Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11660/21.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL FERREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
TERCEIRO
PROVA DOCUMENTAL
Nº do Documento: RP2024110711660/21.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 11/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A autoridade de caso julgado pode ser oposta pelas concretas partes entre si e não pode ser oposta a quem é terceiro.
II – É possível que o próprio terceiro adira ao caso julgado da acção em que não foi parte e aproveite a autoridade do caso julgado, opondo-a a quem foi parte no processo anterior, e aí tenha podido exercer devidamente o contraditório.
III – Não sendo a autoridade de caso julgado de conhecimento oficioso e necessitando de manifestação de vontade do terceiro no sentido do seu aproveitamento, a este cabe comprovar os pressupostos de que depende o funcionamento daquela, quais sejam a existência do processo anterior, as suas partes intervenientes, a decisão aí proferida e seu respectivo conteúdo e o trânsito em julgado da decisão e a sua data.
IV – Tais factos apenas podem provar-se por documento autêntico.
V – Tendo havido uma conduta violadora das regras de circulação estradal por parte de um condutor, tal violação constitui presunção de culpa deste na ocorrência do acidente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 11660/21.9T8PRT.P1
(Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2)

Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Isabel Peixoto Pereira
2º Adjunto: António Paulo Vasconcelos
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I AA intentou acção declarativa, com processo comum, contra “A... - Sucursal em Portugal”, a correr termos no Juízo Local Cível do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, pedindo a condenação desta a:
a) pagar-lhe a quantia de € 30.289,81, acrescida de juros à taxa de 8% ao ano e de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação;
b) a suportar os custos e encargos com todo o tipo de tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso, com intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos e fisioterapia, bem como o valor da perda de retribuição que irá sofrer, quer no período de clausura hospitalar, quer no período de recuperação, ou, em alternativa, por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados nesta data, a pagar o que vier a ser determinado em ulterior liquidação.
Alegou para tal ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais na sequência de acidente de viação em que foram intervenientes o veículo automóvel onde seguia como passageira e um veículo automóvel segurado na R., cuja responsabilidade imputa ao condutor deste último, que, além do mais, conduzia com uma T.A.S. de 1,44 g/l. Aduziu ainda que a empresa proprietária do veículo onde a A. seguia apresentou “reclamação” junto do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros (CIMPAS), que decidiu que a responsabilidade pelo acidente era do condutor do veículo segurado na R., “não tendo a Ré apresentado recurso, pelo que se trata de uma decisão transitada em julgado” (arts. 16º a 18º da petição inicial).
A R. contestou, impugnando os factos atinentes à dinâmica do acidente, cuja responsabilidade imputa ao condutor do veículo onde seguia a A., e os respeitantes aos danos alegados. A R. aceitou como “verdadeiro” o facto do art. 17º da petição inicial e nada disse expressamente quanto aos factos dos arts. 16º e 18º da petição inicial (arts. 1º a 3º da contestação).
Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Procedeu-se seguidamente a julgamento.
Após, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção improcedente e, em consequência, absolver a R. do pedido.
Desta decisão veio a A. interpor recurso, pugnando pela procedência da acção, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«I. O Tribunal a quo, julgou a presente ação improcedente, baseando-se essencialmente nas declarações do condutor da viatura marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-PF-.. - BB.
II. Denote-se que a testemunha BB, aquando do acidente conduzia com uma TAS no sangue de 1,44g/l!
III. A ação do álcool no sistema nervoso origina efeitos nefastos que prejudicam o exercício da condução, particularmente, a audácia incontrolada, o estado de euforia e sensação de otimismo, na qual o condutor sobrevalorizar as próprias capacidades, quando, na realidade, estas já se encontram diminuídas.
IV. Fica, assim, o condutor incapaz de avaliar corretamente as diferentes situações de trânsito pelas dificuldades na recolha de informação, pelo que compromete a segurança rodoviária do condutor, dos seus passageiros e dos demais condutores.
V. Neste sentido, não se concebe a valoração que o Tribunal a quo deu às declarações dadas pelo condutor, uma vez que não contém as razões essenciais que permitem compreender o raciocínio que esteve na base da decisão proferida.
VI. Existe, também, uma clara desvalorização da prova documental, prova já existente nos autos que contraria totalmente o depoimento da testemunha BB, designadamente o Doc. 5, decisão arbitral em que o condutor da viatura marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-PF-.., conduzido por BB, foi condenado, tendo como alicerce o estado de embriaguez do mesmo.
VII. E não se trata de uma prova qualquer, mas sim de uma sentença transitada em jugado, na qual o Tribunal a quo tem competência para conhecer, apreciar e decidir esta ação, utilizando a ação arbitral como prova documental.
VIII. Não pretende a Requerente ignorar o facto de que na decisão do Tribunal arbitral as partes eram outras, mas, salvo o devido respeito, entende que a dinâmica do acidente aí descrita, tem de constituir caso julgado pela vertente de que seria de aplicar nos presentes autos a denominada “autoridade do caso julgado”.
