Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5197/20.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DA LUZ SEABRA
Descritores: ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
DISTRIBUIÇÃO DE LUCROS
Nº do Documento: RP202303285197/20.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Ainda que não se verifique qualquer uma das restrições legais à distribuição de lucros previstas no art. 33º do CSC, não bastará que haja lucros distribuíveis para que os sócios tenham direito a recebê-los, porquanto o direito ao recebimento do lucro concretizar-se-á no momento em que a assembleia de sócios delibere distribuí-los, sopesando o interesse inegável dos sócios a receberam a contrapartida económica da sua participação na sociedade em termos de lucros, com o interesse social na garantia de solvabilidade e sustentabilidade da própria sociedade.
II - O art. 217º do CSC, consagrando como princípio-regra a distribuição aos sócios de metade do lucro de exercício, no entanto, admite expressamente que tal não ocorra por deliberação qualificada de sócios, que representem ¾ do capital social.
III - O art. 58º nº 1 al. b) do CSC não impõe a sanção da anulabilidade à deliberação vantajosa para a maioria e desvantajosa para a minoria, a sociedade ou terceiros, mas somente àquela que, para além daquelas características nele mencionadas, acresça o carácter anormalmente excessivo do conteúdo aprovado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5197/20.0T8VNG.P1- APELAÇÃO
Origem: Juizo de Comércio de Vila Nova de Gaia – J4
Recorrente: AA
Recorrida: A..., Lda
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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO:
1. AA intentou acção de anulação de deliberações sociais contra A..., Lda tendo peticionado a anulação da deliberação social tomada na assembleia geral anual da Ré de 17/7/2020, na parte em que aprovou a proposta da gerência de aplicar o resultado líquido do exercício de €79.271,32 a resultados transitados e que a mesma seja substituída por outra que determine a distribuição aos sócios, de metade do lucro do exercício de 2017 e, em consequência seja condenada a Ré a pagar ao sócio aqui Autor a quantia de €4.994,09 e à Herança da qual é co-herdeiro, a quantia de €14.823,74 acrescidos de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento.
Como fundamento da referida pretensão, o Autor alegou, em síntese que, em 11 de fevereiro de 2018 faleceu o sócio-gerente da Ré, sucedendo-lhe o aqui Autor e a sua meia-irmã BB, a qual assumiu o cargo de cabeça-de-casal e é filha da desde então única gerente da sociedade Ré, estando em curso processo de inventário para partilha, fazendo parte do acervo hereditário a participação social que o falecido sócio detinha na Ré, sendo para além disso o aqui Autor também titular de uma quota no valor nominal de €630,00.
Em Dezembro de 2018 ocorreu a primeira assembleia geral da Ré após o óbito do pai do Autor, tendo o Autor requerido a anulação das deliberações sociais aí aprovadas por violação do direito á informação, tendo sido acordado no âmbito dessa acção que se realizaria nova assembleia geral em Julho de 2020 para renovação das deliberações impugnadas, o que veio a acontecer, não se conformando o aqui Autor com a deliberação tomada pela maioria de aplicar o resultado líquido positivo do exercício de 2017, no montante de €79.271,32 a resultados transitados, impedindo a distribuição de lucros, sustentando o Autor que aquela deliberação de não distribuir lucros visou única e exclusivamente prejudica-lo enquanto sócio minoritário, não existindo qualquer justificação válida para impedir o Autor e a Herança da qual é co-herdeiro de receber os lucros da sociedade a que tem direito.
Alegou o Autor que a cabeça de casal defende os seus própios interesses e os da sua família, que exercem o controlo e tiram proveito da gestão da sociedade e não da Herança que representa, não só em termos de remuneração, como vantagens em termos de refeições, gasolina e portagens, telemóveis e a actividade de equitação praticada pela BB, que é subsidiada pela Ré, mas impedem o aqui Autor de tirar dividendos, prejudicando-o, sendo essa a única razão porque a cabeça de casal, contra a sua vontade expressa, votou favoravelmente aquela deliberação, prejudicando também a Herança, concluindo que essa actuação constitui um abuso de direito nos termos consignados no art. 334º CC e que a deliberação é anulável nos termos do disposto no art. 58º nº 1 al. b) do CSC.
Sem prescindir, sustenta o Autor que não foram indicados os pressupostos nem as razões em que assentou a proposta de não distribuição dos lucros e, que a proposta da gerência para aplicar os lucros a resultados transitados apresentou argumentos e razões falaciosos com o único propósito de não distribuir os lucros, sendo tal deliberação também anulável por violar o disposto no art. 58º nº 1 al. a) do CSC.

2. A Ré deduziu contestação, impugnando de forma motivada os factos alegados pelo Autor, pugnando pela validade da deliberação tomada, designadamente por a não distribuição de lucros ter tido em vista o interesse da sociedade, estando prevista pela gerência a realização de avultado investimento nas instalações e equipamentos da clínica por forma a garantir a sustentabilidade económico-financeira da Ré, o qual só não foi ainda implementado fruto do quadro de instabilidade devido ao falecimento do sócio-gerente, tendo o volume de negócios sofrido uma variação negativa em relação ao ano anterior, assim como das condicionantes derivadas da incerteza das acções de anulação de deliberações sociais propostas pelo aqui Autor, seguido do período de pandemia por Covid 19 que acarretou a paralisação da actividade da clínica por alguns meses e fez perigar a sua actividade, tendo a gerência entendido ser mais cauteloso suspender esse investimento à luz de uma gestão prudente, de forma a não pôr em causa a própria subsistência da sociedade Ré.
Mais sustentou a Ré a regularidade do voto assumido pela cabeça de casal, só lhe cabendo a ela exercer os direitos associados à participação social, não consubstanciando a aprovação da deliberação de não distribuição de lucros a extinção ou redução dos direitos dos sócios.
Assim como sustentou não se mostrarem verificados os requisitos necessários para que se considere a deliberação abusiva.
Por seu turno, alegou a Ré que quem está a fazer um uso abusivo do direito é o Autor, na pessoa da sua representante legal, que pretende exercer o direito de impugnação das deliberações sem qualquer fundamento, culminando por pedir a sua condenação a pagar-lhe a importância de €4.460,00 como litigante de má-fé.

3. Realizada audiência prévia, veio a ser proferido despacho saneador, com fixação do objecto do litígio e temas de prova, que não mereceu reclamações.

4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, decido julgar totalmente improcedente a presente acção e, em consequência, absolvo a R. A..., LDA do pedido contra si formulado pelo A. AA.
Absolvo ainda o A. AA do pedido de condenação como litigante de má fé.
Custas pelo A. – art. 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.”

5. Inconformado, o Autor/Apelante interpôs recurso de apelação da sentença final, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
A. Vem o presente recurso da circunstância do aqui Apelante não se conformar com a, aliás, douta sentença com a Ref.ª 438182713, proferida nos presentes autos, que julgou, a presente acção improcedente e, consequentemente, absolveu a Ré/Apelada do pedido formulado.
Com efeito,
B. Desde logo, entende o ora Apelante que ocorre o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, isto porque, a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
C. É que, se é certo que a aqui Ré justificou a não distribuição dos lucros do exercício de 2017 com o facto da gerência prever «a necessidade de efectuar investimentos significativos em face da diminuição de rentabilidade da empresa, de modo a garantir a sustentabilidade económica-financeira da “A...”»;
D. E que, do elenco dos factos provados, consta que a sociedade perspectiva efectuar a remodelação e ampliação da Clínica, com investimento de pelo menos 100.000€. mas não ocorreu a remodelação e ampliação da Clínica.
E. Verdade é que, as razões pelas quais o dito investimento não se chegou a realizar – volvidos mais de 4 (quatro) anos desde a data da deliberação em causa – que ora constam da fundamentação da douta decisão em causa (morte do sócio e pandemia), não colhem qualquer suporte nos factos provados.
F. Destarte, evidencia-se a existência de uma contradição entre a fundamentação e a decisão, a qual deve ser considerada em função dos elementos objectivos contidos nos autos; ou seja, as razões plasmadas na deliberação em causa e que constam evidenciadas nos factos provados – investimento no alargamento da clínica, que, na verdade, não veio a ser realizado – não são coincidentes com as razões que ora se mostram “validadas” pelo Mert.º Juiz “a quo”.
