Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7234/21.2T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: DOAÇÃO
CLÁUSULA MODAL
ACEITAÇÃO DO BENEFÍCIO
COMPENSAÇÃO
CRÉDITO EXEQUENDO
Nº do Documento: RP202210107234/21.2T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 10/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A doação modal ou com cláusula modal prevista no artigo 963º, do Cód. Civil caracteriza-se por ser aquela em que o donatário fica adstrito ao cumprimento de um encargo no interesse do doador, de terceiro ou do próprio donatário.
II - Ficando estabelecido no contrato de doação que o dito encargo – pagamento de determinada quantia em dinheiro em certo número de prestações – é estabelecido em favor de terceiro, existe, nessa parte, um contrato em favor de terceiro, para efeitos do preceituado no artigo 443º, n.º 1, do Código Civil.
III - Ocorrendo a aceitação do benefício em causa por parte do terceiro e a sua comunicação ao promitente e ao promissário, em conformidade com o disposto nos artigos 447º e 448º, ambos do Cód. Civil, o direito de crédito do terceiro beneficiário consolida-se de modo definitivo na sua esfera jurídica, não podendo ser, sem o seu assentimento, alterado ou eliminado.
IV - O Código de Processo Civil de 2013 veio permitir que em sede de embargos à execução venha o executado invocar um contra crédito (ainda) não reconhecido judicialmente, a compensar com o crédito exequendo, nos termos dos artigos 729.º e 731.º do CPC.
V - A exigibilidade do crédito para efeitos de compensação não significa que o crédito do compensante tenha que estar reconhecido judicialmente no momento em que é invocado, mas apenas que o crédito que se pretende vir a ser compensado existe na esfera jurídica do compensante e é exigível do respectivo devedor (exequente), não procedendo contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material, questões estas que podem (e devem) ser conhecidas em sede de sentença a proferir em embargos de executado, enquanto enxerto de natureza declarativa, e tendo em vista apenas a extinção (total ou parcial) do crédito exequendo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 7234/21.2T8PRT-A-P1- Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 3

Relator: Des. Jorge Seabra
1º Juiz Adjunto: Desembargador Dr. Pedro Damião e Cunha
2º Juiz Adjunto: Desembargadora Dr.ª Maria de Fátima Andrade
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. Por apenso à execução que lhe foi movida pelo exequente, AA, veio a executada, BB, ambos com os sinais nos autos, apresentar os presentes embargos de executado, pedindo a procedência dos mesmos.
Alegou, em suma, que é parte ilegítima uma vez que não interveio na escritura pública dada à execução e que a doação efectuada nesse documento foi feita com a cláusula de incomunicabilidade.
Notificado para contestar, o exequente pugna pela improcedência total dos presentes embargos.
Para tanto, afirmou, em suma, que improcede a ilegitimidade alegada pela embargante visto que é casada segundo o regime da comunhão de bens.

Também o outro executado, CC, veio deduzir embargos pedindo a extinção da execução por falta de fundamento legal.
Alegou, em suma, que foi feita uma rectificação da escritura pública de doação, pela qual a doadora alterou a forma de cumprimento do encargo, pelo que o embargante não é devedor de qualquer quantia.
A título subsidiário (para a hipótese de improcedência da precedente questão), invocou ainda que é titular de um contra crédito sobre o exequente no valor de €1.367.644,77, crédito este que pretende ver compensado com o seu alegado débito perante o exequente.
O exequente contestou, impugnando a factualidade alegada pelo embargante, pugnando pela improcedência total destes outros embargos de executado.
Para tanto, afirmou, em resumo, que não interveio nessa escritura pública de rectificação pelo que a mesma não lhe é oponível e que o alegado crédito do executado não pode ser invocado nestes autos de embargos à execução.
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2. Foi, posteriormente, proferido despacho a fixar o valor da causa e a dispensar a realização de audiência prévia.
Neste contexto, considerando o Sr. Juiz estar já em condições e conhecer do mérito dos embargos deduzidos, veio a ser proferida decisão final, julgando-se procedentes os embargos deduzidos pela embargante BB, decretando-se a sua absolvição da instância por ilegitimidade passiva.
Relativamente aos embargos deduzidos por CC foram os mesmos julgados improcedentes, com o consequente prosseguimento da execução contra o mesmo e nos termos peticionados pelo exequente.
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3. Inconformado com o sentenciado, veio o executado CC interpor recurso de apelação, recurso que foi admitido nos termos legais, em cujo âmbito ofereceu alegações e aduziu, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
1) A escritura pública outorgada em 14-01-2021, entre a doadora DD e o donatário CC, modifica legalmente, a forma do cumprimento de encargo imposto pela doadora ao donatário na doação que fez a este na escritura pública de 27-02-2017;
2) No dia 14 de Janeiro de 2021, no Cartório Notarial ..., no Porto, a folhas 37 e 38 do livro ... do Livro de Notas, a doadora alterou a forma de cumprimento do encargo que impôs ao ora Recorrente, nos seguintes termos:
a) “Mantém o encargo que impôs aos seus filhos (CC e EE) (na escritura) … de pagarem ao irmão destes AA (NIF ...) cada um a quantia de €1.375.000,00, alterando, a forma de pagamento deste encargo, no que respeita à quantia em falta, permitindo em consequência, aos aqui segundo e terceira outorgantes (o Recorrente CC e sua irmã EE), não cumprir os prazos prestacionais previstos na escritura mencionada, podendo pagar a(s) referida(s) quantia(s) em falta até à data limite do final do ano de 2030, sendo que, nesta hipótese”, o Recorrente CC, com referência a cada uma das datas mencionadas na escritura de doação supra identificada, passa a pagar juros anuais de 1,5% àquele seu irmão AA, sobre o valor que ainda não tenha sido pago, e tenha ultrapassado a(s) data(s) da(s) prestação(ões) referida(s) na doação acima identificada;
b) Caso o pagamento do encargo, com referência a cada uma das datas previstas na mesma escritura, seja antecipado, o donatário que proceda a tal pagamento, fica com a faculdade de reduzir a esse montante pago, o valor de 1,5% ao ano, com referência ao período de antecipação do pagamento que faça, em relação às datas previstas para cada prestação na aludida escritura.”
3) O Recorrente, como donatário aceitou esta alteração à escritura inicial de doação, nos termos do artigo 940º do Código Civil.
