Processo nº 386/24.1T8LOU-A.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo de Execução de Lousada - Juiz 1
Relatora: Des. Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Des. António Mendes Coelho
2º Adjunto: Des. Carla Jesus Costa Fraga Torres
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO
Recorrente: a embargada, AA
Recorrido: os embargantes, BB e CC
BB e CC deduziram, por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que lhe foi movida pela exequente, AA, oposição à execução, sustentando inexistir título executivo para cobrança de €5.019,10, porquanto a previsão do n.º 1 do artigo 14-A do NRAU não abrange despesas do senhorio para reparação de danos provocados pelos arrendatários por uso anormal do locado.
A embargada contestou pugnando pela suficiência do título executivo[1] junto com o requerimento inicial da ação executiva.
Considerando o Tribunal a quo fornecer o processo os elementos necessários ao conhecimento de mérito, foi proferida decisão a julgar:
“… parcialmente procedente, por provada a presente oposição, em consequência reduz-se a quantia exequenda para a quantia de € 590,00 (quinhentos e noventa euros) referentes à renda do mês de Fevereiro de 2023, acrescida de juros de mora atá efetivo e integral pagamento.
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Custas nos embargos a cargo da embargada e embargante na proporção do decaimento”.
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Apresentou a embargada (exequente) recurso de apelação, pugnando por que seja revogada a decisão na parte em que julgou inexistente o título executivo pretendendo que seja reconhecida a exequibilidade da quantia de €5.019,10, substituindo-se a decisão recorrida por outra a julgar improcedentes os embargos de executado e a manter a execução pelo valor global, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
“a) A sentença recorrida incorre em erro de julgamento ao considerar inexistente título executivo para a quantia de €5.019,10;
b) Tal valor resulta de obrigações contratuais assumidas no contrato de arrendamento, liquidadas por faturas e notificadas mediante notificação judicial avulsa aos fiadores, com prova documental bastante (fotografias e faturas).
c) pelo que é plenamente aplicável o artigo 14.º-A do NRAU, conjugado com o artigo 703.º n.º 1, alínea d), do CPC, uma vez que abrange também despesas de reparação contratualizadas.
d) A exigência de auto de vistoria assinado pelos inquilinos é inovadora e sem fundamento legal”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
- Da existência de título executivo para o quantum peticionado de reparações no imóvel: se o artigo 14º-A, do NRAU, abrange a indemnização por estragos causados pelo inquilino no locado.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
Foram os seguintes os factos considerados provados com relevância para a decisão pelo Tribunal de 1ª instância (transcrição):
1. A Exequente AA é dona e legítima proprietário da fração autónoma designada pela letra "A", correspondente ao rés-do-chão, destinada a habitação, com acesso direto e independente pelos nºs ... e ... da Rua ..., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ... nºs ..., ... e ... e Rua ..., ..., em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº..., freguesia ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., freguesia ..., dispensado de licença de utilização por ser de construção legal anterior a 1951, com o certificado energético ..., válido até 09/05/2029.
2. Em virtude da celebração de contrato de arrendamento com prazo certo não renovável de um (1) ano entre a Exequente e DD e EE na qualidade de inquilinos e os Executados CC e BB na qualidade de fiadores, comprometeu-se aquele a dar de arrendamento a referida fração, tendo início no dia 01 de março de 2021 a 28 de fevereiro de 2022, conforme contrato de arrendamento junto como doc.1 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos .
3. Acordaram as partes que a fração objeto do contrato de arrendamento celebrado teria por finalidade única e exclusivamente, a habitação permanente dos inquilinos, não lhe podendo ser dado qualquer outro uso.
4. Estipularam ainda as partes que, pela celebração do referido contrato, ficariam os inquilinos e os fiadores ora Executados adstritos ao pagamento das rendas mensais vencidas, no valor mensal de €590,00 (quinhentos e noventa euros), obrigação que deveriam cumprir até ao dia 01 de cada mês aquele a que diz respeito, como resulta da cláusula n.º 3 do contrato de arrendamento junto.
5. Os inquilinos não efetuaram o pagamento à exequente da renda vencida de fevereiro de 2023 (última renda do contrato).
6. A Exequente procedeu a notificação judicial avulsa para notificação dos inquilinos e fiadores, resultando no processo n.º 1333/23.3T8MCN que correu termos no Tribunal da Comarca do Porto Este, M. Canaveses, Juízo Local Cível, tendo obtido uma certidão negativa quantos aos inquilinos e positiva, com data de 21 de novembro de 2023, quanto aos fiadores, ora Executados.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Da falta de título executivo para cobrança de indemnização pelos danos causados pelos inquilinos no locado.
