Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ANA PAULA AMORIM | ||
| Descritores: | CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO INCUMPRIMENTO PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO RESOLUÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RP2022032110/21.4T8MAI.P1 | ||
| Data do Acordão: | 03/21/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Por força do artigo 20/1 do DL 133/2009 de 02 de junho, em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias previstas naquele artigo e que relevam para demonstrar o incumprimento definitivo do contrato. II - Não se verificando essas circunstâncias, o credor não pode invocar a perda ou a resolução, pelo que não se podem dar por verificados todos os factos constitutivos do direito que decorre dessa perda ou da resolução, como seja, o direito ao pagamento das prestações vincendas. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Mútuo-10/21.4T8MAI.P1 SUMÁRIO[1] ( art. 663º/7 CPC ): …………………… …………………… …………………… --- Acordam neste Tribunal da Relação do Porto ( 5ª secção judicial – 3ª Secção Cível )I. Relatório Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum em que figuram como: -AUTOR: Banco ..., SA. - Sucursal em Portugal, com o n.º único de matrícula ........., com sede na Rua ..., ..., ..., ... Lisboa; e - RÉU: AA, contribuinte fiscal n.º ..., portador do cartão do cidadão nº ..., residente na ..., n.º ...., ... Maia Autor: Banco ..., SA - Sucursal em Portugal. pede o Autor a condenação do Réu no pagamento da quantia de €19.404,45 (dezanove mil quatrocentos e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos) acrescida dos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento. Alegou para o efeito e em síntese, que o Banco 1 ..., S.A. alterou a sua designação social para Banco ..., SA. Por sua vez, o Banco ..., SA foi incorporado por fusão no Banco ..., SA. O Banco ..., SA passou a ser definitivamente representado pela Banco ..., SA - SUCURSAL EM PORTUGAL, com o n.º único de matrícula .......... Mais alegou que o Autor dedica-se à atividade de concessão de crédito destinado a fins exclusivamente de consumo pessoal ou para financiamento à aquisição de bens e serviços. O Autor, no exercício da sua atividade, e o Réu, celebraram em 29 de junho de 2017 um contrato de concessão de crédito, ao qual foi atribuído o nº ..., destinado a fins exclusivamente de consumo pessoal ou para financiamento à aquisição de bens e serviços. Tendo em vista a concessão do financiamento o Réu forneceu ao Autor a proposta de crédito e todos os elementos de identificação pessoal, tais como fotocópia do cartão do cidadão, comprovativo de rendimentos. Após análise do pedido e conferência dos documentos entregues pelo Réu, o Autor aceitou financiar o montante global de €17.500,00 que disponibilizou, por mútuo, ao Réu. O Réu obrigou-se a devolver ao Autor o montante mutuado acrescido de juros à taxa legal e contratual sobre o montante em dívida, encargos, seguro e imposto de selo através do pagamento em 120 prestações mensais iguais e sucessivas, cada uma, no valor de Euros 251,37, com início em 01 de agosto de 2017. Alegou, ainda, que o Réu não efetuou o pagamento das mensalidades contratadas, pois apenas efetuou o pagamento de seis das prestações acordadas. O último pagamento efetuado pelo Réu e recebido pelo Autor foi no dia 13 de fevereiro de 2019, no valor de €265,35, não tendo procedido ao pagamento de qualquer outra quantia, considerando o autor incumprido o contrato em 08 de outubro de 2019, ficando em débito na referida data no valor de €17.869,17. Mais alegou que tentou obter o pagamento do débito através de telefonemas, do envio de cartas para cobrança e do envio de acordos de pagamento, no entanto, até à presente data, o Réu não procedeu ao pagamento devido. Considera, por fim, que o montante em divida a título de capital ascende à quantia de €17.869,17, apurado da seguinte forma: • €2.022,96 correspondente a 8 prestações vencidas e não pagas até à data do incumprimento contratual, cada uma no valor de €252,87 (8* € 252,87); • €966,47 correspondente a juros e penalidades pelo atraso no pagamento das mensalidades prevista na cláusula 10.3 das condições gerais do contrato (cfr. doc. nº 1 em anexo); • €14.879,74 correspondente ao somatório do valor do capital das 105 prestações que se venceram à data do incumprimento contratual (valor do capital das prestações 16ª inclusive à 120º inclusive), acrescida dos juros de mora contados às sucessivas taxas, que atualmente é 7%, desde a data do incumprimento contratual (08/10/2019) até efetivo e integral pagamento, juros esses que em 29 de dezembro 2020 ascendem a €1.535,28. - Citado o réu não contestou.