Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1852/24.4T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PROENÇA
Descritores: NULIDADE
VÍCIO DA VONTADE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
LEGITIMIDADE PARA ARGUIR A NULIDADE
Nº do Documento: RP202510281852/24.4T8VFR.P1
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Interessado, para os efeitos do artigo 286.º do Código Civil, é o sujeito de qualquer relação juridicamente tutelável que seja afectada, na sua consistência jurídica ou prática, pelo negócio cuja nulidade se invoque.
II - Não se justificando o conhecimento oficioso dessa nulidade se a respectiva declaração não é susceptível de tutelar algum direito ou interesse juridicamente tutelável das partes no processo.
III - E não devendo reconhecer-se aos herdeiros legitimários legitimidade para, em vida do doador, impugnarem a validade das doações deste, fora do âmbito do n.º 2 do artigo 242.º do Código Civil
IV - Apesar de a proibição da violência doméstica ser matéria de interesse e ordem pública, daí não se segue que todo e qualquer negócio jurídico celebrado em contexto de violência doméstica deva considerar-se viciado de nulidade absoluta. A violência doméstica não invalida directamente e necessariamente negócios jurídicos, mas pode ter efeitos indirectos, como afectar a capacidade de livre determinação da vontade da vítima e ter consequências em contratos.
V - A menos que a violência doméstica integre o próprio objecto do contrato (é o caso, v.g., de alguém vincular-se a sofrer actos de violência doméstica ou a fazer a apologia pública de um crime dessa natureza), os tribunais não invalidam automaticamente negócios celebrados em contexto e com base em violência doméstica, cabendo-lhes antes aferir se houve vício da vontade relevante ou incapacidade de agir livremente. Vícios esses que geram apenas anulabilidade - e não nulidade absoluta -, para cuja arguição só têm legitimidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, dentro do prazo legal de um ano (art.º 287.º, n.º 1, do CCivil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 1852/24.4T8VFR.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Sumário:
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AA, residente na Avenida ..., ..., ... Coimbra, propôs contra:
1- BB;
2- CC; e cônjuge
3- DD, todos residentes na Rua ..., ... Espinho, acção com processo comum pedindo que seja:
a) Declarada a nulidade e sem nenhum efeito a escritura pública de doação (com reserva de usufruto vitalício, sucessivo e simultâneo) outorgada entre a 1ª ré e os e 3" réus, respectivamente enquanto donatária e doadores, no dia 28 de Dezembro de 2021, no Cartório Notarial de EE, sito na Rua ..., Espinho, lavrada de folhas 133 a 134 do Livro de Notas para Escrituras Diversas ...-E desse Cartório, tendo tal doação por objecto a fracção autónoma designada pela letra "O", descrita na Conservatória do Registo Predial de Espinho sob o número ......, inscrita na respectiva matriz sob o artigo ......, correspondente ao 3° andar esquerdo, n.° 916, que faz parte do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., na freguesia e no concelho de Espinho, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o número ... e inscrito na matriz sob o artigo ....
b) Ordenado o cancelamento do registo de aquisição do dito prédio a favor da donatária, ora 1a ré, BB.
Alega para tanto, e no essencial, os seguintes factos:
- Os 2.º e 3.º RR., respectivamente com 91 anos e 86 anos de idade, contraíram matrimónio, em 22 de Março de 1959, sob o regime supletivo então vigente de comunhão geral de bens;
- A casa de morada de família dos 2º e 3º réus é o único imóvel da sua propriedade e, inclusivamente, para sua residência/habitação: fracção autónoma designada pela letra "O", descrita na Conservatória do Registo Predial de Espinho sob o número ......, inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário de 79.301,95 €, correspondente ao 3º andar esquerdo, n.º ... do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., na freguesia e no concelho de Espinho;
- Os 2º e 3º réus têm duas filhas, a autora e a 1a ré, tendo esta, BB, actualmente com 58 anos de idade, resolvido, por si, ir coabitar com os pais, 2º e 3a réus, ali tendo passado a impor a sua presença e as suas vontades, e ao ponto de recorrentemente impedir o 2º Réu de poder falar com a autora, sua filha mais velha e residente em Coimbra:
- A par da idade e de problemas de saúde que afectam os 2º e 3a réus, a 3a ré DD padece de "demência senil", com limitações e alterações nas suas funções e capacidade cognitivas - designadamente, a nível da atenção, da memória, da linguagem, do pensamento e do discernimento -, com a deterioração global, progressiva e irreversível que caracteriza aquele tipo de doença.