IX. Quanto à responsabilidade civil, todos os pressupostos estão preenchidos, havendo, assim, um nexo de causalidade entre o facto que efetivamente causou o dano e o próprio dano, isto porque este tipo de reação é consequência normal daquele facto.
X. Assim, deverá o presente recurso merecer provimento, devendo ser considerado como assente a culpa do condutor da viatura PF no acidente de viação ocorrido, e nessa sequência ser proferida nova sentença que aprecie os danos sofridos pela autora/recorrente, quantificando o valor da indemnização devido.

PRINCÍPIOS E DISPOSIÇÕES LEGAIS VIOLADAS OU INCORRETAMENTE APLICADAS:
• Artigo 615º nº1 alínea b) CPC – Omissão dos fundamentos que justificam a decisão
• Artigo 615º nº1 alínea d) CPC – Omissão de Pronúncia

Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, consequentemente, ser a demandada condenada: (…)».
A R. apresentou contra-alegações, pugnando pelo não provimento do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar, por ordem lógica de precedência:
a) nulidade da sentença;
b) autoridade de caso julgado;
c) impugnação da matéria de facto
d) (im)procedência da acção.
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Apreciemos a primeira questão.
Na parte final das suas conclusões a recorrente alude ao art. 615º, nº 1, als. b) e d), do C.P.C. (aduzindo “omissão dos fundamentos que justificam a decisão” e “omissão de pronúncia”), sob a epígrafe de “princípios e disposições legais violadas ou incorretamente aplicadas”, nada mais alegando quanto à concreta existência de eventual nulidade na sentença recorrida e nada invocando quanto a isso na motivação do recurso.
Assim, verifica-se que a questão da nulidade da sentença não foi efectivamente colocada no recurso interposto pela A., que nada invoca nesse sentido nem na motivação, nem nas conclusões, limitando-se a incluir o referido artigo, sem mais, no elenco de disposições legais violadas, sem qualquer correspondência com a matéria alegada neste concreto recurso.
E de todo o modo, ainda que se entendesse que a referência da recorrente configurava a colocação da questão, sempre se verifica que a mesma, por si própria, apenas é levantada em sede de conclusões, não tendo qualquer correspondência na parte do requerimento do recurso onde consta a motivação ou alegação (os fundamentos do recurso reconduzem-se ao erro de julgamento, quer de facto, quer de direito).
Com efeito, o requerimento de recurso é composto pela alegação (na terminologia legal) ou motivação e pelas conclusões, sendo um ónus do recorrente o de alegar e de formular conclusões (cfr. arts. 637º, nº 2, e 639º do C.P.C.).
Na alegação “cumpre ao recorrente enunciar os fundamentos da sua pretensão”, “rematando com as conclusões que representarão a síntese das questões que integram o objecto do recurso”. E sendo as conclusões a síntese da motivação do recurso, “devem ser desatendidas as conclusões que não encontrem correspondência na motivação” (cfr. Recursos em Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 182 e 135).
Donde, se há matéria que consta das conclusões e não consta da alegação, sendo aquelas inovadoras em relação a esta, então as mesmas serão a síntese de nada, não constituindo nessa parte um resumo do que consta da motivação, ou seja das razões do pedido, do objecto do recurso.
Ademais, esta situação não pode ser remediada através de um eventual convite ao aperfeiçoamento, pois que este só está previsto para as conclusões (mantendo-se a alegação intacta) – art. 639º, nº 3, do C.P.C..
Assim, se a questão da nulidade da sentença só consta das conclusões, é de concluir que a mesma não faz parte do objecto do recurso.
Pelo que, não se conhece de tal questão.
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Passemos à segunda questão.
Pretende a recorrente que deveriam ter sido dados como provados os factos atinentes à dinâmica do acidente que foram dados como provados na decisão arbitral proferida pelo Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros, Delegação Norte (e que segundo invoca foi proferida na sequência de “reclamação” apresentada pela empresa proprietária do veículo onde seguia a A. contra a ora R.), invocando para o efeito a autoridade de caso julgado.
Nos termos do art. 619º, nº 1, do C.P.C., transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.
E, em conformidade com o disposto no art. 621º do C.P.C. (alcance do caso julgado), a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.
“A força obrigatória desdobra-se numa dupla eficácia, designada por efeito negativo do caso julgado e efeito positivo do caso julgado.
O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem.
O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veritate habetur.
Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão.
(...)
Explicado de outro modo, enquanto com o efeito negativo um ato processual decisório anterior obsta a um ato processual decisório posterior, com o efeito positivo um ato processual decisório anterior determina (ou pode determinar) o sentido de um ato processual decisório posterior.
O efeito negativo tem por destinatário os tribunais e apresenta natureza processual. Traduz-se na exceção dilatória de caso julgado.
O efeito positivo tem por destinatário as partes e os tribunais e apresenta diversa natureza, em razão do objeto da decisão. Assim, nas decisões que têm por objeto a relação processual o efeito positivo é estritamente processual; já nas decisões sobre o mérito da causa o efeito positivo é material – a sentença é título bastante de efeitos materiais” (Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, in Revista Julgar Online, Novembro de 2018, págs. 6 e 7).