G. É que, desde logo, em momento algum consta dos factos provados ou não provados uma qualquer referência a um tal fundamento - “morte do sócio” -para aquele afastamento da dita distribuição de lucros. E assim não consta porquanto, verdade é que, nunca a aqui Ré procurou “legitimar” a sua tomada de posição com base em tal argumento, nunca tendo o mesmo sido referido em qualquer outro momento que não fosse em sede de audiência de julgamento, não constando da Ata da Assembleia em causa, nem de qualquer outra posterior, nem tão pouco do respectivo Relatório de Gestão relativo a 2017. O mesmo se dizendo, aliás, com a situação de pandemia referenciada na fundamentação supra transcrita.
H. Deste modo, e salvo o devido respeito, entendemos estar perante um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto de que o Dign.º Juiz “a quo” teria que se servir ao proferi-la.
I. Contradição geradora de nulidade, por contradição entre os fundamentos e a decisão contemplada no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, pois que, os factos tidos como provados sob as alíneas P a T – se devidamente apreciados pelo Dign.º Tribunal “a quo” e não como sucedeu com manifesta divergência, assente em premissas distintas - conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.
J. Razão pela qual, haverá, pois, tal qual peticionado pelo aqui Autor, pela anulabilidade da deliberação em causa, por assentar em pressupostos falaciosos, pois que, como se veio a demonstrar a Ré não executou a remodelação/ampliação em causa.
SEM PRESCINDIR,
K. Acresce que, entende ainda o aqui Apelante ter sido incorrectamente julgada a matéria de facto, concretamente, a factualidade constante dos factos não provados, sob as alíneas U) e V), por considerarem que, da prova produzida nos autos, se impunha decisão diversa da proferida,
L. Isto porque, e desde logo, no que respeita ao ponto V, olvidou o Dign.º Tribunal “a quo” da confissão a extrair do depoimento de parte da legal representante da Ré, quando esta afirmou expressamente ao Dign.º Tribunal “a quo” que, além do seu salário, circula com veículo próprio daquela empresa - um Mercedes, ... -, sendo todas as despesas do veículo, como seja, gasolina, portagens/via verde, e manutenção, suportadas pela Ré; além disso, também o telemóvel que usa, quer a titulo pessoal quer profissional, e respectivo tarifário, é suportado pela sociedade Ré (Cfr. excerto do seu depoimento supra transcrito, e que aqui se dá por integralmente reproduzido nos termos do art.º 640.º do CPC).
M. Ou seja, do simples teor destas declarações, e sem mais, facilmente decorre ter a gerente da aqui Ré confessado designadamente que tira vantagem própria e exclusiva da sociedade aqui Ré, em detrimento dos demais sócios, nomeadamente, do aqui Autor.
N. Pelo que, com base em tal depoimento de parte, haveria, desde logo, o Dign.º Tribunal “a quo” que ter dado como provada parte da factualidade que foi levada à alínea V dos factos provados, como seja, que: - “A gerente e a sua família continuaram a tirar proveito da sociedade, não só em termos da remuneração que auferem como de outras vantagens, como é o caso da utilização de veículo da empresa, a título pessoal e familiar, bem como, gasolina, portagens e despesas de manutenção do mesmo, e ainda, telemóveis.”
O. Não o tendo feito, incorreu, pois, o Dign.º Tribunal “a quo” em erro de julgamento, por violação do disposto no art.º 352.º do CC., e do art.º 452.º do CPC.
P. Devendo, assim, nesta instância, e nos termos do artigo 662.º do CPC, ser anulada a decisão proferida em 1.ª instância quanto àquela matéria de facto, substituindo-a por outra que, nos termos supra, a integre nos factos provados.
Acresce que,
Q. Incorreu, ainda, o Dign.º Tribunal “a quo” em erro de julgamento quanto à alínea U, pois que, desde logo, como bem resulta da prova documental junta a estes autos de processo, e que aqui se destaca, para efeitos de impugnação da decisão de facto produzida:
- do balanço apresentado em 31-12-2017, no final do período de 2017, a sociedade apresentava um activo de €1.064.223,66 para um total do passivo de 64.889,31;
- o total do capital próprio ascendia a €999.334,35;
- detinha um valor de Caixa e depósitos bancários de €467.557,06; - empresa não tinha qualquer endividamento;
- no ano de 2018, após a morte do sócio, não houve diminuição da facturação;
R. Além do que, associando tal documentação à prova testemunhal, que supra transcrita - e que aqui, por razões de economia processual, se dá por integralmente reproduzida -, facilmente decorre não haver qualquer justificação para reter o lucro a distribuir, na percentagem de 50%, seja, €:35.000,00, para um investimento de €:100.000,00 quando a empresa tinha capitais próprios de cerca de meio milhão de euros.
S. E não existe qualquer razão, primordialmente financeira, nem qualquer outra, para aquele facto, porquanto, o objectivo é tão só um: de nada o aqui Autor usufruir, por força quer da sua quota própria quer da quota da herança de seu pai.
T. Posto isto, evidente é, quer da prova documental quer da prova testemunhal produzida, e supra transcrita, que «A deliberação tomada de não distribuir os lucros e antes os aplicar a resultados transitados visou única e exclusivamente prejudicar o A. enquanto sócio minoritário e enquanto herdeiro legítimo do sócio falecido CC»,
U. Deste modo, provando que a justificação dada pela Ré para a não realização da distribuição de lucros, isto é, a remodelação e ampliação da Clínica, não foi verdadeira, “a contrario”, só poderá concluir-se que a deliberação em causa nos autos apenas foi tomada em prejuízo do aqui Autor.
V. De modo que, face ao exposto, crê-se que mal andou o Dign.º Tribunal “a quo” na apreciação de facto que fez da prova produzida nos autos, porquanto, se entende que, com base na prova documental e testemunhal transcrita, deveria o Dign.º Tribunal “a quo” ter levado à matéria de facto provada o teor daquela factualidade constante da alínea U.
W. Em suma, no modesto entender do aqui Apelante, e salvo melhor opinião, conclui-se que o Digníssimo Tribunal “a quo” não ponderou devidamente a matéria de facto que lhe foi apresentada, tendo, por isso, feito uma incorrecta valoração dos meios de prova que lhe foram apresentados, violando, pois, o espírito subjacente ao disposto nos artigos 352.º e 362.º e seguintes do C.C. e, bem assim, nos artigos 410.º, 413.º e 414.º do CPC.
X. Razão pela qual se entende que deverá ser feita uma correcção da matéria de facto, em primeira instância, tendo por referência tudo quanto se disse supra, sendo assim decisivo o respectivo controlo através desta sindicância, de forma a que, após correta valoração de toda a prova produzida nos autos, seja a matéria factual supra referida, designadamente, os pontos supra identificados, sob as alíneas U) e V) – na formulação infra - ser levados à matéria de facto provada.
Y. Assim, atenta a alteração que deverá ocorrer na decisão a proferir sobre a matéria factual, sempre será de concluir pela procedência da presente acção.
AINDA SEM PRESCINDIR,
Z. Sem prejuízo de tudo quanto supra se aduziu, e do que não se prescinde, na eventualidade de assim não proceder, o que não se aceita, mas por mero dever legal de patrocínio se equaciona, ainda assim, tendo por base a factualidade tida como provada, a que já supra se aludiu, e transcreveu nos seus precisos termos, pretende o aqui Apelante impugnar a decisão proferida sobre a matéria de direito, nos termos do art.º 639.º C.P.C.,
AA.Isto porque, e desde logo, entende o ora Apelante ter sido incorrectamente aplicada a norma constante do art.º 58, n.º 1, al a) do CPC, em conjugação com o artigo 217.º e ainda o artigo 223.º, n.6 do CSC, porquanto, a deliberação em causa viola disposição legal, quando foi tomada pela Cabeça de casal, sem consentimento do aqui Autor, prejudicando a herança, por se traduzir numa renúncia à distribuição de lucros em causa.
BB.Sendo que, se não tivesse existido o voto favorável da cabeça de casal da Herança, contra a vontade expressa do co-herdeiro, aqui Autor, a votação não teria atingido a maioria de ¾ dos votos, exigida por lei para impedir a distribuição dos lucros.
CC. É certo que a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal – art. 2079º C.C. – e que, o direito de participar e votar nas assembleias gerais lhe compete no âmbito dos poderes de administração ordinária – art. 2087º, nº 1 C.C. e 223º, nº 1 CSC.
DD.Contudo, a administração que cabe ao cabeça de casal está apenas ao serviço do património hereditário, que deve ser exercida com zelo e prudência – art. 2086º, nº 1. al. b) C.C. – não podendo o património hereditário, antes da partilha, ser colocado ao serviço ou satisfação dos interesses de qualquer dos herdeiros.
