Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6616/15.3T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: PRIMADO DA SUBSTÂNCIA SOBRE A FORMA
CONVOLAÇÃO DE RECLAMAÇÃO EM RECURSO
Nº do Documento: RP202209136616/15.3T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO DA DECISÃO
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Está sedimentada na doutrina e na jurisprudência a posição de que a arguição de nulidade se faz por via de reclamação, exceto se a nulidade foi cometida a coberto de despacho judicial, caso em que deve ser arguida por via de recurso a interpor dessa decisão.
II - Por força do princípio do primado da substância sobre a forma, como garantia de um processo justo e efetivo, cada vez mais marcante, nos termos do art.º 193º, nº 3, do Código de Processo Civil, é de proceder à convolação de uma reclamação de nulidade em requerimento de interposição de recurso se aquela estiver devidamente explanada e articulada, tiver sido apresentada dentro do prazo de recurso, com uma condensação do fundamento específico do recurso, sendo este admissível quanto ao valor da causa, ainda que não contenha a formulação de conclusões.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 6616/15.3T8PRT.- A.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível do Porto - Juiz 7


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório
Nos autos supra epigrafados foi proferido seguinte despacho:
Da nulidade da venda
F..., SA, na qualidade de proponente, veio, no seguimento da realização da venda realizada nos presentes autos deduzir reclamação de acto praticado no âmbito de diligência de venda, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 839º nº 1 al. c) do NCPC.
Alega, para tanto e em síntese, que o tribunal ao admitir o exercício do direito de preferência de uma das comproprietárias do imóvel objecto da venda no âmbito da presente acção de divisão de coisa comum cometeu uma nulidade por força do disposto no art.º 195º do NCPC, correspondente à prática de um acto legalmente inadmissível, com influência na decisão final da venda, defendendo ser entendimento jurisprudencial pacífico e unânime que, no caso de venda de imóvel, na sua totalidade, em sede acção de divisão de coisa comum, o comproprietário do prédio objecto de venda não goza de direito de preferência.
Termina pedindo que seja verificada a nulidade de acto de venda referente o exercício do direito de preferência pela comproprietária AA, e em consequência, seja o mesmo anulado com anulação de todo o processado subsequente e que, consequentemente, seja aceite a proposta da reclamante, por se figurar a proposta mais alta, devendo ser notificada para prestar caução e/ou depositar o preço, nos termos legais.
Notificadas as partes, a requerida AA, veio dizer o que o despacho em causa não está ferido de nenhuma nulidade ou ilegalidade, argumentando que não é verdade que a jurisprudência que existe sobre esta matéria seja pacífica e muito menos unânime.
Terminou pedindo que seja indeferida a reclamação e arguição da nulidade do despacho ora em crise deduzida pela reclamante.
Cumpre decidir.
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O tribunal é competente.
Não existem outras excepções de cumpra conhecer.
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Com interesse para a decisão do presente incidente, importa considerar a seguinte factualidade:
1. A presente ação de divisão de coisa comum tem por objecto o bem imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ......, com o artigo matricial n.º ..., fração autónoma designada pela letra E, correspondente ao 2º andar esquerdo do prédio urbano em propriedade horizontal sito na Rua ..., localizado na freguesia ..., concelho do Porto.
2. Na sequência da realização da conferência de interessados, convocada nos termos legalmente previstos e uma vez que os comproprietários não acordaram na adjudicação do bem a um deles, foi determinado que se procedesse à venda (da totalidade) do imóvel objecto da ação, na modalidade de propostas em carta fechada, tendo sido designado o dia 20.12.2021, pelas 14h00 para a abertura das mesmas.
3. À data e hora designadas, no Juízo Central Cível do Porto – Juiz 7 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto foram abertas as propostas apresentadas, tendo sido verificado que a proposta de maior preço foi apresentada pela, aqui, reclamante “F..., SA”, com o montante de €486.690,00, a qual se encontrava acompanhada de cheque visado para caução, no valor de 5% do valor anunciado.
4. Nesse seguimento, a comproprietária do imóvel, AA, requerida na presente acção, manifestou pretensão de exercer, na qualidade de comproprietária, direito de preferência relativamente à proposta da reclamante, tendo apresentado cheque visado, no valor de €18.275,00.
5. O que foi admitido, tendo na sequência sido proferido despacho a notificar a aludida AA para proceder ao depósito restante do preço, no prazo de 15 dias.