- Consideraram-se confessados os factos alegados pelo autor, ao abrigo do art. 567/1/2 CPC e determinou-se a notificação do mandatário do autor para alegar querendo em 10 dias ( ref. Citius 426604795).- O Autor veio alegar renovando os argumentos expostos na petição.- Em 15 de julho de 2021 proferiu-se o seguinte despacho (ref. Citius 426871534):“No art. 13º da p.i., o autor alega que considerou incumprido o contrato em 08/10/2019, ficando em débito na referida data o valor de €17.869,17. Esta alegação é meramente conclusiva. O tribunal não compreende porque razão o autor considerou incumprido o contrato nessa data. Se ocorreu ou não algum facto para considerar então o contrato incumprido. Assim, ao abrigo do disposto no art. 590º, 4, CPC, convida-se o autor a esclarecer essa dúvida. E, se houver factos relevantes para o caso, alegá-los em novo articulado restrito a essa matéria. Prazo: 10 dias”. - O Autor respondendo ao convite apresentou o articulado que se transcreve:“1º A Autora, no exercício da sua atividade, e o Réu, celebraram, em 29/06/2017, um contrato de concessão de crédito, ao qual foi atribuído o n.º ..., destinado a fins exclusivamente de consumo pessoal ou para financiamento à aquisição de bens e serviços. 2º Tendo em vista a concessão do financiamento o Réu forneceu à Autora a proposta de crédito e todos os elementos de identificação pessoal, tais como fotocópia do cartão do cidadão, comprovativo de rendimentos, comprovativo de vencimento. 3º O Réu obrigou-se a devolver à Autora o montante mutuado acrescido de juros à taxa legal e contratual sobre o montante em dívida, encargos, seguro e imposto de selo através do pagamento em 120 prestações mensais iguais e sucessivas cada uma no valor de €251,37, com início no dia 01/08/2017. 4º Acontece que, o Réu não efetuou o pagamento da totalidade das mensalidades contratadas. 5º O Réu apenas efetuou o pagamento de seis das mensalidades contratadas, ficando em débito o pagamento de 114 mensalidades, cada uma no valor de €251,37, bem como das prestações subsequentes. 6º O último pagamento efetuado pelo Réu e recebido pela Autora foi no dia 13/02/2019, no valor de €265,35, data em que já se encontravam várias prestações vencidas e não pagas. 7º O Réu não cumpriu o pagamento das prestações a que se vinculou, razão pela qual se considerou incumprido o contrato em 08/10/2019, ficando em débito na referida data o valor de €17.869,17. 8º A Autora tentou obter o pagamento do débito através de telefonemas, do envio de cartas para cobrança e do envio de acordos de pagamento, no entanto, o Réu não procedeu ao pagamento devido. 9º Devido ao incumprimento no pagamento das prestações acordados e apesar das várias tentativas por parte da Autora para a cobrança dos valores em atraso o Réu não procedeu à regularização dos valores em atraso, razão pela qual resolveu o contrato em 08/10/2019. Pelo exposto, a Autora tem o direito a receber do Réu a quantia de €19.404,45 (dezanove mil quatrocentos e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos). Assim, deve a presente ação ser julgada procedente, nos precisos termos do pedido formulado na petição inicial. Ou seja, deve o Réu ser condenada a pagar à Autora a quantia de €19.404,45 (dezanove mil quatrocentos e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos contados sobre o capital, às sucessivas taxas de juro comerciais, que atualmente é 7,00%, desde a data da entrada da Ação Declarativa (04/01/2021), até efetivo e integral pagamento. Deve ainda o Réu ser condenada ao pagamento das custas, procuradoria e demais encargos do processo”. - Proferiu-se sentença (ref. Citius 428199563) com a decisão que se transcreve:“ Julga-se a ação parcialmente procedente e condena-se o Réu AA a pagar ao autor Banco ..., SA - Sucursal em Portugal as oito prestações vencidas até 8/10/2019 (oito de Outubro de dois ml e dezanove), no valor de 2.022,96€ (dois mil e vinte e dois euros e noventa e seis cêntimos), acrescidos de juros de mora à taxa comercial, contados daquela data. Do mais pedido, vai o réu absolvido. Custas pelo autor e pelo réu na proporção do decaimento. Valor da ação: 19.404,45€”. - O Autor veio interpor recurso da sentença. - Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:…………………… …………………… ……………………. - Não foi apresentada resposta ao recurso.