Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3526/16.0T8MAI-A.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
PARTES COMUNS
DESPESAS DE CONSERVAÇÃO
NATUREZA DA PRESTAÇÃO
Nº do Documento: RP201907103526/16.0T8MAI-A.P2
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º700, FLS.35-50)
Área Temática: .
Sumário: I - A obrigação de pagamento das despesas com partes comuns de um imóvel em regime de propriedade horizontal constitui uma típica obrigação propter rem.
II- Todavia, a sua natureza ambulatória ou não ambulatória nem sempre se apresenta com a mesma linearidade.
III- Assim, quando se trate de despesas relativas à conservação das partes comuns (conservação das coberturas fachadas etc.) do edifício, importa distinguir se as reparações estavam ou não executadas e concluídas à data da alienação da fracção.
IV- No primeiro caso (reparações ainda não executadas ou não concluídas) o encargo das respectivas despesas, na proporção respectiva, deve ser suportado, salvo acordo em contrário, pelo adquirente, pois que, dispunha objectivamente de todos os elementos para se aperceber da existência da obrigação, além de que será ele a retirar proveito do gozo do bem ao qual foi incorporada aquela beneficiação.
V- No segundo caso (reparações já executadas e concluídas) o encargo deve ser suportado, salvo acordo em contrário, pelo alienante, pois que, o adquirente não dispõe agora de quaisquer elementos objectivos que indiciem ou denunciem a existência da obrigação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3526/16.0T8MAI-A.P2-Apelação

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Execução da Maia-J2

Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B… e C…, executados na execução movida pelo Condomínio “D…” sito na rua …, sito na Rua … e Travessa …, vêm deduzir embargos de executado pedindo a extinção da execução, bem como a suspensão dos termos desta.
Alegam, para o efeito, que o imóvel foi bem próprio da executada mulher, não sendo o executado parte legítima, para além disso o mesmo foi transmitido a terceiro pela executada mulher, sendo o comprador o responsável pelo pagamento das quotas referentes a obras, conforme foi acordado por ocasião da venda.
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Notificado veio o exequente contestar, aceitando a ilegitimidade do executado marido e impugnando o demais, alega que a venda a terceiro ocorreu após a constituição e vencimento da obrigação de pagamento, sendo irrelevante em relação a si qualquer acordo em sentido contrário.
Pugna pela improcedência dos embargos.
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Foi proferido saneador - sentença que declarou o executado/embargante C… parte ilegítima, declarou extinta a execução em relação à reclamada quantia de €700,00, por falta de título executivo e, no mais, declarou improcedentes os embargos.
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Dessa decisão foi interposto recurso pela embargante B… limitado apenas à parte decisória que declarou a improcedência dos embargos.
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Na procedência do referido recurso foi proferido acórdão que, revogando a decisão, determinou o prosseguimento dos autos para julgamento, por entender que a decisão em relação ao apuramento da responsabilidade pelo valor das quotas respeitantes a obras carecia de produção de prova.
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Nessa sequência foi proferido despacho saneador que definiu o objecto de litígio e elencou os temas de prova.
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Teve lugar a audiência de julgamento que decorreu com observância do legal formalismo.
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A final foi proferida decisão que, sem prejuízo da parcial procedência dos embargos já decidida em 12.04.2018 e devidamente transitada, julgou estes improcedentes, por não provados e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução contra a embargante/executada B… para cobrança coerciva da quantia de €6.228,80, acrescida de juros desde a data de vencimento da dívida – 15/06/2013.
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Não se conformando com o assim decidido veio a executada/embargante B… interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
A) – Vem a Ora Alegante, recorrer da sentença proferida nos autos à margem referenciados em virtude de não se conformar com a mesma, já que nela é feita uma errada interpretação da prova constante do processo e uma errada aplicação do direito.
B) - A Ora Recorrente, executada nos autos de que se recorre, foi proprietária da fracção CV correspondente à Habitação .. do … andar centro esquerdo traseiras, sita na Rua …, n.º ... da freguesia …, até 09 de Janeiro de 2014, data em que vendeu a fracção a E….
C) - As obras da fachada do prédio que foram aprovadas só tiveram o seu início quatro meses após a venda da fracção, ou seja em maio de 2014.
D) - A Ora Recorrente não chegou a usufruir, em momento algum, das alterações e das melhorias realizadas no edifício.
E) – A decisão de que se recorre merecia ter tido uma apreciação mais criteriosa, por forma a ter sido interpretada correctamente. O que não aconteceu.
F) - De facto, não pode a Embargante, Ora Recorrente, conformar-se com a matéria de facto constante das alíneas 1) e 3) dos factos não provados.
G) - Matérias que, desde logo, se encontram em contradição com o depoimento da testemunha G… que intermediou o negócio com o vendedor, afirmando a mesma com toda a convicção que o preço pelo qual o imóvel foi vendido foi bastante mais baixo do preço real de mercado mas que compensaria as obras na fachada visto que o vendedor já não iria ter aquele custo.
H) – E que confirmou que o comprador iria assumir as obras na fachada, que por isso é que o vendedor desceu tanto ao valor da casa, isto é, para compensar a descida de preço que iria fazer, o custo da obra seria assumido pelo cliente comprador.
I) - Ficou provado igualmente através da testemunha C…, que se desceu bastante ao preço de venda do imóvel em causa precisamente por causa das obras na fachada, que ficariam por conta do comprador.
J) – Admitindo essa testemunha que se não houvesse o compromisso de o comprador assumir as obras, nunca teria aceite vender o imóvel por esse preço e que depois comunicou ao condomínio a venda, porque entregou ao condomínio uma cópia da escritura e disse que a partir daquela data não tinha mais nada a ver com o prédio e que o comprador é que assumia as obras.
L) - Pelo que, a matéria constante das alíneas 1) e 3) dos factos não provados deveria ter sido dada como provada.
