Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | NUNO MARCELO DE NÓBREGA DOS SANTOS DE FREITAS ARAÚJO | ||
| Descritores: | RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE ESBULHO | ||
| Nº do Documento: | RP202510271188/25.3T8PVZ.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/27/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - No âmbito da restituição provisória da posse, a violência do esbulho tanto pode incidir sobre as pessoas, em especial o esbulhado ou um seu representante, como sobre coisas, contanto que, neste segundo caso, tenha a virtualidade de obrigar a uma situação de impedimento ou dificuldade relevante de acesso ao bem ou de exercício da posse por parte daquelas pessoas. II - Por outro lado, na aferição da presença do esbulho violento, além das demais circunstâncias relevantes do caso, interessa o momento da consumação do empossamento e não a fase posterior, de modo que, iniciada a posse como violenta, será violenta para sempre e, pelo contrário, não será violenta a posse que começou sem coacção, embora a sua subsistência resulte de violência repetida. III - O art. 379.º do CPC determina ao possuidor esbulhado sem violência que deve recorrer ao procedimento cautelar comum; todavia, se não o fizer, o tribunal pode, ainda assim, ao abrigo do art. 376.º/3 do CPC, corrigir o erro, determinar o prosseguimento da instância com o figurino ajustado e, no final, impor a medida mais adequada, incluindo a própria restituição. IV - O fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável exigido no procedimento cautelar comum, nos termos do art. 362.º/1 do CPC, que corresponde ao designado periculum in mora, sempre associado às providências cautelares, trás consigo duas exigências fundamentais, radicadas na gravidade da lesão a prevenir, por um lado e, por outro, na natureza instrumental da medida de prevenção face ao processo principal. V - Quanto ao primeiro, ficam afastadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que se mostrem irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis. VI - Quanto à natureza instrumental, assenta no perigo da demora associado ao risco de dano resultante de o efeito útil da pretensão deduzida, seguindo os normais termos de uma acção judicial, se esfumar pela demora própria dessa acção, dependendo do respectivo estado e ainda do sentido da decisão que nela possa já ter sido proferida. VII - O juiz da acção cautelar pode tomar em consideração o sentido da decisão e os factos provados no processo principal mediante sentença, ainda que dela tenha sido interposto recurso, e deve fazê-lo se a parte prejudicada com eles, na sua alegação, não enfrentar e nada disser sobre tais factos, pois daí resultará que, não sendo alegados factos de sentido contrário, sobre os quais fosse possível a produção de prova, no momento da decisão final apenas existirá para considerar a factualidade da sentença do processo principal, independentemente do seu trânsito em julgado. VIII - Enquanto o despacho de convite ao aperfeiçoamento é adequado para cenários de insuficiência e incerteza, próprios de uma alegação que não incluiu todo o quadro factual importante e lança dúvidas sobre o sentido da lei substantiva no caso, o juízo de manifesta improcedência é o ajustado para as situações em que, embora o mais importante tenha sido relatado, se antevê de imediato que a pretensão não encontra respaldo nos preceitos legais que lhe são aplicáveis. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo: 1188/25.3T8PVZ.P1 ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL): Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo 1.º Adjunto: Anabela Mendes Morais 2.º Adjunto: José Eusébio Almeida RELATÓRIO. AA, NIF ... e mulher BB, NIF ..., ambos residentes na Rua ..., em ..., concelho da Maia, intentaram procedimento cautelar de restituição provisória da posse, contra CC, com o NIF ..., o marido DD, portador do NIF ..., residentes na Rua ..., também no concelho da Maia, e A... LDA., pessoa coletiva com o NIPC ... e sedeada na Rua ..., ..., em ..., Vila do Conde. Pediram que fosse ordenada, sem audiência prévia da parte contrária, a restituição do prédio rústico composto por terreno de cultura com ramada, sito em ..., na cidade da Maia, descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº..., inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo ..., para além da fixação de sanção pecuniária compulsória nos termos do art. 829.º-A do CC, em caso de incumprimento da ordem judicial. Para o efeito e no essencial, alegaram que são proprietários e possuidores do referido imóvel, adquirido mediante escritura pública de compra e venda outorgada em 19 de janeiro de 2018. Bem assim, que os requeridos, “no dia 14 de agosto de 2025 ocuparam materialmente o prédio dos Requerentes, derrubando diversas árvores de fruto”. E que, “abordado o DD que se encontrava no local, de forma agressiva e intimidatória disse que o terreno era dele e que nada o podia impedir de fazer aquilo até porque já havia uma sentença”, enquanto o “requerente marido sentiu- -se intimidado e não ofereceu resistência, limitando-se a chamar a PSP ... que tomou conta da ocorrência”. Posteriormente, no dia 19 de agosto de 2025, os requeridos iniciaram a construção de vedações no referido prédio e instalaram ainda câmaras de vigilância direcionadas para a moradia dos requerentes, sem consentimento destes. Para além disso, afirmaram os requerentes que “utilizavam o terreno como horta onde produziam e colhiam diversos produtos (favas, batata, milho, couves e girassol)”, que “deixaram de o poder fazer, sendo que neste momento tinham cultivado milho e girassol e que, por causa dos atos de esbulho deixaram de poder tratar, correndo o risco de perecer”. Inicialmente, referiram ainda que “têm a decorrer uma querela em Tribunal com os requeridos, mais precisamente o Processo nº …, que corre termos no Juiz 1 do Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim na qual foi proferida sentença julgando a ação procedente, mas que ainda não transitou em julgado, perante a qual os requerentes manifestaram intenção de interpor recurso com efeito suspensivo, mediante prestação de caução, pelo que a decisão ainda não é exequível, continuando os Requerentes a deter a posse legítima do imóvel”. Em atenção a esta indicação, o tribunal recorrido proferiu despacho no sentido de advertir os requerentes para o facto de que “pese embora tenha sido proferida sentença, ainda não existe sequer recurso pendente, razão pela qual se entende que este Juízo poderá não ser o competente” e concedendo-lhe prazo para pronúncia sobre a questão, em observância do contraditório. Os requerentes tomaram posição mediante a indicação de que não podem ser prejudicados por o prazo do recurso ainda estar a decorrer e de que não é legítimo, face à natureza urgente da sua pretensão, esperar pela interposição do recurso. Requerendo, em consequência, que “seja admitida a tramitação autónoma provisória, ordenando-se a apensação logo que os autos baixem ou que seja esgotado o prazo do recurso sem apresentação de alegações”. Aparentemente sensível a esta argumentação, o tribunal recorrido optou por apreciar a pretensão dos requerentes; todavia, essa apreciação conduziu à decisão de indeferimento liminar da petição inicial. Considerando em tal decisão, em suma, que “na factualidade alegada pelos requerentes não se surpreende a violência” exigida para o esbulho, no âmbito do procedimento cautelar em causa, por um lado e, por outro, que mesmo admitindo a hipótese de conversão deste, mercê do art. 379.º do CPC, “o simples impedimento de cultivo de um terreno está bastante afastado do prejuízo grave ou dificilmente reparável” necessário para a concessão do procedimento comum. E desse indeferimento liminar, inconformados, vieram os requerentes interpor recurso, que culminou com as seguintes conclusões: (…) * A parte contrária subsiste sem ser ouvida, em obediência à excepção ao contraditório prevista na parte final do art. 641.º/7 do CPC.Nada obsta ao conhecimento da apelação, a qual foi admitida no regime e com os efeitos legalmente previstos. * OBJECTO DO RECURSO.Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC). Assim sendo, importa unicamente apreciar se, face aos factos alegados no requerimento inicial e aos documentos que o acompanharam, é ou não justificado o indeferimento liminar do RI, o que depende em especial de: a) saber se esses factos e elementos integram os requisitos da providência cautelar de restituição provisória da posse (conclusões 1 a 13); b) subsidiariamente, saber se poderão preencher os requisitos do procedimento cautelar comum, mesmo que para o efeito seja necessário despacho de convite ao aperfeiçoamento (conclusões 14 e segs.). * FUNDAMENTAÇÃO.Os factos relevantes a considerar são os expostos no relatório, para o qual, por economia processual, se remete, sem prejuízo da densificação que possa justificar-se na exposição subsequente. De acordo com o disposto no art. 377.º/1 do Código de Processo Civil, no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência. Trata-se da concretização processual de um dos meios de defesa da posse previstos no Código Civil, cujo art. 1279.º determina que sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador. Resultando claro destas normas, pois, que os requisitos para a aplicação da restituição provisória são a posse, o esbulho e a violência. Donde que, para fundamentar a aplicação da medida, impõe-se um particular ónus ao requerente, certo que, como destaca a jurisprudência, “o procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse, previsto no artigo 377.º do CPC, exige a alegação de factos concretos constitutivos da posse, do esbulho e da violência” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/7/2025, relatora Isoleta de Almeida Costa, proc. 427/25.5T8PVZ.P1, disponível em dgsi.pt). A posse é definida pela lei como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251.º do CC). Já o esbulho, que a lei não definiu, pode ser caracterizado como acto “que supõe a privação, total ou parcelar, da posse, embora não seja essencial que o esbulhador tenha o animus spoliandi”. Fundamental é o efeito de o possuidor “ficar privado do exercício ou da possibilidade de exercício dos poderes correspondentes à sua posse” (cfr. A. Santos Justo, Direitos Reais, 9.ª ed., p. 227). No nosso recurso, estes dois elementos não estão expressamente em averiguação, mas deve dizer-se, salvo o devido respeito, que eles foram presentes no requerimento inicial de forma deficiente. Assim, quanto à posse, alegou-se o mero conceito, no art. 1, mediante a frase “os requerentes são proprietários e possuidores do Prédio rustico (…)”. Só adiante, embora na parte da alegada lesão, se bem pensamos, é que a alegação conclusiva foi corrigida com a referência no sentido de que “os requerentes que utilizavam o terreno como horta onde produziam e colhiam diversos produtos (favas, batata, milho, couves e girassol) deixaram de o poder fazer” (art. 11), “sendo que neste momento tinham cultivado milho e girassol e que, por causa dos atos de esbulho deixaram de poder tratar” (art. 12). Da mesma forma, apenas nessa parte foi suficientemente afirmada, no plano factual, a nosso ver, a presença do esbulho, no pressuposto de que os factos dos arts. 5 e segs. não documentam a privação da posse que apenas os arts. 11 e 12 vêm deslindar, pois os requerentes actuavam sobre o terreno, tratando-o como seus cultivadores e “deixaram de o poder fazer” e “deixaram de poder tratar”. Todavia, o que essencialmente está em causa no recurso, que os requerentes defendem e a decisão recorrida negou, e como emerge das conclusões 1 a 13, é o requisito da violência no esbulho. Neste particular, apesar das duas teses antagónicas a que aquela decisão também aludiu, crê-se que está