A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa quando causa idêntica já foi decidida por sentença que transitou em julgado, e pressupõe três identidades fundamentais: a identidade dos sujeitos, a identidade do pedido e a identidade da causa de pedir (arts. 580º e 581º do C.P.C.)
A identidade dos sujeitos ocorre quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. O que importa não é a identidade física, mas que as pessoas tenham a mesma posição ou a mesma qualidade jurídica.
E “as partes são as mesmas sob o aspecto jurídico, desde que são portadoras do mesmo interesse substancial”, interessando a sua posição quanto à relação jurídica substancial e não quanto à relação jurídica processual (Alberto dos Reis, C.P.C. anotado, vol. III, 4ª ed., págs. 97 e 101).
A identidade do pedido verifica-se quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico concreto.
“Pedido é a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar”, não se confundindo com o “objecto material da acção” (Manuel de Andrade, cit. por Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 106). A identidade do pedido traduz-se, pois, na identidade da providência jurisdicional solicitada, sendo a segunda acção proposta para se exercer o mesmo direito que se exerceu na primeira.
A identidade da causa de pedir ocorre quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
A acção identifica-se e individualiza-se através de factos jurídicos, isto é, “factos que podem ter influência na formação da vontade concreta da lei”. De forma que a causa de pedir “é o facto jurídico que constitui o fundamento legal do benefício ou do direito, objecto do pedido”.
Assim, “quando se muda o simples facto material ou motivo, mas para se deduzir dele o mesmo facto jurídico, não há diversidade de acção: a excepção de caso julgado subsiste (Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 121).
Como se viu, no que concerne à identidade das partes, o que releva é “um conceito material de parte”, que se apura “pelo âmbito de eficácia material do objeto processual e não pela estrita e literal titularidade da instância”, pelo que “estão abrangidos pelos efeitos do caso julgado” “não somente os concretos titulares do direito ou bem litigioso que eram partes na causa à data do trânsito em julgado da sentença – tanto solitariamente na ação, como em litisconsórcio necessário –, como, ainda, os seus transmissários ou sucessores posteriores ao trânsito em julgado” (excepto no caso de direitos indisponíveis ou intransmissíveis).
“Também estão fora do perímetro de efeitos do caso julgado os cocredores e os codevedores – parciários ou solidários –, os devedores subsidiários e, em geral, os sujeitos que poderiam participar em litisconsórcio voluntário na causa e não o fizeram: eles não têm a mesma qualidade jurídica. O caso julgado não pode, pois, ser oposto a esses sujeitos, mas apenas àqueles que foram efetivamente litisconsortes”.
“Em resultado, pode ser gerada uma coincidência parcial entre sujeitos nos casos de litisconsórcio e coligação voluntários quanto àqueles que concretamente estiveram na causa: havendo duas ações litisconsorciais ou coligatórias que coincidam quanto a alguns dos litisconsortes ou coligados, há exceção de caso julgado quanto aos sujeitos coincidentes. Fora desse âmbito de coincidência subjetiva não pode ser oposta exceção de caso julgado, nem invocada a autoridade de caso julgado” – só assim não será nos casos de litisconsórcio voluntário unitário, em que cada interessado que seja parte no processo representa todos os demais interessados que não sejam partes, “pelo que estes se sujeitam aos efeitos da sentença” (Rui Pinto, ob. e loc. cits., págs. 10 a 12).
Quanto à autoridade de caso julgado, a mesma tem, como se viu, “o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida” (cfr. Ac. da R.P. de 30/04/2013, com o nº de processo 993/08.0TJVNF.P1, citado no Ac. da R.P. de 11/10/2018, com o nº de processo 23201/17.8T8PRT.P1, ambos publicados em www.dgsi.pt).
No que concerne a este efeito positivo, há que distinguir consoante a vinculação à decisão anterior “se refere ao objeto processual e aos sujeitos da própria decisão (efeito positivo interno) ou se se refere a objetos processuais que estejam em relação conexa com o objeto da decisão” (efeito positivo externo)
“O efeito positivo interno do caso julgado tem por objeto os enunciados decisórios contidos na parte dispositiva de um despacho ou de uma sentença”, mas “nos termos dos fundamentos”, posto que “a parte dispositiva constitui a conclusão decorrente de silogismos internos de uma decisão, nos quais os fundamentos de facto ou de direito são as premissas”, entendendo-se “que a parte dispositiva vincula enquanto conclusão dos fundamentos respetivos”.
O efeito positivo externo, designado “como autoridade de caso julgado stricto sensu”, consiste na vinculação de uma decisão posterior a uma decisão já transitada em razão de uma relação de prejudicialidade ou de concurso entre os respetivos objetos processuais, ou, em termos mais simples, em razão de objetos processuais conexos”.
“A possibilidade de um efeito positivo externo do caso julgado apresenta duas condições objetivas, negativa e positiva.