- Sendo impedida pela 1a ré de poder falar e muito menos conviver, com liberdade e normalidade, com os pais, tal como também a estes imposto pela 1ª ré relativamente à ora autora, esta veio a inteirar-se do que vinha sucedendo e sendo perpetrado contra o seu pai, quando pôde aceder ao teor de certidão da denúncia criminal que o próprio apresentou em 15 de Novembro de 2019 contra a 1ª ré BB, dando origem ao inquérito criminal n.° ..., que correu termos no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) - 2a Secção de Santa Maria da Feira.
- Inquérito criminal, aquele, que poderá ser reaberto e apensado ao inquérito criminal com NUIPC ..., em curso naquela mesma 2a Secção de Santa Maria da Feira, que o Ministério Público determinou que fosse instaurado em face de factualidade de relevo que, além de ilícitos penais autónomos (ou "autonomizáveis"), é também passível de consubstanciar a prática, em execução permanente e, pelo menos, desde os anos de 2016 e 2017, do crime de violência doméstica pela 1ª ré contra o próprio pai, CC.
- Consta, do Auto de Denúncia de 15 de Novembro de 2019, de que a autora se pode inteirar mediante acesso ao teor de certidão emitida em 8 de Novembro de 2023, que o pai da autora, sozinho e por si próprio, se dirigiu ao Órgão de Polícia Criminal:
Motivo da intervenção policial: Pedido da vítima
Local: - Residência particular - Domicílio, Rua ... (Espinho, ... 3°-Esq°
Tipo de Local: Residência particular
Cod. Postal: ... Conselho: Espinho Freguesia:
Data: 2019-11-15
Hora: 17:00
- a comunicar o seguinte:
- Há cerca de seis anos a sua filha, identificada em item (denunciada) devido a uma situação de divórcio veio viver na residência da vítima, sita em (local da ocorrência) num regime de comunhão de bens, embora a vítima suportasse todas as despesas da casa.
- Há cerca de 2/3 anos a denunciada solicitou à vítima que lhe entregasse a quantia de 35.000 (trinta e cinco mil euros) com a finalidade de comprar um apartamento, tendo a vítima lhe respondido que não tinha possibilidade de lhe entregar a quantia atrás mencionada.
- A denunciada começou de forma constante a dirigir à vítima expressões como "és um pai de merda", "filho da puta", "cabrão de merda" expressões estas que considera ofensivas à sua honra e consideração, contribuindo igualmente para que a vítima fique perturbada psicologicamente.
- Nos últimos 2/3 anos a vítima sofreu vários episódios de violência psicológica no entanto nunca efectuou qualquer denúncia dos factos nas instâncias policiais ou judiciais.
- Comunicou ainda que nunca foi sujeito a qualquer violência física embora já lhe tenha feito várias ameaças de ofensas à integridade física.
- Na residência a vítima já provocou propositadamente várias danos em resultado de ficar num estado de fúria derivado a desentendimentos que teve com a vítima.
- A vítima referiu que a denunciada necessita de um tratamento psicológico e não se opõe à suspensão do processo se a mesma aceitar voluntariamente esse tratamento.»