- O recurso foi admitido como recurso de apelação.- Dispensaram-se os vistos legais.- Cumpre apreciar e decidir. - II. Fundamentação1. Delimitação do objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC. As questões a decidir: - nulidade da sentença, com fundamento em contradição entre fundamentos e decisão, nos termos do art. 615º/1 c) CPC; - estando em causa a celebração de um contrato de crédito ao consumo, saber se estão reunidos os pressupostos para o credor reclamar o pagamento das prestações vincendas, a partir da data em que se considerou verificado o incumprimento do contrato por parte do consumidor. - 2. Os factosCom relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância: 1º O Banco 1 ..., S.A. alterou a sua designação social para Banco ..., SA, por sua vez, o Banco ..., SA foi incorporado por fusão no Banco ..., SA 2º Tal operação encontra-se definitivamente registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa pela insc. ... - OF. .... 3º Sucede que, pela insc. 1, AP. ... e ..., o Banco ..., SA passou a ser definitivamente representado pela Banco ..., SA - SUCURSAL EM PORTUGAL, com o n.º único de matrícula .......... 4º Deste modo, a Banco ..., SA - Sucursal em Portugal, é parte legítima nos presentes autos. 5º O Autor dedica-se à atividade de concessão de crédito destinado a fins exclusivamente de consumo pessoal ou para financiamento à aquisição de bens e serviços. 6º O Autor, no exercício da sua atividade, e o Réu, celebraram em 29/06/2017, um contrato de concessão de crédito, ao qual foi atribuído o nº ..., destinado a fins exclusivamente de consumo pessoal ou para financiamento à aquisição de bens e serviços - documento este que aqui se junta sob o número 1 e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 7º Tendo em vista a concessão do financiamento o Réu, esta forneceu ao Autor a proposta de crédito e todos os elementos de identificação pessoal, tais como fotocópia do cartão do cidadão, comprovativo de rendimentos. 8º Após análise do pedido e conferência dos documentos entregues pela Ré, o Autor aceitou financiar o montante global de €17.500,00 que disponibilizou, por mútuo, ao Réu. 9º O Réu obrigou-se a devolver ao Autor o montante mutuado acrescido de juros à taxa legal e contratual sobre o montante em dívida, encargos, seguro e imposto de selo através do pagamento em 120 prestações mensais iguais e sucessivas cada uma no valor de Euros 251,37 cada, com início em 01/08/2017. 10º O Réu não efetuou o pagamento das mensalidades contratadas. 11º O Réu apenas efetuou o pagamento de seis das prestações acordadas. 12º O último pagamento efetuado pelo Réu e recebido pelo Autor foi no dia 13/02/2019, no valor de €265,35, não tendo procedido ao pagamento de qualquer outra quantia. 13º O Autor tentou obter o pagamento do débito através de telefonemas, do envio de cartas para cobrança e do envio de acordos de pagamento, no entanto, até à presente data, o Réu não procedeu ao pagamento devido. - 3. O direito- Nulidade da sentença - Nas conclusões de recurso, sob as alíneas A) a D), considera o apelante que na sentença existe contradição entre a decisão e os factos dados como provados, porque a recorrente invocou o incumprimento contratual definitivo, alegou que foram enviadas cartas ao réu-recorrido e peticionou o pagamento do capital vincendo, não fazendo sentido que o recorrido seja condenado apenas no pagamento de oito prestações acrescidas dos juros de mora. A contradição entre os fundamentos e a decisão constitui um dos fundamentos de nulidade da sentença, nos termos do art. 615/1 c) CPC. A previsão da norma contempla as situações