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Vejamos.
Além dos casos previstos no art.º 838º e nas restantes alíneas do nº 1 do art.º 839º do NCPC - que contemplam situações que não estão em causa aqui -, a venda fica sem efeito, “ex vi” do art.º 839º, nº 1, c), do NCPC, se for anulado o acto da venda, nos termos do art.º 195º, do mesmo compêndio legal.
É sabido que a nulidade processual consiste num desvio ao formalismo processual prescrito na lei.
Além das nulidades típicas previstas nos art.ºs 186º, 187º, 191º, 193º e 194º do CPC, outras irregularidades que se constatem na tramitação processual só constituirão nulidade se a lei assim o determinar ou quando o vício possa influir no exame ou decisão da causa, ou seja, quando se repercutem na sua instrução, discussão ou julgamento ou, em processo executivo, na realização da penhora, venda ou pagamento – cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, p. 235; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, p. 381.
Trata-se das nulidades secundárias, inominadas ou atípicas que podem emergir da prática de um acto que a lei não admita, da omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva ou da prática de um acto admitido ou a sua omissão em violação da sequência processual fixada pelo juiz ao abrigo do disposto no art.º 547º do CPC – cfr. art.º 195º, nº 1 do NCPC.
A nulidade do acto processual repercute-se nos actos subsequentes da sequência que dele dependam absolutamente. “Assim, sempre que a prática de um acto da sequência pressuponha a prática de um acto anterior, a invalidade deste tem como efeito, indirecto mas necessário, a invalidade do primeiro, se entretanto tiver sido praticado, pelo que a invalidade do ato processual é mais uma invalidade do acto enquanto elemento da sequência do que do acto em si mesmo considerado” – cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 381.
Por sua vez, as decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art.º 615º do NCPC.
Miguel Teixeira de Sousa explica em que consiste uma nulidade processual para a distinguir das nulidades da sentença/despacho, o que faz nos seguintes termos e de modo cristalino:
“Todo o processo comporta um procedimento, ou seja, um conjunto de actos do tribunal e das partes. Cada um destes actos pode ser visto por duas ópticas distintas:
- Como trâmite, isto é, como acto pertencente a uma tramitação processual;
- Como acto do tribunal ou da parte, ou seja, como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte.
No acto perspectivado como trâmite, considera-se não só a pertença do acto a uma certa tramitação processual, como o momento em que o acto deve ou pode ser praticado nesta tramitação. Em contrapartida, no acto perspectivado como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte, o que se considera é o conteúdo que o acto tem de ter ou não pode ter.
Do disposto no art. 195.º, n.º 1, CPC decorre que se verifica uma nulidade processual quando seja praticado um acto não previsto na tramitação legal ou judicialmente definida ou quando seja omitido um acto que é imposto por essa tramitação.
Isto demonstra que a nulidade processual se refere ao acto como trâmite, e não ao acto como expressão da decisão do tribunal ou da posição da parte. O acto até pode ter um conteúdo totalmente legal, mas se for praticado pelo tribunal ou pela parte numa tramitação que o não comporta ou fora do momento fixado nesta tramitação, o tribunal ou a parte comete uma nulidade processual. Em suma: a nulidade processual tem a ver com o acto como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do acto praticado pelo tribunal ou pela parte.
É, aliás, fácil comprovar, em função do direito positivo, o que acaba de se afirmar:
-- A única nulidade processual nominada que decorre do conteúdo do acto é a ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º); mas não é certamente por acaso que esta nulidade é também a única que constitui uma excepção dilatória (cf. art. 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), e 577.º, al, b), CPC);
-- As nulidades da sentença e dos acórdãos decorrem do conteúdo destes actos do tribunal, dado que estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podem ter (cf. art. 615.º, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC); também não é por acaso que estas nulidades não são reconduzidas às nulidades processuais reguladas nos art.ºs 186.º a 202.º CPC.”
Ver: “O que é uma nulidade processual?” in Blog do IPPC, 18.04.2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual.
É sabido que “a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou a autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.” – cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra 1945, p. 507.
Em idêntico sentido pronuncia-se Anselmo de Castro: “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por um qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso […]” – cfr. Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, 1982, p. 134.