fortemente sedimentado entre nós o entendimento de que a violência do esbulho tanto pode incidir sobre as pessoas, especialmente o esbulhado ou um seu representante, como relativamente a coisas. Ponto fulcral, neste segundo caso, é que a violência sobre as coisas tenha a virtualidade de obrigar a uma situação de impedimento ou dificuldade relevante de acesso ou de exercício da posse por parte daquelas pessoas. No referido sentido, parece-nos ilustrativa a indicação jurisprudencial no sentido de que, “a propósito da violência enquanto requisito da restituição provisória da posse, pode dizer-se que na jurisprudência começou por prevalecer o entendimento (adoptado na decisão recorrida) segundo o qual a violência exercida sobre as coisas só caracterizará o esbulho como violento se o esbulhador pretender intimidar, directa ou indirectamente, o possuidor e não teriam essa virtualidade os actos de destruição ou de danificação desprovidos de qualquer intuito coactivo ou de condicionar, de alguma forma, o possuidor”. No entanto, “desde o início deste século que se assiste a uma inflexão da jurisprudência no sentido do alargamento do conceito de esbulho violento e na actualidade é, claramente, prevalecente o entendimento de que, para esse efeito, é suficiente que do esbulho resulte um obstáculo à continuidade do exercício da posse, que a violência (acção física) exercida sobre as coisas seja meio adequado de constranger uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade”. Concluindo, nesta perspetiva, que “o arrombamento e subsequente mudança de fechadura da porta de acesso a um imóvel, mesmo na ausência do possuidor, constitui esbulho violento” (cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 12/9/2022, relator Joaquim Moura, proc. 1507/22.4T8MTS.P1, na mesma base de dados). Vale por dizer, pois, “para que um acto de esbulho seja considerado violento não é necessário que o possuidor esbulhado esteja presente aquando da prática dos actos violadores do seu direito, nem que seja exercida violência física sobre a sua pessoa, bastando que a actuação do esbulhador, pelas suas características, pelos meios que envolveu ou pelas particularidades da situação de facto que gerou, se tenha revestido de aptidão para inibir o esbulhado de retomar a posse que exercia e, assim, o constranger a suportar a usurpação”. Por isso, “deve ser decretada a restituição provisória da posse de um terreno, quando a ocupação ilegítima deste é acompanhada da colocação de vedações que impedem ou condicionam relevantemente o acesso ao mesmo” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/9/2025, relator José Nuno Duarte, no citado endereço electrónico). Algo que tem sido defendido também na doutrina, seja a tradicional, seja a mais recente, embora também marcada pela evolução referida na jurisprudência. Assim, segundo Pires de Lima e Antunes Varela, “a posse violenta começou no direito romano (…) por ter um sentido muito restrito, pois abrangia apenas aquilo a que se chamava vis atrox, mas veio a ter, no direito canónico, um significado muito amplo, abrangendo qualquer actividade contrária à vontade expressa ou tácita do possuidor (qualquer causa injusta), com inclusão do simples dolo”. Para sustentar agora, em jeito de terceira via, que “a coacção física, por definição, há-de traduzir-se sempre numa actuação violenta do autor do esbulho, não bastando que este seja praticado contra a vontade (efectiva ou presumida) do possuidor, sendo certo que “a violência tanto pode ser exercida sobre as pessoas, como sobre as coisas” (cfr. Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., p. 52). Já Oliveira Ascensão assinala que “vai prosperando na jurisprudência a admissão de coacção física mesmo em casos em que há apenas violência sobre as coisas. Esta orientação defronta a dificuldade de a coacção física ou moral constantes da parte geral serem apenas as que se referem às pessoas”. “Não obstante, a orientação é certa, porque a noção de coacção física do art. 246.º é aqui imprestável (…) Coacção física é a expressão infeliz a que o art. 1261.º/2 recorre, quando o que queria admitir era a violência, apenas, além da coacção moral” (Direito Civil – Reais, 5.ª ed., p. 100). Mais pragmática, mas em sentido equivalente, é a visão de Abrantes Geraldes, para quem as teses que restringem o conceito à violência exercida sobre as pessoas “determinam, com frequência, resultados irrazoáveis e inaceitáveis”. Para, depois de dar o exemplo do possuidor que se “depara com a sua casa ocupada por um terceiro (…) que, à revelia dos tribunais, procedeu ao arrombamento da porta e à mudança da fechadura”, concluir que “sendo o esbulho uma das formas através das quais se pode adquirir a posse, a sua qualificação como violento deve ser o resultado da aplicação do art. 1261.º do CC, com o que somos transportados, por expressa vontade do legislador, para o disposto no art. 255.º do CC, norma que integra na actuação violenta tanto aquela que se dirige directamente à pessoa do declaratário (leia-se, do possuidor), como a que é feita através do ataque aos seus bens” (cfr. Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., 2.ª ed., Procedimentos Cautelares Especificados, pp. 46-7). Estas orientações parecem-nos fundadas e consolidadas, justificando, pois, que a nossa atenção se dirija, primeiramente, para o art. 1261.º do CC, segundo o qual, posse pacífica é a que foi adquirida sem violência (nº1), considerando-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do artigo 255.º (nº2). E depois para o art. 255.