Insurge-se a apelante contra a decisão que extinguiu a execução, julgando o Tribunal a quo inexistir título executivo a sustentá-la, no que concerne ao valor peticionado pelas reparações de estragos no imóvel arrendado, manifestando a aquela entendimento contrário.
Analisemos, pois:
- Da existência de título executivo.
Nos termos do nº4, do art. 10º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos a citar sem outra referência, o credor pode requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida. E estatui o art. 724º que no requerimento executivo, dirigido ao tribunal de execução, o exequente expõe, sucintamente, os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo (nº1, al. al. e)) e formula o pedido (nº1, al. f)), devendo tal requerimento ser acompanhado da cópia ou do original do título executivo, se o requerimento executivo for entregue por via eletrónica ou em papel, respetivamente (nº4 al. a)).
Como esclarece o Ac. RG de 24/3/2022, seguindo o ensinamento de Rui Pinto[2] ““o pedido, a que alude o art. 724º nº 1 f), tem por objecto imediato a realização coactiva da prestação devida, i.e., a “realização de atos materiais de ingerência na esfera patrimonial do devedor, destinados a produzir os mesmos efeitos jurídicos e económicos que adviriam da realização voluntária da prestação”, sendo o objecto mediato tendencialmente o objecto da prestação devida (direito a uma prestação ou fim da execução).
Em função do objecto mediato os pedidos executivos podem consistir no pagamento de quantia certa, na entrega da coisa certa ou na prestação de facto, quer positivo, quer negativo (art. 10º, nº 6).
A causa de pedir é o “o facto jurídico concreto, simples ou complexo, de que decorre o efeito jurídico pretendido pelo autor” (art. 581º nº 4).
Uns defendem que a causa de pedir é o título executivo (no passado, Alberto dos Reis, Lopes Cardoso, Anselmo de Castro).
Outros entendem ser o incumprimento (Teixeira de Sousa, Lebre de Freitas).
Rui Pinto afirma que o “facto jurídico é o facto de aquisição pelo exequente de um direito a uma prestação” (ex. direito de crédito, direito real ou um direito pessoal) sendo o “título executivo (…) apenas um documento, i.e, a forma – legal ou voluntária – de um facto jurídico”. Acrescenta que “a causa de pedir da execução comporta factos principais (atinentes à aquisição do direito) e factos complementares (atinentes à exigibilidade) podendo ser definida como os factos de aquisição de um direito ou poder a uma prestação exigível”[3].
Assim, toda a execução tem de ter por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva (fins esses que, como previsto na lei, podem consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo - v. n.º 5 e 6, do art. 10º).
“O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto (nº5), assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação (art. 53º, nº1).
O objeto da execução tem de corresponder ao objeto da situação jurídica acertada no título (…) É também pelo título que se determina a quantum da prestação”[4].
A ação executiva só pode ser intentada se tiver por base um título executivo (nulla executio sine titulo), o qual, para além de documentar os factos jurídicos que constituem a causa de pedir da pretensão deduzida pelo exequente, confere igualmente o grau de certeza necessário para que sejam aplicadas medidas coercivas contra o executado[5].
O título executivo realiza duas funções essenciais:
- por um lado, delimita o fim da execução, isto é determina, em função da obrigação que ele encerra, se a ação executiva tem por finalidade o pagamento de quantia certa, a entrega de coisa certa ou a prestação de facto;
- por outro lado, estabelece os limites da execução, ou seja, o credor não pode pedir mais do que aquilo que o título executivo lhe dá[6].
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Pela presente execução, a exequente visa obter o pagamento coativo do crédito que afirma existente.
Estamos, assim, perante de uma ação executiva para pagamento de quantia certa e o título executivo que serve de base à execução é composto pelo contrato de arrendamento e pelas comunicações aos devedores do montante em dívida, correspondente a rendas em dívida do referido contrato vencidas e não pagas e valor de reparações de estragos causados ao imóvel, da responsabilidade dos executados, face ao acordado no contrato de arrendamento.
Analisemos da existência ou não de título executivo contra os executados/devedores que permita cobrar o valor das reparações.