de contradição real entre os fundamentos e a decisão e não as hipóteses de contradição aparente, resultante de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão. Como referia o Professor ANTUNES VARELA perante o regime do art. 618º/1 c) CPC de 1966, cuja redação era, nesta parte, idêntica ao atual art. 615º/1 c) CPC: “a norma abrange os casos em que há um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente“[2]. No caso presente existe na sentença uma perfeita coerência no raciocínio e a decisão resulta como a conclusão lógica desse raciocínio, pois considerou-se perante os factos provados e por aplicação do regime previsto no art. 20º do DL 133/2009 de 02 de junho, que não estavam reunidos os pressupostos para o credor demandar o devedor, por incumprimento contratual em relação às prestações vincendas. Entendeu-se, por isso, que apenas assistia ao credor o direito a reclamar o pagamento das prestações vencidas e exigíveis, na data que o autor-credor indicou como correspondente ao incumprimento – 08 de outubro de 2019. Perante os factos provados, a interpretação e análise dos mesmos à face do direito, apenas podia conduzir à decisão a que chegou o juiz do tribunal “a quo”, motivo pelo qual não se verifica a apontada nulidade. Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso sob as alíneas A) a D). - - Dos pressupostos para reclamar as prestações vincendas -A apelante nas conclusões de recurso, sob as alíneas E) a K), insurge-se contra o segmento da decisão que julgou improcedente o pedido quanto aos valores peticionados a título de prestações vincendas. Na sentença julgou-se, em parte, improcedente o pedido com os fundamentos que se passam a transcrever: “Estamos diante de um contrato de mútuo oneroso bancário destinado a crédito ao consumo regulado em especial pelo D.L. nº 133/2009, de 2/6, e em geral pelos art.s 1142º e ss do Código Civil. As consequências do incumprimento por parte do consumidor estão previstas no art.20º do citado Decreto-Lei: “1 - Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes: a) A falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito; b) Ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato. 2 - A resolução do contrato de crédito pelo credor não obsta a que este possa exigir o pagamento de eventual sanção contratual ou a indemnização, nos termos gerais.” Esta norma legal está também plasmada na cláusula 15.1 do contrato para a hipótese de incumprimento definitivo. A requerente não alegou nem juntou qualquer documento, e por isso não provou, que deu cumprimento ao disposto na alínea b) do art. 20º. Logo, não podia considerar o contrato definitivamente incumprido. Assim, dos pedidos apenas tem direito às oito prestações vencidas até 8/10/2019 acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos à taxa comercial, desde aquela data”. A questão que se coloca consiste em apreciar se estavam reunidos os pressupostos para o credor reclamar em ação judicial o pagamento das prestações vincendas, por incumprimento do contrato pelo réu-consumidor. A apelante não se insurge contra o enquadramento legal do contrato e a aplicação do regime previsto no art. 20º do DL 133/2009 de 02 de junho. No contexto dos factos provados não nos merece censura o enquadramento legal do contrato. O contrato de crédito ao consumo goza de um regime jurídico especial previsto presentemente no DL 133/2009 de 02 de junho, que transpôs para o direito interno a Diretiva nº 2008/48/CE de 23/04. O diploma entrou em vigor em 01 de julho de 2009, com as ressalvas previstas no art. 37º, e o regime transitório no art. 34º. No caso dos autos, estamos em presença de um contrato celebrado em 29 de junho de 2017, que não reveste a natureza de um contrato de crédito por período indeterminado, por meio do qual o Autor/apelante, no exercício da sua atividade concedeu crédito ao réu, ao qual foi atribuído o nº ..., destinado a fins exclusivamente de consumo pessoal ou para financiamento à aquisição de bens e serviços. O Autor dedica-se à atividade de concessão de crédito destinado a fins exclusivamente de consumo pessoal ou para financiamento à aquisição de bens e serviços (pontos 5 e 6 dos factos provados). O crédito concedido ascendeu