Voltando à situação em apreço, facilmente se constata que a reclamante insurge-se é contra o entendimento do tribunal quanto à possibilidade do exercício de preferência pela comproprietária do bem objecto da venda, ou seja, contra o conteúdo do despacho proferido no âmbito da diligência de abertura das propostas em carta fechada que admitiu o exercício desse direito de preferência, nos moldes em que foi concretizado.
Ora, uma coisa é a nulidade processual, por ex. a omissão de um acto que a lei prescreva, relacionada com um acto de sequência processual, e por isso um vício atinente à sua existência, outra bem diferente é uma nulidade da sentença ou despacho, e por isso um vício do conteúdo do acto, por ex. a omissão de pronúncia, um vício referente aos limites (vide, ainda a este propósito, Lebre de Freitas, em Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais…, 4ª ed., p. 23/29).
Tão pouco se confundindo a dita nulidade com um erro material da decisão ou um erro de julgamento, que se caracteriza por um erro de conteúdo.
Significa isto que tendo o tribunal despachado no sentido de permitir o exercício do direito de preferência, a haver hipotética violação da lei, o tribunal incorreu num erro de julgamento e não numa nulidade processual, por prática de acto inadmissível.
Mas a ser assim, então o que se impunha à reclamante era interpor recurso e não arguir nulidade processual, dado se encontrar esgotado, quanto a tal decisão, o poder jurisdicional (cfr. art.º 613º, do NCPC).
Vide, neste sentido, o ac. RC de 3.05.2021, disponível in www.dgsi.pt.
Neste conspecto, não tem cabimento no caso a arguição de qualquer nulidade processual, que tem necessariamente de improceder.
*
Decisão:
Pelo exposto, julga-se improcedente, nos termos supra expostos, a reclamação deduzida.
Custas do incidente pela requerente.
Notifique.”

F..., SA, interveniente acidental nos autos à margem identificados, notificada que foi da decisão que indeferiu a sua reclamação por nulidade veio interpor recurso, concluindo:
1. A decisão recorrida enferma vício por errónea interpretação e aplicação do Direito, uma vez que, ao contrário do entendimento propalado pelo venerável Tribunal a quo, a Reclamação perante o Tribunal de Primeira instância constituía o expediente legal e processual próprio e adequado à arguição de nulidade processual decorrente da prática de ato legalmente inadmissível no âmbito da venda judicial levada a cabo pelo Tribunal, pelo que, impunha-se que o Julgador houvesse admitido a reclamação e, consequentemente apreciado e decidido sobre o seu mérito.
2. Ao conferir/permitir o exercício do direito de preferência por comproprietária, na aquisição de bem imóvel objeto de venda judicial pela sua totalidade, no âmbito da ação de divisão de coisa comum destes autos, o Tribunal a quo cometeu nulidade processual, em face da prática de um ato que a lei não admite (ex vi artigo 195.º n.º 1 do CPC), uma vez que, é consabido que, no caso da venda da totalidade de bem sujeito a contitularidade, os comproprietários não gozam de direito de preferência, pois que, através da venda total será obtido o fim que, antes, justificava o direito de preferência (no caso de alienação de apenas parte do bem): a propriedade singular.
3. In casu, o Tribunal permitiu à comproprietária exercer o direito de preferência em sede da diligência de abertura de propostas para aquisição do imóvel vendido, no dia 20 de dezembro de 2021, sendo que, esse ato não foi objeto de qualquer despacho/decisão que, expressamente o ordenasse, autorizasse ou fundamentasse;
4. Com efeito, do auto da diligência de abertura de propostas nada consta quanto à apreciação ou decisão sobre o exercício do direito de preferência pela comproprietária, AA, parte (requerida) na ação de divisão de coisa comum, somente se constatando o proferimento de despacho por via do qual o Tribunal ordenou a notificação da comproprietária preferente para depositar, no prazo de 15 dias, o preço remanescente da venda, tendo, em seguida, findadoa diligência.
5. Em face da tramitação processual da venda judicial e considerando o conjunto de atos praticados, entende a Recorrente o ato de concessão/aceitação do exercício do direito de preferência (sobre o qual reclamou, por nulidade) não foi objeto de despacho ou decisão recorrível nem tão-pouco pode ser entendido como tendo ficado ao abrigo de um despacho merecedor de impugnação apenas por via de recurso.