M) - Pois que efectivamente a Recorrente/Embargante só aceitou baixar o valor do imóvel para o valor por que efectivamente celebrou o contrato de venda, simplesmente porque o comprador se comprometera com o pagamento do montante referente às obras na fachada que cabiam à fracção em causa.
N) - Ficou também provado, através de depoimento da testemunha F…, que a primeira notificação para pagamento que a empresa de condomínio enviou foi precisamente para o comprador, que o vendedor, à data da venda tinha as suas quotas mensais para as despesas correntes totalmente regularizadas e que as obras se iniciaram em maio de 2014 e terminaram em Junho de 2015.
O) – Que para além do teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas aqui referidas, há um documento que é emitido pela empresa construtora que realizou as obras na fachada e que se encontra junta aos autos, que nos atesta que, de facto, as obras da fachada do prédio se iniciaram em maio de 2014 e estiveram concluídas em Junho de 2015.
P) - Pelo que a Ora Recorrente não chegou a usufruir, em momento algum, das alterações e das melhorias realizadas no edifício.
Q) - A obrigação constante do artigo 1424.º n.º 1 do C.C. - responsabilidade pelo pagamento das despesas de condomínio - constitui uma obrigação propter rem, ou seja, uma obrigação que é inerente à coisa em si–neste caso, à fracção de um prédio–e não à pessoa do seu proprietário.
R) - Esta obrigação de contribuir para estas despesas das partes comuns é uma típica obrigação propter rem.
S) - Este tipo de obrigação define-se como “aquela cujo sujeito passivo (o devedor) é determinado não pessoalmente (“intuitu personae”), mas realmente, isto é, determinado por ser titular de um determinado direito real sobre a coisa.
T) - A obrigação de contribuir para as despesas, devidas por obras de conservação e fruição das partes comuns do edifício em propriedade horizontal é, assim, uma obrigação que recai sobre aquele que for titular da fracção integrada no condomínio no momento em que haja lugar ao pagamento da parte do preço que caiba efectuar para a realização das aludidas obras.
U) – Se entre a deliberação de realizar as obras e a conclusão da respectiva empreitada, mas antes de determinado condómino pagar a parte que lhe compete, proceda este condómino à transmissão da sua fracção, será o novo condómino o responsável pela liquidação da parte do preço imputado à fracção de que é titular.
V) - Não se justifica que o transmitente tenha de contribuir para uma despesa de que nenhum proveito lhe poderá advir, uma vez que deixou de usufruir do gozo do prédio.
X) - A transmissão do direito real de cuja natureza a obrigação emerge implica automaticamente a transmissão desta para o novo titular, ainda que o nascimento da obrigação seja anterior a essa titularidade.
Z) - Aquando da alienação do imóvel não tinham ainda sido iniciadas as obras, pelo que não faria sentido que contribuíssem para uma despesa da qual nenhum proveito lhes poderia advir, visto que já não usufruíam do gozo do prédio.
AA) – Pelo que andou mal o tribunal “a quo” ao fazer uma errada interpretação à norma do artigo 1424º do Código Civil e uma incorrecta aplicação do direito face ao caso concreto dos autos.
AB) – Isto porque não restam dúvidas que os novos proprietários do imóvel foram os únicos que de facto beneficiaram com o aumento de valor que a obra acabou por trazer à fracção.
AC) – E, ao invés, a Recorrente não usufruiu, em momento algum, das alterações e das melhorias realizadas no edifício.
AD) - A esmagadora maioria da doutrina e jurisprudência concorda que esta é uma obrigação propter rem ou real, dado que é a titularidade do direito real (propriedade da fração autónoma) que determina quem é o devedor da obrigação.
AE) - Sendo de concluir que o actual e novo proprietário da fracção será assim o devedor da obrigação de pagamento das quotas de condomínio extraordinárias
AF) - Havendo transmissão da propriedade, através da celebração de um contrato de compra e venda, é também transmitida para o comprador a obrigação de pagar as quotas de condomínio associadas à realização das obras.
AG) - No que respeita às obrigações que decorrem do uso normal do bem, tendo como contrapartida a quota paga ao condomínio, em regra, mensalmente, para fazer face às despesas com a limpeza das partes comuns, manutenção geral e custos de administração é uma obrigação ob rem ou propter rem de dare, não ambulatória, já que, apesar da sua ligação ao direito real, não o acompanha em caso de transmissão.
AH) - Isto por se tratarem, estas, de prestações que são devidas como contrapartida da fruição das partes comuns.
AI) - O que não corresponde à situação concreta da Recorrente, visto que a mesma não era devedora de nenhum montante referente às despesas mensais correntes e decorrentes do uso normal do bem.
AJ) - No que toca às obrigações que impliquem melhorias, alterações e reparações das partes comuns do edifício em propriedade horizontal, se entre a deliberação de realizar as obras e a conclusão da respectiva empreitada, mas antes de determinado condómino pagar a parte que lhe compete, proceder o condómino à transmissão da sua fracção, será o novo condómino o responsável pela liquidação da parte do preço imputado à fracção de que é titular.
AL) – Ao adquirir a fracção, o novo proprietário se desconhecia a necessidade de obras no prédio, por falta de informação ou por eventualmente ela não ser manifesta, não podiam ignorar que essa necessidade se poderia colocar em qualquer momento.
AM) - E, por conseguinte, àquela obrigação de comparticipar na sua realização não iriam subtrair-se, do mesmo modo que não iriam menosprezar a correspondente beneficiação das partes comuns do edifício.
AN) – Este entendimento foi adoptado em variadíssima jurisprudência bem como parte da doutrina, nos termos já supra expostos.
AO) – Ora, com a venda da fracção, existe uma transmissão automática da responsabilidade do pagamento das quotas para o novo proprietário.