4) O Recorrente não é devedor de qualquer quantia ao Recorrido que este possa executar pois a data limite para o cumprimento do encargo é o final do ano de 2030, nos termos e condições impostas pela doadora,
5) Em nenhum momento ou lugar, a lei refere que seja necessária na escritura de doação ou de modificação ou de extinção de um contrato de doação (nos termos do artigo 406º, nº. 1 do Código Civil) a intervenção na escritura pelo terceiro beneficiário de um ónus ou encargo, para o aceitar ou aceitar a sua modificação;
6) A escritura de alteração de doação quanto à forma de cumprimento de encargo outorgada entre a Doadora DD e o Recorrente CC, na data de 14 de Janeiro de 2021, com referência ao contrato de doação que a doadora em 27-02-2017 lhe fez, contém o mesmo “animus donandi” característico da própria doação, pelo que deve e tem que ser legalmente entendida como incorporada no próprio ato da doação escriturada em 27-02-2017;
7) Nos termos dos artigos 406.º e 457.º do Código Civil, os contratos podem modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei, sendo que a promessa unilateral de uma prestação só obriga nos casos previstos na lei.
8) A falta de intervenção do beneficiário de um encargo imposto pela doadora na escritura de alteração quanto à forma de cumprimento do encargo lavrada no dia 14-01-2021, não retira a total validade e eficácia jurídica à alteração da forma do cumprimento de encargo feita nesta escritura, na qual se mantém o encargo, com reformulação dos termos do cumprimento a ser efectivado de forma diferente do que consta no texto inicial da doação lavrada no dia 26-02-2017;
9) A escritura lavrada na data de 14 de Janeiro de 2021 é expressa em dizer que a doadora por esta escritura pretende alterar a forma de cumprimento do encargo imposto ao Recorrente CC na data de 17-02-2017;
10) Nesta escritura de alteração, com referência à doação que fez ao filho CC, a doadora DD:
- Mantém o encargo que impôs a este donatário de pagar a quantia de €1.375.000,00 ao seu irmão AA e
- Altera os prazos prestacionais que previra na escritura de 27-02-2017, ficando o donatário com a possibilidade,
- De pagar as quantias que estejam em falta no cumprimento do encargo até à data limite do final do ano de 2030, sendo que, nesta hipótese, o Recorrente, com referência a cada uma das datas mencionadas na escritura de doação de 27-02-2017 passará a pagar juros anuais de 1,5% àquele seu irmão AA sobre o valor que ainda não tenha sido pago, e tenha ultrapassado as datas das prestações referidas na doação de 27-02-2017.
11) Esta alteração de doação quanto à tempo de cumprimento de encargo, outorgada na data de 14-01-2021 é legal, válida, eficaz e cumpre o disposto no artigo 406º nº1 do Código Civil que permite a um contrato de doação poder ser modificado por mútuo consentimento dos contraentes.
12) A forma de cumprimento de encargo constante na doação feita por escritura pública de 27-02-2017,
- perante o contexto alterado consensual da doação que a doadora DD fez à Recorrente na escritura pública de 14-01-2021,
- passou a ter a forma de cumprimento constante na escritura de 14-01-2021,
- por força do disposto no citado nº. 1 do artigo 406º do Código Civil.
13) A lei (artigos 732º e 729º alínea a) inexequibilidade do título, alínea h) do CPC) autoriza que o contracrédito que o executado/Recorrente tem sobre o exequente, seja por ele invocado com vista a obter a compensação de créditos que tem sobre o exequente, já que o executado/Recorrente é credor do exequente no valor global de €1.367.664,77,
14) O Sr Juiz a quo, na sentença que proferiu, violou o disposto nos artigos 940º, 945º, 947º, 963º, 406º-1 e 457º do Código Civil e nos artigos 615º-1 (artigos 732º e 729º alínea a) - inexequibilidade do título, alínea h) do CPC..
Nestes termos e nos mais de Direito (…) deve ser julgado procedente o presente recurso e revogada a sentença proferida com as consequências legais.
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4. Não foram oferecidas contra-alegações ao recurso.
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5. Na sequência do despacho proferido nesta instância, veio o Sr. Juiz a conhecer/decidir sobre a arguida nulidade (da sentença) por omissão de pronúncia quanto ao pedido subsidiário deduzido pelo apelante/embargante CC (compensação de créditos), proferindo, neste contexto, o seguinte despacho:
Salvo o devido respeito, não colhe a arguida nulidade por falta de pronúncia quanto à invocada compensação.
Da retórica argumentativa estribada na sentença proferida nos autos retira-se, com meridiana clareza, que a invocada compensação não tem viabilidade processual e não se enquadra na previsão contida no art. 729º, al. h) do CPC.
Além do mais, é evidente que não estão reunidos os requisitos exigidos e previstos no art. 847º do CC para ser invocada a compensação, desde logo a exigibilidade do contracrédito.
Com efeito, torna-se claro que o recorrente/embargante não se mostra munido de documento que constitua título executivo para fundar tal compensação – vide, entre outros, os Acórdãos do STJ de 14-03-2013 e de 26-05-2015; e ainda da Relação de Évora de 23-11-2017, in www.dgsi.pt.
Destarte, julgo improcedente a invocada nulidade. “
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Mostrando-se cumpridos os vistos legais, cabe decidir.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não sendo lícito a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas se mostrem de conhecimento oficioso – artigos 635º, n.º 4, 637º, n.º 2, 1ª parte e 639º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes em 1ª instância e ali apreciadas, sendo que a instância recursiva não se destina à prolação de novas decisões judiciais, mas ao reexame ou à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias, em função das questões convocadas pelas partes.
Nestes termos, as questões a dirimir são as seguintes:
I. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia – artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC.