6. Por não ter sido objeto e por não se encontrar ao abrigo de qualquer decisão, a nulidade processual invocada pela Recorrente (pela prática de ato legalmente inadmissível) tinha forçosamente ser arguida perante o Tribunal de Primeira Instância, por meio de reclamação,
7. Uma vez que, como comummente tem sido entendido, quando na presença de uma nulidade processual, e não se verificando a situação a que alude o nº 3, do artº 199º, do CPC, deve a mesma ser arguida pelo interessado perante o tribunal onde foi cometida, por meio de reclamação, a apresentar em requerimento próprio, no prazo de 10 dias previsto no artigo 149º, n.º 1, do mesmo Código e não através de recurso.
8. Na verdade, até por imposição do regime de recurso que vigora no nosso ordenamento jurídico, não poderia a Recorrente seguir o entendimento patenteado pelo Tribunal a quo e recorrer do despacho que notificou a preferente para depositar o preço, como forma de arguir a nulidade processual por ato ilegal prévio.
9. De facto, por não ter sido apreciada e decidida, expressa e fundadamente, de forma direta ou indireta, a nulidade subjacente ao ato de concessão/exercício do direito de preferência por quem não o detinha, como um ato compreendido na tramitação do procedimento de venda, em primeira instância, não pode ser submetida à apreciação do Tribunal superior, por meio de recurso, sem que antes tenha sido submetida à apreciação do Tribunal de Primeira Instância, através de reclamação, para que sobre tais nulidades possa recair decisão/despacho que as decida de mérito,
10. Pois a impugnação direta de nulidades processuais por via de recurso, apresenta ao Tribunal ad quem uma questão nova que não foi submetida à apreciação do Tribunal da primeira instância e, portanto, que por ele não foi conhecida e que, dessa forma, não poderia ser reponderada e decidida.
11. Em súmula, se a Reclamante recorresse do despacho que ordenou a notificação da preferente para depositar o preço, a fim de arguir nulidade relativa à pratica do ato de concessão/exercício do direito de preferência, estaria apresentar ao Tribunal ad quem uma questão totalmente nova que este não poderia apreciar ou decidir.
12. Acresce que, o despacho que ordena a notificação da preferente para depositar o preço constitui despacho de mero expediente porquanto se destina a prover pelo andamento regular do processo (na verdade, mais não é do que o cumprimento da formalidade legal prevista no n.º 2 do artigo 824.º do CPC), sem interferir no conflito de interesses entre as partes e que não decide qualquer questão de forma ou de fundo nem põe fim à causa, pelo que, tal despacho é irrecorrível – ex vi artigo 630.º do CPC, reforçando-se, também por esta via, que não poderá colher, por falta de fundamento legal, o entendimento do Tribunal a quo no sentido que a reclamante deveria ter recorrido desses despacho como forma de arguição da nulidade processual invocada.
13. A aqui Recorrente não tinha de interpor recurso do despacho que ordenou a notificação do preferente para pagar o preço da aquisição do imóvel, a fim de invocar a nulidade pela prática de ato inadmissível mas sim arguir esse nulidade perante o Juiz da causa por via da reclamação, tal como fez, até porque, ao contrário do que afirma o Tribunal a quo, o poder jurisdicional não se esgotou com aquele despacho, já que, não é invocável o esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa para se dever entender que o juiz deixa de poder conhecer da nulidade oportunamente arguida.
14. Assim, concluiu-se que a reclamação deduzida pela Recorrente constituía o meio próprio para arguir a nulidade por si invocada, pelo que, podia e devia o Tribunal a quo tê-la julgado admissível e proferido decisão de mérito que a julgasse procedente, eliminando consequentemente o ato de atribuição/exercício do direito de preferência de aquisição do imóvel pela comproprietária, por ilegal, anulando todo o processado subsequente.
15. Ao julgar inadmissível a reclamação, o Tribunal recorrido cometeu erro de julgamento por errónea interpretação e aplicação do Direito, impondo-se assim a revogação dessa decisão e a sua substituição por outra que julgue a Reclamação admissível e procedente ou que determine a prossecução dos seus ulteriores termos, com proferimento de decisão de mérito pelo Tribunal de primeira instância.
TERMOS EM QUE, DECIDINDO PELA PROCEDÊNCIA DO RECURSO E CONSEQUENTE REVOGAÇÃO DO DECISÃO DO TRIBUNAL PRIMEIRA INSTÂNCIA E SUA SUBSTITUIÇÃO POR DECISÃO NOS TERMOS SUPRA CARREADOS, FARÃO V.ª EXAS., COMO SEMPRE, UM ATO DE INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!