EE. In casu, é manifesto que cabeça de casal defende os seus próprios interesses e os da sua família, que exercem o controlo e tiram proveito da gestão da sociedade e não da Herança que representa, ou seja, a cabeça de casal e a sua família continuaram a tirar proveito da sociedade, mas impedem o aqui Autor de tirar dividendos dessa mesma sociedade, quer enquanto sócio, quer enquanto co-herdeiro, assim o prejudicando.
FF. Sendo essa a única razão porque a cabeça de casal, contra a vontade expressa do Autor votou favoravelmente a proposta da gerência de aplicar o lucro do exercício a resultados transitados, prejudicando não só a Herança, que ficou desprovida da quantia de € 14.823,74, como do Autor que ficou impedido de receber a quantia de € 4.994,09, que lhes cabia, respectivamente, nos lucros distribuíveis.
GG. Deste modo, a actuação da cabeça de casal, como dos demais sócios, constitui um abuso de direito, nos termos consignados no art. 334º CC, pois, apesar de se apresentar formalmente como regular, lesa não só os interesses do sócio aqui Autor como igualmente da Herança, pelo que deve ser anulada, nos termos do disposto no art. 58º, nº 1, al. a) do CSC, na parte em que determinou a não distribuição dos lucros do exercido de 2017.
Acresce que,
HH.Ainda que assim não fosse, sempre uma tal deliberação seria igualmente anulável, por força da alínea b) do referido artigo 58.º do CSC., na medida em que, ao contrário do entendimento plasmado na douta sentença recorrida, não se pode ter por fundada a justificação apresentada para a não distribuição dos lucros em causa.
II. Pois que, como vimos supra do Relatório e Contas do exercício de 2018, apresentado em 18-03-2019, o investimento do exercício em ativos fixos afetos à atividade da sociedade apenas atingiu o montante de € 19.785,00, em equipamento básico; e, não ocorreu a remodelação e ampliação da Clínica, tendo antes este mesmo argumento sido utilizado para justificar a não distribuição de lucros no exercício de 2018.
JJ. Malogradamente, veio o Dign.º Tribunal “a quo” a considerar que aquele facto -não remodelação e ampliação da Clínica – se mostrava justificado quer pela morte do sócio, quer pela pandemia.
KK. O que, não se aceitar, por duas ordens de razão: desde logo, porque, nos anos de 2018/2019 não houve qualquer pandemia, por outro lado, daquele acontecimento trágico – a morte do pai do aqui Autor – não resultou qualquer quebra da facturação.
LL. De onde resulta evidente que a proposta da gerência para aplicar os lucros a resultados transitados, apresentou argumentos e razões falaciosos com o único propósito de não distribuir os lucros, em benefício da sociedade que gere e em prejuízo dos sócios, designadamente, do aqui Autor e da Herança.
MM. Pelo que, a deliberação do ponto dois da ordem de trabalhos será sempre anulável, por violar o disposto no art. 58º, nº 1, al. b) do CSC, o que, assim não tendo sido considerado pelo Dign.º Tribunal “a quo” traduz evidente violação daquele preceito legal.
Destarte, por tudo o exposto,
NN. Fez o Dign.º Tribunal “a quo” uma incorrecta valoração das normas jurídicas aplicáveis à situação sub judice, violando, pois, o espírito subjacente ao disposto nos artigos 21.º, 58.º, n.º 1, als. a) e b), 217.º e 223.º, n.º 6, todos do CSC, termos em que, para melhor aplicação do direito, deverá ser revogada a douta sentença ora recorrida, julgando a mesma totalmente procedente.
Concluiu, pedindo que seja concedido provimento ao presente recurso e, por via disso, revogada a douta sentença recorrida, sendo substituída por outra que julgue a acção totalmente procedente.

7. A Ré/Apelada ofereceu contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado.

8. Foram observados os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias.[1].
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As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
1ª-Nulidade da sentença por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;
2ª- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
3ª-Anulabilidade da deliberação social de não distribuição dos lucros de exercício de 2017.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
A. A Ré é uma sociedade por quotas, tem sede na Rua ..., ... ... e por objecto social a atividade de saúde humana com diversas especialidades, nomeadamente medicina dentária.
B. A sociedade R. foi constituída em 2001, com o capital social de €5.000,00, inicialmente dividido em duas quotas, uma no valor nominal de €2.500,00, pertencente ao sócio CC e outra de €2.500,00, pertencente à sócia DD.
C. Na altura da constituição da sociedade, os referidos sócios eram casados entre si e ambos eram gerentes, obrigando-se a sociedade com a intervenção de um gerente.
D. Em 29-12-2014, a sócia DD dividiu a sua quota em duas quotas, uma no valor nominal de €630,00, que transmitiu à sociedade B..., Lda e outra no valor nominal de € 1.870,00 que manteve na sua titularidade.
E. Esta sociedade B..., Lda foi constituída em 15-12-2014 e tem como sócios a referida DD, o seu atual marido EE e a sua mãe FF.
F. Por sua vez, e também em 29-12-2014, o sócio CC dividiu a sua quota em duas quotas, uma no valor nominal de € 630,00, que transmitiu à GG e outra no valor nominal de € 1.870,00 que manteve na sua titularidade.
G. Ainda na mesma data, a GG transmitiu ao filho AA, aqui Autor, a quota de € 630,00 que havia adquirido.
H. Por sentença transitada em julgado em 23-02-2015, foi decretado o divórcio dos sócios gerentes CC e DD.
I. O A. nasceu em .../.../2013 e é filho de GG e de CC.
J. Em 11 de fevereiro de 2018, faleceu o sócio gerente CC, sucedendo-lhe o aqui A. e a sua meia-irmã, BB, nascida em .../.../2001, como seus únicos herdeiros legitimários.
K. Tendo, a partir de então, a gerência da sociedade ficado exclusivamente entregue à sócia DD.
L. A mesma DD é mãe de BB, que exerce o cargo de cabeça de casal da Herança aberta por óbito de CC, por ser a filha mais velha.
M. O A. AA é titular de uma quota no valor nominal de pelo menos €630, correspondente 37,4 % de votos.
N. No dia 17-07-2020 teve lugar a Assembleia Geral da sociedade R., tendo estado presentes todos os sócios e a Herança sido representada pela DD, através de carta mandadeira emitida pela sua filha e cabeça de casal, BB, entretanto maior de idade.
O. Nessa Assembleia foi deliberada a aprovação do Relatório e Contas do exercício de 2017, bem como a proposta da gerência de aplicação de resultados no sentido de aplicar o resultado líquido positivo do exercício de 2017, no montante de €79.271,32, a Resultados Transitados, com a aprovação por 87,4%, com os votos favoráveis emitidos pelos sócios B..., Lda e DD, por si e em representação de BB e o voto contra do sócio aqui A., não tendo ocorrido distribuição de lucros.
P. Como resulta do balanço apresentado em 31-12-2017, no final do período de 2017, a sociedade apresentava um ativo de €1.064.223,66 para um total do passivo de 64.889,31 e o total do capital próprio ascendia a €999.334,35, para além de um valor de Caixa e depósitos bancários de €467.557,06.
Q. Do Relatório de Gestão relativo a 2017, apresentado em 29-11-2018, resulta que no exercício económico de 2018 a gerência prevê a necessidade de efetuar investimentos significativos em face da diminuição de rentabilidade da empresa, de modo a garantir a sustentabilidade económica-financeira da “A...”.
R. E que a R., até à data do Relatório (29-11-2018), tinha efetuado investimentos em equipamentos básicos para o exercício da atividade de prestação de serviços médicos que ascendem ao montante de aproximadamente 63.000€ e perspetiva efetuar a remodelação e ampliação da Clínica, com investimento de pelo menos 100.000€.
S. No Relatório e Contas do exercício de 2018, apresentado em 18-03-2019, o investimento do exercício em ativos fixos afetos à atividade da sociedade apenas atingiu o montante de €19.785,00, em equipamento básico.
T. E não ocorreu a remodelação e ampliação da Clínica.

2. O Tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:
U. A deliberação tomada de não distribuir os lucros e antes os aplicar a resultados transitados visou única e exclusivamente prejudicar o A., enquanto sócio minoritário e enquanto herdeiro legítimo do sócio falecido CC.
V. A gerente e a sua família continuaram a tirar proveito da sociedade, não só em termos da remuneração que auferem como de outras vantagens, como é o caso das refeições, gasolina e portagens, telemóveis e ainda a atividade de equitação praticada pela BB, que é subsidiada pela R..