AP) - E com a celebração do contrato passa o comprador a ser responsável pela liquidação das quotas de condomínio extraordinárias para pagamento das obras nas partes comuns do prédio, mesmo aquelas já vencidas e não pagas.
AQ) - Pode acontecer que, aquando do pagamento de despesas extraordinárias por obras nas partes comuns, ocorra a transmissão de uma fracção por um determinado condómino,
AR) – E nessa hipótese, esses custos com o pagamento de despesas extraordinárias, salvo acordo em contrário, devem ser suportados, na proporção correspondente, pelo novo condómino tendo em conta que será este a retirar proveito do gozo do bem ao qual foi incorporada aquela beneficiação.
AS) - Sendo este o entendimento que nos parece mais razoável sob o ponto de vista de quem tira proveito do gozo do imóvel.
AT) - É de concluir, por ser este o entendimento de grande parte da jurisprudência e doutrina, que as obrigações que impliquem melhorias, alterações ou reparações nas partes comuns de imóvel constituído em propriedade horizontal, transitam para o novo proprietário, pois será ele a tirar proveito delas, mesmo que tenham sido aprovadas, em assembleia de Condóminos, pelo anterior proprietário.
AU) – Que é a situação real dos presentes autos e da Ora Recorrente, já que, aquando da transmissão do imóvel, ainda não tinham sido iniciadas as obras em causa, nas partes comuns do edifício.
AV) - Pelo que não faria sentido que a Recorrente contribuísse para uma despesa da qual nenhum proveito lhe poderia advir, visto que já não usufruía do gozo do prédio.
AX) – Porque, pese embora todas as teorias existentes e supra expostas, ao decidir-se como se decidiu, não se fez a correta interpretação do direito aplicável ao caso em apreço.
AZ) - Considera a Recorrente que andou mal o tribunal recorrido na interpretação do direito aplicável ao caso em questão, ao entender que não é pressuposto que as obras tenham sido efectivamente executadas em data anterior à transmissão da fracção.
BA) – Devendo ter considerado que as obrigações que impliquem melhorias, alterações ou reparações das partes comuns do prédio, mesmo que tenham sido aprovadas, em assembleia de Condóminos, pelo anterior proprietário, transitam para o novo proprietário, pois será ele a tirar proveito delas.
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Devidamente notificado contra - alegou o Réu concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- saber se a executada mulher é, ou não, é responsável pelo pagamento das despesas de condomínio referentes a obras nas partes comuns do edifício em que se integrava a sua fracção.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
Factos provados
a) A fracção autónoma registada sob o n.º336-CV da Conservatória de Registo Predial de Valongo, freguesia de …, encontra-se registada em nome de E… por apresentação datada de 09.01.2014, por aquisição por compra a B… (cfr. doc. n.º1 junto com o requerimento executivo).
b) De Acta da Assembleia de Condóminos com n.º3/2013, com data de 18.04.2013, consta como teor que reuniram os condóminos do condomínio exequente tendo como pontos 1º e 2º da ordem de trabalhos, respectivamente, a apresentação, discussão e votação de orçamentos para realização de obras de conservação e manutenção nas fachadas, cobertura e garagem do edifício e (ponto 2º) discussão e análise de outros assuntos; no contexto da discussão do ponto 1º foram apresentados quatro orçamentos para a execução das obras; após votação, foi aprovada a proposta da empresa Lúcios, S.A., com dois votos contra; mais consta da acta que fica anexada à acta a proposta e a respectiva distribuição pelas fracções, ficando a administração mandatada para utilizar o fundo comum de reserva para fazer face à obra e na gestão financeira da mesma; os condóminos deverão efectuar o pagamento da sua quota - parte até ao dia 15 de Junho de 2013; até igual data ficaram os condóminos autorizados a propor o pagamento em prestações no prazo máximo de 18 meses (cfr. doc. n.º 2 junto com o requerimento executivo).
c) Do anexo à acta aludida em b) consta a conta - corrente em processamento, com menção, em relação à fracção “CV” do valor em débito de €6.228,80 (cfr. doc. anexo ao documento n.º2 junto com a execução).
d) Do art. 17º, n.º2 do Regulamento de Condomínio, cuja aprovação foi deliberada na reunião da Assembleia de Condóminos realizada a 24 de Janeiro de 2013, a cuja acta se encontra anexado, consta que caso o atraso na liquidação da quota do condomínio ultrapassar os seus meses, deverá o administrador tomar as providências adequadas à cobrança coerciva das mesmas e sem aviso prévio, acrescendo ao valor em dívida juros de mora, as multas previstas no ponto 1 e ainda a quantia de €700,00 para despesas do processo, sem prejuízo da obrigação do faltoso liquidar outras despesas que venham a surgir no decorrer do processo (cfr. acta n.º1/2013 e documento anexo, juntos com o requerimento executivo).
e) Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 9 de Janeiro de 2014, em que intervieram, como primeiro outorgante, B…, como segundo outorgante E… e como terceiro outorgante C…, foi pela primeira outorgante declarado que pelo preço já recebido de €32.500,00 vende ao segundo outorgante a fracção autónoma identificada pelas letras “CV” do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Valongo sob o n.º336-CV, registada a favor da primeira outorgante, declarando o segundo que aceita o contrato nos termos exarados; o terceiro outorgante declarou, na qualidade de cônjuge, que presta consentimento à venda (cfr. doc. de fls. 18 a 21, cujos demais termos se dão por integralmente reproduzidos).
f) Em data prévia à transmissão do imóvel, aludida em e), a embargante colocou a fracção à venda pelo preço original de €50.000,00, tendo este sido vendido por €32.500,00 (art. 12º e 13º do requerimento inicial).
g) O comprador da fracção ia adquirir, à parte, uma fracção destinada a garagem, de que o imóvel vendido não dispunha (parte do art. 14º do requerimento inicial).