ao montante global de €17 500,00 ( ponto 8 dos factos provados). Verifica-se, assim, que o réu, assume a qualidade de consumidor, pois atuou com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional. O autor intervém no contrato, como credor que concede um crédito no exercício da sua atividade comercial ou profissional. O contrato reveste as caraterísticas de «Contrato de crédito», pois com a sua celebração o credor concedeu ao réu, consumidor um crédito sob a forma de mútuo. O crédito concedido ascende a um valor superior a €200 mas inferior a €75.000. Não se verifica qualquer das exclusões previstas no art. 2º e 3º do DL 133/2009 de 02 de junho (art. 1º a 4º do citado diploma). Estando em causa apreciar do não cumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, cumpre ter presente o regime previsto no art. 20º do citado diploma, que sob a epígrafe “Não cumprimento do contrato de crédito pelo consumidor”, prevê: 1 - Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes: a) A falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10 % do montante total do crédito; b) Ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato. 2 - A resolução do contrato de crédito pelo credor não obsta a que este possa exigir o pagamento de eventual sanção contratual ou a indemnização, nos termos gerais”. A norma prevê expressamente as consequências aplicáveis à mora do consumidor no âmbito do contrato de crédito ao consumo. O artigo 20º veio estabelecer especificamente que em caso de ocorrência de incumprimento contratual por parte do consumidor assiste ao credor a possibilidade de: promoção da perda de benefício do prazo do devedor, em relação às prestações vincendas, e a resolução do contrato. Contudo, estabeleceu requisitos para o exercício do direito, determinando a verificação de três condições cumulativas que correspondem (a) à verificação de falta de pagamento de duas ou mais prestações sucessivas e (b) à contabilização do valor que estas representam relativamente ao montante total do crédito que deve exceder, conjuntamente, uma gravidade equivalente 10% e ainda, (c) a concessão, pelo credor ao consumidor, de um prazo suplementar mínimo de quinze dias para que este possa proceder ao pagamento voluntário das prestações em atraso, acrescida de eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato caso não atue dentro do referido período. A interpelação do devedor deve observar certos requisitos, que consistem na concessão pelo credor ao consumidor de um prazo suplementar mínimo de 15 dias para o mesmo proceder ao pagamento voluntário das prestações em atraso, acrescida de eventual indemnização devida e por outro lado, a indicação dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato, caso não cumpra no prazo concedido. A interpelação admonitória reveste os mesmos requisitos quer se trate de perda do benefício do prazo ou resolução do contrato. Como refere ROSÁRIO PEREIRA:”[s]ó após o cumprimento desta obrigação suplementar, e constatando-se a inércia ou não regularização integral do plano prestacional previamente acordado pelo devedor, poderá o credor, justificada e licitamente, resolver o contrato ou promover a perda de benefício do prazo do devedor em relação às restantes prestações”. No mesmo sentido, GRAVATO MORAIS defende: “[s]ó há lugar à perda do benefício do prazo ou à resolução do contrato de crédito depois de esgotado o prazo quinquenal (ou eventualmente superior) concedido sem que se verifique o pagamento dos valores em causa (não havendo) (...) necessidade de qualquer outra declaração subsequente a esta interpelação”[3]. Perante este quadro legal tem a doutrina considerado que o incumprimento “deix(ou) de estar sujeito ao regime geral do art. 781.