II. Inexigibilidade da obrigação exequenda – Doação com encargos.
III. Compensação.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
Na sentença recorrida foram julgados como provados os seguintes factos:
1. O exequente apresentou à execução a escritura pública denominada “DOAÇÕES”, outorgada em 27 de Fevereiro de 2017, perante o Notário, FF, no cartório Notarial sito em Santa Maria da Feira, onde compareceram como outorgantes: DD (Primeira Outorgante); AA (Segundo Outorgante); CC (Terceiro outorgante); EE (Quarta Outorgante) – vide escritura apresentada como título executivo junta com o requerimento executivo, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
2. Nesse acto, a Primeira Outorgante, mãe do exequente e executado, doou diversos bens, incluindo ao aqui embargante/executado, e impôs-lhe o encargo de liquidar ao aqui exequente a quantia de €1.375.000,00 (tendo o aqui executado aceite tal doação e encargo), nos termos e prazos aí expressamente previstos - vide escritura apresentada como título executivo junta com o requerimento executivo, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
3. O aqui embargante/executado foi interpelado pelo aqui embargado/exequente para liquidar as quantias em débito por carta registada com aviso de recepção, datada de 19-11-2020 - vide docs. 2, 3 e 4 juntos com o requerimento executivo, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
4. O aqui embargante/executado foi também interpelado pelo aqui embargado/exequente para liquidar as quantias em débito por notificação judicial avulsa – vide doc. 5, junto com o requerimento executivo, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
5. Foi outorgada a escritura pública denominada “ALTERAÇÃO DE DOAÇÃO QUANTO À FORMA DE CUMPRIMENTO DE ENCARGO”, em 14 de Janeiro de 2021, perante a Notária, GG, no cartório Notarial sito no Porto, onde compareceram como outorgantes: DD (que figura como Primeira Outorgante); CC (que figura como Segundo Outorgante); e EE (que figura como terceira Outorgante) – vide escritura junta nestes autos, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
6. Neste último acto, não interveio o aqui exequente - vide escritura junta nestes autos, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
7. Nesse mesmo acto, a referida Primeira Outorgante alterou a forma de cumprimento do encargo que impôs ao aqui embargante/executado nos moldes aí previstos, sendo que fixou como data limite de liquidação o final do ano de 2030 - vide escritura junta nestes autos, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
8. O aqui embargante/executado declarou aceitar essa alteração, nos termos e condições aí assinaladas - vide escritura junta nestes autos, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
IV.I. Nulidade da sentença (omissão de pronúncia – artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC):
Resulta das conclusões do recurso que o apelante advoga a nulidade da sentença por na mesma não ter o Sr. Juiz do Tribunal de 1ª instância conhecido e decidido do pedido subsidiário por si formulado – para a hipótese de improcedência da questão da inexigibilidade da dívida exequenda e à luz da escritura de alteração do modo de cumprimento do encargo previsto na doação outorgada entre a mãe dos aqui exequente e executados – e atinente à compensação entre o crédito exequendo e o crédito de que se arroga titular o próprio executado perante o ora exequente.
Nesta matéria, como é consabido e resulta do artigo 608º, n.º 2, do CPC, deve o juiz resolver/decidir todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra; por outro lado, como é também pacífico, as questões a que se reporta o citado normativo são o pedido e a respectiva causa de pedir, assim como a excepção e a respectiva causa de pedir invocada pelo réu, não se confundindo, pois, com os argumentos ou as razões de facto e/ou de direito em que as partes fundam a sua pretensão ou a sua defesa.
Dito isto e tendo presente que o pedido subsidiário é aquele que o tribunal deve conhecer somente no caso de não proceder um pedido anterior (artigo 554º, n.º 1, do CPC), será apodíctico dizer-se que, no caso dos autos, estribando o executado a sua defesa, em primeira linha, na alegada inexigibilidade da dívida exequenda e, em segunda linha, para o caso de não vingar aquela primeira, na extinção (total ou parcial) da dívida exequenda por via da compensação do contra crédito de que o mesmo se arroga titular perante o exequente (artigo 847º, do Cód. Civil), julgando o Tribunal, como foi o caso, improcedente aquela primeira linha de defesa do embargante, teria ele que conhecer/decidir obrigatoriamente da segunda linha de defesa, ou seja, da alegada compensação, nomeadamente da sua aplicação ao caso dos autos, sendo certo que, a ser possível/admissível essa compensação, os autos poderiam ter que prosseguir para aferir da existência e do montante do contra crédito em causa, falhando, pois, neste outro contexto, as condições (afirmadas na sentença recorrida) para o imediato conhecimento de todos os pedidos formulados pelo executado/embargante, em particular o que atina, a título subsidiário, com a alegada compensação.
Não o fazendo, cremos ser seguro dizer-se que se verifica a nulidade de omissão de pronúncia à luz do citado artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC.
E não se diga, como defende o Sr. Juiz a quo no despacho referido em 5 deste relatório, que resulta, “ com meridiana clareza “, da estrutura argumentativa da sentença que a compensação não pode operar em sede de embargos de executado, pois que, com o devido respeito, na sentença em causa não existe a mínima referência expressa (ou sequer implícita) à questão da compensação e quanto à procedência/improcedência de tal pretensão subsidiária, tendo, por conseguinte, em nosso ver e salvo melhor opinião, a sentença omitido pronúncia sobre essa questão, sem prejuízo de tal omissão ter vindo a ser suprida pelo despacho posterior e a que já se fez alusão no prévio relatório.
Certo é, no entanto, neste outro contexto, que a questão da sobredita nulidade se mostra agora ultrapassada à luz deste último despacho.
Com efeito, tendo o Tribunal de 1ª instância, em sede de admissão do recurso de apelação (na sequência do despacho proferido nesta instância e para efeitos do preceituado no n.º 5 do artigo 617º, do CPC) conhecido agora desse pedido subsidiário, considerando e julgando que, na situação dos autos, não colhe aplicação o preceituado no artigo 729º, alínea h), do CPC e, ainda, que não ocorre o pressuposto de exigibilidade do contra crédito invocado pelo executado (artigo 847º, n.º 1, alínea a), do CPC) – por falta de título executivo -, a questão desloca-se já para o próprio mérito dessa decisão ulterior, sendo certo que, como resulta do artigo 617º, n.º 2, do CPC, essa decisão passa a ser complemento e parte integrante da sentença inicialmente proferida, constituindo, por isso, também objecto do recurso interposto pelo apelante – vide conclusões 13) e 14) – e que nos cumpre conhecer nesta instância.
O que, em conclusão, significa que, para os devidos efeitos, a questão da nulidade do acto decisório por omissão de pronúncia se mostra prejudicada e, por isso, o que há a decidir nesta instância é do mérito da decisão de não admitir a compensação invocada pelo embargante/executado e pelas razões avançadas pelo Tribunal de 1ª instância naquele ulterior despacho.
Como assim, julga-se prejudicada a arguida nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à dita questão/pedido subsidiário (compensação), questão que será objecto de oportuna reapreciação nesta instância de recurso.