W. O único e último desiderato da representante legal do Autor é locupletar-se às custas da sociedade Ré.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
1ª Questão- Nulidade da sentença por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

Sob as Conclusões de recurso B. a J. sustentou o Recorrente que a sentença recorrida padece do vício de nulidade por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, convocando a nulidade prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC, porquanto, em seu entender a decisão assentou em premissas distintas das que se tiveram como provadas, alegando que as razões que constam da fundamentação da decisão recorrida- morte do sócio e pandemia- não colhem suporte nos factos provados e, não são coincidentes com as razões plasmadas na deliberação em causa, não constando dos factos provados ou não provados qualquer referência à morte do sócio, nem nunca a Ré procurou legitimar a sua tomada de posição com base em tal argumento, nem tendo sido referido em qualquer outro momento a não ser na audiência de julgamento, o mesmo tendo ocorrido com a menção à pandemia.
Concluiu o Recorrente que estamos perante um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto de que o Juiz a quo teria que se servir ao proferi-la, porquanto os factos provados P a T, se devidamente apreciados, conduziriam ao resultado oposto ao expresso na decisão dado a deliberação assentar em pressupostos falaciosos porque a Ré não executou a remodelação/ampliação em causa.
Sendo o elenco das alíneas do n.º 1 do art. 615º do CPC, um elenco taxativo [2], só nas hipóteses ali expressamente consignadas se coloca a hipótese de nulidade da sentença.
Perante a nulidade invocada pelo Apelante, convoca-se o art. 615º nº 1 do CPC, segundo o qual, para o que interessa no caso sub judice:
“É nula a sentença quando:
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
A nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, al. c) do CPC, tem a ver com uma contradição lógica entre a fundamentação jurídica e a decisão.
Como refere nesta matéria J. Lebre de Freitas, “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade de sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada conclusão jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. “[3]
Ora, no caso dos autos, a fundamentação jurídica da sentença aponta, em termos claros no sentido da improcedência da pretensão do Apelante, estando perfeitamente expresso no texto da fundamentação da sentença recorrida os fundamentos jurídicos e de facto determinantes para a decisão proferida, tendo sido apreciados os factos à luz do direito aplicável ao caso concreto.
O Juiz a quo concluiu, na decisão final proferida, no mesmo sentido seguido no seu raciocínio explanado na fundamentação, porquanto entendeu, (mal ou bem, não interessa para a decisão da nulidade) que dos factos apurados resultava determinada conclusão jurídica e este seu entendimento ficou expresso na fundamentação, ou dela decorre.
Contradição existiria se, perante a fundamentação de facto ou de direito vertida na sentença recorrida, a acção tivesse sido julgada procedente pois que o raciocínio do julgador ao longo da fundamentação aponta de forma inequívoca no sentido da improcedência da pretensão do Apelante como veio a ser decretado, desde logo porque os factos determinantes para a procedência haviam sido dados como não provados.
O recurso do tribunal a factos notórios não controvertidos, como é o caso do falecimento do sócio-gerente da Ré e a pandemia, mesmo que porventura não tivessem sido alegados como justificação para a não realização do investimento previsto (no caso sub judice foram alegados na contestação) podiam ser considerados pelo juiz na decisão a proferir, de todo o modo, ainda que não o pudessem ser, o tribunal na sua fundamentação jurídica esclareceu devidamente as razões da improcedência da pretensão do aqui Apelante, não existindo qualquer incongruência no seu raciocínio, o qual partindo das alocuções jurídicas por reporte aos factos apurados, em nenhum momento conduziria à procedência da acção.
Ainda que se pudesse sustentar que o tribunal para decidir recorreu a factos que não estão dados como provados, essa situação não consubstanciaria contradição insanável entre a fundamentação jurídica e a decisão, podendo antes fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto por erro de julgamento, que o aqui Apelante também suscitou, sendo essa a sede própria para a sua apreciação.
Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos dados como provados, ou se a conclusão a que chegou o tribunal não encontra arrimo suficiente na factualidade dada como provada, consubstancia, quando muito, a apreciação de um eventual erro de julgamento e não a apreciação da nulidade prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC. [4]
As partes têm todo o direito de entender que, quer o raciocínio seguido pelo Juiz a quo, quer os fundamentos jurídicos vertidos na sentença recorrida não foram convincentes ou sequer esgrimidos de forma consistente, com apreciação sustentada de todos os factos dados como provados, de forma a convencer as partes da solução encontrada, mas essa discordância não se confunde com qualquer nulidade da sentença por contradição lógica entre a fundamentação e a decisão- a sentença não padece de contradição entre a fundamentação e a decisão, o Apelante é que com ela não concorda.
Consequentemente, não existe, em termos manifestos, qualquer contradição ou oposição entre o raciocínio expendido pelo julgador e o sentido decisório contido na sentença, pelo contrário, a decisão é coerente e lógica com a fundamentação, independentemente do acerto da decisão, questão que não contende com a nulidade da sentença, mas com o seu mérito. [5]
Improcede, assim, a apontada nulidade da sentença.
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2ª Questão- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Segundo o disposto no art. 662º nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Perante as exigências estabelecidas no art. 640º do CPC, constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a seguinte especificação, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
“Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primeiro: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Segundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Terceiro: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.”[6]
Segundo o disposto no art. 662º nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
No âmbito do recurso de impugnação da decisão de facto, o Tribunal da Relação pode e deve realizar uma efectiva reapreciação da prova produzida, levando em consideração, não só os meios de prova indicados no recurso, como outros que relevem para a decisão relativa aos pontos da matéria de facto impugnada, com vista a formar a sua própria convicção.
De todo o modo, não podemos escamotear a importância extrema do princípio da imediação da prova, estando o Juiz de 1ª instância, sem dúvida, melhor posicionado para ter plena percepção da forma como os depoimentos são prestados, as hesitações e linguagem corporal das testemunhas e partes, dificilmente percetível em gravações exclusivamente sonoras, para mais quando o Juiz da Instância Superior se vê limitado a ouvir os depoimentos prestados sem poder interrogar de modo a esclarecer-se convenientemente.
Sob as Conclusões de recurso K. a X. o Apelante impugnou as alíneas U) e V) dos factos não provados, considerando-os incorrectamente julgados.
Relativamente à alínea V) dos factos não provados pretende que parte dessa factualidade passe para os factos provados, com a seguinte redação:
“A gerente e a sua família continuaram a tirar proveito da sociedade, não só em termos da remuneração que auferem como de outras vantagens, como é o caso da utilização de veículo da empresa, a título pessoal e familiar, bem como gasolina, portagens e despesas de manutenção do meso e ainda, telemóveis.”
Sustentou o Apelante que o simples teor do depoimento de parte da legal representante da Ré assim o impunha, porquanto confessou expressamente que, além do seu salário, circula com veículo próprio da empresa, sendo todas as despesas do veículo, como seja a gasolina, portagens/via verde e manutenção, suportadas pela Ré, para além de que também o telemóvel que usa, quer a título pessoal quer profissional e respectivo tarifário é suportado pela sociedade Ré, tendo o Apelante assinalado o segmento desse depoimento nas gravações e procedido à sua transcrição.
O propósito do Apelante é que se considere que a legal representante da Apelada confessou que tira vantagem própria e exclusiva da sociedade aqui Apelada, em detrimento dos demais sócios, nomeadamente do aqui Apelante.
Este ponto de facto impugnado pelo Apelante está vertido na alínea V) dos factos não provados com a seguinte redação:
“A gerente e a sua família continuaram a tirar proveito da sociedade, não só em termos da remuneração que auferem como de outras vantagens, como é o caso das refeições, gasolina e portagens, telemóveis e ainda a atividade de equitação praticada pela BB, que é subsidiada pela R.”
Tal como o tribunal a quo, consideramos que as declarações de parte da legal representante da Ré não são de molde a considerarmos que confessou que tenha retirado proveito da sociedade Ré, este no sentido utilizado pelo Apelante de que tira vantagens que nenhum outro sócio tira da actividade da Ré, em claro detrimento desta e dos demais sócios, como é o caso do Apelante.
Embora a legal representante tenha esclarecido quais os benefícios que recebe da parte da Ré, quer monetários, quer em espécie, os mesmos não são proventos recebidos enquanto sócia, sendo normal que a mesma, acumulando a qualidade de gerente única da Ré, receba da sociedade um vencimento e a este eventualmente acresçam “complementos remuneratórios” como é o caso de atribuição de um veículo com os custos associados de manutenção, gasolina e portagens inerentes à sua circulação, em trabalho ou mesmo em lazer, bem como telemóvel e tarifário necessários aos contactos profissionais, sem que isso possa ser considerado um proveito à custa da sociedade, já que, diz-nos a experiência comum, que nos dias que correm e por regra nas sociedades comerciais os titulares de cargos de chefia recebem esse tipo de regalias em troca do trabalho que nelas desenvolvem.