º do CC, ao dispor que diz-se feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração (nº1), acrescentando que a ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou de terceiro (nº2). Sem olvidar, no entanto, a especial importância das circunstâncias do caso concreto, ainda que, nos nossos autos, mercê da decisão de indeferimento liminar, apenas por referência à alegação, pois como já advertia a doutrina tradicional “não é possível enunciar um conceito preciso de violência: haverá que ponderar, em cada caso concreto, as circunstâncias em que o esbulho foi praticado”. Certo que, nessa ponderação, deve “atender-se mais à substância do que à aparência, principalmente quando se trata de averiguar uma actuação violenta sobre o objecto da posse”, até porque, nesse caso, o juiz “ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador” (cfr. P. Lima e A. Varela, Ob. loc. cit.). Volvendo ao caso dos autos, deparamo-nos com a alegação de que os requeridos, “no dia 14 de agosto de 2025 ocuparam materialmente o prédio dos Requerentes, derrubando diversas árvores de fruto”. E que, “abordado o DD que se encontrava no local, de forma agressiva e intimidatória disse que o terreno era dele e que nada o podia impedir de fazer aquilo até porque já havia uma sentença”, enquanto o “requerente marido sentiu- -se intimidado e não ofereceu resistência, limitando-se a chamar a PSP ... que tomou conta da ocorrência”. Posteriormente, no dia 19 de agosto de 2025, os requeridos “iniciaram a construção de vedações no referido prédio e instalaram ainda câmaras de vigilância direcionadas para a moradia dos requerentes, sem consentimento destes”. Ora, começando pelo derrube das árvores, não nos parece que evidencie qualquer nexo causal com o desapossamento, do qual é subsequente e não motivo determinante: ou seja, já na ocupação material do prédio, obtida de outra forma, é que os requerentes terão, alegadamente, derrubado árvores de fruto. Além de que nada é esclarecido quanto à forma como se processou essa actuação, ou a qualquer influência que ela tenha tido na pessoa dos requeridos e sequer como ela poderia impedir o acesso deles ao terreno. Em nosso entendimento, e salvo o devido respeito por outro, o acto fulcral de desapossamento, face à alegação dos requerentes, repousa no ponto seguinte: abordado o requerido, que se encontrava no local, “de forma agressiva e intimidatória disse que o terreno era dele e que nada o podia impedir de fazer aquilo até porque já havia uma sentença”, enquanto o requerente “sentiu-se intimidado e não ofereceu resistência, limitando-se a chamar a PSP ...”. Porém, como afirmou a decisão recorrida, o facto de o requerido ter dito que o terreno era dele, que nada o impedia de fazer aquilo, e que já havia uma sentença “de forma agressiva e intimidatória” (art. 6.º da petição inicial) não se reconduz a coacção moral, pois não se detecta perante esta alegação a afirmação ilícita pelo requerido, tácita ou expressa, de qualquer mal futuro aos requerentes, nos termos do art. 255.º/1, do CC, aplicável por via do art. 1261.º/2 do CC. Acresce que, sendo manifestamente conclusiva a imputação de ter agido de forma agressiva, a única circunstância objectiva alegada quanto ao requerido capaz de gerar a intimidação por acção do requerente foi a de que “já havia uma sentença”. Donde resulta uma de duas consequências, sem que se vislumbre espaço para outra: ou a alegação é totalmente conclusiva sobre a intimidação, ou foi alegado que o requerente se sentiu intimidado por já existir uma sentença. O que, aliás, bem se compreende, face a regras de experiência comum, seja porque aquela decisão foi totalmente contrária aos interesses do requerente, seja em resultado do respeito e do temor reverencial que as pessoas muitas vezes nutrem perante as intervenções formais dos tribunais. Sem a mínima evidência, em qualquer caso, porém, de uma actuação que constitua violência ou a indução ou a provocação do receio de um mal de que o requerente tenha sido ilicitamente ameaçado, respeitante à pessoa, à honra ou ao património dele ou de terceiro. Somos a concluir, pois, que nesta parte não estão alegados factos que possam caracterizar o esbulho violento. Resta a colocação de vedações e de câmaras de vigilância, mas essa alegação, segundo pensamos, é ainda mais insuficiente para aquele efeito. Desde logo, veja-se que essa acção não ocorreu imediatamente com a tomada de posse por parte dos requeridos, mas apenas cinco dias depois, o que se aparta claramente da exigência do citado art. 1261.º do CC para a violência da posse, que a lei reserva para o momento da sua obtenção, e não subsequentemente. Conclusão que, ademais, é ainda reforçada pelo disposto no art. 1260.º/3 do CC, que apenas confere relevância à posse adquirida por violência. Donde resulta, como ensina a doutrina, que “para o art. 1261.º, a posse que começou violenta será violenta para sempre. Pelo contrário, não é violenta a posse que começou sem coacção, muito embora a sua subsistência resulte de violência repetida” (cfr. J. Oliveira Ascensão, Ob. cit., p. 100). Para além disso, entendemos que não está alegada no requerimento inicial matéria de facto que evidencie a colocação de obstáculos que impeçam ou condicionem relevantemente o acesso ao imóvel. Com efeito, o que afirmam os requerentes é que os requeridos, naquela data, somente “iniciaram a construção de vedações”, o que não se confunde, a nosso ver, com a impossibilidade de entrada no prédio rústico ou sequer, uma vez que se trata do início da construção, com a criação de dificuldade significativa para o efeito. Deste modo, se durante aqueles dias os requerentes não exerceram a posse sobre o prédio rústico em questão, não foi seguramente por força das vedações, que não existiam até 19 de Agosto de 2025 e que, depois dessa data, foram apenas iniciadas, restando apenas a hipótese de que isso tenha decorrido por força da intimidação sentida perante a referida sentença. Em qualquer caso, parece-nos evidente a ausência do requisito da violência no esbulho e a conclusão de que, nessa parte, a decisão recorrida não merece a censura que lhe é dirigida pelos recorrentes. Improcedem, pois, as conclusões 1 a 13 da apelação. Todavia, como referem os requerentes e a primeira instância já havia notado, isso não significa necessariamente o acerto do indeferimento liminar, certo que, nos termos do art. 379.