AA apresentou contra-alegações, argumentando que deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão investigada.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se deve ser declarada a nulidade do despacho nos termos constantes da reclamação apresentada.

II – Fundamentação de facto
Para a decisão do recurso releva a factualidade que se extrai do relatório supra.

III – Fundamentação de direito
O presente recurso é da decisão que recaiu sobre reclamação de acto praticado no âmbito de diligência de venda, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 839º nº 1 al. c) do NCPC.
Fundamenta-se que o tribunal ao admitir o exercício do direito de preferência de uma das comproprietárias do imóvel objecto da venda no âmbito da presente acção de divisão de coisa comum cometeu uma nulidade prevista no artigo 195º do CPC, correspondente à prática de um acto legalmente inadmissível, com influência na decisão final da venda, alegando ser entendimento jurisprudencial pacífico e unânime que, no caso de venda de imóvel, na sua totalidade, em sede acção de divisão de coisa comum, o comproprietário do prédio objecto de venda não goza de direito de preferência.
Atentemos.
Estatui o artigo 839º, nº 1 al. c) do CPC que a venda fica sem efeito se for anulado o acto da venda, nos termos do artigo 195.º.
E o artigo 195.º CPC, nº 1 dispõe que a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influenciar a decisão da causa (nulidades secundárias ou atípicas).
Estamos perante uma nulidade processual secundária que não é do conhecimento oficioso, dependendo de arguição da parte interessada, nos termos do disposto na parte final do artigo 196.º CPC.
O processo civil é ramo do direito público pelo que há uma lógica no tratamento diferenciado das nulidades do direito civil. No direito processual o interesse predominante é a realização da finalidade da justiça do processo.
A tendência é a de que os vícios processuais sejam, sempre que possível, sanáveis, independentemente de sua gravidade. No direito civil as nulidades absolutas, são, por regra, nulidades insanáveis.
O direito processual, em sentido lato, apresenta-se como um conjunto de formas criadas previamente pelo ordenamento jurídico, mediante as quais se desenvolve o processo. Neste aspecto a nulidade consiste, especificamente, na prática ou na omissão de um acto processual afastado desse conjunto de formas necessárias estabelecidas por lei. Será um desajuste entre a forma determinada na lei e a forma praticada ou omitida.- (vide Couture, Introducao ao Estudo do Processo Civil).
LIEBMAN, numa visão publicista do processo, fala no princípio da instrumentalidade das formas como um dos princípios fundamentais do processo e teoriza que no julgar da validade ou invalidade de um acto processual, se deve atender, mais do que à observância das formas, ao facto de haver ou não o acto atingido a sua finalidade.
A violação da tipicidade do acto processual é graduada em função de dois elementos fundamentais: a finalidade que a lei atribui ao acto e o prejuízo que essa violação da forma leva ao processo.
O princípio do prejuízo é fundamental na avaliação da invalidade, assim se compreendendo que mesmo quando a lei prescreve a forma de um acto processual com cominação expressa de nulidade para sua inobservância, como no caso de citação, não tem sentido, dentro deste modelo da instrumentalidade, decretar­se a sua nulidade, se seu fim foi alcançado. Por isso se considera suprida a citação pela intervenção do réu no processo.
Outra tese que se deve ter em conta nas nulidades processuais é aquela que Teixeira de Sousa tem vindo a destacar e que resulta da distinção entre trâmite e acto (vide https://blogippc.blogspot.com/2018/04/o-que-e-uma-nulidade-processual.html).
Tal prende-se com a dupla perspectiva pela qual a sentença (ou qualquer outro acto processual) pode ser considerada: a sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.
Assim, uma sentença pode constituir uma nulidade processual, se for considerada na perspectiva da sentença como trâmite: basta, por exemplo, que ela seja proferida fora do momento apropriado na tramitação processual.
Já se se perspectivar a sentença como acto, isto é, no seu conteúdo admissível ou necessário, estaremos perante uma nulidade da sentença prevista nos artigos. 615.º, 666.º e 685.º CPC.
Assim, a sentença ou qualquer acto processual (obviamente, despachos - artigo 613º, nº 3 do CPC) pode conter toda a fundamentação exigível, pode não padecer de nenhuma contradição entre os fundamentos e a decisão, pode não conter nenhuma omissão ou nenhum excesso de pronúncia e pode não condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, mas, ainda assim, porque é proferida fora do momento adequado, verifica-se a nulidade processual imposta pelo artigo 195.º, n.º 1, CPC.