- Foi atribuído a CC o Estatuto de Vítima Especialmente Vulnerável;
- Consta da ficha ..., elaborada aquando da denúncia de 15 de Novembro de 2019:
«6. O número de episódios de violentos e/ou a sua gravidade tem vindo a aumentar no último mês? (Sim)
10. O/A ofensor/a persegue a vítima, intimidando-a intencionalmente, demonstra ciúmes excessivos e tenta controlar tudo o que a vítima faz? (Sim)
11. O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/psicológica e não está a ser acompanhado/a por profissional de saúde ou não toma a medicação que lhe tenha sido receitada? (Sim)
19. A vítima ou alguém do agregado familiar tem necessidades especiais (ex: em função de doença física ou mental, idade avançada, deficiência, dependência de álcool/drogas...) e/ou não tem apoio de terceiros (família, amigos, vizinhos, colegas, instituição de apoio...)! (Sim)
- A factualidade já então denunciada pela própria vítima, ora 2º Réu, como perpetrada contra si pela 1ª ré pelo menos já desde os anos de 2016/2017, no contexto de uma coabitação dita imposta 6 anos antes, pelo que localizada temporalmente há já cerca de 10 anos atrás, consubstanciava controlo, coacção, extorsão (mesmo que, então, ainda na forma tentada) e perseguição, agressões verbais e ameaças de ofensa à integridade física, com fúrias e danos materiais atemorizadores, tendo a própria vítima vincado a necessidade de tratamento psicológico da denunciada, ora 1ª ré.
- O tipo legal de crime de violência doméstica é um crime único, que perdura no tempo em execução permanente, e sendo o bem jurídico primacial e transversalmente tutelado a integridade pessoal e a dignidade humana, podendo abarcar comportamentos e actos diversos que, em si, consubstanciam também a prática de crime(s), mas que se poderá também considerar não se autonomizarem e antes integrarem a conduta tipificada e punida como violência doméstica.
- E todas as leis ou normas penais, com o respectivo acatamento que a todos se impõe, são normas de interesse e ordem pública, que se revestem de uma natureza imperativa, determinando a nulidade de contratos ou negócios jurídicos, por força do preceituado tanto no artigo 294°, como no artigo 280°, n.° 2, do Código Civil.
- Em inícios do mês de Julho de 2023, a autora tomou conhecimento de que a 1ª ré teria, por meio que ainda não sabia qual tivesse sido, levado os pais a transmitir para a sua propriedade a própria casa de habitação e único imóvel que integrava o património dos 2° e 3° réus:
- Já então o 2° Réu relatou actos passíveis de consubstanciar a prática, em execução permanente, de crime de violência doméstica contra si pela 1ª ré, que se tinha instalado na casa dos pais, maltratava e atemorizava o pai, coagindo-o e tentando extorqui-lo.
- E explorando a "demência senil" de que sofre a mãe e que mais se vem agravando com o decurso do tempo.
- No dia 8 de Agosto de 2023 para apurar o que sucedia a autora levou o pai ao Cartório Notarial de Espinho - da Notária EE, espaço em que aquele ainda afirmava, destabilizado e ansioso, que apenas ali fora levado a formalizar o que lhe teria sido dito - dado a crer ou forçado a dizer - ser um testamento.
- No aludido Cartório Notarial, na presença do pai, a autora deparou com uma escritura de doação, ainda que com reserva de usufruto vitalícia e sucessiva, tendo a 1ª ré como donatária, realizada em 28 de Dezembro de 2021, num contexto de perturbação e instabilidade generalizadas decorrentes da pandemia por COVID-19.
- Foi no dia 8 de Agosto de 2023 que a autora tomou conhecimento e se inteirou de que a 1° ré levou os pais - padecendo a mãe de "demência senil", já incapaz de discernir, muito menos de forma esclarecida, sobre o que faz e diz; e queixando-se o pai de ser vítima de violência doméstica por parte da 1ª ré - a transmitir a propriedade da sua própria (e única) casa de habitação à sua "agressora", mediante doação a que foi atribuído o valor de 67.406,66 €, pelo que, inclusivamente, inferior ao próprio valor patrimonial tributário do imóvel, avaliado no ano de 2021, em 79.301,95 €.