º do CPC, ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 377.º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum. Ao passo que, segundo o art. 376.º/3 do CPC, o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida. Sendo esta norma, na verdade, aquela que permite a conversão da restituição provisória da posse em procedimento cautelar comum, contanto que estejam verificados ou, no caso em análise, alegados, os requisitos essenciais para o efeito, e não propriamente o art. 379.º do CPC, que se dirige sobretudo ao requerente e à forma como ele deve estruturar o seu pedido e causa de pedir. O mesmo é dizer que o art. 379.º do CPC determina ao possuidor esbulhado sem violência que deve recorrer ao procedimento cautelar comum; todavia, se não o fizer, o tribunal pode, ainda assim, ao abrigo do art. 376.º/3 do CPC, corrigir o erro, determinar o prosseguimento da instância com o figurino ajustado e, no final, impor a medida mais adequada, incluindo a própria restituição. Essencial para o efeito, porém, é que no plano factual tenham sido alegados e depois se apurem os elementos previstos no art. 362.º do CPC. Como refere a doutrina, o art. 376.º/3 do CPC consagra “uma quebra no princípio do dispositivo”, permitindo desde logo ao juiz “a possibilidade de emendar eventual erro na qualificação da medida”, como também “corrigir um erro na forma de procedimento utilizada” e ainda, inclusivamente, “na altura em que profere a decisão, não está vinculado à concessão da medida cautelar individualizada pelo requerente, tendo liberdade para integrar na decisão a medida que entender mais adequada a tutelar a situação e determinar aquilo que melhor favoreça a conservação do direito do requerente” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol., 3.ª ed., pp. 332-4). Ao ponto de, tendo o requerente pedido no requerimento inicial o arrolamento de bens, e desde que “em caso de alegação de justo receio da perda da garantia patrimonial, nada obsta a que o juiz determine quer a alteração da forma de procedimento, quer a efectivação do arresto” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Ob. cit., p. 334, nota 560). Ora, sabemos que, no âmbito do procedimento cautelar comum, é essencial que se alegue e se apure perfunctoriamente no seu epílogo o fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito do requerente (art. 362.º/1 do CPC). É o designado periculum in mora, sempre associado às providências cautelares, nas quais “a necessidade da composição provisória decorre do prejuízo que a demora na decisão da causa e na composição definitiva provocaria na parte cuja situação jurídica merece ser acautelada ou tutelada”, pois “a finalidade específica das providências cautelares é, por isso, a de evitar a lesão grave e dificilmente reparável (…) proveniente da demora na tutela da situação jurídica” (cfr. M. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, p. 232). Conceito que, como flui do exposto, trás consigo duas exigências fundamentais, radicadas na gravidade da lesão a prevenir, por um lado e, por outro, na natureza instrumental da medida de prevenção face ao processo principal. E que, claramente, segundo entendemos, não estão presentes no caso dos autos, mesmo considerando unicamente a alegação dos requerentes. Relativamente à gravidade, parece-nos que a decisão recorrida apreciou de forma certeira a questão, pouco havendo a acrescentar na defesa da inexistência desse requisito no caso dos autos. Com efeito, neste plano, os requerentes alegaram unicamente que “utilizavam o terreno como horta onde produziam e colhiam diversos produtos (favas, batata, milho, couves e girassol)”, que “deixaram de o poder fazer, sendo que neste momento tinham cultivado milho e girassol e que, por causa dos atos de esbulho deixaram de poder tratar, correndo o risco de perecer”. Nada mais foi alegado no requerimento inicial a este respeito, em especial sobre a dimensão da horta, os rendimentos dela provenientes e a sua importância para a economia familiar dos requerentes, o que ainda menos é possível extrair das fotografias juntas, atenta a insipiência que delas resulta quanto a tal cultivo. Da mesma maneira que as conclusões do recurso, no sentido de que ficou totalmente estrangulada a actividade agrícola dos requerentes, além de claramente genéricas, nada iluminam sobre as referidas dimensões e importância. Todavia, como refere a doutrina citada na decisão recorrida, “ficam afastadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que se mostrem irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas cit., III Vol., 3.ª ed., pp. 101-2). O que, concomitantemente, também tem sido destacado na jurisprudência, segundo a qual, “a lei apenas permite a utilização do procedimento cautelar comum nos casos em que a lesão cujo perigo de verificação fundamente a providência revista natureza grave e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são afastadas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9/1/2025, relatora Francisca Mota Vieira, proc. 753/24.0T8SJM.P1, localizável em dgsi.pt). Aliás, mesmo no âmbito dos procedimentos especificados, a exigência na apreciação do requisito do periculum in mora é justamente sublinhada pelos nossos tribunais superiores, mencionando, por exemplo, que “relativamente ao justo receio de perda da garantia patrimonial previsto no artigo 406º, nº 1, do CPC, e no artigo 619º do CC exige-se um juízo de probabilidade muito forte, não bastando qualquer receio que pode corresponder a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, num exame precipitado das circunstâncias” (cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 11/11/2024, relatora Anabela Morais, proc. 6764/24.9T8VNG.P1, disponível na mesma base de dados). No caso dos autos, porém, o dano no cultivo de milho e de girassol a que se reportam os