O art. 703º, apresenta uma enumeração taxativa (numerus clausus) dos títulos executivos que podem servir de base a uma ação executiva, sendo que cotejando as diversas alíneas do nº1, se constata que a lei estabelece uma distinção entre títulos executivos judiciais, títulos executivos parajudiciais ou de “formação judicial” e títulos executivos extrajudiciais[7].
A questão a apreciar é a de saber se os suprarreferidos documentos juntos com o requerimento inicial da ação executiva são ou não título executivo, isto é, se o invocado título complexo se enquadra na enumeração taxativa (numerus clausus) dos títulos executivos que podem servir de base a uma ação executiva e se o mesmo é dotado de exequibilidade.
Na verdade, para instaurar execução tem o credor/exequente de estar munido de título executivo contra o devedor/executado. Vejamos se, em concreto, o está, como entende a exequente, ou não, como decidiu o Tribunal a quo.
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- Da falta de título executivo.
Insurge-se a apelante/exequente contra a decisão dos embargos que, por inexistir título executivo, julgou os embargos procedentes e extinguiu a execução na parte objeto do recurso.
Conclui o Tribunal a quo ser a execução desprovida de titulo executivo, pois que, podendo, nos termos do disposto no art. 703º, al. d), do CPC, servir de base à execução os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva, de acordo com o artº. 14-A, do Novo Regime do Arrendamento Urbano (doravante NRAU), o contrato de arrendamento urbano, acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário, sendo o título executivo a que se reporta o referido preceito de natureza complexa (integrado pelo contrato de arrendamento e pela comunicação ao devedor), no caso dos autos não se enquadra na referida disposição, pois que a alegada dívida se reporta não a rendas/encargos/despesas que corram por conta do arrendatário, mas a uma indemnização por estragos causados no imóvel, não abrangida naquele preceito.
Nos termos do art. 14º-A, nº 1, do NRAU, desde que um contrato de arrendamento tenha sido formalizado é possível a formação de título executivo contra o arrendatário, sendo a tal necessário o contrato de arrendamento escrito, bem como do comprovativo de comunicação ao arrendatário dos montantes em dívida – cf. artigos 53.º, n.º 1, 703.º, n.º 1, al. d), do CPC e artigo 14.º-A, n.º 1, do NRAU.
Porém, não é qualquer dívida de que o exequente se arrogue em face das cláusulas do contrato de arrendamento a poder ser, nos referidos termos, considerada titulada.
O artigo 14.º-A do NRAU:
i) - abrange as rendas e os encargos ou despesas que, por força da lei ou de cláusula do contrato, estejam a cargo do inquilino, designadamente as indemnizações que a lei fixa, exigindo-se que tais valores constem da comunicação ao arrendatário para que possam ser exigidos em ação executiva.
ii)- a contrario, não são por ele abrangidas indemnizações por estragos no imóvel.
No caso, inexiste título executivo que sustente a execução para pagamento da quantia indemnizatória reclamada, nunca podendo ser exigido coercivamente o pagamento das faturas apresentadas, não podendo a exequente exigir o valor de reparações que entendeu por bem efetuar no locado, a pretexto de se configurar responsabilidade civil contratual dos arrendatários.
Título executivo é “um documento que, reunindo os requisitos formais, faz presumir a existência do direito de crédito e do correlativo dever de prestação material (…), a afirmação legal da exequibilidade de determinados documentos conduz a um juízo de presunção acerca de tais situações, até que, por via dos embargos de executado, seja apurada a ocorrência de factos impeditivos, extintivos ou modificativos do pretenso direito de crédito”[8].
No caso, o título executivo oferecido é o suprarreferido, de natureza complexa, sendo integrado pelo contrato de arrendamento e pela comunicação ao devedor, comunicação essa sujeita às regras previstas no art. 9º, nº 1 do NRAU (carta registada com aviso de receção, maxime notificação judicial avulsa). E, como se considerou no Ac. da RP de 19/11/2020, “I - A partir do início de vigência do art.º 14º-A do NRAU (introduzido pela Lei nº 31/2012, de 14 de agosto), o título executivo para pagamento de rendas … alargou-se, passando a abranger quantias relativas a encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário … A obrigação é certa quando a prestação se encontra qualitativamente determinada (ainda que esteja por liquidar ou por individualizar; é exigível quando se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do art.º 777º, nº 1, Código Civil, de simples interpelação ao devedor; é líquida se o seu quantitativo já está apurado; desde que assim se revele no processo em curso, independentemente dos termos de qualquer processo de execução anteriorl”[9]. Com efeito, é um título complexo, constituído pelo contrato de arrendamento e pela comunicação ao devedor do montante descriminado em dívida, por alguma das vias contempladas nos arts. 9º e 10º do NRAU, pelo que, sem prejuízo da cumulação sucessiva, a quantia exequenda não pode diferir, qualitativa ou quantitativamente, da que lhe foi reclamada[10].