h) Na data aludida em e) – realização da escritura pública–as obras ainda não se tinham iniciado, tendo as mesmas decorrido entre Maio de 2014 e Junho de 2015 (art. 16º, com esclarecimento).
i) O marido da embargante conversou com a agência imobiliária a respeito da dívida existente ao condomínio (parte do art. 18º do req. inicial).
j) O condomínio dirigiu uma interpelação para pagamento ao comprador E…, que, com data de 2014.02.28, remeteu carta aos embargantes, informando que em 13.02.2014 tinha sido interpelado pelo condomínio para procedente ao pagamento das despesas com obras do condomínio, devido até 15.06.2013, no valor de €6.228,80, referindo o comprador que a responsável pelo pagamento da despesa anterior a 09.01.2014 é a vendedora, porquanto a escritura refere uma venda livre de ónus e encargos (parte do art. 19º do req. inicial e documento de fls. 22, junto pela embargante, cujo restante teor se tem por reproduzido).
k) A embargante não pediu o pagamento da quantia aludida em c) em prestações (art. 9º da contestação).
Factos não provados
Não resultou provado que:
1) A executada aceitou baixar o valor atendendo ao montante que iria ser necessário pagar para as obras a realizar, facto de que o comprador ficou bem ciente (parte do art. 14º e art. 15º do requerimento inicial).
2) As obras tiveram início em Outubro de 2014 e cessaram em Agosto de 2015 (versão originária do art. 16º do requerimento inicial).
3) A dívida ao condomínio na quota-parte referente à fracção da embargante sempre foi do conhecimento das partes intervenientes no negócio (parte do art. 18º do req. inicial).
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira a questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões a recorrente impugna a decisão da matéria de facto tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPCivil.
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, a embargante recorrente não concorda com a decisão sobre a fundamentação factual relativa aos pontos 1º a 3º do elenco dos factos não provados que no seu entender deviam ter sido dados como provados.
Quid iuris?
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[5]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à embargante apelante, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
Os pontos 1 a 3 do elenco dos factos não provados têm, respectivamente, a seguinte redacção:
1) A executada aceitou baixar o valor atendendo ao montante que iria ser necessário pagar para as obras a realizar, facto de que o comprador ficou bem ciente (parte do art. 14º e art. 15º do requerimento inicial).
2) As obras tiveram início em Outubro de 2014 e cessaram em Agosto de 2015 (versão originária do art. 16º do requerimento inicial).
3) A dívida ao condomínio na quota-parte referente à fracção da embargante sempre foi do conhecimento das partes intervenientes no negócio (parte do art. 18º do req. inicial)”.
Entende a embargante apelante que tais factos deviam ter sido dados como provados.
Para o efeito, convoca do depoimento das testemunhas G… funcionária da imobiliária que intermediou a venda F… marido da embargante e F… profissional da empresa que, à data, geria o condomínio do prédio aqui em causa.
Importa, desde logo, assinalar que não se percebe a impugnação do ponto 2., quando o tribunal recorrido já deu como provado que as obras decorreram entre Maio de 2014 e Junho de 2015 [cfr. alínea h) dos factos provados] que, não tendo sido objecto de impugnação, está concordante com o depoimento da testemunha F… e com o documento emitido pela empresa construtora que realizou as obras na fachada do imóvel.
Como assim, não existe fundamento probatório convocado pela recorrente para se dar como provado o ponto 2. do elenco dos factos não provados.
No que tange aos pontos 1. e 3. também os depoimentos das testemunhas G… - funcionária da imobiliária que intermediou a venda – C… - marido da embargante não contrariam o iter decisório da fundamentação factual acolhido pelo tribunal recorrido.
Efectivamente e no que à testemunha G… diz respeito, em nenhum momento do seu depoimento refere ter estado presente em qualquer negociação entre o comprador da fracção e a embargante e, concretamente, sobre quem assumiria o pagamento do valor das obras. O que a testemunha em causa se limitou a afirmar é que a intenção da embargante era que tal pagamento fosse da responsabilidade do comprador e que isso, pensa, deverá ter sido transmitido pelo seu colega ao comprador.
Portanto, para além da referida testemunha não saber se esse assunto terá sido abordado pelo seu colega da imobiliária junto do comprador da fracção, o certo é que ainda que assim tivesse sido não se sabe se aquele anuiu a tal acordo.
No que se refere ao depoimento da testemunha C…, para além de ser marido da embargante e, por conseguinte, sem a equidistância necessária em relação ao objecto do litígio, a verdade é que também, sob este conspecto, nada se retira do seu depoimento.
Com efeito também esta testemunha não refere ter estado presente em qualquer negociação sobre o preço da venda da fracção com o comprador e que compromissos é que este assumiu, nomeadamente o pagamento, perante o condomínio, das despesas relativas à sua quota parte das obras na fachada do imóvel.
Esta testemunha apenas relata uma conversa com a imobiliária que estava a intermediar a venda, onde lhe terá sido dito que o comprador assumia o pagamento da quota parte das obras em causas, facto este que, aliás, já consta da al. i) da fundamentação factual. Repare-se, porém, que a testemunha refere que só esteve com o comprador no acto da escritura, ou seja, nada foi negociado de forma directa entre o comprador a embargante e o seu marido, ainda que também com a presença de funcionários da imobiliária.
Desta forma não se pode, com depoimentos deste jaez, adquirir a convicção segura de que houve qualquer negociação do preço da venda que reflectisse o assumir por parte do comprador do pagamento da dívida ao condomínio na quota-parte referente à fracção da embargante relativa ao custo das obras na fachada do imóvel nem que a existência dessa dívida fosse do conhecimento do comprador.