Citados os réus, vieram a 1.a ré e os 2.º e 3.ª ré separadamente contestar, todos invocando a excepção da ilegitimidade activa da autora, dizendo que, analisada a petição inicial, a autora não esclarece qual o interesse que tem nesta acção, nem o benefício/utilidade que obtém com a sua procedência, de forma a preencher o conceito de interessado legalmente equacionado no artigo 286° do Código Civil. Não permitindo aferir o interesse na demanda, nem a existência de um direito incompatível com o negócio jurídico realizado entre os réus, alvo de impugnação, o facto de alegar que é filha do 2.º Réu e da 3ª ré e irmã da 1ª ré, e não podendo concluir-se que a autora, enquanto sucessível legitimaria, tivesse, em vida dos seus pais, um qualquer direito subjectivo à quota-parte daquilo que constituiria a sua porção legitimaria, ou, ainda menos, que pudesse arrogar-se como titular de um qualquer direito subjectivo sobre concretos bens constituintes do património hereditário, capazes de virem a inteirar a sua quota. Inexiste qualquer tutela legal geral relativamente à protecção dos sucessíveis legitimários, no sentido de conferir-lhes legitimidade para poderem agir, durante a vida do autor da sucessão, contra os actos por este praticados que de alguma forma afectem as suas expectativas futuras na sucessão dos bens da herança, não possuindo legitimidade, nomeadamente a conferida pelo artigo 286° do Código Civil, para pedir a declaração de nulidade da doação por estes efectuada à 1ª ré sua irmã.
A autora veio responder, pugnando pela improcedência da excepção invocada.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador e julgada procedente a invocada excepção de ilegitimidade da A., e os réus absolvidos da instância.
Inconformada com a decisão, dela interpõe a A. recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1. Como se extrai da decisão recorrida, o Tribunal a quo invoca como razão de decidir uma causa e um facto jurídico manifestamente, que não só essencialmente, diversos daqueles que foram invocados na acção proposta pela autora, pelo que incorrendo em vício de ultra petita no que decide, e para o que decide, sobre a excepção dilatória de alegada ilegitimidade activa da autora e ora Recorrente.
2. Sem que atente sequer naquela que é a causa de pedir de que procede o pedido de declaração de nulidade em apreço, antes se alheando por inteiro daquele que é o objecto da presente acção (pese embora a respectiva súmula com que se principia a decisão ora recorrida), o Tribunal a quo procede a uma aferição do que seja a legitimidade activa, enquanto pressuposto processual, para o que fosse acção com objecto outro e enquadrada em regime legal também muito diverso do que se prevê e comina imperativamente com a nulidade nos artigos 280°, n.° 2, e 294° do Código Civil, preceitos, estes, que foram completamente desconsiderados em sede de fundamentação da decisão de 19 de Novembro de 2024.
3. Está-se em face de violação dos artigos 3°, n.° 3, 5º, n.° 1, 608°, n.° 2, e 615°, n.° 1, alíneas d) e e), do Código Civil, aplicáveis, com devidas adaptações, para efeitos de prolação do despacho previsto no artigo 595° daquele mesmo diploma legal, com cominada nulidade.
4. Ainda que se entendesse não se estar em face de vício cominado com a nulidade, certo é que se evidencia o erro na decisão recorrida, decorrendo e assentando a aferição em si e a conclusão do Tribunal a quo em como se estaria perante a excepção dilatória de ilegitimidade activa da autora numa causa de pedir manifestamente diversa daquela que, sustentando o pedido de declaração de nulidade da escritura de doação de 28 de Dezembro de 2021, caracteriza a acção introduzida em juízo e, assim, o respectivo objecto.