Vista esta distinção entre a sentença/despacho como trâmite e como acto, parece-nos ser de entender que a anulação do acto da venda, nos termos do artigo 195º, se reporta à devida observância da tramitação processual da venda, à prática de acto legalmente não tipificado ou à omissão de acto legalmente tipificado.
Ora o recorrente veio reclamar, arguindo nulidade de acto praticado no âmbito da diligência de venda.
Desde há muito que está sedimentado na doutrina e na jurisprudência que a reclamação para a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial. Se foi proferido despacho a ordenar ou a autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente. – Vide José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra 1945, pág. 507.
Também Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, 1982, pág. 13, esclarece: “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por um qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso.”
Assim, assertivamente, o despacho recorrido indeferiu a reclamação com fundamento em que o que se impunha à reclamante era interpor recurso e não arguir nulidade processual.
Observa-se que a recorrente não invoca nenhuma infracção aos trâmites ou ao núcleo essencial da configuração do acto da venda.
O que alega é que, ao contrário do entendimento do despacho, do qual nominalmente reclama, é pacífica e unânime a jurisprudência no sentido de que no caso de venda de imóvel, na sua totalidade, em sede acção de divisão de coisa comum, o comproprietário do prédio objecto de venda não goza de direito de preferência.
Tal remete-nos uma outra dimensão desta problemática jurídica.
É que enquanto as nulidades da decisão são deficiências (intrínsecas) do trâmite ou do acto, aquilo que a recorrente invoca constitui o chamado erro de julgamento que se traduz numa desconformidade entre a decisão e o direito - substantivo ou adjectivo - aplicável. Neste caso, o tribunal fundamenta a decisão, aprecia todas as questões suscitadas, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito.´
As nulidades são sempre vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada.
Sucede que o objecto do presente recurso é o despacho que desatendeu a arguição da nulidade e não o aflorado erro de julgamento.
Contudo, não podemos esquecer que evolução do processo civil tem sido marcada pelo crescente relevo do princípio do primado da substância sobre a forma como a garantia de efectividade do processo e da jurisdição pois um processo justo e efectivo é aquele que propicia às partes a análise do mérito de sua demanda, tanto em primeira instância quanto na fase recursal. Em qualquer instância o resultado do processo deve expressar o mais possível o direito material visado.
A garantia da efectividade apela a três princípios básicos: o aludido primado da substância sobre a forma que também pode ser visto como princípio da instrumentalidade das formas, o do devido processo legal e o da celeridade processual.
Já acima aludimos ao princípio da instrumentalidade das formas e à importância da finalidade do acto, a qual deve ser atendida, mesmo que sem a observância completa e perfeita da forma, desde que isso não acarrete qualquer prejuízo para as partes e seus direitos processuais e para o próprio processo, não havendo razão para declarar o defeito do acto processual, a sua nulidade, entendida em sentido amplo, isto é, como como sinónimo de desconformidade ao direito.
É nesta premissa que o artigo 193º, nº 3 do CPC comanda que” O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.”
Coloca-se então aqui a possibilidade de convolação da presente reclamação de nulidade em requerimento de interposição de recurso.
O despacho tem o seguinte teor:” Face ao direito de preferência exercido pela requerida AA fica a mesma notificada para proceder ao depósito restante do preço, no prazo de 15 dias, que no caso, corresponde apenas a metade de €486.690,00, deduzido do valor de €18.275,00 ora caucionado.
Tendo alguns dos proponentes solicitado a devolução imediata dos cheques que acompanhavam as respectivas propostas, ordena-se a devolução dos respectivos cheques, a concretizar por termo.”
Ao contrário do que refere a recorrente, este não é um despacho de mero expediente nem é proferido no uso legal de um poder discricionário.
Não se destina a promover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes, nem abarca matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador.
O despacho em causa dirime um conflito de interesse ao decidir que à recorrida assiste direito de preferência na venda.
Foi proferido e logo notificado à reclamante em 20 de Dezembro de 2021 e a reclamação da nulidade foi apresentada em 21 de Dezembro de 2021.
Mostra-se, assim, em prazo nos termos do disposto no artigo 638º, nº1 e é recorrível atento disposto no artigo 629º, nº 1, ambos do CPC.