Assim, como condição objetiva negativa, a autoridade de caso julgado opera em simetria com a exceção de caso julgado: opera em qualquer configuração de uma causa que não seja a de identidade com causa anterior; ou seja, supõe uma não repetição de causas”.
E, fora dos limites dos arts. 580º e 581º do C.P.C., respeita-se “uma autoridade de caso julgado, verificada uma condição objetiva positiva: uma relação de prejudicialidade (…) ou uma relação de concurso material entre objetos processuais ou, pelo prisma da decisão, uma relação entre os efeitos do caso julgado prévio e os efeitos da causa posterior, seja quanto a um mesmo bem jurídico, seja quanto a bens jurídicos conexos”.
“Deste modo, se o efeito negativo do caso julgado (exceção de caso julgado) leva à admissão de apenas uma decisão de mérito sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo (autoridade de caso julgado) admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão”.
Supondo a autoridade de caso julgado, como se disse, uma não repetição de causas, no caso não pode ocorrer a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, sob pena de se estar perante a excepção de caso julgado e não poder ser conhecida a segunda acção.
Porém, a sua verificação, com a força vinculativa fora do objecto processual, exige que ocorra a identidade de sujeitos, que será a “condição subjectiva”, significando que “a autoridade de caso julgado apenas pode ser oposta a quem seja tido como parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica como definido pelo artigo 581.º, n.º 2”.
“Daqui decorre que a autoridade de caso julgado (i) pode ser oposta pelas concretas partes entre si e (ii) não pode ser oposta a quem é terceiro. Em termos práticos, serão julgadas improcedentes (em maior ou menor grau) as pretensões processuais das partes entre si que sejam lógica ou juridicamente incompatíveis com o teor da primeira decisão; mas já idêntica pretensão deduzida por terceiro será apreciada sem consideração pelo sentido decisório alheio”. Sendo que terceiro, para este efeito, é igualmente “aquele que não é parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica no processo em que a decisão foi proferida”, tratando-se de um conceito material de terceiro.
Assim, contra o terceiro que não esteve no processo, nem é parte na relação jurídica que foi julgada, não pode ser invocada a autoridade de caso julgado (Rui Pinto, ob. e loc. cits., págs. 17, 18, 19, 25, 26, 27, 28 e 29).
Porém, é possível que o próprio terceiro adira ao caso julgado da acção em que não foi parte e aproveite a autoridade do caso julgado, opondo-a a quem foi parte no processo anterior. São os casos de extensão do caso julgado por força da lei ou pela vontade daquele.
Quanto às situações que estão previstas na lei, é pacífico que o terceiro que o pretenda possa fazer seus os efeitos da sentença anterior e os oponha à parte contrária.
Já a possibilidade de assim suceder nas situações que não estão especificamente previstas na lei pode apresentar-se duvidosa.
Porém, tal vem sendo admitido em jurisprudência mais recente, nomeadamente em casos de acidentes de viação em que, estando em causa o mesmo acidente em que estão envolvidas várias pessoas, o autor da segunda acção é outro que não o da primeira acção, mas a ré seguradora é a mesma.
Nas palavras de Rui Pinto (ob. e loc. cits., pág. 32), “visto que a limitação inter partes do caso julgado se justifica pela necessidade de proteger quem não se pode defender, se é o próprio a querer “usar” da decisão, parece ser de defender a existência de um princípio de adesão ao caso julgado alheio. O único limite será, naturalmente, a indisponibilidade substantiva dos respetivos direitos”.
Sobre o assunto, podem ver-se os Acs. do S.T.J. de 27/02/2018, com o nº de proc. 2472/05.8 TBSTR.E1, da R.G. de 17/12/2019, com o nº de proc. 2765/18.4T8VCT.G1, da R.L. de 08/11/2022, com o nº de proc. 127/20.2T8LRS.L1-7, e da R.P. de 23/02/2021, com o nº de proc. 1358/20.0T8PNF-A.P1, e de 18/06/2024, com o nº de proc. 13832/20.4T8PRT-B.P1, todos publicados em www.dgsi.pt. A propósito, citam-se as seguintes partes do sumário do aludido Ac. da R.P. de 23/02/2021: “IV – Num acidente de viação em que se fixou a responsabilidade pela eclosão do evento danoso, existe autoridade de caso julgado relativamente aos factos que explicam a dinâmica do acidente numa segunda ação interposta contra a mesma ré, responsável seguradora. (…) VI – A adesão voluntária de quem seja materialmente terceiro ao caso julgado alheio pode, caso esteja assegurado no processo inicial o exercício de um contraditório efetivo pela parte vencida, implicar a aplicação da autoridade do caso julgado de molde a obstar a decisões opostas, consagrando-se assim os valores da certeza e segurança jurídicas em ordem a uma benquista celeridade processual.”.