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Decorre do exposto que a apreciação da Mmª juiz a quo - efectivada no contexto da imediação da prova-, surge-nos assim como claramente sufragável, não sendo os depoimentos indicados pela recorrente bem como a prova documental capazes, para além de toda a dúvida razoável, sustentar a tese que por ela vem expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que pois que afirmar ter a Mmª juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem, não existindo, portanto, fundamento probatório convocado pela recorrente para que este tribunal dê como provados os pontos 1 a 3 do elenco dos factos não provados.
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Improcede, assim, as conclusões C) a O) formuladas pela recorrente.
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A segunda questão que vem colocada no recurso prende-se com:
a) - saber se a executada mulher é, ou não, é responsável pelo pagamento das despesas de condomínio referentes a obras nas partes comuns do edifício em que se integrava a sua fracção.
Na sentença recorrida entendeu-se que, por tal pagamento, era responsável a executada mulher não obstante ter ela procedido à venda da fracção de que era proprietária em 09/01/2014.
Deste entendimento dissente a recorrente alegando, em suma, que não pode ser responsabilizada pelo pagamento das citadas despesas por as obras em causa terem sido iniciadas e concluídas já em data posterior a alienação da fracção, além de que, como é evidente já não beneficiou das obras realizadas.
Quid iuris?
Como decorre do artigo 703.º, n.º 1, do C.P.Civil, aí se enumeram quatro espécies de título executivo:
a) -sentença condenatória;
b) -o documento exarado ou autenticado por notário;
c) -os títulos de crédito;
d) -o título executivo por força de disposição especial.
No caso em apreço o título dado à execução é uma acta de reunião da assembleia de condóminos à qual, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, do D. Lei n.º 268/94, de 25.10, lhe é conferida força executiva, encontrando-nos, pois, perante a última das estatuições referidas no normativo citado da lei adjectiva.
Com efeito, dispõe o artigo 6.º nº 1 do citado D. Lei que “a acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota - parte”.
No que à aqui opoente concerne, a execução funda-se no teor da acta nº n.º 3/2013, com data de 18/04/2013 a qual aprovou o orçamento para a realização de obras no edifício.
Como resulta da factualidade atrás descrita a opoente foi proprietário da fracção “CV” do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de … sob o n.º336-CV até ao dia 9 de Janeiro de 2014, data em que a vendeu a E….
Significa, portanto, que o que importa dilucidar é saber se caberá à apelante a responsabilidade pelo pagamento do montante referente a despesas a realizar na execução de obras do edifício, deliberadas em assembleia de condóminos em 18/04/2013, data em que ainda era proprietário da fracção em questão.
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Analisando.
Na propriedade horizontal coexistem dois tipos de propriedade: a propriedade exclusiva da fracção de certo condómino e a compropriedade de todos os condóminos relativamente às partes comuns.
O que caracteriza a propriedade horizontal e constitui razão de ser do respectivo regime é o facto de as fracções independentes fazerem parte de um edifício de estrutura unitária.
A propriedade horizontal pressupõe a divisão de um edifício através de planos ou secções horizontais, por forma que, entre dois planos se compreendam uma ou várias unidades independentes, ou ainda através de um ou mais planos verticais, que dividam igualmente o prédio em unidades autónomas.
Logo, em alguns casos, a chamada propriedade horizontal, pode ser propriedade vertical. A divisão através de um ou vários planos é a única possível quando se trate de edifícios de um só piso”.[6]
Ora, no regime da propriedade horizontal conflui um feixe de direitos de que é titular o proprietário de fracção autónoma, [sem que tal situação se confunda com a compropriedade]; a titularidade de um direito de propriedade, exclusivo relativamente à fracção autónoma, e compropriedade com os demais condóminos, relativamente às partes comuns.
Oliveira Ascensão[7], depois de alusão histórica ao instituto, afirma acerca da natureza jurídica da propriedade horizontal:
Cremos porém que a qualificação correcta desta situação é a de propriedade especial. Embora se conjuguem propriedade e compropriedade a propriedade é o fundamental, sendo a compropriedade meramente instrumental. Escopo da propriedade horizontal não é criar uma situação de comunhão: é permitir propriedades separadas, embora em prédios colectivos (…).
Sendo assim, há nuclearmente uma propriedade, mas esta é especializada pelo facto de recair sobre parte da coisa e de envolver acessoriamente uma comunhão sobre outras partes do prédio. Estas especialidades levam a que a lei tenha tido a necessidade de recortar um regime diferenciado. Isto é típico justamente das propriedades especiais, de que a propriedade horizontal nos oferece o melhor exemplo…”.
O artigo 1424.º, nº1, do Código Civil estatui:
Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções”.
No caso em apreço estamos perante despesas relativas a realização de obras nas partes comuns do edifício em que se integra a fracção em causa, ou seja, estamos perante uma típica obrigação ob rem ou propter rem, sujeita, portanto, ao regime das obrigações reais.
Na lição do Prof. Antunes Varela[8], a obrigação diz-se real quando é imposta em atenção a certa coisa, a quem for titular dela e isto porque, “dada a conexão funcional existente entre a obrigação e o direito real, a pessoa do obrigado é determinada através da titularidade da coisa”.
A obrigação existe por causa da res, sendo “obrigado quem for titular do direito real, havendo assim uma sucessão do débito fora dos termos normais da transmissão das obrigações”.
A mesma ideia é também salientada, com toda a minúcia, por Manuel Henrique Mesquita[9], na procura da sua caracterização: “Trata-se de vínculos jurídicos por virtude dos quais uma pessoa, na qualidade de titular de um direito real, fica adstrita para com outra (titular ou não, por sua vez, de um ius in re) à realização de uma prestação de dare ou de facere”.
O pagamento de despesas resultantes do uso das partes comuns de um prédio em regime de propriedade horizontal foi, aliás, com toda a profundidade, objecto de estudo e de análise por parte deste último civilista coimbrão na obra citada na nota 4.