requerentes, sem mais qualquer indicação relevante, para além de gravidade reduzida, evidencia-se ainda facilmente reparável, designadamente, caso tenha existido na realidade, através de indemnização adequada. Dito noutros termos, nem a lesão em causa se afigura grave, nem dificilmente reparável. Tanto mais que estão em causa danos puramente patrimoniais, cuja reparação é muito provavelmente assegurada por via indemnizatória e quanto aos quais “ainda que não devam excluir-se da tutela cautelar” de forma automática, sujeitam-se a um “critério a usar nesses casos [que] deve ser mais restrito do que o aplicado quando estejam em causa danos não patrimoniais, ponderando para o efeito designadamente as condições económicas do requerente e do requerido, a par da maior ou menor capacidade de uma efectiva reconstituição do statu quo ante” (cfr. A Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 420). É manifesta, pois, a falta de factos alegados pelos requerentes no que respeita ao preenchimento, mínimo que fosse, da exigência da “gravidade”. Contudo, o que ficou por dizer em primeira instância é que esses factos são ainda menos caracterizadores, e na verdade são mesmo a sua negação, no que tange à exigência da “instrumentalidade”. Cumpre recordar a este nível que, como sempre afirmou a nossa doutrina, as “providências cautelares visam precisamente impedir que, durante a pendência de qualquer acção declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo), a fim de que a sentença se não torne numa decisão puramente platónica” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual do Processo Civil, 2.ª ed., p. 23). Para além disso, igualmente a jurisprudência tem prestado particular atenção ao efeito útil associado ao estado da causa principal que a providência visa garantir. Sublinhando, em conformidade, que “o periculum in mora prende-se com a afetação ou inutilização do direito do requerente se não for decretada uma providência cautelar; é o perigo da demora, conforme resulta diretamente da tradução da expressão latina e revela, exatamente, o risco de dano irreparável ou de difícil reparação resultante de a mesma pretensão, seguindo os normais termos de uma ação judicial, se evidenciar pela demora própria desta ação. Para finalizar que “não há periculum in mora quando, como sucede, o procedimento foi proposto depois de instaurada da ação, depois da contestação (com reconvenção contra os requerentes do procedimento) e da réplica, e quando se verifica que essa ação não padece de qualquer entropia ou arrastamento que permita concluir que a sua demora constitua um risco para o direito dos requerentes” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/7/2025, relator José Eusébio Almeida, proc. 187/25.0T8PVZ-A.P1, disponível em dgsi.pt). Sucede que, no caso em apreciação, o processo principal, como reconhecem os requerentes, mais do que ter superado a fase dos articulados e do saneamento, foi inclusivamente já objecto de julgamento em primeira instância, encontrando-se, no momento em que foi proferida a decisão cautelar recorrida, pendente do final do prazo para a interposição do recurso pela parte vencida. Não se deparando os requerentes, pois, com o perigo de qualquer demora na defesa dos seus direitos no âmbito do processo principal que possam querer salvaguardar em acção cautelar, tanto mais que a eventual lesão que alegam, a existir, já está consumada. E que, em acréscimo, o referido julgamento culminou em sentença que decidiu a total procedência das pretensões deduzidas pelos ora requeridos e a completa improcedência dos pedidos dos agora requerentes. Mais, nessa sentença foi apurado que o terreno ocupado pelos requerentes e a cuja posse pretendem ser restituídos nestes autos cautelares é, afinal, propriedade da contraparte. Razões pelas quais, face às referidas circunstâncias, em atenção aos factos alegados no requerimento inicial, ao estado do processo principal e ao sentido da decisão nele proferida, está totalmente arredada a natureza instrumental da providência ou a defesa do efeito útil da decisão da acção principal. E, no entanto, é inquestionável que o processo nº …, do J. 1 do Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim, assume a condição de acção principal do nosso procedimento cautelar. Como se extrai, desde logo, do pedido dos requerentes, quando confrontados com a possibilidade de ser proferida decisão relativa à verificação da excepção da incompetência, no sentido de que fosse admitida a tramitação autónoma provisória, “ordenando-se a apensação logo que os autos baixem ou que seja esgotado o prazo do recurso sem apresentação de alegações”. Isto posto, para além de constituir um dos factores que desmente a presença da exigência da “instrumentalidade” no nosso caso, o sentido da decisão proferida na acção principal representa ainda, se bem pensamos, um argumento adicional que alicerça o juízo de manifesta inviabilidade da providência formulado em primeira instância. Na verdade, a manutenção e a restituição da posse são meios de tutela provisórios, que não prevalecem sobre a propriedade, e por isso é que qualquer delas, no dizer da doutrina, “fica condicionada a que não seja suscitada, com sucesso, a questão da titularidade do direito real que faça decair a simples protecção do direito aparente” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas cit., IV Vol., p. 30). Com clareza, é o que resulta do art. 1278.