De todo o modo, como a própria esclareceu, essa decisão já vinha desde a constituição da sociedade e, de forma igualitária entre os sócios-gerentes, assim receberia também o outro sócio-gerente entretanto falecido (pai do aqui Autor) sem que aquelas atribuições se afigurassem irrazoáveis ou em proveito próprio indevido ou em prejuízo da sociedade ou dos demais sócios, como perpassa do entendimento sustentado pelo Apelante.
Deste modo, não se pode considerar que a legal representante da Ré tenha confessado tirar proveito da Ré com aquelas atribuições, considerando que “tirar proveito” foi utilizado pelo Apelante com a conotação de estar a receber sem ter direito a elas, quando as mesmas estarão associadas não propriamente à sua qualidade de sócia, mas, segundo as regras da experiência comum, constituirão componente da retribuição do trabalho que desenvolve na sociedade.
E, quanto ao proveito da família a prova por confissão também não existe, sendo certo que, não é pelo facto de a sócia-gerente da Ré receber um vencimento e ter direito a utilizar um veículo da sociedade com as despesas inerentes a cargo da Ré, bem como telemóvel, que se pode dizer que a sua família tira proveito da Ré.
Tal consta de forma assertiva na fundamentação da decisão da matéria de facto vertida pelo juiz a quo, do seguinte modo:
“Relativamente à alínea V), a testemunha EE (médico dentista, marido da legal representante da R.), de forma concisa e que nos pareceu sincera, afirmou que a legal representante da R. não só não tira proveito da sociedade, como aufere um vencimento inferior ao que poderia fazer, caso cobrasse a comissão nas consultas que dá na R., o que afasta a alegação de proveito ilegítimo que lhe foi imputada.
De resto, nenhuma prova em absoluto foi feita quanto ao alegado pagamento das aulas de equitação de BB pela R..
De referir que, do depoimento de parte da legal representante da R., DD, nenhum facto foi confessado, tendo o seu depoimento se nos afigurado como sincero e transparente, e sido útil para contextualizar a situação económica da sociedade R.”
Relativamente à alínea U) dos factos não provados pretende o Apelante que transite para os factos provados.
Sustenta essa alteração na prova documental junta a estes autos, associada ao depoimento das testemunhas HH e II, destacando os seguintes documentos:
- do balanço apresentado em 31-12-2017, no final do período de 2017, a sociedade apresentava um activo de €1.064.223,66 para um total do passivo de 64.889,31;
- o total do capital próprio ascendia a €999.334,35;
- detinha um valor de Caixa e depósitos bancários de €467.557,06; - empresa não tinha qualquer endividamento;
- no ano de 2018, após a morte do sócio, não houve diminuição da facturação.
A redação da alínea U) dos factos não provados é a seguinte:
“A deliberação tomada de não distribuir os lucros e antes os aplicar a resultados transitados visou única e exclusivamente prejudicar o A., enquanto sócio minoritário e enquanto herdeiro legítimo do sócio falecido CC.”
O Apelante entende que daqueles meios de prova facilmente decorre não haver qualquer justificação para reter o lucro a distribuir, na percentagem de 50%, seja, €:35.000,00, para um investimento de €:100.000,00 quando a empresa tinha capitais próprios de cerca de meio milhão de euros, sendo que não existe qualquer razão, primordialmente financeira, nem qualquer outra, para aquele facto, porquanto, o objectivo é tão só um: de nada o aqui Autor usufruir, por força quer da sua quota própria quer da quota da herança de seu pai.
Concluiu o Apelante que, quer da prova documental quer da prova testemunhal produzida, a deliberação tomada de não distribuir os lucros e antes os aplicar a resultados transitados visou única e exclusivamente prejudicar o A. enquanto sócio minoritário e enquanto herdeiro legítimo do sócio falecido CC.
Para o feito faz o seguinte raciocínio: provado que a justificação dada pela Ré para a não realização da distribuição de lucros, isto é, a remodelação e ampliação da Clínica, não foi verdadeira, “a contrario”, só poderá concluir-se que a deliberação em causa nos autos apenas foi tomada em prejuízo do aqui Autor.
É aqui que reside a fragilidade da argumentação do apelante relativamente ao que o tribunal considerou não provado, pois que, contrariamente ao que inicialmente alegou de que os documentos associados ao depoimento daquelas testemunhas conduziriam à prova daquele facto, acaba por admitir que a tal só se chegará através de um raciocínio a contrario sensu.
Efectivamente, nenhum daqueles documentos, nem nenhuma daquelas testemunhas, ainda que articulados entre si, impõem decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo de considerar não provada tal matéria de facto vertida na alínea U) dos factos não provados.
Aqueles meios probatórios apenas conduzem à prova dos factos que foram vertidos precisamente nos factos provados P. a T. e nada mais, tendo tais meios probatórios sido considerados pelo tribunal a quo precisamente nesses termos:
“P. Como resulta do balanço apresentado em 31-12-2017, no final do período de 2017, a sociedade apresentava um ativo de €1.064.223,66 para um total do passivo de 64.889,31 e o total do capital próprio ascendia a €999.334,35, para além de um valor de Caixa e depósitos bancários de €467.557,06.
Q. Do Relatório de Gestão relativo a 2017, apresentado em 29-11-2018, resulta que no exercício económico de 2018 a gerência prevê a necessidade de efetuar investimentos significativos em face da diminuição de rentabilidade da empresa, de modo a garantir a sustentabilidade económica-financeira da “A...”.
R. E que a R., até à data do Relatório (29-11-2018), tinha efetuado investimentos em equipamentos básicos para o exercício da atividade de prestação de serviços médicos que ascendem ao montante de aproximadamente 63.000€ e perspetiva efetuar a remodelação e ampliação da Clínica, com investimento de pelo menos 100.000€.
S. No Relatório e Contas do exercício de 2018, apresentado em 18-03-2019, o investimento do exercício em ativos fixos afetos à atividade da sociedade apenas atingiu o montante de €19.785,00, em equipamento básico.
T. E não ocorreu a remodelação e ampliação da Clínica..
(…) As alíneas P), S) e T) da matéria de facto assente, resultam da análise ao Relatório e Contas de 2018 relativo à sociedade R., no anexo referente ao balanço, junto com doc. sem número com a petição inicial, que confirma tais factos. Este documento foi elaborado e depois confirmado em audiência de julgamento pela testemunha HH (contabilista, foi responsável pela contabilidade da R. entre junho de 2018 e 2020), de forma clara e sincera. A factualidade descrita na alínea T) foi também confirmada no depoimento de parte prestado pela gerente da R., DD, na audiência de julgamento que decorreu no dia 10/05/2022.
As alíneas Q) e R) da matéria de facto assente, resultam da análise ao Relatório de Gestão relativo a 2017 da sociedade R., junto como doc. nº 11 com a petição inicial, que confirma tais factos.
A testemunha II (economista), explicou as opções da gerência de não apresentação de lucros, tendo reproduzido a factualidade que resulta do documento de Relatório e Contas de 2018, já mencionado.
A factualidade não provada resulta de nenhuma prova ter sido feita quanto à mesma. Concretamente, quanto às alíneas U) e W) dos factos não provados nenhuma prova em absoluto se fez das alegadas intenções da deliberação em apreço e da representante legal do Autor.”
Tudo o mais são extrapolações feitas pelo Apelante que não têm suporte seguro nem consistente na prova produzida, mormente na indicada pelo próprio Apelante, nem em qualquer outra, não podendo sequer ser alcançada por presunções judiciais, pois que a prova produzida no seu todo foi no sentido de que foi dada pela gerência como justificação da não distribuição de lucros o investimento avultado estimado e, que existiram motivos não desprezíveis para que não tivessem avançado ainda para esse investimento, pelo que, tal como o tribunal a quo escreveu na sua fundamentação de facto, efectivamente não existe prova que demonstre com suficiente segurança tal proposição.
O Apelante não tem essa leitura, não concorda com a justificação dada para a não distribuição dos lucros de exercício de 2017, mas esse inconformismo com a decisão tomada pela maioria dos sócios não permite afirmar que essa decisão só teve como propósito prejudica-lo, não encontrando suporte suficiente na prova produzida, muito menos na por si invocada na impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
O mero facto de o investimento na remodelação da Clínica ainda não ter sido feito não permite por si só afirmar que a decisão de não distribuição dos lucros teve como único objectivo prejudicar o Apelante, podendo a sociedade ter uma situação económico-financeira desafogada e ainda assim optar por levar os lucros a resultados transitados sem qualquer intenção daquela natureza.