Todavia, a maior dificuldade está em saber, ao certo, que tipos de despesas estão em jogo: despesas normais, correntes, ou despesas resultantes de reparações estruturais, de grande monta.
A dificuldade ainda se adensa mais em relação a estas últimas, perspectivando-as no caso de venda de fracções, se equacionarmos o problema da justiça da solução a encontrar, para se saber se as mesmas devem ser postas a cargo do adquirente ou do alienante.
No fundo, trata-se aqui, analisando o caso concreto, podermos chegar à conclusão de que a obrigação em causa (de pagamento da quota-parte) reveste a característica da ambulatoriedade ou não, problema este de difícil solução, a merecer ponderação casuística, como enfatiza o indicado Professor Henrique Mesquita[10] em referência que põe a nu a seguinte realidade: “ (…) a ambulatoriedade não é inerente ou característica essencial de todas obrigações propter rem, no sentido de que a transmissão do direito real de cujo estatuto a obrigação emerge implica automaticamente a transmissão desta para o novo titular do uis in re. Se há obrigações em que essa ambulatoriedade se impõe, outras existem, pelo contrário, que devem considerar-se intransmissíveis, por ser essa a solução que melhor se harmoniza com o vários interesses a que importa conferir tutela adequada”.
Ideia com a qual estamos de acordo e que revela a grande preocupação de encontrar a solução justa a partir do caso concreto, e não partindo de pré-juízos puramente conceituais e desfasados da realidade.[11]
Ora, o Prof. Henrique Mesquita, no sentido de encontrar um critério geral que permita todos os casos em que o problema se possa colocar, defende as seguintes soluções:
a)- Devem considerar-se ambulatórias todas as obrigações reais de “facere” que imponham ao devedor a prática de actos materiais na coisa que constitui objecto do direito real (ilustrando depois esta solução como alguns exemplos);
b)- Devem considerar-se não ambulatórias todas as demais obrigações “propter rem”, com excepção daquelas cujos pressupostos materiais se encontrem objectivados na coisa sobre que o direito real incide;
c)- (…).[12]
No âmbito das não ambulatórias este professor ilustre com o exemplo da obrigação de os condóminos de edifícios em regime de propriedade horizontal pagarem, proporcionalmente ao valor das respectivas fracções autónomas, a parte que lhes couber nas despesas, já efectuadas, para os fins indicados no nº 1 do artigo 1424.º do C.Civil (despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum).
Adverte, porém, o mesmo mestre, que importa observar, que no campo das obrigações que não vinculam o devedor propter rem a praticar actos materiais na coisa que constitui o objecto do direito real, são concebíveis situações em que a ponderação dos interesses em jogo impõe que a dívida se transmita juntamente com o direito real de cujo estatuto emerge.
E para ilustrar esta situação dá o seguinte exemplo:
Suponhamos que o telhado de um edifício em regime de propriedade horizontal foi danificado por uma intempérie e que o administrador do condomínio concluiu (…) um contrato de empreitada que tem por objecto as obras de reparação a que é necessário proceder. Suponhamos, ainda, que antes de os condóminos pagarem a parte que lhe compete no preço da empreitada a executar um deles vende a sua fracção autónoma.
Sendo inquestionável que a obrigação propter rem já existia à data da alienação, importa decidir se ela se transmite para o adquirente ou se, pelo contrário, continua a ter como devedor o alienante.”
Ora, nestes casos refere o ilustre Prof. que, a solução mais razoável é a da ambulatoriedade da obrigação real.
Efectivamente, refere “Pelo que respeita ao alienante, com efeito, não se justifica que ele tenha de contribuir para uma despesa de que nenhum proveito lhe poderá resultar, uma vez que a sua soberania sobre o prédio terminou. Mas já pelo que respeita ao adquirente, há todas as razões para o sujeitar ao pagamento, quer porque é ele que vai beneficiar da despesa em questão, quer porque a necessidade de proceder à reparação no telhado ter-se-á reflectido na determinação do preço da fracção autónoma, quer ainda porque ele dispunha objectivamente, de todos os elementos para conhecer o encargo a que os condóminos estavam expostos, bastando-lhe, para tanto, confrontar o estatuto do condomínio com a situação em que se encontra uma das partes comuns do edifício.
Mas os dados do problema mudam radicalmente se à data da alienação da fracção autónoma, o telhado do edifício se encontra já reparado, não tendo ainda o alienante cumprido a sua obrigação (obrigação propter rem) de contribuir, na parte que lhe competia, para as despesas efectuadas. O adquirente não dispõe agora de quaisquer elementos objectivos que denunciem a existência da obrigação”.
Conclui, assim, aquele Professor, que devem, por conseguinte, “considerar-se ambulatórias, não só as obrigações propter rem que imponham a prática de actos materiais na coisa sobre que incide o direito real, como ainda todas aquelas cuja existência seja denunciada ou indiciada pela situação em que a coisa ostensivamente se encontre”.[13]
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Também a nossa jurisprudência não tem sido unânime no tratamento dado à questão.
Efectivamente, tem sido constante a dualidade de respostas dadas ao problema da alienação de fracções com dívidas ao condomínio.
Há acórdãos em que se afirma, peremptoriamente, que a responsabilidade por tal pagamento continua a incumbir aos alienantes[14] e acórdãos em sentido diametralmente oposto.[15]
Na essência, a nossa jurisprudência tem afirmado que as obrigações contidas no disposto no artigo 1424.º CCivil são obrigações propter rem, ou seja, obrigações do titular do direito de propriedade, seguindo, no entanto, duas correntes opostas:
- A primeira tem entendido que, apesar de se tratar de típicas obrigações propter rem, não têm uma das suas características definidoras, que é a ambulatoriedade.