º CC e 934º, na hipótese de perda de benefício de prazo, ou à cláusula resolutiva aposta invariavelmente nos contratos de crédito ao consumo, que determinava como causa da extinção a falta de pagamento de uma só prestação, verificando-se agora uma restrição assinalável no tocante ao seu exercício, para efeito de proteção do consumidor”[4]. Como refere BRAGA PEREIRA :”a sua razão de ser encontra-se na ideia de maior proteção do consumidor, apesar do não cumprimento contratual por parte do consumidor, até à data da entrada em vigor inexistente, pois prevalecia aqui o regime geral civil”[5]. A verificação dos pressupostos previstos no art. 20º constituem factos constitutivos para o credor exercer os direitos que a lei lhe atribui. A este respeito observa-se no Ac. Rel. Lisboa 27 de junho de 2019, Proc. 23551/12.0T2SNT-A.L1-2 (acessível em www.dgsi.pt): “I – Por força do artigo 20/1 do DL 133/2009, em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias previstas naquele artigo. II – Não se verificando essas circunstâncias, o credor não pode invocar a perda ou a resolução, pelo que não se podem dar por verificados todos os factos constitutivos do direito que decorre dessa perda ou da resolução, e por isso da correspondente obrigação exequenda”. Podemos concluir que perante o incumprimento do contrato pelo consumidor, por falta de pagamento das prestações, assiste ao credor o direito à resolução do contrato, depois de verificar-se o incumprimento definitivo do contrato, o qual apenas ocorre quando preenchidas as condições estabelecidas no art. 20º/1 a) e b) do DL133/2009 de 02 de junho. Retomando o caso dos autos, verifica-se que na sentença se considerou que perante a situação de incumprimento do contrato pelo consumidor, o credor não deu cumprimento à interpelação admonitória, tal como se prevê no art. 20º/1 b) do DL 133/2009 de 02 de junho, o que impedia o reconhecimento do incumprimento definitivo do contrato e dessa forma, não podia o credor reclamar o pagamento das prestações vincendas. Argumenta a apelante, sob a alínea E) das conclusões de recurso, que o capital vincendo e respetivos juros de mora são devidos, por um lado, porque interpelou o réu, comunicando-lhe o incumprimento definitivo e consequente resolução, por outro lado, mesmo que assim não fosse, sempre se venceria a totalidade do capital vincendo através da citação do Réu efetuada nestes autos. Apurou-se: 10º O Réu não efetuou o pagamento das mensalidades contratadas. 11º O Réu apenas efetuou o pagamento de seis das prestações acordadas. 12º O último pagamento efetuado pelo Réu e recebido pelo Autor foi no dia 13/02/2019, no valor de €265,35, não tendo procedido ao pagamento de qualquer outra quantia. 13º O Autor tentou obter o pagamento do débito através de telefonemas, do envio de cartas para cobrança e do envio de acordos de pagamento, no entanto, até à presente data, o Réu não procedeu ao pagamento devido. O contrato de mútuo constitui o contrato mediante o qual uma das partes empresta dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade - art. 1142º CC. Tradicionalmente o mútuo é classificado na doutrina, como um contrato real, na medida em que só se completa com a entrega da coisa. A entrega constitui um elemento associado à formação do contrato, sendo esse, aliás, o sentido que resulta da lei[6]. Constitui nota característica do contrato de mútuo[7], a obrigação de restituir imposta ao mutuário, o que permite qualificar o contrato como um contrato unilateral, pois as obrigações resultantes do contrato surgem unicamente para o mutuário[8]. Como refere MENEZES LEITÃO, a obrigação de restituição: “ destina[-se] a reequilibrar a situação patrimonial das partes, colocando-as na situação em que se encontravam ao tempo da conclusão do negócio[9]. Resulta dos factos provados que se verificou o incumprimento do contrato por parte do réu-consumidor, na medida em que deixou de proceder ao pagamento das prestações convencionadas. No articulado de aperfeiçoamento, alegou o autor que em 08 de outubro de 2019 considerou incumprido o contrato, por resolução. Contudo, não alegou e como tal não logrou provar que procedeu à interpelação do réu no sentido de lhe conceder um prazo não inferior a 15 dias para regularizar a divida, com a expressa advertência da intenção de proceder à resolução do contrato, como se prevê no art. 20º/1 b) do DL 133/2009 de 06 de junho. Provou-se, apenas, que o Autor tentou obter o pagamento do débito através de telefonemas, do envio de cartas para cobrança e do envio de acordos de pagamento, no entanto, até à presente data, o Réu não procedeu ao pagamento devido ( ponto 13 ). Tais comunicações não preenchem os requisitos da lei, na