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IV.II. Inexigibilidade da dívida exequenda – Alteração do modo de satisfação do encargo previsto na escritura pública celebrada 27.02.2017 pela subsequente escritura pública celebrada a 14.01.2021 – Oponibilidade dessa alteração ao exequente.
Ultrapassada a questão formal antes suscitada, cumpre conhecer da primeira questão substantiva colocada no presente recurso e que antes se delimitou nos seus termos essenciais.
Como resulta da sentença recorrida, na mesma sufragou-se o entendimento de que a alteração do modo de cumprimento do encargo previsto na escritura pública de doação de 2017 (vide ponto 2 da matéria de facto) por meio da subsequente escritura de “ alteração de doação quanto à forma de cumprimento de encargo “ datada de 2021 (vide ponto 5 da matéria de facto) não era oponível e vinculativa para o aqui exequente/embargado, sendo certo que este último, tendo intervindo e aceite aquele modo de cumprimento do encargo inicialmente estabelecido (na escritura de 2017), não veio a intervir e, logo, a aceitar essa alteração emergente da escritura subsequente (escritura de 2021), em que apenas intervieram a doadora e o donatário.
Por seu turno, o apelante sustenta que, à luz do preceituado nos artigos 406º, n.º 1 e 457º, ambos do Cód. Civil, a alteração da doação quanto ao modo de cumprimento do encargo inicialmente previsto pode ser alterado/modificado apenas com o mútuo consenso dos contraentes na dita doação (doadora e donatário), não carecendo, pois, da intervenção do beneficiário do encargo em apreço.
Daí que, segundo advoga, sendo essa alteração válida e eficaz por nela terem intervindo as partes que deveriam nela intervir, ou seja, a doadora e o donatário, a mesma deve ser tida como oponível àquele terceiro/beneficiário do encargo, ou seja, ao aqui exequente, com a inerente inexigibilidade da obrigação exequenda.
Com o devido respeito, não se pode acompanhar a tese defendida pelo apelante, o qual, em nosso ver, configura artificialmente a escritura de 2021 como mera alteração da anterior doação – para o que, concordamos, bastaria a intervenção dos respectivos outorgantes (doadora e donatário) -, quando, de facto, não está em causa uma estrita doação outorgada entre a doadora e o donatário, mas antes, como se mostra salientado na douta sentença recorrida, uma doação modal, ou seja, uma doação com encargo estabelecido por conta do donatário e a favor de terceiro (o ora exequente) e em que este último interveio (vide escritura de 2017), ali declarando aceitar em seu favor aquele encargo estabelecido pela doadora e assumido pelo donatário (ora executado) nos termos ali consignados consensualmente entre todos, ou seja, entre doadora, donatário e beneficiário/aceitante.
Se não, vejamos.
Segundo o disposto no artigo 940º, n.º 1, do Código Civil, a doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.
Como assim, extraem-se como elementos estruturais da doação, o seu objecto – coisa, direito ou obrigação; a sua função – transmissão de um direito ou assunção de uma obrigação; e a sua função económico-social – liberalidade. [1]
Neste sentido, como também referem P. Lima, A. Varela, “ Código Civil Anotado “, II volume, 3ª edição, pág. 257, são três os requisitos exigidos pelo artigo 940º, para que exista uma doação:
a) Disposição gratuita de certos bens ou direito, ou assunção de uma dívida, em benefício do donatário, ou seja, uma atribuição patrimonial sem correspectivo;
b) Diminuição do património do doador;
c) Espírito de liberalidade.
Por outro lado, ainda, no nosso ordenamento jurídico, ao contrário do que sucede em outros ordenamentos, a doação é expressamente qualificada pelo legislador como um contrato, sendo, pois, essencial a existência de uma proposta de doação e a subsequente aceitação pelo donatário, aceitação essa que pode ter lugar, em desvio aos prazos mais curtos de vigência da proposta contratual previstos no artigo 228º, do Cód. Civil, durante todo o tempo correspondente à vida do doador (artigos 945º, n.º 1 e 969º, n.º 2, ambos do Cód. Civil). [2]
Acresce, ainda, que, não obstante a sua natureza contratual, a doação consubstancia um contrato unilateral – por contraposição aos contratos bilaterais ou sinalagmáticos que geram obrigações para ambas as partes, obrigações ligadas entre si por uma nexo de correspectividade -, pois que, em razão da sua função de liberalidade (acto gratuito), gera obrigações apenas para uma das partes, qual seja, o doador. [3]
Dito isto, além de outras modalidades que ora não relevam (v.g., doação remuneratória ou doação por morte – artigos 941º e 946º, do mesmo Código), prevê o n.º 1, do artigo 963º, do Cód. Civil, que as doações podem ser oneradas com encargos.
Significa isto que na doação, tal como sucede em outros negócios jurídicos que constituem liberalidades (artigo 2244º, do mesmo Código), as partes podem nela fazer inserir uma cláusula modal – modo, ou encargo -, que se constitui como cláusula acessória típica deste tipo de negócios.
Através da inserção dessa cláusula, o doador (ou disponente) impõe ao donatário (ou beneficiário da liberalidade) um determinado encargo, ou seja, a obrigação de adoptar um certo comportamento no interesse do doador, de um terceiro ou do próprio donatário.
Nesta perspectiva, o modo ou encargo inserido neste tipo de contratos consiste numa restrição imposta ao beneficiário da liberalidade que o obriga à realização de determinada prestação no interesse do próprio autor da liberalidade, de terceiro, ou do próprio beneficiário (donatário).
Neste sentido, como refere Carlos Ferreira de Almeida, op. cit., pág. 54, “ … No contrato de doação, o modo (ou encargo) pode ser estipulado a favor do doador ou de terceiro. Nesta hipótese, em que o contrato se qualifica, nessa parte, como contrato a favor de terceiro, o benefício pode ser atribuído a pessoa determinada ou a um conjunto indeterminado de pessoas. Pode ser também estipulado no interesse público, desde que tal interesse possa ser reclamado por alguma pessoa jurídica com competência para o defender (cfr. artigo 445º).