Ora, analisadas as conclusões de recurso do Apelante nada mais traduzem do que puro inconformismo contra a valoração da prova efectuada pelo tribunal a quo, contra a livre convição a que chegou para proferir a decisão sobre a matéria de facto, mormente quanto aos pontos impugnados.
Não se constatando erro de julgamento na valoração da prova produzida, tendo sido a mesma apreciada de forma sustentada e em consonância com as regras da experiência, tal como acima esclarecemos, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se inalteradas as alíneas U) e V) dos factos não provados.
*
3ª Questão- Anulabilidade da deliberação de não distribuição de lucros do exercício de 2017.
O Apelante sob as Conclusões de recurso Z. a NN. discorda da solução jurídica perfilhada na sentença recorrida, persistindo no entendimento de que a deliberação em apreço nestes autos padece dos vícios de conteúdo previstos no art. 58º nº 1 al. a) e b) do CSC.
Escusamo-nos de repetir o que foi escrito na sentença recorrida a propósito do tipo de deliberações e dos vícios de que as mesmas possam enfermar, tendo presente a distinção entre as deliberações que são nulas e as que podem ser declaradas anuláveis verificados os requisitos consignados nos arts. 56º e 58º do CSC.
Tal como se fez menção na sentença recorrida e, não é motivo de dissensso entre as partes, a sociedade Ré teve lucros no exercício de 2017 que podiam ter sido distribuídos, uma vez que não eram necessários para cobrir quaisquer prejuízos transitados, nem para serem aplicados nas reservas impostas pela lei ou pelo contrato de sociedade.
No entanto, não foram distribuídos por decisão tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social, em assembleia geral de sócios renovada em Julho de 2020 (na sequência de interposição de acção de anulação da deliberação intentada pelo aqui Autor com base no vício procedimental de falta de informação).
Lucro periódico é o “excedente do activo líquido sobre o capital e as reservas, que se apura ao fim de cada ano ou exercício social, em face do balanço de exercício”, nele não se incluindo “as reservas (legais, estatutárias ou livres), nem os lucros acumulados (resultados transitados) de exercícios anteriores, que não tenham sido atribuídos aos sócios ( CSC art. 295º e 296º).
(…)É essencial a toda a sociedade lucrativa (em sentido restrito) que os lucros sejam distribuídos aos sócios ( CSC art. 21º nº 1 al. a), C Civ art. 980º). Não é, porém, essencial que essa distribuição seja periódica, v.g. anual; as partes no contrato podem excluí-la. Todavia, se não for excluída, deve considerar-se convencionada, como elemento natural do negócio jurídico (CSC art. 66º nº 2 al. f), 217º e 294º, C Civ art. 992º).
Mesmo neste caso, porém, não é obrigatório distribuir a totalidade dos lucros anuais pelos sócios. Pelo contrário, a lei impõe às sociedades por quotas, às sociedades anónimas, às sociedades em comandita por acções e ás velhas mútuas de seguros que uma certa percentagem dos lucros anuais seja retida pela sociedade como reserva legal: 5%, pelo menos, (…) e permite que os sócios estipulem no contrato ou, no silêncio deste, deliberem por maioria de três quartos dos votos reter uma parte dos lucros anuais para constituir reservas estatutárias ou reservas livres, respectivamente (CSC 217º nº 2 e 294º nº 1).
(…) O direito aos lucros não deliberados é o direito que os sócios têm colectivamente de dispor dos lucros realizados em cada exercício. Exercem-no, em primeiro lugar, mediante a apreciação das contas do exercício (em regra, anual), que é da competência dos sócios em todos os tipos de sociedades comerciais, com excepção das sociedades anónimas com conselho geral. Na verdade, só há direito aos lucros quando sejam apurados lucros; e estes só se consideram juridicamente apurados depois de aprovadas as contas do exercício.
Exercem-no, em seguida, mediante deliberação sobre a aplicação da totalidade ou de parte dos lucros apurados a reservas facultativas ou à sua distribuição pelos sócios- que é sempre da competência dos sócios (CSC art. 66º nº 2 al. f), 189º nº 3, 246º nº 1 al. e), 376º nº 1 al. a) e b), 441º al. f) e 451º a 455º).”[7]
É inegável o direito dos sócios a quinhoar nos lucros, porém, não existe o direito absoluto a receber lucros em todos os exercícios que terminem com resultado líquido positivo, mas apenas quando a assembleia dos sócios assim o delibere e na medida da distribuição determinada na assembleia que a aprove, em função da participação social de que os sócios sejam titulares ( neste sentido Jorge Coutinho de Abreu, Estudos de Direito das Sociedades, 2013-11ª edição, p. 208ss.
Ainda que não se verifique qualquer uma das restrições legais à distribuição de lucros previstas no art. 33º do CSC, não bastará que haja lucros distribuíveis para que os sócios tenham direito a recebê-los, porquanto o direito ao recebimento do lucro concretizar-se-á no momento em que a assembleia delibere distribuí-los, sopesando o interesse inegável dos sócios a receberam a contrapartida económica (dividendos) da sua participação na sociedade em termos de lucros, com o interesse social na garantia de solvabilidade e sustentabilidade da própria sociedade que, não raras vezes, sob gestão conservadora e perspetivando a sua projecção futura, poderá optar, de forma fundamentada, pela aplicação a resultados transitados, não com o intuito de prejudicar os sócios que compõem a sociedade, mas de fortalecer a sociedade e, por inerência, as participações de que cada sócio é titular, desde que a deliberação seja tomada pela maioria qualificada exigida pelo art. 217º nº 1 do CSC.
“(…) O CSC não se limita á previsão do direito (geral) a participar nos lucros. Na verdade, no que respeita às sociedades por quotas e anónimas, o legislador de 1986 previu regras mais específicas relativas à posição dos sócios para os lucros- os nºs 1 dos arts. 217º e 294º.
Nessas disposições, estabelece-se- de forma igual para ambos os tipos societários, na redação actual, proveniente de alteração legislativa de 1987- que não pode deixar de ser distribuído aos sócios um montante igual a pelo menos metade do lucro do exercício.
Este resultado pode, contudo, ser paralisado: duradouramente, por cláusula contratual em contrário; pontualmente (para um exercício), por deliberação de aplicação de resultados sujeita a requisitos especiais ( e que são a convocação para o efeito de não distribuir a metade do lucro e a aprovação por uma maioria qualificada correspondente a ¾ do capital social).
Vejamos, então, em pormenor os fundamentos da anulabilidade da deliberação, suscitados pelo Apelante.
3.1 Anulabilidade prevista no art. 58º nº 1 al. a) do CSC- deliberação ilegal.
Defende o Apelante ter sido incorrectamente aplicada a norma constante do art. 58º nº 1 al. a) do CSC, em conjugação com o art. 217º e o art. 223º nº 6 do CSC, porquanto a deliberação em causa viola disposição legal, quando foi tomada pela cabeça de casal, sem consentimento do aqui Autor, prejudicando a herança, por se traduzir numa renúncia à distribuição de lucros.
Admite o Apelante que a administração da herança, até á sua liquidação e partilha pertence ao cabeça de casal ( art. 2059º CC) e que o direito de participar e votar nas assembleias gerais lhe compete no âmbito dos poderes de administração ordinária ( art. 2087º nº 1 CC e 223º nº 1 CSC), porém, em seu entender, essa administração que cabe ao cabeça de casal está ao serviço do património hereditário, que deve ser exercida com zelo e prudência, não podendo ser colocado ao serviço ou satisfação dos interesses de qualquer dos herdeiros, quando, no caso em apreço, considera ser manifesto que a cabeça de casal defende os seus próprios interesses e os da sua família, que exercem o controlo e tiram proveito da gestão da sociedade e não da herança que representa, impedindo-o de tirar dividendos, quer enquanto sócio, quer enquanto co-herdeiro, sendo essa a única razão porque a cabeça de casal, contra a vontade expressa do Autor votou favoravelmente a proposta da gerência de aplicar o lucro do exercício a resultados transitados.
O Apelante alia a violação do art. 58º nº 1 al. a) do CSC à actuação da cabeça de casal que representa os contitulares da quota indivisa e dos demais sócios, em abuso de direito nos termos previstos no art. 334º CC, por lesar os interesses do sócio/autor e da herança, apesar de se apresentar formalmente regular.