medida em que não se alegou que foram acompanhadas da informação sobre o procedimento a adotar a partir de 08 de outubro de 2019 - resolução do contrato -, quando, nessa data, ainda não estavam vencidas todas as prestações. Como tal, não se pode considerar que tenha ocorrido o incumprimento definitivo do contrato e por isso, não assiste ao apelante o direito de reclamar o pagamento das prestações vincendas, por resolução do contrato. A citação para os termos da ação não tem a virtualidade de transformar o incumprimento, em incumprimento definitivo, atento o regime especial que a lei prevê para o credor proceder à resolução do contrato. Acresce que no plano de pagamento elaborado a última prestação se vencia em 30 de dezembro de 2020 (conforme documento junto com a petição) e a ação foi instaurada em 04 de janeiro de 2021. Na data em que foi instaurada a ação já estava ultrapassado o plano inicial de pagamento das prestações previamente estabelecidas, mas não veio o Autor instaurar a ação com tal fundamento, ou seja, com fundamento no vencimento de todas as prestações. O Autor situa a data de incumprimento definitivo em 08 de outubro de 2019, quando procedeu à resolução do contrato, sendo este o fundamento da ação, tal como alegado no articulado de aperfeiçoamento. A jurisprudência citada sob a alínea F) das conclusões de recurso, não tem aplicação ao caso concreto, porque no citado aresto não se ponderou a aplicação do DL 133/2009 de 02 de junho. Na alínea H) das conclusões de recurso considera o apelante que na sentença não se fez uma correta aplicação dos termos do contrato, pois do mesmo resulta que com o incumprimento definitivo e resolução do contrato, são devidas as prestações vencidas à data da resolução, bem como os encargos e o capital vincendo. Com efeito, na Cláusula 15 do contrato, sob a epígrafe:”Incumprimento Definitivo” prevê-se: 15.1.Verifica-se incumprimento definitivo por parte do CLT quando, cumulativamente i) se encontrar em falta o pagamento de, pelo menos, duas prestações sucessivas, desde que o valor em conjunto das prestações em falta exceda exceda 10% do montante total do crédito; e ii) ter a IC, sem sucesso, concedido ao CLT um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato. 15.2 Com o incumprimento definitivo o Contrato considera-se automaticamente resolvido, sendo devidas todas as prestações já vencidas e não liquidadas acrescidas dos respetivos juros de mora e eventuais encargos contratualmente previstos, bem como o capital vincendo à data da resolução”. Conforme decorre da cláusula 15.2 apenas com incumprimento definitivo se considera automaticamente resolvido o contrato. Porém, resulta da cláusula 15.1 que o incumprimento definitivo só se verifica nas circunstâncias enunciadas no preceito. No caso presente não está demonstrado o incumprimento definitivo, face ao especial regime legal, que aliás foi transposto para as cláusulas do contrato, como também se observou na sentença. A questão é pois prévia e nessa medida não se poderia fazer aplicação das cláusulas contratuais, sob o ponto 15.2. Nas alíneas G), I), J) e K) considera a apelante que o tribunal não atendeu ao regime previsto no art. 781º CC. Quanto a este aspeto é de salientar que apenas em sede de recurso considera o apelante que lhe assiste o direito a reclamar as prestações vincendas por aplicação do regime do art. 781º CC, pretendendo que se considere provado que acionou o regime da perda do benefício do prazo. Efetivamente, a norma do art. 781º C. Civil, ao dispor que “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importará o vencimento de todas”, visa proteger o interesse do credor que, perante a falta de pagamento de uma das frações da dívida, pode ter razões para a perda de confiança na pessoa do devedor, confiança em que se apoia o plano de pagamento. Por isso, concede-se àquele o benefício de não se manter sujeito aos prazos estabelecidos de vencimento das prestações, perdendo este o benefício desses prazos. Quando tal suceda, o credor goza do direito de exigir o pagamento, não só da prestação em falta, mas ainda de todas as restantes, não vencidas, não se operando o vencimento destas “ex vi legis”, mas mediante interpelação do credor, nos