Quando, da própria alegação contida no requerimento executivo e da análise do título dado à execução, se conclua pela inexistência insuperável de factos constitutivos da obrigação exequenda impõe-se ao juiz que obste ao prosseguimento da ação executiva. No caso, resulta a inexistência de título, pois que indemnização por danos causados no imóvel, sempre a apurar, não se enquadra no art. 14º-A do Nrau. Não podem os autos prosseguir os seus termos, dada a ausência de obrigação, o que resulta do alegado no próprio requerimento inicial da ação executiva. Inexiste título executivo do qual resulte a obrigação e a fixação do seu quantum (certo, líquido e exigível).
Na verdade, analisando-se no Acórdão da Relação de Lisboa, de 17/12/2020:
“A ação executiva pressupõe a prévia definição dos elementos, subjetivos e objetivos, da relação jurídica de que é objeto.
Tal definição está contida no título executivo, documento que constitui a base da execução por a sua formação reunir requisitos que a lei entende oferecerem a segurança mínima reputada suficiente quanto à existência do direito de crédito que se pretende executar.
O título executivo constitui um pressuposto processual específico da execução. É ele que determina o fim e os limites da ação executiva (art.º 10.º n.º 5 do CPC). Daí que a sua falta ou insuficiência constitua fundamento para a recusa do requerimento executivo pelo agente de execução (art.º 725.º n.º 1 alínea d) do CPC), para o indeferimento liminar do requerimento executivo pelo juiz (art.º 726.º n.º 2 alínea a) do CPC), para ulterior rejeição oficiosa da execução (art.º 734.º n.º 1 do CPC) e para oposição à execução (artigos 729.º n.º 1 alínea a) e 731.º do CPC).
O CPC em vigor, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, infletiu o sentido de ampla executoriedade de documentos consagrada no anterior CPC, retirando a exequibilidade aos documentos particulares, com ressalva dos títulos de crédito (vide art.º 46.º n.º 1 al. c) do anterior CPC e art.º 703.º n.º 1 do atual CPC).
Visou-se contrariar o aumento exponencial de execuções e o risco de execuções injustas, por ausência de controlo prévio sobre o crédito invocado e de contraditório (cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, que deu origem ao novo CPC).
A executoriedade de documentos particulares está, atualmente, dependente de disposição legal especial, que lhes atribua força executiva (cfr. n.º 2 do art.º 703.º do CPC).
Uma dessas disposições legais especiais, que conferem força executiva a documentos particulares, é a que se contém no n.º 1 do artigo 14.º-A do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU, diploma aprovado pela Lei 6/2006 de 27/2, objeto de alteração pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto e, novamente, pela Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro) que estabelece que: “O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente ás rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário”.(…) O normativo em apreço refere-se a um título executivo de feição complexa, integrado por dois elementos corpóreos: o contrato de arrendamento escrito e o documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida (assim, a decisão sumária proferida neste Tribunal da Relação de Lisboa, datada de 12-12-2008, P.º 10790/2008-7, TOMÉ GOMES)” [11],
bem resulta do referido Acórdão, vir a jurisprudência a revelar situações de títulos executivos corporizados por documentos onde inseridas se encontram cláusulas contratuais, mas a executoriedade está dependente do preenchimento das imposições legais na sua totalidade.