Ao que sabemos, a convocação do art. 334º do CC em matéria de deliberações de sócios não tem sido suscitado para os casos previstos no art. 58º nº 1 al. a) do CSC-deliberações que violem disposições legais (a que não caiba a nulidade)-, mas para os casos previstos no art. 58º nº 1 al. b) do CSC- deliberações abusivas-, pois é no âmbito do abuso- abuso do direito de votos, para uns, e abuso da maioria, para outros- que o problema se equaciona.
Não obstante, nem sequer é consensual na Doutrina a aplicabilidade conjugada dos dois preceitos legais, desde logo porque os mesmos não conduzem ao mesmo resultado, conduzindo o art. 58º nº 1 al. a) do CSC à anulabilidade da deliberação e, o abuso de direito à impossibilidade de invocação do direito, sendo que os pressupostos para a sua verificação também não são coincidentes, mormente quanto ao elemento subjectivo.
A título exemplificativo, veja-se J. Oliveira Ascenção, que referindo tal problemática, nos diz que “parece claro que estão incluídas as deliberações em que o vício tem origem não num, mas em vários sócios; e que está aqui compreendido também o abuso da maioria, em prejuízo da minoria.
A primeira dúvida importante que se pode suscitar respeita à própria justificação da categoria. Já se disse que o preceito não traz nada de novo em relação ao art. 334º do Código Civil, que consagra o abuso de direito. Particularmente por no art. 334º se prever o exercício do direito que exceda manifestamente a boa fé…Os actos que se contemplam no art. 58º/1 b CSC cairiam naquela previsão.
Não pensamos assim. E isto mesmo sem nos fundarmos nas dúvidas que nos suscita uma categoria tão inconsistente como a do “abuso de direito”.
Antes de mais, porque a boa fé é de uma vacuidade extrema. O art. 58º/1 b avançaria sempre muito em relação àquela referência genérica, ao especificar vários tipos de exercício que não são admitidos.”[8]
Não fora a invocação pelo Apelante da violação dos arts. 217º e 223º nº 6 do CSC, e a anulabilidade da deliberação estaria restringida à previsão da alínea b) do nº 1 do art. 58º do CSC associada ao abuso de direito.
Porém, deliberação ilegal e deliberação abusiva são distintas, pelo que, ainda que uma deliberação apresente as características da alínea b) do nº 1 do art. 58º do CSC, estando em contradição com algum preceito legal será uma deliberação ilegal e não uma deliberação abusiva ( isto mesmo nos ensina Pinto Furtado, Deliberação dos Sócios, Comentário ao CSC, Almedina, pág. 388)
Esse Autor escrevia que“(…) a ilegalidade susceptível de inquinar de anulabilidade as deliberações dos sócios poderá ser constituída por violação de lei de fundo.(…) aquela que se resolve numa contradição do próprio conteúdo da deliberação directamente com a lei.
Quanto à anulabilidade, estabelecendo-se no art. 9º-3 que “os preceitos dispositivos desta lei só podem ser derrogados pelo contrato de sociedade, a não ser que este expressamente admita a derrogação por deliberação dos sócios”, daí se recolhe de que as normas dispositivas deste Código, ressalvada a excepção enunciada na parte final do preceito, só poderão ser afastadas validamente pelo contrato de sociedade: o afastamento de normas dispositivas (permissivas ou supletivas) pelo conteúdo de uma deliberação dos sócios implicará, portanto, em princípio, a anulabilidade.
A esta regra excepciona, porém, o preceito a hipótese de a própria norma admitir expressamente a sua derrogação por deliberação dos sócios, caso em que a deliberação será obviamente válida.”[9]
Ora, é precisamente esse o caso previsto no referido art. 217º do CSC que, impondo como princípio-regra a distribuição aos sócios de metade do lucro de exercício, no entanto, admite expressamente que tal não ocorra por deliberação qualificada de sócios, que representem ¾ do capital social.
Deste modo, o conteúdo da deliberação em apreço nestes autos, de não distribuição do lucro de exercício do ano de 2017 não contraria aquele preceito legal pois que o mesmo prevê expressamente a derrogação por deliberação dos sócios, desde que respeitada a maioria qualificada, o que ocorreu no caso sub judice.
Quanto à violação do art. 223º nº 6 do CSC, cumpre salientar que no caso de quotas indivisas, os contitulares de quota devem exercer os direitos a ela inerentes através de representante comum, a quem incumbirá exercer o direito de voto, sendo neste caso atribuída legalmente essa função à cabeça de casal da herança da qual faz parte a referida quota.
O representante comum pode exercer perante a sociedade todos os poderes inerentes à quota indivisa, salvo o disposto no número seguinte; qualquer redução desses poderes só é oponível à sociedade se lhe for comunicada por escrito.
Excepto quando a lei, o testamento, todos os contitulares ou o tribunal atribuírem ao representante comum poderes de disposição, não lhe é lícito praticar actos que importem extinção, alienação ou oneração da quota, aumento de obrigações e renúncia ou redução dos direitos dos sócios. A atribuição de tais poderes pelos contitulares deve ser comunicada por escrito à sociedade.
O mesmo princípio surge no art. 224.º nº 1 do CSC, segundo o qual a deliberação dos contitulares sobre o exercício dos seus direitos pode ser tomada por maioria, nos termos do artigo 1407.º, n.º 1, do Código Civil, salvo se tiver por objecto a extinção, alienação ou oneração da quota, aumento de obrigações, renúncia ou redução dos direitos dos sócios; nestes casos, é exigido o consentimento de todos os contitulares.
Segundo o nº 2 do mesmo preceito legal, a deliberação prevista na primeira parte do número anterior não produz efeitos em relação à sociedade, apenas vinculando os contitulares entre si e, para com estes, o representante comum.
Deste modo, perante a sociedade exerce o direito de voto o representante comum e, não estando munido de poderes de disposição, será necessário o consentimento do contitular para o exercício desse tipo de direitos, porém, afigura-se-nos que, entendendo-se que o direito a quinhoar nos lucros é um direito que apenas se concretiza na esfera dos titulares da participação social quando a assembleia delibere distribuí-los ( direito abstracto), caso a assembleia de sócios delibere pela não distribuição, o voto nesse sentido não configura uma renúncia ou redução do direito do sócio, mas a prática de um acto de administração ordinária de aplicação dos lucros de exercício em prol da própria sociedade, que por inerência se traduzirá no incremento do valor da mesma e das participações sociais de cada sócio de forma igualitária, acto para o qual não seria necessário qualquer consentimento do aqui Apelante enquanto contitular da quota.
Diferente seria se a assembleia tivesse deliberado distribuir os lucros de exercício e a cabeça de casal, representante comum da quota indivisa, tivesse decidido renunciar a esse direito ou prescindir desse recebimento, contra a vontade do contitular.
De todo o modo, se a cabeça de casal agiu de forma a prejudicar a herança, como sustenta o Apelante (sem que isso tenha ficado provado), não será fundamento de anulabilidade da deliberação, mas eventualmente poderá implicar a sua responsabilização, perante o outro herdeiro, pela forma como administrou a herança.
3.2. Anulabilidade prevista no art. 58º nº 1 al. b) do CSC-deliberação abusiva.
Defende, ainda o Apelante, que não se pode ter por fundada a justificação apresentada para a não distribuição dos lucros em causa, porquanto não ocorreu a remodelação e ampliação da Clínica e o investimento do exercício em activos fixos afectos à actividade da sociedade apenas atingiu o montante de €19.785,00 em equipamento básico.
Não aceita o Apelante que o tribunal tenha considerado justificado o facto de não ter havido remodelação e ampliação da Clínica, quer por morte do sócio, quer pela pandemia, desde logo porque nos anos de 2018/2019 não houve pandemia e da morte do sócio-gerente não resultou qualquer quebra de facturação, concluindo que a proposta da gerência para aplicar os lucros a resultados transitados apresentou argumentos e razões falaciosos com o único propósito de não distribuir os lucros, em benefício da sociedade que gere e em prejuízo dos sócios, designadamente do autor e da herança.
