar facto juridicamente relevante. O n.º 1 do artigo 256.º, ao nível do tipo objectivo de ilícito, comporta diversas modalidades de acção, ou seja, diversas modalidades de falsificação, descritas nas suas alíneas. Na modalidade de falsificação da alínea a), o crime consuma-se quando o agente forja, na íntegra, um documento falso. Fabrica-se, desde a origem, um documento que não existia. Na modalidade de falsificação da alínea b), o crime consuma-se quando o agente narra um facto falso num documento regular (falsa declaração em documento regular), desde que tal facto falso seja juridicamente relevante, idóneo a provar um facto juridicamente relevante. Integra-se no acto de fabricar um documento falso a feitura ex novo e ex integro de um documento[3]. Para que se preencha o elemento subjectivo do tipo de ilícito o agente necessita de actuar com dolo, ou seja, tem que ter conhecimento e vontade de realização do tipo (o agente deverá ter conhecimento que está a falsificar um documento e apesar disto querer falsificá-lo[4]) e, ainda, ter a «intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo». O crime de falsificação de documento é, por isso, um crime intencional, não se exigindo, porém, uma específica intenção de provocar um engano no tráfico jurídico. Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem, patrimonial ou não patrimonial, que se obtenha através do acto de falsificação. A petição, em causa, na qual o recorrente apôs o «carimbo» comprovativo da sua entrada em juízo, integra-se no conceito de documento, antes analisado, com todas as características que permitem assegurar a função de perpetuação (declaração enquanto representação de um pensamento humano), a função probatória (declaração idónea a provar facto juridicamente relevante) e a função de garantia (declaração que permite reconhecer o emitente) que são exigidas ao documento enquanto objecto material do crime de falsificação de documentos. O «carimbo» comprovativo da sua entrada em juízo, aposto na petição, é idóneo a provar um facto juridicamente relevante (a entrada e data de entrada do documento em juízo), permite reconhecer o emitente (Tribunal da comarca de Vagos) e narra um facto falso (a entrada do documento em juízo). O recorrente, de acordo com os factos provados, elaborou o «carimbo» pela sua mão, deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a petição não tinha entrado no Tribunal de Vagos, com intenção de induzir em erro a ofendida (para provar perante ela a entrada da petição em juízo) e, assim, não ser pressionado por ela e não vir a ser responsabilizado pelas consequências decorrentes da falta de propositura atempada da respectiva acção judicial. Com estes factos mostra-se preenchido o elemento subjectivo do tipo; o dolo (conhecimento de estar a falsificar um documento e querer falsificá-lo) e o elemento intencional (a intenção de obter para si um benefício ilegítimo). Na verdade, o recorrente, ao agir com intenção de induzir em erro a ofendida teve como objectivo a obtenção de uma vantagem de ordem não patrimonial através do acto de falsificação (não ser pressionado pela ofendida e não ser responsabilizado pelas consequências da falta de propositura atempada da acção). Por outro lado, o crime está consumado logo que o agente tenha fabricado o documento com intenção fraudulenta, não sendo necessário que o agente consiga alcançar o intuito que o determinou à prática do crime. Trata-se de um crime de perigo abstracto e de um crime formal, quando considerado o resultado final que se pretende evitar (a lei basta-se com a falsificação do documento e o perigo que comporta de lesão da confiança e segurança no tráfico jurídico, não sendo necessário nem que o perigo se verifique em concreto nem a produção de qualquer resultado). Por isso, o crime está consumado com o simples acto de falsificação; basta a consumação formal (a completa verificação de todos os elementos do tipo), não sendo necessário aguardar a consumação material ou terminação (verificação do resultado que o agente pretende obter com o crime). 4. Decorre do exposto que, perante os factos dados por provados, ao recorrente não assiste razão quando impugna a verificação do elemento subjectivo do tipo. Mas, por outro lado, as conclusões manifestam que o recorrente não se situa no contexto dos factos dados por provados para impugnar a decisão apenas de direito. Se a omissão da indicação de qualquer disposição legal, nomeadamente o artigo 256.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, como norma jurídica violada na decisão recorrida, é revelador de que o recurso não visa a impugnação da decisão proferida sobre matéria de direito, toda a linha de argumentação que o recorrente desenvolve na motivação e sintetiza nas conclusões demonstra que o recorrente despreza os factos provados e pretende, justamente, impugná-los. Na verdade, o recorrente alicerça o seu pedido de absolvição na falta de prova do dolo e da específica intenção requerida pelo tipo-de-ilícito. O que pretende é que não resultaram provados, por insuficiência de prova, o dolo (cfr. conclusão 10.ª) e a específica intenção de obter um benefício ilegítimo, alegando que «não ficou demonstrado» que a falsificação do carimbo pudesse trazer-lhe qualquer benefício (cfr. conclusão 6.ª), que a «existência de qualquer pressão também não decorre nem dos documentos juntos aos autos nem do depoimento de nenhuma das testemunhas ouvidas em sede de audiência» (conclusão 5.ª), «pelo que a sentença não pode concluir, como o fez, que o arguido usou de um artifício com a intenção de se furtar a uma responsabilidade...» (conclusão 9.