No que concerne a indemnizações, decidiu o Ac. RP de 8/4/2024, proc. 3001/22.4T8MAI-A.P1 que a previsão do art.º 14.º-A/1, do NRAU referente a rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário integra todos os valores que o senhorio poderá exigir no contexto do incumprimento do contrato de arrendamento, da respetiva resolução e da mora na entrega do prédio arrendado subsequente à resolução e, por isso, o título executivo a que alude o art.º 14.º-A do NRAU constitui o exequente no direito a executar o valor correspondente às rendas em dívida, à indemnização equivalente ao valor da renda (art.º 1045.º/1 do Código Civil) e à indemnização em dobro devida a partir do momento da constituição do arrendatário em mora (art.º 1045.º/2 do Código Civil) e o mesmo foi entendido no Ac. da RP de 4/5/2022, que considerou que o título executivo do dito art. 14º-A do NRAU confere ao exequente suporte para a realização coativa do valor inerente às rendas “em dobro”, rectius, “indemnização” pela mora na restituição do locado, a que se refere o artigo 1045º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, a par das “rendas” singulares igualmente em dívida, mas tem de constar da comunicação feita que serão peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, em ordem a que tais valores estejam abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos[12].
Contudo, tais, determinadas, indemnizações decorrem da lei, sendo que a mera existência e junção de contrato de arrendamento e documento comprovativo da comunicação não basta para se formar título executivo quanto a outras indemnizações, como a por estragos causados, pois que a cláusula contratual corporizada no documento não é suficiente, não definindo a obrigação, os danos e o quantum dos mesmos, estando a executoriedade dependente de imposições legais, necessária se mostrando a declaração e definição do direito, com verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, a analisar e decidir na ação própria: a declarativa.
Apesar de a Exequente ter apresentado o contrato de arrendamento e o documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida, não se mostra cumprido o requisito legal previsto no artigo 14-A, do NRAU, a configurar a existência de título executivo, bem transparecendo a sua falta, pois que a obrigação de indemnização não se encontra constituída, dependendo a possibilidade de cobrança coerciva de decisão judicial a reconhecer o direito da senhoria.
Não pode, pois, a decisão recorrida deixar de ser mantida, não estando a execução em condições de prosseguir, por falta de título executivo.
O art. 14.º-A define a estrutura constitutiva do título (integrado por dois documentos: contrato de arrendamento e comunicação do montante em dívida) e delimita a tipologia de débitos relativamente aos quais tal título se torna normativamente operativo (rendas, encargos, despesas que corram por conta do arrendatário)[13], não abrangendo, pois, indemnizações por danos causados pelo inquilino no locado. O NRAU não cria um título executivo para a cobrança de reparações causadas pelo inquilino no locado. A cobrança dessas reparações requer um título executivo diferente, como uma decisão judicial que atribua força executiva a essa obrigação.
Bem considera o Tribunal a quo, o que sequer vem posto em causa no recurso, que os documentos juntos não constituem título que permita cobrar coercivamente indemnização por danos causados ao imóvel, não sendo a obrigação certa, líquida e exigível, e, como “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”[14], nenhum título havendo para obrigação de pagamento das importâncias peticionadas para além do valor da renda, não coberto o peticionado pela exequibilidade do título dado à execução, bem foi a mesma julgada extinta, nessa parte.
Não existe título executivo que permita a cobrança coerciva da quantia de 5.019,10€, pois a mesma tem natureza indemnizatória dos danos sofridos, tendo a exequente de recorrer a ação declarativa para obter sentença a reconhecer o seu direito e a fixar a indemnização. É imprescindível a fase declarativa, a verificar os pressupostos do direito e a fixar o montante para o ressarcimento do dano, com condenação no pagamento. A não se exigir o referido, estaria aberta a porta para, no âmbito executivo, sem prévia declaração judicial do direito e condenação no pagamento, se cobrarem indemnizações sem uma prévia averiguação judicial dos pressupostos da responsabilidade civil e, como tal, do direito do credor, que bem pode não existir.
O referido preceito, como bem conclui o Tribunal a quo, citando RUI PINTO, O novo regime processual do despejo, 2.ª edição, Coimbra editora, 2013, p. 127, confere força executiva a um documento particular, constitutivo da obrigação de pagamento (o contrato de arrendamento) acompanhado da liquidação dos valores em mora, não a liquidação, pelo interessado, do valor de indemnização de que, face ao acordado, se arrogue, nunca o contrato podendo, só por si, constituir título executivo, juntamente com liquidação da exequente, para cobrar coativamente importâncias cuja obrigação de pagamento pelos executados se não encontra definida.
Não se mostram, pois, no caso, preenchidas as imposições legais de que está dependente a executoriedade das cláusulas contratuais afirmadas pela exequente, necessário sendo, concretamente, apurar a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil e fixar o quantum indemnizatório em ação própria, a declarativa.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante.