º/1 do CC: no caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito. Por outro lado, como refere a mesma doutrina, “se analisarmos a influência que o processo principal pode exercer no procedimento e questionarmos se o juiz, quando profere a decisão cautelar, deve ou não ponderar, entre outros, os elementos e decisão constantes do processo principal (…) a resposta, neste caso, é afirmativa”. Para concluir que “aquando da prolação da decisão cautelar, o juiz não deixará de relevar a decisão favorável ou desfavorável que eventualmente já tenha sido proferida no processo principal, mesmo que ainda não tenha transitado em julgado” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas cit., III Vol., pp. 154-6). Por isso, face à interdependência com ele que caracteriza o procedimento cautelar, é indubitável que, para o decidir, o juiz pode tomar em consideração o sentido da decisão e os factos provados no processo principal mediante sentença, ainda que dela tenha sido interposto recurso. Simplesmente, mais que isso, deve mesmo considerar esses factos se os requerentes, na sua alegação, não os enfrentam, nada dizendo a respeito deles, pois daí resultará que, não sendo alegados factos de sentido contrário, sobre os quais fosse possível a produção de prova, no momento da decisão final apenas existirá a esse respeito a factualidade da sentença do processo principal, mesmo que não tenha transitada em julgado. É o que se passa, segundo pensamos, no caso dos autos, uma vez que os requerentes nada alegaram susceptível de contrariar que o terreno que ocupam pertence na verdade aos requeridos, donde resultou a decisão que condenou os primeiros “a reconhecerem que o prédio rústico atribuído ao 1.º R. EE, falecido, que constitui a Verba 11 da Partilha operada em 18/12/1996 e identificado com o art.º ... e hoje com o art.º ... nunca confrontou com o prédio urbano da matriz ... da Maia, nem com o rústico dos AA, referido em 1, antes se situava, do lado contrário dessa Rua ..., não tendo qualquer confrontação com ele nem com qualquer via pública”. Bem assim, a condenação dos ora requerentes “a reconhecerem (…) que não têm qualquer título legitimo para ocupar ou dizer que são donos dessa parcela de terreno com 900m2, situada a sul do prédio urbano da rua ..., Maia, pois tal parcela pertence e sempre pertenceu à propriedade rustica dos AA [ora requeridos] identificada em 1” (cfr. ponto 4 e 6 do dispositivo da sentença). O que tudo vem reforçar o juízo de manifesta improcedência preconizado em primeira instância quanto à viabilidade de ser decretada a medida pretendida pelos recorrentes ao abrigo do procedimento cautelar comum. Improcedendo, assim sendo, as correspondentes conclusões do recurso. Em consequência, importa apreciar a última questão enunciada no objecto da apelação, destinada a apurar se, em lugar da decisão de indeferimento liminar, deveria o tribunal recorrido ter proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial. Segundo dispõe o art. 590.º/1 do CPC, nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º. Ao passo que, de acordo com o art. 590.º/4 do mesmo diploma, incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido. Embora existam situações de fronteira na aplicação das duas opções, nas quais pode ser particularmente árdua a tarefa de decidir a sua subsunção numa ou noutra dessas previsões legais, entendemos que o caso dos autos é claramente daqueles que justifica o juízo de manifesta improcedência, sem consentir a possibilidade de emissão do despacho de convite ao aperfeiçoamento. Essencialmente, por duas ordens de razões. Primeiramente, importa sublinhar que o art. 590.º/4 do CPC, ao reportar-se ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, deve relacionar-se com o art. 5.º do mesmo diploma, sobre o ónus da alegação das partes e o âmbito de cognição do tribunal. Em especial, com a determinação de que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (art. nº1) e com a regra que prevê sejam ainda considerados pelo juiz os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa (alínea b) do nº2). Isto porque é patente, mesmo no plano literal, que as insuficiências e as imprecisões na alegação constituem precisamente aquilo que é passível de ser sanado mediante factos que, em face delas, sejam complemento ou concretização. Pelo que, quando convida ao aperfeiçoamento dos articulados, o tribunal está a antecipar a necessidade de complementar ou concretizar a alegação inicial na fase dos articulados, antes da instrução da causa e, portanto, sem invadir a matéria dos factos essenciais, cuja alegação compete sempre às partes. Em consequência, o convite ao aperfeiçoamento não pode servir para sanar a falta de alegação dos factos essenciais. Neste sentido, refere a jurisprudência que “o convite ao aperfeiçoamento dos articulados deixou de constituir uma simples possibilidade, um poder, para se assumir como um dever, como um ato vinculado a ser praticado pelo juiz. “Porém, por força do princípio do dispositivo, [que impõe ao Autor a alegação dos factos essenciais, art.º 5º nº 1 e art.º 552º nº 1 al. d) CPC], está vedado ao Tribunal socorrer-se do convite ao aperfeiçoamento quanto a esses factos. O Tribunal só está legitimado a convidar ao aperfeiçoamento no tocante aos factos instrumentais e aos factos complementadores ou concretizadores” (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 20/3/2025, relatora Isabel Silva, pr. 2817/23.9T8AVR-A.P1, disponível na citada base de dados). Trata-se, ademais, de uma restrição que bem se compreende, quer no plano teórico, pois a alegação superveniente de factos essenciais implicaria a alteração da causa de pedir fora das condições previstas no art. 265.º do CPC, quer no plano prático, pois se os factos, apesar da sua essencialidade, não foram alegados pela parte a quem interessam, é porque com grande probabilidade não ocorreram. Ora, quais são as características dos factos essenciais? Responde a doutrina que o art. 5.º do CPC “torna claro que o ónus de alegação se circunscreve aos factos essenciais, isto é, aqueles de cuja verificação depende a procedência das pretensões deduzidas”. Para prosseguir que “o teor da al. b) do n.º 2 do art. 5.