Por conseguinte, a cláusula modal poderá definir-se como uma cláusula acessória, usual nos negócios que envolvam liberalidades, através da qual o doador (ou disponente) impõe ao donatário o cumprimento de um ónus ou encargo, ficando este juridicamente obrigado à sua realização, nomeadamente em favor de um terceiro, sendo então, na parte em que contempla ou beneficia um terceiro, o contrato em apreço tido também como um contrato em favor de terceiro, tal como este se mostra definido pelo artigo 443º, do Cód. Civil. [4]
No entanto, este encargo não é perspectivado ou tido como contrapartida da vantagem patrimonial recebida pelo donatário – o que colocaria em causa a natureza de gratuidade/liberalidade da doação -, configurando-se antes como uma restrição à sua liberdade de actuação, sendo certo, ademais, que o valor correspondente ao encargo estabelecido não pode nunca representar um valor superior ao da própria doação, como decorre do aludido artigo 963º, n.º 2 ao nele se prever que o cumprimento do encargo ocorre apenas “ … dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado.
Neste sentido, como também realçam P. Lima, A. Varela, op. cit., pág. 290, “ … A responsabilidade pelo cumprimento dos encargos tem o limite que lhe é fixado pelo n.º 2: não pode ultrapassar o valor da coisa ou do direito doado.
Esta é uma limitação evidente, resultante da natureza funcional específica do modus. A doação modal é sempre uma doação, uma liberalidade, que não pode transformar-se num acto prejudicial para o donatário. “ [5]
Dito isto, no caso dos autos, não é posto em causa que a escritura de doação de 2017 (título executivo que serve de fundamento à execução) constitui, como consta da qualificação efectuada na sentença recorrida, uma doação modal, pois é pacífico que naquela doação a ali doadora estabeleceu a cargo do donatário (ora executado) o encargo/obrigação de o mesmo proceder ao pagamento ao ora exequente da quantia de €1.375.000,00 e nos termos ali previstos, ou seja, através das prestações iguais e sucessivas ali consignadas e que o dito beneficiário (ora exequente), no mesmo acto (escritura de 2017) expressamente aceitou em seu favor, sendo também indiscutido entre os litigantes que o embargante/executado não procedeu ao pagamento de tais prestações, apesar de ter sido interpelado para que efectuasse esse pagamento e para efeitos do preceituado no artigo 781º do Cód. Civil – vide, ainda, os factos provados em 3 e 4.
Aqui chegados e tendo o antes exposto por assente, a questão central suscitada pelo apelante e a reapreciar nesta instância é saber se a escritura datada de 2021 de alteração do modo de cumprimento do aludido encargo/obrigação estabelecida em favor do ali beneficiário (ora exequente) – e que o mesmo aceitou apenas nos termos consignados na escritura de 2017 – pode, como advoga o apelante, ser unilateralmente oposta ao ora exequente (pois que o mesmo não interveio na escritura de alteração de 2021), alterando, pois, como fizeram, a doadora e o donatário (ora executado), sem o assentimento do beneficiário, os termos do cumprimento do aludido encargo estabelecido em seu favor, passando aquela obrigação de pagamento a ter-se como vencida apenas em 2030, sem prejuízo do vencimento dos juros de mora de 1, 5% ao ano ali previstos.
A resposta, em nosso ver, não pode deixar de ser negativa, em consonância com o decidido em 1ª instância.
Com efeito, como já antes se assinalou, mostrando-se o encargo estabelecido em favor de terceiro (estranho à relação contratual de doação propriamente dita), o mesmo há-de ser configurado e qualificado, nessa parte, como um contrato em favor de terceiro, como decorre do citado artigo 443º, n.º 1, do Cód. Civil.
De facto, como estabelece este último normativo, “ Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita.
Ora, subsumindo juridicamente a hipótese da norma que vimos de citar ao caso concreto dos presentes autos, resulta patente que, na doação (modal) que serve de título executivo (a escritura de doação de 2017), a li doadora (promissária) – perante a qual o donatário (ora executado) assumiu a obrigação de pagamento da quantia de €1.375.000,00 em favor de terceiro (o ora exequente) – e o promitente (donatário) – que assumiu/aceitou ter que efectuar aquele pagamento ao terceiro (que o aceitou na mesma escritura) – outorgaram um contrato em favor deste terceiro, comprometendo-se/obrigando-se, assim, o ali donatário (ora executado) a efectuar aquele pagamento nos moldes ali consignados e em favor do ora exequente.
Neste sentido, como é consabido, o contrato a favor de terceiro é o contrato em que um dos contraentes (promitente) atribui, por conta e à ordem do outro (promissário), uma vantagem a um terceiro (beneficiário), estranho à relação contratual.
Como refere nesta temática A. Varela, “ Das Obrigações em Geral “, I volume, 6ª edição, pág. 375, “ … Essencial ao contrato a favor de terceiro, como figura típica autónoma, é que os contraentes procedam com a intenção de atribuir, através dele um direito (de crédito ou real) a terceiro ou que dele resulte, pelo menos, uma atribuição patrimonial imediata para o beneficiário. “ [6]
Ora, sendo assim, como cremos, esta qualificação tem consequências significativas quanto à pretensão (principal) deduzida pelo executado em sede de embargos à execução e, no que ora releva, conduz, de forma inequívoca, à improcedência da sua pretensão no sentido de impor, de forma unilateral, a alteração do modo de cumprimento do encargo em apreço nos autos e nos termos previstos na escritura de alteração de 2021 e na qual, como é indiscutido, o ora exequente não interveio e, por isso, não deu o seu assentimento à alteração dos termos do cumprimento do encargo antes estabelecido.
Com efeito, como assinala a nossa doutrina em sede de contrato de contrato em favor de terceiro, embora este último não tenha (sequer) que intervir no contrato celebrado em seu favor e que aceitar a prestação em causa para que o contrato se tenha como perfeito/concluído e, assim, para que nasça (automaticamente) na sua esfera jurídica o direito à prestação em causa (artigo 444º, n.º 1, do Cód. Civil), certo é ainda que, uma vez operada a aceitação da promessa por parte do beneficiário e comunicada essa aceitação ao promitente e promissário (aceitação e comunicação essa que, no caso dos autos, até teve lugar na própria escritura de 2017, pois que todos nela outorgaram), o direito do beneficiário (o ora exequente) fica definitivamente definido e estabilizado e, portanto, logicamente, a partir desse momento (aceitação) esse direito não pode ser posto em causa, seja por revogação ou alteração dos seus termos, de forma unilateral, seja pelo promissário, seja pelo promitente ou, ainda, por ambos em conjunto, como ora sucedeu através da escritura de 2021.
Essa eventual alteração (ou revogação) da promessa de prestação só seria válida e eficaz perante o terceiro se este último desse assentimento (expresso ou tácito) a tal alteração/revogação, o que no caso dos autos, insiste-se, não ocorreu, pois que, como é pacífico, este último nem sequer interveio ou aceitou posteriormente (como se evidencia da instauração da presente execução) a alteração ao encargo feita consignar na dita escritura de 2021.