O que acabou de analisar-se é válido mesmo em sede de arbitragem, aplicando-se igualmente quando a primeira decisão seja uma decisão arbitral, na medida em que “o recurso à arbitragem consubstancia o exercício do direito de ação em tribunais constitucionalmente reconhecidos (…), pelo que a eficácia das respetivas decisões rege-se pelos mesmos princípios e regras de exceção de caso julgado e de autoridade de caso julgado decorrentes dos princípios da segurança jurídica, instrumentalidade ao direito material e proibição de decisões contraditórias” (Rui Pinto, ob. e loc. cits., pág. 46).
Conforme dispõe o art. 42º, nº 7, da Lei nº 63/2011, de 14/12 (Lei da Arbitragem Voluntária), a sentença arbitral de que não caiba recurso e que já não seja susceptível de alteração nos termos do artigo 45.º tem o mesmo carácter obrigatório entre as partes que a sentença de um tribunal estadual transitada em julgado e a mesma força executiva que a sentença de um tribunal estadual.
Aqui chegados, as seguintes conclusões impõem-se:
- a autoridade de caso julgado, por regra, implica a existência de identidade de partes nas duas acções, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, e não pode ser oposta a terceiros;
- em certas situações, o terceiro que não esteve no processo, nem é parte na relação jurídica que foi julgada, pode aproveitar a autoridade do caso julgado, opondo-a a quem foi parte no processo anterior, e aí tenha podido exercer devidamente o contraditório;
- o terceiro tem que invocar a sua pretensão de se fazer valer da autoridade do caso julgado de sentença proferida em processo no qual não foi parte;
- a decisão cuja autoridade de caso julgado se pretende invocar tem que estar transitada em julgado, pois só a partir daí é que a mesma fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites assinalados - tratando-se de decisão arbitral, da mesma não deve caber recurso e já não deve ser susceptível de alteração nos termos do art. 45º da L.A.V..
Ora, não sendo a autoridade de caso julgado de conhecimento oficioso (ao contrário da excepção de caso julgado) e necessitando a mesma de manifestação de vontade do terceiro no sentido do seu aproveitamento, a este cabe comprovar os pressupostos de que depende o funcionamento daquela (cfr. art. 342º, nº 1, do C.C.), quais sejam, fundamentalmente, a existência do processo anterior, as suas partes intervenientes, a decisão aí proferida e seu respectivo conteúdo e o trânsito em julgado da decisão e a sua data.
No caso concreto, podendo eventualmente, em face da posição jurisprudencial assinalada, a A., ora recorrente, querer aderir à autoridade de caso julgado da decisão arbitral que referiu na petição inicial, o certo é que a mesma não logra provar a referida factualidade, tendo-se limitado a juntar, com aquele articulado, uma cópia simples respeitante à notificação a uma das partes, por intermédio da sua advogada (por sinal a mesma que patrocina a ora recorrente), da decisão arbitral, com data de 27/10/2020 e que terá sido recebida em 30/10/2020.
Com efeito, os factos em questão (a existência do processo anterior, as suas partes intervenientes, a decisão aí proferida e seu respectivo conteúdo e o trânsito em julgado da decisão e a sua data) apenas podem provar-se por documento autêntico, emitido pela autoridade competente para o efeito (cfr. arts. 363º, nº 2, e 369º do C.C.).
Os documentos autênticos são os “emanados duma autoridade pública ou de um oficial público, a quem a lei atribui expressamente poderes de atestação (logo a autoridade ou o oficial estão providos de fé pública), com o respeito de determinadas formalidades (…). É necessário que a lei invista o autor do documento em específicos poderes de documentação, fazendo-o em razão do ofício que desempenha. A função do documento autêntico é a de atribuir fé pública ao documento, fazendo-o erga omnes”.
Têm “três requisitos: a autorização, expedição ou intervenção de uma autoridade pública ou oficial público (publicis personis); a atuação da autoridade ou do oficial público dentro do seu âmbito e competências funcionais e territoriais decorrentes da lei; e que o documento revista as formalidades ou solenidades previstas pela lei (solemniter confecta)”.
E “podem ser: (i) judiciais (cf. art. 451º do CPC); (ii) atinentes ao tráfico jurídico privado, sendo emanados de quem está investido de poderes para dar fé pública a tais documentos e (iii) documentos autênticos administrativos, correspondentes àqueles que são provenientes da Administração Pública ou de outras entidades de direito público, sendo emitidos por funcionários para dar fé de atuações de tais órgãos; (iv) emitidos por outros oficiais públicos, v.g. administrador de insolvência” (cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material, Almedina, 2ª ed., 2021, págs. 117 a 119).
Quer dizer, no caso, aqueles factos teriam que ser provados por certidão do processo arbitral, incluindo designadamente a sentença arbitral e a certificação de que não foi (ou não podia ser) objecto de recurso e já não era susceptível de alteração, e da respectiva data do trânsito em julgado.
Atento o disposto no art. 364º, nº 1, do Código Civil, “a inobservância da forma prescrita não pode ser suprida por outro meio de prova, ainda que de igual valor como é o caso da prova por confissão” (cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 124).