O requerimento de interposição do recurso deve conter obrigatoriamente a alegação do recorrente e as conclusões com a indicação do fundamento específico da recorribilidade – (artigo 637º, nº 2 do CPC).
A reclamação de nulidade encontra-se devidamente explanada e articulada, sendo que, não obstante não conter formalmente conclusões, é feita uma condensação do fundamento específico do recurso nos artigos que se transcrevem:
17.” Pelo que, in casu, a comproprietária AA não gozava (e não goza) de direito de preferência na aquisição do imóvel objeto de venda (melhor identificado em 1 da presente), sendo que, somente lhe era possível concorrer à venda nos mesmos termos que os restantes interessados.
18. Mutatis mutandis, por corresponder igualmente a um direito de preferência – ainda que de natureza subjetiva distinta – nas situações de venda da totalidade do imóvel em compropriedade (e, designadamente, no ação de divisão de coisa comum com decisão de venda) não é admissível o exercício do direito de remição, conforme entendimento jurisprudencial.
Deste modo, conclui-se nada obstar à convolação do requerimento de reclamação de nulidade em requerimento de interposição de recurso.
Este entendimento foi o do acórdão desta Relação do Porto de 14-02-2022, proc. nº 862/17.2Y7PRT.P1, in www.dgsi.pt reproduzindo-se aqui, por exemplar, o seguinte excerto:” Também Rui Pinto, em Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º do CPC), Revista Julgar online, Maio de 2020, acessível em http://julgar.pt, vem referir: “Quid juris se, cabendo recurso ordinário, ainda assim, a parte deduzir requerimento autónomo (i.e., de reclamação para o juiz autor da decisão) de suprimento de nulidade ou de reforma? Deve este ser liminarmente rejeitado por falta de um pressuposto processual negativo – a inadmissibilidade de recurso ordinário, conforme aqueles artigos 615º, nº 4, e 616º, nº 2? Supomos que não, atendendo ao princípio geral da gestão processual (cf. artigo 6º): melhor será concluir que se trata de uma falta sanável, em ordem a permitir que o juiz a quo, ao receber o requerimento de reclamação, por nulidade ou por reforma, determine que possa ser apreciado como requerimento de recurso de apelação, o que, no caso da arguição de nulidade dará poderes de reparação ao juiz, ao abrigo do artigo 617º, nº 1. Com o mesmo resultado prático, tem sido entendido que se trata de um mero erro na qualificação do meio processual utilizado, oficiosamente corrigível graças ao disposto no nº 3 do artigo 193º).
Como já se referiu, não se ignoram os obstáculos, ou limites, formais que se podem opor à convolação, enunciados no despacho sob recurso. Porém, analisando o caso concreto, pela simplicidade da questão, conhecimento de uma nulidade de erro na forma do processo, não se vislumbra obstáculo a que se proceda à convolação em causa.
Efectivamente, as conclusões não têm que ser precedidas de tal epígrafe, podendo resultar da exposição das alegações, resultando no caso evidente que os artigos 12 e 13 do requerimento de “reclamação” contêm verdadeiras conclusões do anteriormente exposto, quando ali se refere:”

Como se referiu, o despacho recorrido decidiu bem ao considerar que, visto o fundamento invocado, o que se impunha à reclamante era interpor recurso e não arguir nulidade processual.
Assim, a decisão não pode ser revogada e o recurso tem de improceder.
Contudo, por via da convolação oficiosa da reclamação em requerimento de interposição do recurso, e tão só por isso, a decisão tem de ser anulada.
Pelo exposto, delibera-se, julgar improcedente o recurso e, ao abrigo do disposto no artigo 193º, nº 3 do CPC, convolar a presente reclamação de nulidade em requerimento de interposição de recurso, anulando-se, para o efeito, a decisão recorrida e regressando os autos ao tribunal recorrido para os trâmites do recurso que aí cabem.

Custas pela apelante.

Porto, 13 de Setembro de 2022

Ana Lucinda Cabral
Rodrigues Pires
Márcia Portela [Declaração de Voto vencida: Teria confirmado a decisão da 1.ª instância por entender que não estão reunidos os pressupostos da convolação da reclamação em recurso.
Com efeito, no requerimento apresentado não se vislumbra a existência de motivação e conclusões: ou existe motivação sem conclusões, ou conclusões sem motivação.
O que, em qualquer dos casos, inviabiliza o recurso.]

(A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.)