Neste sentido, como salienta Margarida Lima Rego, na obra referida sob a nota (3) deste acórdão, pág. 578-579, “… A adesão (do beneficiário) é um acto confirmativo da aquisição do benefício, mediante o qual este se consolida, perdendo a sua natureza precária e tornando-se definitivo, nos casos em que tenha aplicação a regra supletiva de que a adesão ao benefício determina o advento da sua irrevogabilidade, constante do art. 448º. “ (sublinhado nosso)
Exactamente pela mesma ideia alinha também Armando Triunfante, “ Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral “, UCE, 2018, pág. 178, quando, a propósito do contrato em favor de terceiro, refere: “ … O benefício é atribuído ao terceiro de forma automática, não se exigindo a sua aceitação ou conhecimento. No entanto, o legislador previu neste artigo (refere-se ao artigo 447º) a possibilidade de o terceiro beneficiário poder aderir ou, pelo contrário, rejeitar a promessa.
A aquisição do direito à prestação dá-se como efeito imediato do contrato a favor de terceiro. No entanto, esse direito não é ainda definitivo, precisamente pelo facto de o terceiro poder rejeitar. A adesão apresenta, por consequência, o efeito de tornar definitivo na esfera jurídica do terceiro beneficiário o direito que o contrato lhe atribui. “ (sublinhados nossos)
Destarte, só se pode concluir, como decidido pelo Tribunal de 1ª instância, que a posterior escritura pública de 2021 e a ali consignada alteração dos termos do cumprimento do encargo previsto na prévia escritura de doação de 2017 (título executivo), não tendo obtido aceitação por parte do ali beneficiário (ora exequente), não lhe é oponível e, nessa lógica, a obrigação exequenda, tal como decorre daquele escritura de doação modal de 2017 que serve de título executivo à presente execução, é plenamente exigível, não colhendo, assim, provimento a pretensão principal do apelante/executado CC e quanto à pretensa inexigibilidade de tal obrigação por via da ulterior alteração consignada em 2021. [7]
Improcedem, assim, as conclusões 1) a 12) da apelação, com a consequente manutenção da sentença na parte em que nela se julgou certa, líquida e exigível a obrigação exequenda.
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IV.II. Da compensação do contra crédito invocado pelo executado a título subsidiário:
Decidido o pedido principal deduzido pelo embargante/executado nos presentes embargos de executado, cumpre, ainda, conhecer do pedido subsidiário deduzido pelo embargante, ou seja, a questão da eventual compensação do contra crédito de que se arroga titular o mesmo embargante/executado perante o ora exequente, sendo certo que da operacionalidade dessa compensação, enquanto causa extintiva das obrigações (além do próprio cumprimento), pode resultar, no caso dos autos, o afastamento (total ou parcial) do crédito dado em execução - artigo 847º, do Cód. Civil.
Nesta matéria, o Sr. Juiz, ancorando-se em alguma jurisprudência dos nosso tribunais, considerou que a compensação, para ser admissível à luz do preceituado no artigo 729º, alínea h) ex vi do artigo 731º, ambos do CPC, supõe sempre que o crédito a compensar esteja já reconhecido judicialmente através de sentença, sendo que, na fase executiva (como é o caso), um crédito só pode ser compensado por outro que também já tenha força executiva, isto é que conste de um título executivo previamente constituído.
Vejamos.
Como é consabido, a compensação constitui uma das formas de extinção das obrigações previstas no Código Civil (artigos 847º a 856º), traduzindo-se na “ extinção de duas obrigações, sendo o credor de uma delas devedor na outra, e o credor desta última devedor na primeira. “ Trata-se, no fundo, de um acerto ou encontro de contas que se justifica pela conveniência de evitar às partes pagamentos recíprocos e que pode funcionar como garantia dos créditos pois permite ao seu declarante extinguir a sua obrigação, mesmo que não tenha qualquer possibilidade de receber o seu próprio crédito, por exemplo, por insolvência do seu devedor. [8]
Neste contexto, prevê o citado artigo 847º, o seguinte:
1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:
a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade;
Em função desta previsão legal – que contende apenas com a denominada compensação legal -, é comum estabelecerem-se como requisitos cumulativos para a operacionalidade da compensação, os seguintes: i- reciprocidade dos créditos; ii- validade e exigibilidade do crédito do compensante; iii- fungibilidade do objecto das prestações; iv- existência e validade do outro crédito, isto é, do débito compensante, pois que só assim o declarante será devedor e haverá reciprocidade de créditos. [9]
No caso dos autos, dentro deste conjunto de requisitos da compensação, apenas se esgrime nos autos o requisito da exigibilidade do crédito invocado pelo compensante (ora executado), pois que, segundo o entendimento perfilhado na sentença recorrida, esse crédito, para ser tido como exigível e, nesse pressuposto, poder constituir fundamento válido de oposição por embargos de executado à luz do citado artigo 729º, alínea h), do CPC, ter-se-á de mostrar previamente reconhecido e integrado também em (prévio) título executivo.
Não sendo esse o caso dos autos, como, indiscutidamente, não é, segundo o mesmo entendimento plasmado pelo Sr. Juiz na decisão recorrida, o contra crédito invocado pelo compensante (executado/embargante) não pode servir de base à reclamada compensação e consequente extinção parcial da obrigação exequenda, como é sua pretensão (subsidiária).
Como é consabido e resulta até da jurisprudência citada pelo Sr. Juiz em sustento da sua posição, a questão da invocação da compensação em sede de embargos de executado deduzidos como oposição a execução fundada em título executivo que não seja sentença [10] não tem vindo a merecer uma resposta totalmente uniforme na doutrina e na jurisprudência.
Importa, no entanto, antes ainda de expormos a nossa posição nesta divergência que vai permanecendo na doutrina e na jurisprudência, traçar, em termos gerais, os termos a que há-de obedecer a invocação da compensação em sede de embargos de executado, seguindo, para tanto, a exposição de Rui Pinto, in “ A Acção Executiva “, AAFDL, 2018, pág. 391.
O dito Autor refere o seguinte esquema geral:
A compensação que o executado já realizou antes da oposição à execução deve ser incluída na alínea g) do artigo 729º, seja na execução de sentença ou na execução de título diverso de sentença.