º revela que não há preclusão quanto a factos que, igualmente essenciais, sejam complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados. Têm a categoria de factos complementares ou concretizadores os que, embora necessários para a procedência das pretensões deduzidas (daí serem essenciais), não cumprem uma função individualizadora do tipo legal” (cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, Almedina, pp. 18-9). Paralelamente, de acordo com a jurisprudência, “são factos essenciais, do ponto de vista da posição do A., os factos que concretizam e densificam a previsão normativa em que se funda a pretensão deduzida; além destes factos – designados como “factos essenciais nucleares” – são ainda essenciais os factos que sejam deles complemento ou concretização (nos termos do art. 5.º/2/b) do CPC), embora não façam parte do núcleo essencial da situação jurídica alegada pelo A.” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/11/2022, relator António Barateiro Martins, proc. 23994/16.0T8LSB-F.L1.S1, disponível em dgsi.pt). Procurando a simbiose destas perspectivas, vale dizer que os factos essenciais a que alude o art. 5.º/1 do CPC são aqueles que, não apenas se revelam necessários para a procedência das pretensões deduzidas, como ainda integram a previsão normativa em que elas possam fundar-se. Podendo existir, pois, factos que, embora essenciais para o sucesso da pretensão das partes (em sede de acção ou de excepção), caberão já no art. 5.º/2 do CPC, podendo ser considerados independentemente de alegação. E que são constituídos pelos factos concretizadores ou complementares dos típicos ou que, mesmo indispensáveis à sua procedência, não assumem função individualizadora da previsão normativa fundamental para o pedido. Quanto aos factos que tipificam a norma, todavia, que “integram o núcleo essencial da causa de pedir ou de certa excepção peremptória deduzida (…), efectivamente carecem de ser alegados em articulado formal, produzido espontaneamente ou na sequência das alargadas possibilidades de convite ao aperfeiçoamento da matéria de facto alegada por qualquer das partes, mesmo no âmbito da audiência preliminar” (cfr. C. Lopes do Rego, O Princípio do Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Lebre de Freitas, Coimbra Ed., Vol. I, pp. 785-6). Pelo que, neste enquadramento, temos de concluir, virando a nossa atenção para o caso dos autos, que a violência, juntamente com a posse e o esbulho, integra os elementos típicos justificativos da providência de restituição provisória da posse, que os arts. 377.º do CPC e 1279.º do CC convocam. Do mesmo modo que, para o procedimento cautelar comum, o receio da lesão grave e dificilmente grave do direito constitui directamente a previsão normativa de que, nos termos do art. 362.º do CPC, depende a concessão da medida. E, em consequência, que não tinha cabimento proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento para suprir a falta de alegação de semelhantes factos essenciais e típicos das normas em causa. Em segundo lugar, cremos que a lei aponta para a adequação do despacho de convite ao aperfeiçoamento para cenários de insuficiência e incerteza, próprios de uma alegação que se percebe não ter abrangido todo o quadro factual importante e que lança a dúvida sobre o sentido da lei substantiva no caso. Inversamente, o juízo de manifesta improcedência é o ajustado para as situações em que, embora o mais importante tenha sido relatado, se antevê de imediato que a pretensão apresentada pela parte não tem respaldo nos preceitos legais que lhe são aplicáveis. Ou, como refere a jurisprudência, “a rejeição de uma pretensão com fundamento em manifesta improcedência deve ocorrer quando seja inequívoco que a mesma nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais. Dito de outro modo, esse fundamento de inatendibilidade deve ocorrer quando a improcedência ou a inviabilidade da pretensão do autor se apresente de forma tão evidente que torne inútil qualquer instrução e discussão posteriores, fazendo perder qualquer razão de ser à continuação do processo, levando a um desperdício manifesto da atividade judicial”, por razões que derivam “do direito substantivo, que deve, na formulação do respetivo juízo, ser confrontado pelo juiz com a causa de pedir e o pedido envolvidos na ação” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9/9/2024, relator Miguel Baldaia de Morais, proc. 3879/23.4T8PRT.P1, em dgsi.pt). Todavia, no caso dos autos, segundo pensamos, o mais relevante para aferir sobre a verificação do conceito da “violência” no desapossamento dos requerentes foi alegado no requerimento inicial, baseando-se na afirmação de que, “abordado o DD que se encontrava no local, de forma agressiva e intimidatória disse que o terreno era dele e que nada o podia impedir de fazer aquilo até porque já havia uma sentença”, enquanto o “requerente marido sentiu-se intimidado e não ofereceu resistência, limitando-se a chamar a PSP ... que tomou conta da ocorrência” (arts. 6 e 7 do RI). Perante a qual, como acima se fundamentou, nenhuma informação adicional é necessária para concluir que é manifesto, pela falta do requisito da violência no esbulho, que a acção nunca poderia proceder à luz dos preceitos legais pertinentes para a providência da restituição provisória da posse. Da mesma forma que, além da falta de instrumentalidade, a alegação dos requerentes é perfeitamente suficiente a respeito da dimensão da lesão e do objecto sobre a qual incidiu para que, dispensando-se quaisquer outras indagações, se afirme desde já que ela jamais poderia integrar a gravidade e a dificuldade de reparação de que depende o sucesso do procedimento cautelar comum. Improcede, assim sendo, na totalidade, o presente recurso. * DECISÃO:Pelo exposto, julgando improcedente a apelação, confirma-se a decisão recorrida. Custas pelos recorrentes, atento o seu decaimento (art. 527.º do CPC). * SUMÁRIO ……………………………… ……………………………… ……………………………… (o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico) Porto, d. s. (27/10/2025) Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo Anabela Morais José Eusébio Almeida |