termos gerais. A este propósito, escreveu o Professor ANTUNES. VARELA[10]: “[o] vencimento imediato da prestações cujo prazo ainda se não vencera constitui um benefício que a lei concede – mas não impõe – ao credor, não prescindindo consequentemente de interpelação ao devedor. A interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação (realizando as prestações restantes) constitui a manifestação da vontade do credor em aproveitar o benefício que a lei lhe atribui”. Contudo, estando em causa um contrato de crédito ao consumo, ao qual se aplica o regime previsto no DL 133/2009 de 02 de junho, tem de se considerar o regime especial que rege sobre tal matéria, ou seja, o disposto no art. 20º, o qual se aplica nas situações de incumprimento pelo consumidor, sem distinção, quer se trate de resolução do contrato ou do regime da perda do benefício do prazo do devedor. Afasta-se desta forma a aplicação do regime geral do art. 781º CC, permitindo-se que o credor reclame o pagamento integral do capital em divida, mas desde que tenha procedido à prévia interpelação do devedor, nos termos previstos no art. 20º/1 b) do DL 133/2009 de 02 de junho, pois só nessas circunstâncias, sem que se mostre regularizada a divida, se verifica o incumprimento definitivo do contrato. No caso concreto, o apelante-credor, não logrou demonstrar tais factos, constitutivos do direito que se arroga, sendo seu, o ónus a alegação e prova (art. 342º/1 CC) e por isso, não pode pretender obter o pagamento das prestações vincendas, uma vez que não resulta demonstrado o incumprimento definitivo do contrato. Conclui-se que não merece censura a sentença que julgou, em parte, improcedente a pretensão do autor, por não estar demonstrado o incumprimento definitivo do contrato. Improcedem, desta forma, as conclusões de recurso sob as alíneas E) a K). - Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.- III. Decisão:Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença. - Custas a cargo do apelante.* Porto, 21 de março de 2022* * * * * ** ( processei e revi – art. 131º/6 CPC ) Ana Paula AmorimAssinado de forma digital por Manuel Domingos Fernandes Miguel Baldaia de Morais ____________________________________ [1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990. [2] ANTUNES VARELA, et al, Manual de Processo Civil, 2ª edição, revista e atualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1985, pag. 690. [3] FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Crédito aos Consumidores – Anotação ao Decreto-Lei nº 133/2009, Coimbra, Almedina, 2009, p. 100 [4] ANA PATRÍCIA DO ROSÁRIO PEREIRA, O incumprimento do contrato de crédito ao consumo pelo consumidor, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2015, Dissertação de Mestrado, pag. 94; DANIELA SOFIA BRAGA PEREIRA Do Não cumprimento do Contrato de Crédito pelo Consumidor, Universidade do Minho, Escola de Direito, Dissertação de Mestrado, pag. 46 [5] DANIELA SOFIA BRAGA PEREIRA Do Não cumprimento do Contrato de Crédito pelo Consumidor , ob cit., pag. 46 [6] Cfr. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol.II, 4ª edição revista e atualizada, Coimbra, Wolters Kluwer Portugal sob a marca Coimbra Editora, pag. 761 e LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações – Contratos em Especial, vol. III, 7ª edição, Coimbra, Edições Almedina, SA, 2010, pag.393. Este autor dá nota das restantes teses em confronto a respeito da natureza jurídica do contrato, nomeadamente, a tese da natureza consensual do contrato, mas que não foi acolhida no nosso regime jurídico. [7] Nas palavras de Menezes Leitão: “ obrigação essencial ao mútuo” - LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações – Contratos em Especial, ob.cit., pag, 411. [8] Cfr. LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações – Contratos em Especial, ob.cit., pag, 397. [9] LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações – Contratos em Especial, ob. cit., pag, 411. [10] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA Das Obrigações em Geral, Vol. II, 3ª ed., Almedina, Coimbra, pag. 53; no mesmo sentido, na doutrina, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2º, ed. AAFDL, 1994, pag. 193, n. 55 |