Efectivamente, se o devedor executado já emitira a declaração de compensação, não se vê como compensará um contra crédito que já foi cobrado por meio da compensação ou que possa ter ainda em “ vista […] obter a compensação de créditos. “
“ Pelo contrário: em abono da verdade material, se já houve compensação extrajudicial o executado deve fundar os seus embargos num facto extintivo da sua (já pretérita) dívida, no quadro da previsão e das condições da al. g) do artigo 729º. Mas no caso de sentença, a compensação extrajudicial deve ser superveniente e deve ser provada por documento, como exige esta alínea.
E, ainda, prossegue o mesmo Autor:
A contrario, a alínea h) vale apenas para a emissão de uma declaração de compensação por meio da própria petição de oposição à execução (compensação judicial), tanto de sentença como de título diverso de sentença.
Há uma diferença importante, porém:- a compensação judicial deduzida contra a execução de sentença (i) apenas pode ser objecto de prova documental, e (ii) deve ser superveniente, como decorre da parte final da alínea g) do artigo 729º. A sujeição a esses limites decorre das regras da preclusão de fundamentos de defesa e do valor do caso julgado da sentença (…).
Já a compensação judicial deduzida contra título diverso de sentença não está sujeita a esses limites; eles estão fora do âmbito da remissão do artigo 731º para as alíneas g) e h) do artigo 729º. “ (sublinhado nosso)
Dito isto, e retomando agora a divergência doutrinal e jurisprudencial antes referida, como já ali se adiantou existem, quanto à possibilidade de invocação da compensação pelo devedor/executado em sede de oposição à execução por embargos, duas posições distintas.
Uma destas correntes sustenta que a exigibilidade do contra crédito do compensante, enquanto requisito da compensação, supõe o seu reconhecimento prévio em acção judicial e, portanto, que o dito crédito a compensar se mostre a coberto de um título executivo. [11]
Tal não ocorrendo, a compensação não pode ter lugar e, logicamente, a mesma não constitui fundamento válido de oposição à luz do preceituado no artigo 729º, alínea h), do CPC, conforme se perfilhou na decisão recorrida, seja a execução fundada em sentença ou em outro título executivo diverso.
Esta posição tem, no entanto, vindo a merecer sucessivas críticas, em particular da doutrina.
Observa, por exemplo, José Lebre de Freitas, “ A Acção Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013 “, 7ª edição, 2017, pág. 204, nota 22: “… nada autoriza a restrição [só se a existência do contra crédito se provar por documento com força executiva]: ao alegar a compensação, o executado pretende apenas fazer valer um facto extintivo do direito exequendo (na acção declarativa de embargos de executado), nada mais lhe sendo consentido em processo executivo; não está em causa executar aí o contra crédito e não se vê, por isso, que este tenha de constar de título executivo
Em igual sentido sustenta Miguel Teixeira de Sousa: “ … não pode deixar de causar alguma estranheza a exigência de que o contra crédito conste de um título executivo, atendendo a que a finalidade da invocação do contra crédito é a oposição à execução, e não a execução do contra crédito. O título executivo atribui a exequibilidade extrínseca a uma pretensão e constitui uma condição da acção executiva. O título executivo só se compreende em função da possibilidade da satisfação coactiva de uma pretensão e para permitir esta satisfação. Sendo assim, não estando em causa a satisfação coactiva do contra crédito, não é justificada a exigência de que o mesmo conste de um título executivo.
E, continua o mesmo autor, “… a exigência de que o contra crédito conste de um título executivo não é harmónica no contexto do artigo 729.º, dado que exige para uma das formas de extinção da obrigação um requisito que não é exigido para nenhuma outra forma de extinção do crédito exequendo. Acresce que, se assim se entendesse, ter-se-ia que concluir que o legislador do nCPC teria restringido a possibilidade da invocação da compensação na oposição à execução, dado que […] essa possibilidade já existia em função do disposto no artigo 814.º, al. g), aCPC e este preceito só exigia que o contra crédito constasse de documento (e não de documento com valor de título executivo). “ [12]
Digamos, como se refere no acima citado AC STJ de 28.10.2021, cuja lição aqui se acompanha, que, “ … sintetizando (e simplificando) os argumentos: não é possível dizer que a exigência de prévio reconhecimento judicial do contra crédito, ademais de omitida no texto da norma (elemento literal), seja justificada nem à luz dos fins da norma (elemento teleológico) nem à luz do sistema jurídico (elemento sistemático). “
Ora, certo é que, de facto, não obstante subsista alguma jurisprudência no sentido perfilhado pelo Sr. Juiz do Tribunal de 1ª instância na decisão recorrida – e que corresponde à posição defendida pelo mesmo na sua obra a que acima fizemos referência -, o próprio Supremo tem vindo a inflectir aquela que era a sua posição inicial, podendo, hoje, dizer-se que a posição largamente maioritária naquele mesmo Supremo Tribunal é precisamente a oposta à defendida na sentença recorrida, ou seja, a de que, para efeitos de exigibilidade do contra crédito (e sua consequente invocação em sede de oposição à execução) não é condição imprescindível que o mesmo tenha sido previamente reconhecido e conste de um título executivo, antes bastando que o mesmo seja, como exige o artigo 847º, n.º 1, exigível, no sentido se encontrar vencido e não cumprido voluntariamente pelo devedor e, como tal, poder o respectivo titular (credor) exigir o seu cumprimento através de acção executiva – se munido de título executivo – ou através de acção declarativa com vista à obtenção de decisão judicial que condene o devedor ao seu cumprimento ou, ainda, no que releva ao caso dos autos, através de embargos de executado, enquanto incidente de natureza declarativa, tendo em vista o reconhecimento desse contra crédito e a eventual operacionalidade da reclamada compensação, com a consequente extinção (total ou parcial) do crédito exequendo. [13]
Com efeito, como se assinala no recente AC STJ de 24.05.2022 e aqui se acompanha, a exigibilidade do crédito para efeitos de compensação não significa, de todo e à luz do regime que emerge do artigo 847º, que o crédito do compensante, no momento em que é invocado nos embargos de executado, tenha que já estar definido judicialmente e coberto por um título executivo, sendo que uma tal condição não tem qualquer suporte na letra ou no espírito do legislador; O que se trata é tão só saber se tal crédito, que se pretende ver compensado através dos embargos de executado e na sentença a neles proferir, existe na esfera jurídica do compensante e preenche os demais requisitos legais, sendo exigível, não procedendo contra ele nenhuma excepção, peremptória ou dilatória, de direito material, questões estas que, em função da estrutura essencialmente declarativa dos embargos de executado e da sua funcionalidade (invocação e prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda), podem (e devem) neles ser conhecidas e decididas, não, obviamente, para obter a condenação do exequente em qualquer eventual diferencial (o que extravasaria, de todo, a funcionalidade dos embargos enquanto meio de oposição), mas apenas e só para decretar a eventual extinção, total ou parcial, do crédito exequendo de que aquele se arroga titular.