5. A decisão ora sob recurso afronta não só o âmago do que se estabelece no artigo 20°, n.°s 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, e o que se consagra no artigo 202°, n.° 1, da Lei Fundamental, como também o que encontra protecção e garantia, enquanto direitos humanos fulcrais, no artigo 10° da Declaração Universal dos Direitos Humanos; no artigo 6º, n.° 1, da Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais; no artigo 14° do pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; e no artigo 47° § 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
6. No caso, atenta a concreta causa de pedir, subjaz ao que se acautela nos artigos 280°, n.° 2, e 294° do Código Civil Português, o que devam ser, em Portugal, imperiosos respeito e efectivação dos princípios fundamentais, basilares, com expressão e consagração não só nos artigos 1º e 25° da Constituição da República Portuguesa, mas também nos artigos 1º e 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos; nos artigos 5°, n.° 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos; nos artigos 9º, n.° 1, primeira parte, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; e nos artigos 3º, n.° 1, e 25° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
7. Há muito que resultou esclarecido pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que a norma contida no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos é aplicável, além do mais, também a acções em que se discute e decide matéria de natureza civil, sem prejuízo da particularidade e do facto de relevo de os artigos 280° e 294° do Código Civil Português importarem também o que se prende com a ilicitude e com condutas tipificadas e punidas como crimes, merecedoras de repúdio e repressão que são de manifesto interesse colectivo, público, generalizado no seio de uma sociedade.
8. Acresce estar em causa, no nosso País, enquanto Estado de Direito e República baseada na dignidade humana, a prevenção da violência doméstica e o que não deixa de configurar forma de protecção das suas vítimas contra actos do(a) agressor(a), sem desconsiderar ao que internamente e de medidas implementadas a nível europeu e internacional também Portugal se tem comprometido e vinculado, sendo de indubitável interesse público, alargado e globalizado mesmo, conter realidade (por natureza, ocultada e dissimulada pelo(a) agressor(a)) em que as vítimas são "amordaçadas", privadas da sua liberdade, da sua autodeterminação, com danos de relevo a nível patrimonial, físico e moral.
9. Especialmente no caso da violência doméstica perpetrada contra os 2º e 3º réus pela própria filha e 1a ré, mais do que de ordem e interesse público, está-se em face de um interesse alargado, global, como se tem evidenciado mediante a adopção e implementação de justificadas e reforçadas medidas tendentes a prevenir e a reprimir a prática daquele tipo legal de crime, sem margem para permissividade ou inércia, atenta a imposição de obrigações positivas aos Estados Membros, a cumprir sob pena de violação do direito comunitário/internacional, e bem assim, do que são direitos humanos a respeitar e efectivar.
10. Mesmo que outra fosse a causa de pedir de que decorresse o pedido formulado, ao próprio Tribunal a quo antes caberia, oficiosamente, declarar a nulidade de acto e/ou negócio jurídico que se viesse a apurar enquadrar-se no que se prevê e comina nos artigos 280°, n.° 2, e 294° do Código Civil, do que mais ressalta o interesse público que subjaz e norteia estes preceitos, a efectivar pelo próprio Estado Português, através dos Tribunais enquanto órgão soberano que administra Justiça e vela por que assim seja.
11. Precisamente a respeito daqueles preceitos, a inclusivamente também efectivar mesmo que, a contrario do que sucede neste caso, outra fosse a causa de pedir de acção introduzida em juízo, "Não podem os Tribunais ser alheios ao sentido de justiça dominante na sociedade que é o que as pessoas de bem acolhem intemporalmente", como realçado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2016 (Processo n.°2835/14.8TCLRS.Ll.Sl, tendo como Relator o Senhor Conselheiro António Fonseca Ramos).
12. E sendo certo que "A lei não pode reconhecer eficácia civil a um acto que tem relevância criminal", como se vinca, nomeadamente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Março de 2010 (Processo n.° 3377/06.0YXLSB.L1-2) e se aplica, essencialmente, também ao que se expôs a título de factualidade e de Direito na Petição Inicial, cominado, por imperativo legal, com a nulidade.
13. A Jurisprudência muito esclarecedora tem sido ao longo dos tempos, e também actualmente, quanto ao previsto e intencionado nos artigos 280°, n.° 2, e 294° do Código Civil, bem como quanto ao que sejam os conceitos neles contidos, o que se reflecte necessariamente no que seja uma efectiva e correcta aferição do pressuposto da legitimidade processual activa.