Porto, 13 de outubro de 2025
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Mendes Coelho
Carla Fraga Torres
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[1] Densificando a pretensão de cobrança coerciva de € 5.019,10 relativos a reparações no imóvel devidas pelos executados, alegou a exequente, no requerimento inicial da ação executiva:
“… os inquilinos deixaram o imóvel no dia 28 de fevereiro de 2022 danificado e em péssimo estado conforme fotografias que ora se juntam como Doc. 2 que se junta e dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
7. Contudo tinham-se obrigam a conservar em bom estado as canalizações de água, esgotos, todas as instalações sanitárias e de luz e respetivos acessórios e mobiliário/equipamentos, estores, paredes, pavimentos, tetos e vidros, equipamentos sanitários, aquecimentos, interruptores, tomadas elétricas e equipamentos de iluminação, que fazem parte do imóvel pagando à sua custa as reparações relativas a danificações e ou avarias, ressalvando as resultantes do desgaste proveniente da sua normal e prudente utilização e do decurso do tempo, e
8. no final do contrato, obrigaram-se a entregar o arrendado e seus equipamentos em bom estado de conservação e limpeza, devoluto de pessoas e bens pessoais, bem como, o que não aconteceu.
9. A Exequente teve de despender a quantia total de €5.019,10 (cinco mil e dezanove euros e dez cêntimos) para reparar os estragos e colocar novamente o imóvel em bom estado de conservação e limpeza, tendo pago as faturas n.º Ft ... no valor de €1.855,00, a faturas n.º Ft ... no valor de €1.584,17, a fatura n.º Ft ... no valor de €678,93 e a faturas n.º Ft ... no valor de €901,00, tudo conforme os doc. 3, 4, 5 e 6, respetivamente, que se juntam e dão por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
10. A Exequente procedeu a notificação judicial avulsa para notificação dos inquilinos e fiadores, resultando no processo n.º 1333/23.3T8MCN que correu termos no Tribunal da Comarca do Porto Este, M. Canaveses, Juízo Local Cível, tendo obtido uma certidão negativa quantos aos inquilinos e positiva, com data de 21 de novembro de 2023, quanto aos fiadores, ora Executados, conforme docs. 7, 8 e 9, constituindo o mesmo como título executivo nos termos do artigo 14º do Nrau”.
[2] Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, 2018, p. 47e seg.
[3] Ac. da RG de 24/3/2022, proc. 1479/21.2T8VNF-A.G1 (Relatora: Margarida Almeida Fernandes)
[4] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág 33.
[5] Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2016, Almedina, pág 43-44.
[6] Ibidem, pág 48.
[7] Ibidem, pág 52.
[8] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 71.
[9] Ac. RP de 19/11/2020, proc. 13550/19.6T8PRT-A.P1, in dgsi.pt
[10] Abílio Neto, Despejo de Prédios Urbanos Lei nº 79/2014 Anotado, 1ª Edição, Abril 2016, Ediforum, pág. 34.
[11] Ac. RL de 17/12/2020, proc. 2790/19.8T8OER-C.L1-2, in dgsi.pt onde se sumaria “O artigo 14.º-A do NRAU refere-se a um título executivo de feição complexa – integrado pelo contrato de arrendamento escrito e pelo documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante dos valores em dívida, decorrentes do contrato de arrendamento – o qual pode ser gerado, quer face ao arrendatário, quer face ao fiador, desde que, para tal, sejam observadas as condições legais para o efeito, a saber: a) A junção de contrato de arrendamento; b) A junção de comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida; c) Que ao fiador seja dada a conhecer tal comunicação”.
[12] Ac de 4/5/2022, proc. 1413/21.0T8VLG-D.P1, acessível in dgsi.pt
[13] Ac. do STJ de 21/6/2022, proc. 9443/20.2T8SNT-A.L1.S1, in dgsi.pt. Cfr. neste sentido, entre muitos, Ac. RP de 4/5/2022, proc. 1413/21.0T8VLG-D.P1 - “O título executivo a que se reporta o art. 14º-A do NRAU tem natureza complexa, sendo integrado pelo contrato de arrendamento e pela comunicação ao devedor (…) Não obstante, tem de constar da comunicação feita que serão peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, em ordem a que tais valores estejam abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos” , todos acessíveis in dgsi.
[14] Artº. 10º. nº. 5, do CPC.