O que, em conclusão, nos conduz, ainda que apenas na parte atinente ao pedido subsidiário deduzido pelo embargante/executado, ao decretamento da procedência da apelação, com a consequente revogação da sentença na parte em que na mesma se rejeitou conhecer do alegado contra crédito invocado pelo executado/embargante, CC, e da sua eventual compensação com o crédito exequendo, devendo os autos prosseguir apenas para esse fim, pois que, na actual fase intermédia do processo, ainda se mantêm controvertidos factos que atinam com a existência e montante do contra crédito invocado pelo executado CC.
Procede, assim, apenas nestes termos, a apelação.
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V. DECISÃO:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento à apelação, confirmando a sentença recorrida na parte em que julgou improcedente a excepção de inexigibilidade do crédito exequendo, mas determinando o prosseguimento dos autos para, em função da instrução da causa, proceder ao ulterior conhecimento e decisão sobre o contra crédito invocado pelo executado/embargante, CC, e sobre a eventual compensação entre este contra crédito e o crédito exequendo.
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Custas na proporção que se vier a fixar a final – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 10.10.2022
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(O presente acórdão não segue na sua elaboração as regras do novo acordo ortográfico).
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[1] Vide, neste sentido, por todos, CARLOS FERREIRA de ALIMEIDA, “ Contratos – III ”, 2017, 2ª edição, Reimpressão, pág. 27 ou, ainda, em sentido similar, A. MENEZES CORDEIRO, “ Tratado de Direito Civil – XI – Contratos em Especial ”, 2019, pág. 424-426 e L. MENEZES LEITÃO, “ Direito das Obrigações – III volume – Contratos em Especial ”, 5ª edição, pág. 170-174.
[2] Vide, neste sentido, por todos, P. LIMA, A. VARELA, op. cit., pág. 267-268, L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 170, ou, ainda, RUTE TEIXEIRA PEDRO, in “ Código Civil Anotado ”, I volume, 2017, Coord. ANA PRATA, pág. 1167.
[3] Sobre a distinção entre contratos unilaterais (gratuitos) e os contratos bilaterais sinalagmáticos (onerosos), vide, por todos, C. MOTA PINTO, “ Teoria Geral do Direito Civil ”, 4ª edição, pág. 400-402.
[4] Vide, neste sentido, por todos, CARLOS FERREIRA de ALIMEIDA, op. cit., pág. 54.
[5] Vide, ainda, no mesmo sentido, por todos, RUTE TEIXEIRA PEDRO, op. cit., pág. 1193 e L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 200-202 ou, ainda, ao nível da jurisprudência, vide, por todos, quanto à noção de doação modal e suas características, AC RP de 13.06.2018, em que é relatora a Sr.ª Juíza Desembargadora CECÍLIA AGANTE, AC RP de 22.11.2016, relatado pela Sr.ª Juíza Desembargadora ANABELA DIAS da SILVA ou, ainda, AC RP de 8.07.2010, relatado pelo (então) Sr. Juiz Desembargador PINTO de ALMEIDA, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[6] Sobre a noção do contrato em favor de terceiro, vide, ainda, no mesmo sentido, por todos, I. GALVÃO TELLES, “Direito das Obrigações ”, 6ª edição, Revista e Actualizada, pág. 154-157.
[7] Vide, neste sentido, em situação muitíssimo similar à dos presentes autos, o AC RC de 23.11.2021, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador ANTÓNIO PIRES ROBALO, disponível in www.dgsi.pt, citado na sentença recorrida.
[8] Vide, neste sentido, por todos, PAULA PONCES CAMANHO, in “ Comentário ao Código Civil ”, cit., pág.1267 e L. MENEZES LEITÃO, “ Direito das Obrigações ”, II volume, 6ª edição, pág. 199-200.
[9] Vide, neste sentido, por todos, PAULA PONCES CAMANHO, op. cit., pág. 1268; L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 200-203, P. LIMA, A. VARELA, “ Código Civil Anotado ”, 3ª edição, pág. 135-138 e TIAGO AZEVEDO RAMALHO, in “ Código Civil Anotado ”, Coord. ANA PRATA, cit., pág. 1066-1067.
[10] Se os embargos de executado são deduzidos contra execução de título que seja sentença, a questão da possibilidade da invocação da compensação naqueles embargos deve ser ponderada, ainda, em conjunto com o preceituado nos artigos 266º e 573º, do CPC. Vide sobre esta matéria, com interesse, AC STJ de 28.10.2021, relatado pela Sr.ª Juíza Conselheira CATARINA SERRA, disponível in www.dgsi.pt ou, ainda, com maior detalhe sobre as várias hipóteses que se podem colocar nessa outra vertente, A. ABRANTES GERALDES, P. PIMENTA, L. PIRES de SOUSA, “ CPC Anotado ”, II volume, 2ª edição, pág. 88.
A questão não se nos coloca nestes termos, pois que, no caso, o título dado à execução não é uma sentença, razão porque não nos alongaremos mais quanto a esta temática, sem prejuízo do que abaixo se expõe.
[11] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 14.03.2013,relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro GRANJA da FONSECA (e demais jurisprudência ali citada) e, na doutrina, VIRGÍNIO COSTA RIBEIRO, SÉRGIO REBELO, “ A Acção Executiva anotada e comentada ”, 2ª edição, 2017, pág. 236 e segs.
[12] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ Sobre a oposição à execução com fundamento em contra crédito sobre o exequente (3), Blog IPPC, post de 22.03.2016.
[13] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 28.10.2021, antes citado, AC STJ de 28.10.2021, relatado pela Sr.ª Juíza Conselheira MARIA da GRAÇA TRIGO, AC STJ de 10.03.2022, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro FERNANDO BAPTISTA de OLIVEIRA e AC STJ de 24.05.2022, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro OLIVEIRA ABREU, todos disponíveis in www.dgsi.pt.