Comportam as obrigações que decorrem do uso normal do bem, em que o pagamento do condomínio é a contrapartida disso, de forma a fazer face às despesas com a limpeza das partes comuns, manutenção geral e custos de administração. O mesmo não sucede com as obrigações que implicam melhorias, alterações ou reparações, em que é o novo proprietário a tirar proveito delas, mesmo tendo sido o anterior proprietário a deliberar e aprovar as mesmas em assembleia de condóminos;
- A segunda, por seu turno, entende que toda e qualquer obrigação propter rem tem como característica a ambulatoriedade. É essa, até, a sua principal característica, a par da sua titularidade ser definida pela titularidade do direito real.
O proveito é, também, tendo em conta a análise jurisprudencial, um pormenor importante quando se pretende aferir da responsabilidade no pagamento.
Nesta senda, acórdãos existem que entendem que a obrigação de pagamento das despesas de condomínio não se deve transmitir para o novo adquirente de determinada fracção, pois não será justo onerar o novo proprietário com uma despesa que teve a sua origem na utilização de um bem – durante um período de tempo diversos por outra pessoa (o anterior proprietário). O anterior proprietário foi quem fruiu da fracção durante o período que originou as despesas em causa pelo que deve ser dele a responsabilidade pelo seu pagamento.[16]
Em diferente sentido o Ac. esta Relação de 07/07/2016[17] que entende que relativamente ao pagamento de despesas extraordinárias – reparação de elevadores ou reabilitação do prédio em que ocorreu no momento que mediou entre a deliberação de realizar essas obras e a conclusão da respectiva empreitada uma transmissão de uma fracção por um determinado condómino, aqueles custos, salvo acordo em contrário, devem ser suportados, na proporção correspondente, pelo novo condómino tendo em conta que será este a retirar proveito do gozo do bem ao qual foi incorporada aquela beneficiação.
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Postos estes considerandos e descendo ao caso concreto cremos, salvo o devido respeito, que a respostas para a questão colocada no recurso não pode ser a que ditou a decisão recorrida.
Analisando.
Como resulta do quadro factual as obras comuns a realizar no edifício em questão diziam respeito realização de obras de conservação e manutenção nas fachadas, cobertura e garagem do edifício [cfr. al. b) da fundamentação factual].
Vem também demonstrado nos autos que as obras ainda não se tinham iniciado aquando da transmissão da fracção (esta ocorrida em 09/01/2014), tendo as mesmas decorrido entre Maio de 2014 e Junho de 2015 [cfr. al. h) da fundamentação factual].
Importa ainda realçar que o que foi aprovado na Assembleia Geral com data de 18/04/2013 foi um dos quatro orçamentos apresentados para a realização das referidas obras, sendo que, o valor orçamentado e aprovado foi distribuído por todas as fracções em função das respectivas permilagens.
Portanto, tendo nessa data sido apenas aprovado o orçamento, a adjudicação da obra ao empreiteiro en causa teve que ocorrer, forçosamente, em momento temporal para lá da data em que aquela Assembleia teve lugar.
Daqui resulta que a transmissão da fracção operou-se numa altura em que determinados partes comuns do prédio careciam de obras de conservação[18], pelo que, a regra (tradicional) de que obrigação propter rem-a obrigação, neste caso, de cada condómino contribuir, proporcionalmente ao valor da respectiva fracção autónoma, para as despesas de conservação de uma parte comum do edifício se transmite juntamente com o direito real não pode suscitar, aqui, qualquer dúvida, pois o adquirente da fracção autónoma dispunha objectivamente de todos os elementos para se aperceber da existência da obrigação, bastando-lhe para isso, confrontar a situação material da coisa com o regime legal do condomínio.
Na verdade, qualquer titular do direito real está sujeito às vinculações e encargos decorrentes do próprio estatuto, sendo que, no caso esse estatuto diz que cada condómino deve contribuir, em proporção do valor da respectiva fracção autónoma, para as despesas de conservação das partes comuns do edifício (cfr. artigo 4º do Regulamento).
Como assim, carecendo o edifício em causa, à data da transmissão da fracção autónoma, de obras de reparação das coberturas e das fachadas, o adquirente não podia ignorar o encargo a que ficava sujeito, pelo que, a transmissão não o colhe de surpresa, é um efeito jurídico com que ele devia contar, pois que, decorre directa e imediatamente da aplicação da lei às condições objectivas ou materiais que o edifício se encontrava à data da alienação.
Nenhuma razão se divisa, portanto, para que a obrigação propter rem não vincule o adquirente da fracção autónoma e para que o alienante não fique dela liberto cfr. Henrique Mesquita, que defende nestes casos que “a solução mais razoável é a da ambulatoriedade da obrigação real”.[19]
Acresce que, não se descortina, neste caso, qualquer justificação em termos de justiça distributiva para que, a apelante, na qualidade de alienante, tenha de contribuir para uma despesa de que nenhum proveito lhe poderá resultar, uma vez que a sua soberania sobre o prédio terminou.
Mas já pelo que respeita ao adquirente, há todas as razões para o sujeitar ao pagamento, porque é ele que vai beneficiar da despesa em questão.
É certo que a embargante pretendeu fundar a sua irresponsabilidade pelo pagamento da dívida exequenda referente às quotas de obras, no facto de ter vendido o imóvel de que era condómina, sendo a venda efectuada por valor inferior ao inicialmente fixado por o comprador ter assumido que pagaria o valor das obras não tendo, todavia, logrado provar essa factualidade [cfr. pontos 1. a 3. do elenco dos factos provados].
Acontece que, essa não prova, em nada muda os dados do problema.
O devedor, na relação estabelecida, é determinado não pessoalmente (em função da pessoa), mas realmente, ou seja, pela titularidade do direito real sobre a coisa.