ª). Pode, portanto, ter-se por assente que o recorrente não visa impugnar a decisão proferida sobre matéria de direito, solicitando a discussão da qualificação jurídica dos factos provados, e concluir-se que o recorrente se situa no âmbito da impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, por erro de julgamento da prova. 5. O entendimento de que o recorrente se situa no plano da impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto não implica, porém, que o recurso possa ser conhecido, com esse âmbito. Na verdade, o recurso não se mostra estruturado nos termos impostos por lei para os recursos que visam a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. O recorrente limita-se a uma impugnação imprecisa de aspectos da decisão proferida sobre matéria de facto, no âmbito do dolo e do elemento intencional, sem concretizar os factos que se encontram incorrectamente julgados, sem indicar as provas que imporiam uma decisão diversa e sem fazer qualquer referência aos suportes técnicos de gravação da prova. Ora, as indicações exigidas pelos n. os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza meramente formal. Na verdade, e como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004[5], destacando as contra-alegações do Exm.º Procurador-Geral Adjunto, naquele Tribunal, «as menções a que aludem as alíneas a), b) e c) do n.º 3 e o n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal não traduzem um ónus de natureza puramente secundária ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto». O recorrente, como dissemos, não observou os ónus de impugnação da decisão sobre matéria de facto. Sem concretizar os factos que, em seu entender, se encontram incorrectamente julgados, procede a uma crítica ampla da convicção adquirida pelo tribunal sem curar de especificar, por referência aos suportes técnicos, as provas que impunham decisão diversa da recorrida. O recorrente apela, afinal, a uma ampla e ilimitada reapreciação da prova, sem especificação dos pontos tidos por incorrectamente julgados, nem das provas concretas que impõem decisão diversa, no que se manifesta uma clara vocação de segundo julgamento, de um melhor julgamento, que não se compadece com o regime legal de recurso em matéria de facto e seu estrito âmbito traçado no artigo 412.º do CPP. Pois, como tem sido repetidamente afirmado – e nós não nos cansamos de o repetir - o recurso em matéria de facto perante as relações não se destina a um novo julgamento mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância[6]. A garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova. O uso pela relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve, portanto, restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados. Daí a imprescindibilidade de os recorrentes indicarem concretamente os pontos de facto que se encontram incorrectamente julgados e especificarem as provas que impõem decisão diversa, em relação a esses pontos de facto, fazendo-o por referência aos suportes técnicos. A possibilidade de formular convite ao recorrente para correcção das deficiências apontadas não tem, no caso, um efectivo cabimento. Com efeito, não está em causa apenas uma insuficiência ou deficiência formal das conclusões extraídas da motivação, isto é, uma deficiente condensação da própria motivação, a qual, em si mesma, contém os elementos que proporcionariam a formulação de conclusões que cumprissem as especificações a que aludem os n. os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, falta, essa, para a qual a rejeição liminar do recurso, sem oportunidade de correcção dos vícios formais detectados, constitui exigência desproporcionada[7]. O que ocorre é uma deficiência substancial da própria motivação que necessariamente se reflecte em deficiência substancial das conclusões. A motivação não delimita o âmbito da impugnação em matéria de facto (fica-se pela impugnação da formação da convicção do tribunal, sem concretização dos pontos de facto que se encontram incorrectamente julgados) e, portanto, não define o objecto do recurso, nem expressa os motivos da impugnação através da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Não se estando perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas perante deficiências substanciais da própria motivação, o princípio constitucional do direito ao recurso em matéria penal não implica que ao recorrente seja facultada oportunidade para aperfeiçoar em termos substanciais a motivação do recurso quanto à matéria de facto. Tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso[8]. Pelas razões expostas, entendemos que o recurso, na perspectiva da impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, não pode ser conhecido. III Termos em que, acordamos em rejeitar o recurso por manifesta improcedência. Condena-se o recorrente em 6 UC de taxa de justiça e mais 4 UC, nos termos do artigo 420.º, n.º 4, do CPP. Porto, 7 de Março de 2007 Isabel Celeste Alves Pais Martins David Pinto Monteiro José João Teixeira Coelho Vieira __________________________________ [1] Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP. [2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 2000, p. 335. [3] Leal-henriques e Simas santos, Código Penal anotado, Rei dos Livros, 2.ª edição, 2.º volume, p. 730. [4] O crime admite, todavia, todas as modalidades do dolo, incluindo o dolo eventual. [5] De 10 de Março de 2004, publicado no Diário da República, II Série, n.º 91, de 17 de Abril de 2004. [6] Germano Marques da Silva, «A aplicação das alterações ao Código de Processo Penal», Forum Iustitiae, Maio de 1999, p. 21. [7] Neste sentido, acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004, cit. [8] Idem. |