Reportando-se à alínea b) do nº 1 do art. 58º do CSC, escreve Filipe Cassiano dos Santos que, “esta, em geral, supõe a intenção de um sócio obter vantagens especiais para si ou para terceiro e de prejudicar a sociedade ou outros sócios, ou só a intenção de prejudicar aquela ou estes. As vantagens ou o prejuízo referem-se, parece-me, às vantagens ou prejuízos emergentes do desenvolvimento normal numa relação jurídica determinada oponível à sociedade e, em primeira linha, do contrato da sociedade e da relação associativa que ele desencadeia. Assim, o intuito que preside à recusa da distribuição, violando-se uma regra positiva de funcionamento da estrutura societária e da relação associativa sem uma justificação no quadro desta, é susceptível de integrar a noção de intuito (relevante) de prejudicar outros sócios ou mesmo de obter vantagens especiais e prejudicar outros sócios- isto é, vantagens e prejuízos reais e não legítimos, em face do que ocorreria se a sociedade respeitasse os parâmetros por que se deve reger na sua actividade e nas relações com os sócios.”[10]
Também Pinto Furtado sustentou, quanto a nós de forma lapidar e esclarecedora, que não é qualquer especial vantagem, ou prejuízo que permite considerar uma deliberação abusiva de forma a inquina-la do vício de anulabilidade, mas só “quando, apresentando-se embora o seu conteúdo como formalmente conforme à lei ou aos estatutos, venha afinal a constituir um excesso manifesto, susceptível de causar um dano flagrantemente injusto.
(…)Em nossa opinião, na alínea em apreço, não se configura, realmente, uma genérica descrição e sanção do abuso do direito de deliberações dos sócios: contempla-se apenas o tratamento, em simples tradução acrítica e pouco feliz expressão verbal, do chamado abuso de poder da maiorianão dispensando o intérprete, pois, de continuar a ter de recorrer ao tão injustamente depreciado art. 334º CC(…).
Na nossa alínea, destrinçam-se formalmente duas classes de deliberações dos sócios, ambas sancionáveis com a anulabilidade, se não vencerem a chamada “prova de resistência”: as deliberações apropriadas para a satisfação de um propósito de vantagens especiais, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios, e as apropriadas para a satisfação de um simples propósito de prejudicar aquela ou estes.
(…) Ora, nos elementos que recortam a noção descrita nesta alínea falta efectivamente, em última análise, o carácter anormal ou excessivo do conteúdo aprovado, que seria o seu traço objectivo de abuso do direito e o distinguiria da directa ilegalidade ou violação contratual.
A omissão de semelhante traço denotará, pois, em nosso parecer, a necessidade de recurso à figura geral de abuso do direito da nossa ordem jurídica para, através dela, se integrar a omissão e se estabelecer a destrinça necessária entre a deliberação abusiva e deliberação ilegal ou antiestatutária.
Esta conclusão perece-nos importante porque, se não houver no concreto caso figurado o traço de um excesso nas vantagens especiais aprovadas, não será esta alínea que determinará a anulabilidade da deliberação respectiva, ainda que todo o restante quadro se suponha, por hipótese, preenchido.
A norma não quis, obviamente, aplicar sem mais a sanção da anulabilidade à deliberação vantajosa para a maioria e desvantajosa para a minoria, a sociedade ou terceiros, mas aquela que a estas características acrescente a feição excessiva, i.e., abusiva”.
(…) Não será, pois, sem mais, abusiva a deliberação da maioria apenas susceptível de causar um dano à sociedade ou aos outros sócios na prossecução de vantagens especiais, mas aquela que traduza esta ideia na forma ou na dimensão de um excesso manifesto, abrindo margem à situação de clamorosa injustiça de que falam os autores e quanto á qual, só verificada ela, poderá fazer-se disparar a eficácia reparadora do abuso do direito.[11]
Essa exigência está presente em grande parte da Jurisprudência, sendo exemplificativo o Ac RC de 8/7/2021, segundo o qual “São anuláveis as deliberações tomadas com o objectivo de um dos sócios conseguir, com o seu direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, à revelia do interesse social ou contra este, representando tal anulabilidade a consagração da figura do abuso de direito em matéria de deliberações sociais.
Estão em causa as deliberações formalmente regulares, mas que lesam ou ameaçam interesses da sociedade ou dos sócios, em termos tão chocantes que se impõe e justifica a possibilidade da sua invalidação.”[12]
No mesmo sentido cita-se Ac STJ de 11/1/2022, proferido no Proc. Nº 801/06.6TYVNG.P1.S1.
Como resulta evidente, aplicados estes ensinamentos ao caso em apreço, a deliberação em apreciação apesar de aprovada pela maioria dos sócios e ser desfavorável aos interesses do sócio minoritário, aqui Apelante, ao não permitir que receba a sua quota-parte nos lucros de exercício, em si mesma não assume conteúdo manifestamente excessivo ou anómalo, susceptível de causar um dano flagrantemente injusto, que consubstancie uma situação de clamorosa injustiça, não tendo ficado demonstrado nem o intuito (propósito) ilícito da maioria dos sócios de prejudicar aquele sócio minoritário ou de obterem vantagens ilegítimas em seu detrimento e que dela derivem prejuízos para a sociedade ou para o sócio minoritário.
Acresce que, apesar de não ser uniforme este entendimento, J. Coutinho de Abreu entende mesmo que o propósito enunciado no art. 58º nº 1 al. b) do CSC significa dolo de um ou mais sócios votantes em determinada proposta deliberativa, bastando que seja dolo eventual[13] , tratando-se de um elemento subjectivo e actual ( não virtual) que há-se ser provado por quem impugna a deliberação[14] , prova essa que o Apelante também não logrou fazer.
Relativamente à falta de fundamentação ou argumentação falaciosa, convém salientar que, é ao órgão de administração que cabe, no caso da distribuição dos lucros do exercício fazer a proposta de aplicação de resultados devidamente fundamentada ( art. 66º nº 5 al. f) CSC), os sócios quando deliberam quanto à aplicação desses resultados, no sentido de os distribuir ou aplicar a resultados transitados, não têm de justificar essa sua decisão, devendo entender-se que se aceitam a aplicação dos lucros do exercício proposta, concordam com a fundamentação dela constante, estando assim fundamentada a deliberação tomada nesse mesmo sentido.
Ora, questionar se era ou não falaciosa a fundamentação vertida na proposta da gerência de aplicar os lucros de exercício do ano de 2017 a resultados transitados só porque, nos anos seguintes, o investimento a que previsivelmente se destinaria ainda não foi feito, é manifestamente insuficiente para considerar anulável a deliberação em apreço, porquanto a lei apenas exige que a deliberação seja aprovada por maioria qualificada, não exigindo que os sócios justifiquem expressamente e pormenorizadamente a opção tomada e, menos ainda que a sociedade concretize de imediato o investimento invocado para a não distribuição dos lucros de exercício.
Não sendo ilícita a aplicação dos lucros a resultados transitados, não violando a deliberação em causa o art. 217º do CSC porquanto nele se admite que a distribuição desses lucros pelos sócios seja derrogada por deliberação dos mesmos e, não estando demonstrado que a deliberação em análise assume as características abusivas que decorrem do art. 58º nº 1 al. b) do CSC, complementado com o conceito geral de abuso de direito, não lhe pode ser reconhecido o vício de anulabilidade sustentado pelo Apelante.
Deste modo, nenhuma censura merece a sentença recorrida, a qual se mantém.
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V. DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso interposto pelo Apelante/Autor, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas a cargo do Apelante, que ficou vencido.

Notifique.


Porto, 28/3/2023
Maria da Luz Seabra
Artur Dionísio de Oliveira
Maria Eiró

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
____________________
[1] F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 147 e A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil 2ª edição, pág. 92-93.
[2] A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 686.
[3] JOSÉ LEBRE de FREITAS, CPC Anotado, 2º volume, 3ª edição, pág. 736-737. Vide, ainda, no mesmo sentido, AC RP de 29.06.2015, AC RP de 1.06.2015 ou, ainda, AC RG de 14.05.2015, todos www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, entre outros, Ac STJ de 30.11.2021, Proc. Nº 760/19.5 T8PVZ.P1.S1 e Ac STJ de 16.11.2021, Proc. Nº 2534/17.9T8STR.E2.S1, www.dgsi.pt
[5] Vide, neste sentido, ainda, A. VARELA, ob. cit., pág. 690.
[6] Cadernos Temáticos De Jurisprudência Cível Da Relação, Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consultável no site do Tribunal da Relação do Porto, Jurisprudência
[7] Luis Brito Correia, Direito Comercial, Sociedades Comerciais, Vol. II, pág. 168
[8] Problemas do Direito das Sociedades, Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, Almedina, pág. 389
[9] Deliberação dos Sócios, Comentário ao CSC, Almedina, pág. 374
[10] Problemas do Direito das Sociedades, Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, Almedina, pág. 194
[11] Ob. Cit, pág. 381 ss
[12] Proc. Nº 1435/19.0T8ACB.C1, www.dgsi.pt
[13] Neste sentido Ac STJ de 12/7/2022, Proc. Nº 2180/18.0T8OAZ.P1.Sa, www.dgsi.pt
[14] CSC em Comentário, Jorge M. Coutinho de Abreu (Coord), Vol. I, pág. 714/715