As obrigações referidas no artigo 1424.º CCivil constituem exemplo típico de obrigações propter rem. O citado artigo prevê a obrigação de todos os condóminos contribuírem com a sua quota-parte para a conservação e administração das partes comuns. As partes comuns, são uma das características definidoras do regime da Propriedade Horizontal e, por isso, são indissociáveis da titularidade de uma dada fracção, pelo que o proprietário desta está adstrito ao cumprimento das obrigações previstas no citado inciso.
Atendendo à natureza jurídica e às características da obrigação em causa, a transmissão da obrigação acontece automaticamente com a transmissão do imóvel.
Se a obrigação de pagar as despesas do condomínio é uma obrigação propter rem, o obrigado determina-se em função da coisa e não, intuitu personae, pelo que dúvidas não podem subsistir quanto a quem deve estar adstrito ao cumprimento da aludida obrigação.
Independentemente de se considerar que o vendedor pode ser (também) responsabilizado por tal pagamento (nomeadamente ao nível das relações internas– comprador/vendedor), conclui-se que tal responsabilidade impende sobre o comprador, como dono actual da fracção, de harmonia com o princípio propter rem que caracteriza as obrigações em questão.
Instado a pagar valores em dívida da sua fracção, que se tenham vencido em momento anterior à sua aquisição, o novo proprietário pode sempre, ser ressarcido dos danos e prejuízos causados pelo anterior proprietário, recorrendo ao regime da compra e venda de bens onerados (artigo 905.º e ss. CCivil), anulando o negócio efectuado e responsabilizando-o, nos termos gerais de direito.
Com efeito, a responsabilização do adquirente por dívidas que poderia eventualmente não conhecer no momento da aquisição, tem um enquadramento perfeito no conceito de “ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria”, presente no citado artigo 905.º.
A resposta à questão colocada está longe de ser pacífica, mas, face ao exposto, perfilha-se a seguinte conclusão: no caso da alienação de fracções com dívidas ao condomínio, este, para reaver o seu crédito coercivamente deve, em princípio, intentar uma acção executiva contra o adquirente da fracção em questão, pois estamos perante uma típica obrigação propter rem e, por isso, ambulatória. Só assim se concretiza uma correta interpretação das normas jurídicas e se prevê o equilíbrio das posições de todos os interessados.
Como salienta José Alberto C. Vieira[20], para quem a transmissão do direito real implica a transmissão da obrigação real “Se a fonte da obrigação propter rem é o direito real, o titular respectivo está investido no dever de a cumprir, mesmo que eventualmente haja adquirido o direito após o vencimento da mesma” (negrito e sublinhados nossos).
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Procedem, desta forma, as conclusões P) a BA) formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente por provada e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida determinando-se a extinção da execução em relação à apelante.
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Custas da apelação pelo apelado (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 10 de Julho de 2019.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Ac. Rel. Porto de 19 de Setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[6] Henrique Mesquita, RDES, XXIII-84.
[7] In “Direitos Reais”, 3ª edição, págs. 462 e 464.
[8] Direito das Obrigações, vol. I, 8ª edição, pág. 200.
[9] Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 100.
[10] Obra citada pág. 316 a 323.
[11] A mesma opinião parece ter Mário Júlio Almeida Costa, quando, ao abordar o tema das obrigações reais, as define da seguinte forma: “há obrigações ligadas a direitos reais, de maneira que a pessoa do devedor se individualiza pela titularidade do direito real”, para, logo de seguida, as identificar como sendo reais ou ambulatórias- Direito das Obrigações, 9ª edição, pág. 110.
[12] Obra citada pags. 330 e seguintes.
[13] Na nota 74 este autor pág. 343 da obra citada. Refere que: “Sempre que se trate de obrigações cujo vencimento só se verifica depois de o devedor ser interpelado para cumprir (tal é o caso, por exemplo, da obrigação que adstringe os comproprietários a contribuírem para as despesas necessárias à conservação e fruição da coisa comum: artigo 1411.º nº 1 do C.Civil), o credor, mesmo que já houvesse interpelado o alienante do direito real para cumprir, terá de repetir a interpelação em relação ao subadquirente, pois este não dispõe de elementos objectivos que lhe permitam saber se o anterior titular do direito se encontrava numa situação de mora”.
[14] Cfr. Ac. da Relação do Porto de 16-12-1997, processo n.º 9720870, disponível em www.dgsi.pt; Ac. da Relação do Porto de 09-07-2007, processo n.º 0753550, disponível em www.dgsi.pt
[15] Cfr. Ac. da Relação do Porto de 29-04-2004, processo n.º 0431329, disponível em www.dgsi.pt; Ac. da Relação de Guimarães de 17-09-2009, processo n.º 836/04.3 TBVCT.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[16] Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 09-07-2007, processo n.º 0753550, disponível em www.dgsi.pt.
[17] In www.dgsi.pt.
[18] Note-se que estas obras nada têm que ver com as importâncias que mensalmente os condóminos pagam para as despesas normais e correntes do condomínio (remunerações do administrador, salários do porteiro e do jardineiro, custo do aquecimento central, da energia eléctrica e da água que se consumo nas partes comuns. Como diz Henrique Mesquita, obra citada, pág. 321, tratando-se de prestações destinadas a custear despesas habituais originadas pela utilização de serviços ou pelo consumo de bens necessários a assegurar a funcionalidade normal do condomínio, seria injusto fazê-las recais sobre o adquirente da fracção, pois que, para além de não dispor de elementos objectivos que revelassem ou indiciassem a existência das dívidas, tais prestações representam, em regra, na economia do instituto, a contrapartida de um uso e fruição (das partes comuns do edifício) que couberam ao alienante e, por conseguinte, só a este deve competir a respectivo pagamento
[19] Obra citada, pág. 319 e também pág. 342.
[20] In Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pag. 109.