14. Por referência e em atenção para o que é constitui a concreta causa de pedir da presente acção, importa atentar-se em que todos os diplomas e normas penais, com o respectivo acatamento que a todos se impõe, são de ordem e interesse públicos e de natureza imperativa, determinando a sua ofensa, a sua preterição, a sua violação ou derrogação, a nulidade de actos ou negócios jurídicos, por força do estatuído tanto no artigo 294°, como no artigo 280°, n.° 2, do Código Civil.
15. A nulidade por violação dos princípios integrantes da Ordem Pública, bem como por ofensa aos bons costumes, que vão, pela própria natureza do preceituado, além do que se cingisse ou ficasse limitado a um qualquer interesse individual (e/ou convencional), sendo antes de ordem e de interesse públicos, susceptível, inclusivamente, de ser declarada oficiosamente mesmo que não integre - a contrario do que sucede no caso - a causa de pedir como apresentada numa acção pelo(a) autor(a).
16. Como há muito resulta da Jurisprudência por referência ao que se prevê nos artigos 280° c 294° do Código Civil, cabendo ao Julgador aferir, em cada caso, da ofensa aos bons costumes e da contrariedade do negócio jurídico em causa aos princípios integrantes da Ordem Pública, basta que resulte dos factos jurídicos concretos invocados (e, no caso, até já em muito demonstrados por via documental) estar-se em face de conduta que se aproxime do que seja tipificado e punido enquanto crime(s) para que o acto ou negócio jurídico em causa não possa persistir como válido na Ordem Jurídica Portuguesa, sendo do interesse (público) do Estado e da Sociedade que assim seja.
17. Atenta a factualidade que representa a causa de pedir e o que fundamenta o pedido apresentado pela autora, para mais até filha mais velha dos 2º e 3º réus, em que seja reconhecida e declarada a nulidade da doação à 1ª ré no contexto e nos termos como foi levado a ser celebrado tal contrato com os 2º e 3º réus, integrando conduta que é, inclusivamente, tipificada e punida pelo Código Penal Português, a autora detém legitimidade activa, sobrelevando-se um interesse público e substancial do Estado e da sociedade na nulidade de actos e negócios jurídicos que colidam com os bons costumes, a Ordem Pública a que aqueles estão também intrinsecamente associados, e de que resulte a violação ou derrogação de normas de cariz imperativo.
18. Ainda que muito mais e com acrescida gravidade caracterize a causa de pedir da presente acção, justificando seja conhecida e declarada a nulidade de negócio jurídico que se proíbe, com inerente e imperativa nulidade, nos artigos 280°, n.° 2, e 294° do Código Civil, a verdade é que, também muito à semelhança do que é igualmente considerado como ofensa aos bons costumes na Jurisprudência se revela ser o que foi explanado e invocado nos artigos 2º, 28° e 47° da Petição Inicial, e sendo atendível, como visto, o intuito em si (que se basta com a consciência e a intenção de uma das partes contratantes) afrontoso do que sejam disposições legais por que regia, e rege, naquele e também neste caso, o Direito Sucessório.
19. Além do que com evidência maior se enquadra no que se prevê e proíbe, com inerente e imperativa nulidade, nos artigos 280°, n.° 2, e 294° do Código Civil, mesmo um propósito lesivo do que são regras legais por que se sabe reger o direito sucessório, numa conduta ofensiva dos bons costumes a que corresponde "a moral social dominante num determinado momento e numa determinada sociedade" e no que se considera ser actuação "manifestamente atentatória dos princípios éticos e morais da vida em sociedade" (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Janeiro de 2021 - Processo n.° 632/18.0T8AVR.P1), está também patente no explanado factualmente na Petição Inicial, pelo que mais sobressaindo ainda que a autora detém legitimidade activa e interesse em agir.
20. É não só ilegal, como também inconstitucional uma aferição judicial do pressuposto processual da legitimidade activa desprendida e à revelia do objecto processual da acção em sede de decisão e de respectiva fundamentação ao abrigo do artigo 595° do Código de Processo Civil, por violação dos artigos 20°, n.°s 1 e 4, e, bem assim, também do artigo 202° da Constituição da República Portuguesa.