E não pode haver admissão por acordo, em caso de não impugnação na contestação, perante o que decorre do art. 574º, nº 2, do C.P.C..
Na situação dos autos verifica-se que o documento respeitante ao conteúdo da decisão arbitral não é um documento autêntico e quanto à certificação nem sequer há qualquer prova da mesma no processo.
Pelo que, só pode concluir-se que não está demonstrada a existência de uma decisão proferida em processo anterior e transitada em julgado cuja autoridade de caso julgado pudesse ser invocada pela recorrente.
Sendo assim, não estão verificados os pressupostos para fazer actuar a autoridade de caso julgado, independentemente de se apurar tratar-se ou não de situação em que aquela autoridade pode ser invocada por terceiro ao processo anterior.
Conclui-se, portanto, que não merece provimento nesta parte o recurso.
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Apreciemos a terceira questão.
O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).
Neste caso, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (nº 1 do art. 640º):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Uma vez que a impugnação da decisão de facto não se destina a que o tribunal de recurso reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, a lei impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
No caso concreto, verifica-se que na alegação do recurso a recorrente se limita a manifestar discordância com a decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido, aludindo à valoração do depoimento da testemunha BB e à não valoração da prova documental consistente na decisão arbitral, criticando o facto de se ter valorado aquele depoimento e não se ter valorado o documento (sendo que, nesta parte, a discordância respeitava à invocação da autoridade de caso julgado, assunto já tratado na anterior questão) e não invoca os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, nem especifica a decisão alternativa que em seu entender deve ser proferida, e não enuncia os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa.
Perante a situação exposta, nem com muito boa vontade, nem fazendo apelo ao princípio da proporcionalidade [não exacerbar os requisitos formais a tal ponto que tal se traduza numa denegação/recusa da reapreciação da matéria de facto, ao arrepio do que foi a intenção do legislador e do que consta claramente da letra da lei (neste sentido, cfr. Ac. do S.T.J. de uniformização de jurisprudência nº 12/2023, de 14/11, D.R. n.º 220/2023, Série I, págs. 44 a 65, e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 202 a 207)], se pode considerar que esteja minimamente cumprido o especial ónus de alegação que incumbia à recorrente quanto às matérias previstas no art. 640º, nº 1, als. a), b) e c), do C.P.C..
Ou seja, a recorrente não cumpriu, de todo, com esse especial ónus de alegação que lhe incumbia quanto a tais matérias.
A consequência do incumprimento das especificações previstas no art. 640º, nºs 1 e 2, do C.P.C. é a rejeição do recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto.
Assim, em conformidade com o disposto nesta disposição legal, rejeita-se o recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto, por incumprimento da recorrente do exigido no art. 640º, nº 1, als. a), b) e c), do C.P.C..
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Não obstante a rejeição da impugnação da matéria de facto, há que conhecer oficiosamente da seguinte questão que se levanta quanto à matéria elencada nos factos provados, atento o que decorre do art. 607º, nº 4, aplicável aos acórdãos por força do art. 663º, nº 2, ambos do C.P.C.:
- o ponto 17 dos factos provados [Foi requerida arbitragem no Centro de Informação, Mediação, e Arbitragem de Seguros - ARBITRAGEM ... – na qual era Reclamante “B... Lda.” e Reclamada a “A... - Sucursal em Portugal”, tendo a Reclamada sido condenada a pagar à Reclamante a quantia peticionada de 4.999,00 €.] contém matéria que apenas se pode provar por documento autêntico, como se analisou no tratamento da segunda questão. Não existindo nos autos esse documento, o facto em causa não pode ser dado como provado, devendo ser eliminado dos factos provados (atento o que consta do art. 607º, nº 4, do C.P.C., nem sequer tem que constar dos factos não provados).
Assim, elimina-se o referido ponto do elenco dos factos provados onde constava.
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Resta apreciar a quarta questão.
Tendo em conta o resultado do tratamento das questões anteriores, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão da recorrente é a que consta dos factos dados como provados na sentença recorrida, com a alteração acabada de efectuar, conforme se passa a descrever:
«1. A Autora em conjunto com as amigas CC e DD, no dia 7 de dezembro de 2019, foram assistir a um concerto no “...”, no Porto.
2. No final do concerto, já no dia 8 de dezembro de 2019, chamaram um Uber para as levar a casa.
3. Ocorreu ao local, a viatura marca Seat, modelo ..., com a matriculo ..-SP-.., conduzida por EE e pertencente à sociedade “B..., Lda., com sede na Alameda ..., ..., ... ....
4. O trajeto acordado consistia em ir inicialmente a Matosinhos, levar a amiga CC a casa, e daí conduzir a Autora e a DD a Vila Nova de Gaia.
5. Nessa sequência, cerca das 02h10, após já terem deixado a CC em casa, a viatura Uber seguia pela ..., no Porto, no sentido ascendente (...-...).
6. No cruzamento com a Rua ..., onde existem semáforos, o Uber prosseguiu na sua marcha.
7. Aquando do referido em 6. ocorreu o embate com a viatura marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-PF-.., conduzido por BB.
8. O embate ocorreu na frente lateral direita do veículo Uber.
9. O veículo com a matrícula ..-PF-.. apareceu pelo lado direito do Uber, vindo da Rua ....
10. Na Rua ..., no local onde esta entronca com a ..., existem semáforos e um sinal STOP.
11. Com o embate a viatura Uber foi projetada para o separador central da via, embatendo no poste que aí existe e ficou imobilizado no jardim.
12. O Renault ... ficou posicionado na direção de onde era proveniente.
13. A PSP foi chamada ao local, e os condutores das viaturas foram submetidos a teste de alcoolemia.
14. Submetidos a teste o condutor do Uber acusou uma taxa negativa e o condutor do Renault ... acusou uma taxa positiva de 1,325g/l.
15. A viatura Uber estava segurada na “C..., Companhia de Seguros, S.A.”, através da apólice nº ....
16. A viatura Renault ... de matrícula ..-PF-.. estava segurada na Ré, através da apólice nº ....»
17. Eliminado
«18. Na sequência do embate, a Autora e a sua amiga DD sentiram dores e ligaram à amiga CC a relatar o sucedido.
19. CC e marido, FF, ocorreram ao local e conduziram a Autora a casa.
20. Em consequência do embate a Autora sentia dores.
21. A Autora colocou gelo no braço.
22. No dia seguinte as dores eram maiores pelo que se dirigiu ao Hospital ... – onde, após realização de raio X ao antebraço e cotovelo direitos, lhe foi detetada uma fratura do cúbito direito.
23. Nessa sequencia, o braço foi imobilizado com gesso, situação em que se manteve durante 8 semanas.
24. Após as 8 semanas de imobilização, foi recomendado pelo médico ortopedista a realização de 15 sessões de fisioterapia.
25. A Autora iniciou as sessões a 19 de fevereiro de 2020, na “Clinica ...”.
26. A Autora sente dor no ombro e punho direitos, agravada com os esforços e movimentos repetitivos.
27. A Autora era trabalhadora da sociedade “D..., S.A, desempenhando as funções de caixa, auferindo, em média um salário de cerca de 580€ ilíquidos.
28. Após o acidente a Autora permaneceu de baixa médica.
29. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 30/06/2020.
30. O Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixa-se num período total de 206 dias.
31. A Autora despendeu os seguintes montantes:
a) Episódio de urgência de 08.12.2019 - 90,00€:
b) Consulta SNS de 10.12.2019 - 4,50€;
c) Consulta SNS de 23.12.2019 - 4,50€;
d) Consulta de ortopedia de 03.01.2020 - 35,00€;
e) RX’s e tratamentos de 03.01.2020 - 59,21€;
f) Consulta SNS de 20.01.2020 - 4,50€;
g) Consulta ortopedia e rx 28.01.2020 - 27,50€;
h) Consulta ortopedia de 11.02.2020 - 20,00€;
i) Consulta SNS de 18.02.2020 - 4,50€;
j) Consulta SNS de 30.06.2020 - 3,00€;
k) Consulta ortopedia de 11.09.2020 - 20,00€; no total de 272,71€.
32. Nas sessões de fisioterapia, a Autora despendeu a quantia de:
a) Consulta de fisiatria de 19.02.2020 - 20,00€;
b) 15 sessões de fisioterapia 08.06.2020 - 23,40€;
c) Consulta de fisiatria 15.07.2020 - 20,00€;
d) 15 sessões de fisioterapia 15.07.2020 - 43,30€;
e) Consulta de fisiatria de 26.08.2020 - 20,00€;
f) 15 sessões de fisioterapia 26.08.2020. - 155,25€;
g) Serviço de higienização 26.08.2020 - 7,50€;
h) Consulta de fisiatria de 11.11.2020 - 20,00€;
i) 15 sessões de fisioterapia 16.11.2020 170,25€;
j) Consulta de fisiatria de 06.01.2021 - 30,00€;
k) 15 sessões de fisioterapia 06.01.2021 - 234,00€;
l) 15 sessões de fisioterapia 09.03.2021 - 23,40€;
m) Consulta de fisiatria 10.03.2021 30,00€; no total de 797,10€.
33. Em consequência do acidente de viação a Autora, sentiu angústia, sofreu lesões, nomeadamente, fratura do cúbito direito.
34. A Autora passou a sentir dificuldade em levantar e transportar objetos.
35. A Autora sente dores na rotação do pulso e a levantar o braço direito.
36. A dor que sente no punho e cotovelo direitos é agravada pelos movimentos repetitivos.
37. A Autora ficou a padecer de um défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 1 pontos.
38. O Quantum Doloris é fixável no grau 3/7.
39. As sequelas de que a Autora ficou a padecer, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
40. A Autora continua e continuará a sentir incómodos e dores.
41. A Ré, através do contrato de seguro, titulado pela apólice número ..., assumiu a responsabilidade civil perante terceiros pela circulação do veículo matrícula ..-PF-...