21. Ao que acresce a violação do que de essencial para que possa concluir por que foi efectivado o acesso a tutela jurisdicional efectiva e a própria realização de Justiça se consagra no artigo 10° da Declaração Universal dos Direitos Humanos; no artigo 6º, n.° 1, e sendo também de relevo o direito estabelecido no artigo 13° da Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais; no artigo 14° do pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; e no artigo 47° § 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
22. Ainda que o Tribunal a quo não tenha proferido decisão incidente sobre o objecto processual que lhe foi submetido para o efeito, sempre se dirá e invoca ser não só ilegal, como inconstitucional, por violação dos artigos 20°, n.° 1, e 202° da Constituição da República Portuguesa, interpretação do que se prevê no artigo 280° e do artigo 294° no sentido de que inexiste interesse público em agir por parte de cidadão que se integre na sociedade, e que nem lhe assistirá legitimidade processual para propor acção visando que seja judicialmente reconhecida e declarada a nulidade com que, por imperativo legal, é cominado acto e/ou negócio jurídico ofensivo dos bons costumes e dos princípios e normas integrantes da Ordem Pública, para inerente eliminação de tal acto/negócio da ordem jurídica em que não pode persistir como se tivesse validade.
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Os réus apresentaram contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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A questão a resolver na presente apelação consiste unicamente em saber se a sentença enferma de nulidade por excesso de pronúncia, se foram violadas normas constitucionais inerentes à função jurisdicional e estão verificados os pressupostos da excepção dilatória da ilegitimidade da autora..
Encontram-se para tal assentes os factos constantes do relatório supra, e as ocorrências processuais aí descritas, para que ora se remente.
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A questão principal que os autos suscitam é a de saber se a recorrente, invocando a qualidade de filha dos doadores, possui legitimidade judiciária para requerer a declaração de nulidade da escritura pública de doação nos artigos 280°, n.° 2, e 294° do CCivil.
O conceito de legitimidade vem definido no art.º 30º do Código Processo Civil (CPC), mantendo o regime já adoptado no anterior CPC (artigo 26.º):
“1 - O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”
Este interesse tem por base a posição subjectiva da pessoa perante a relação controvertida ou seja, a relação do sujeito com o concreto objecto da causa, pelo que se distingue do mero interesse (objectivo) em agir «traduzido na necessidade objectivamente justificada de recorrer à acção judicial» (Antunes Varela, Manual de Processo Civil,
2.ª edição, pág. 134). Daqui decorre que a legitimidade processual é o pressuposto adjectivo através do qual a lei selecciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo trazido a juízo. A aferição da legitimidade é feita por referência ao objecto do processo - causa de pedir e pedido - definido pelo autor (art.° 30.°. n.° 3, do CPC).
A decisão recorrida julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade da autora baseando-se nos seguintes considerandos:
“Está, assim, em causa a nulidade doação, por ofensa dos bons comuns e contrariedade à ordem pública (art.° 280.° do CC).
Ora, de acordo com o art.° 286.° do CC: "A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.".
Assim sendo, segundo o citado 286.° do CC a nulidade pode ser invocada por "qualquer interessado".
Cabe então e antes de mais apurar se a autora é um "qualquer interessado".
A redacção do art.° 286.° do CC não se afasta do que se entende nos sistemas jurídicos mais próximos.
Como se refere no Ac. STJ de 13/02/2003, relator Nascimento Costa, proc. n.° 03B113, publicado in www.dgsi.pt.
"O Códice Civile fala de "qualquer que nisso tenha interesse"-art°1421°.
Santoro-Passarelli (1) limita-se a afirmar a legitimidade de "qualquer interessado".
A. Von Tuhr (2), escreve:
"A nulidade pode suscitá-la qualquer um, não só as partes que intervieram no negócio, seus sucessores e "causahabientes", mas também aquele terceiro a cujos direitos interesse a nulidade do negócio, e muito principalmente os credores...".
Mais longe vão Enneccerus-Nipperdey:
"todo o mundo pode invocar a nulidade contra qualquer um".