42. Nas circunstâncias de tempo e local referidas em 5. a 9., o condutor do veículo com a matrícula ..-PF-.. transpôs o referido cruzamento de estradas com o sinal (semáforo) acionado na cor verde para o seu sentido de trânsito.».
Tendo sido dados como não provados os seguintes factos (transcrição):
«a) Aquando do referido em 6. o semáforo estava verde para o veículo Uber.
b) Aquando do referido em 9. o veículo com a matrícula ..-PF-.. não respeitou o semáforo vermelho, nem o sinal STOP.
c) Em virtude do acidente, a Autora não aufere atualmente qualquer quantia.».
Da factualidade provada e não provada ressalta desde logo que:
- o condutor do veículo PF atravessou o cruzamento com o semáforo aceso na luz verde (ponto 42);
- não se provou que o condutor do veículo onde seguia a A. atravessou o cruzamento com a luz verde acesa no semáforo (al. a) dos factos não provados).
Em condições normais (e nos autos não consta alegado por qualquer das partes que as condições de funcionamento dos semáforos não fossem as normais), quando a luz verde do semáforo está acesa para um determinado sentido de trânsito, está acesa a luz vermelha para o sentido de trânsito que com aquele cruza. A transição dos semáforos tem a sequência luz verde - luz amarela – luz vermelha – luz verde e assim sucessivamente, sendo que quando num lado está acesa a luz verde primeiro e em seguida a luz amarela, do outro lado está acesa a luz vermelha. Esta só passa a verde quando do outro lado já acendeu a luz vermelha.
No caso, não se provando que a luz estava verde quando passou o veículo onde seguia a A., está provado que a luz verde estava acesa para a passagem do veículo PF, não estando provado (nem sequer tendo sido alegado) que houvesse mau funcionamento dos semáforos respectivos.
Tal só pode significar que, no cruzamento, a luz do semáforo que se apresentava ao veículo onde seguia a A. só podia estar vermelha, a qual indica “passagem proibida” e “obriga os condutores a parar antes de atingir a zona regulada pelo sinal” (art. 69º, nº 1, al. a), do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 01/10).
Mesmo que se admitisse que o condutor deste veículo tivesse iniciado a passagem do cruzamento ainda com a luz amarela acesa, tal não deixaria de ser uma infracção à sinalização luminosa, pois, para ocorrer o embate quando a luz já estava verde no semáforo da Rua ..., no momento da passagem daquele veículo a luz amarela já teria de estar a passar para a luz vermelha, o que significa que o condutor do mesmo já a teria que estar a ver a alguma distância, o que ainda lhe dava tempo e o obrigava a parar – com efeito, a luz amarela, que indica a transição da luz verde para a vermelha, proíbe a entrada na zona regulada pelo sinal, salvo se os condutores se encontrarem já muito perto daquela zona quando a luz se acender e não puderem parar em condições de segurança (cfr. art. 69º, nº 1, al. b), do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 01/10).
Sendo assim, da factualidade que foi apurada o que se retira é que a responsabilidade na eclosão do acidente cabe em exclusivo ao veículo onde a A. seguia como passageira, cujo condutor não parou no sinal vermelho que se lhe apresentava no cruzamento, prosseguindo a sua marcha, acabando por interferir com a marcha do veículo segurado na R., que tinha avançado com o sinal verde.
Há que salientar que, tendo havido uma conduta violadora das regras de circulação estradal por parte do condutor do veículo onde seguia a A., tal violação constitui presunção de culpa daquele na ocorrência do acidente, cabendo, portanto, à A. a prova de factos que fossem capazes de ilidir tal presunção, ao menos quanto à sua culpa exclusiva, o que não sucedeu (cfr. Ac. da R.G. de 10/11/2011, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de processo 8597/07.8TBBRG.G1).
Daí a conclusão de ser a actuação deste condutor a causadora do acidente, não se verificando ainda a existência de qualquer contributo para a sua ocorrência do condutor do veículo segurado na R., ou mesmo de alguma causa de força maior.
E sendo assim, devendo-se a eclosão do sinistro em exclusivo ao condutor do veículo onde seguia a A., nos termos relatados, fica afastado qualquer tipo de responsabilidade (mesmo pelo risco) por parte do veículo segurado na R..
Não havendo responsabilidade deste veículo na eclosão do acidente, não há obrigação de indemnizar por parte da R. (responsável pelos danos sofridos pela A. será, no caso, a seguradora do veículo onde era transportada como passageira), havendo lugar à sua absolvição do pedido, como foi decidido na sentença recorrida.
Perante o exposto, conclui-se que não merece, assim, acolhimento a pretensão da recorrente no sentido da procedência da acção.
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pela A. e, com excepção da eliminação oficiosa do ponto 17 da matéria de facto conforme referido, pela consequente confirmação da decisão recorrida.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em:
a) eliminar o ponto 17 do elenco dos factos provados;
b) negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 7/11/2024
Isabel Ferreira
Isabel Peixoto Pereira
António Paulo Vasconcelos