Curiosas são as observações de P. Esmein:
Aí se lê que deve tratar-se de um interesse protegido pelo direito, susceptível de abrir uma acção na justiça.
Que um habitante não pode arguir a nulidade de um negócio se visar ver-se livre de uma vizinho indesejado.
Nem um comerciante pode pedir a dissolução de uma sociedade apenas para se livrar de uma concorrente no mercado...
Se invocar outros fins que não esses (ilegítimos, inaceitáveis) já será de lhes conceder legitimidade, deduz-se do texto.
Segundo Heinrich Ewald Hõrster, não é qualquer pessoa que pode invocar a nulidade mas apenas o particular cujos interesses, jurídicos ou económicos ou morais, tiverem sido afectados pelo negócio nulo.
Parece-nos ser esta uma formulação adequada para a interpretação do art° 286° do CC.".
Como ensinava Manuel de Andrade (in "Teoria Geral da Relação Jurídica", II, pág. 417), como tal deve entender-se o sujeito de qualquer relação jurídica que de algum modo possa ser afectada pelos efeitos que o negócio tendia a produzir na sua consistência jurídica ou mesmo na sua consistência meramente prática (como seria a situação dos credores). No mesmo sentido se pronunciaram Pires de Lima/Antunes Varela (in Código Civil Anotado, I, anotação ao art.° 286.°) e Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil, 3.a ed., pág. 611).
A este propósito, citando o Ac. Rei. Lisboa de 17/06/2021, proc. n.° 572/18.3T80ER.L1-2, relator Arlindo Cruz, publicado in www.dgsi.pt aludido pelas partes, dir-se-á que:
"O douto Acórdão da RP de 11/01/2021 tratou de situação de legitimidade na arguição de nulidade do negócio jurídico, por simulação, o que implicou a consideração da norma específica contida no art°. 242°, do Cód. Civil.
Fez-se constar, no que concerne à remissão para o art°. 286°, do mesmo diploma, que " por "qualquer interessado", não pode deixar de entender-se que a lei se está a referir ao "titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio" - Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.a edição revista e actualizada, Coimbra Editora, pág. 263 e, no mesmo sentido, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.a edição, 2.a reimpressão, Coimbra Editora, pág. 620 - ou seja o sujeito de qualquer relação jurídica que, de algum modo, possa ser afectado pelos efeitos que o negócio tendia a produzir. Interessado para este artigo é o sujeito de qualquer relação jurídica que de algum modo possa ser afectado pelos efeitos que o negócio tendia a produzir. Afectado na sua consistência jurídica ou mesmo só na sua consistência prática (R. Alarcão, Confirmação, 1º- 63, nota 68; Rodrigues de Bastos, Relações Jurídicas, 4 º, 14°)".
E, invocando o interesse público, conclui que em matéria de legitimidade para a arguição da nulidade deve pugnar-se pelo afastamento de orientações restritivas, sem todavia deixar de consignar as exigências expressamente expostas para o preenchimento do conceito de interessado.
Ajuizando acerca do mesmo conceito de interessado, consignou-se no douto aresto da mesma RP de 24/01/2018 afigurar-se claro "que o direito de invocação da nulidade não pode ser conferido a todos, dado que não é (nem pode ser) qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração da nulidade, que preenche os requisitos para ser considerado interessado.
De facto - de acordo, aliás, com a própria inserção sistemática do art. 286° -, o interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar o vício é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica, ou a consistência prática ou económica, de um direito seu. O sujeito legitimado deve, assim, ter um interesse directo na nulidade e não apenas um interesse reflexo, vago e indirecto" (sublinhado nosso.
Ajuizando acerca de situação potencialmente consubstanciadora de legitimidade indirecta, referenciou-se no douto aresto desta RL de 17/01/2012 (omitem-se as expressas referências às citações) que "a ressalva constante do n° 3 do art. 26° ("na falta de indicação em contrário"), respeita às hipóteses em que, excepcionalmente, o legislador reconhece legitimidade a quem não é sujeito (ou só é em parte) da relação material controvertida submetida à apreciação do tribunal.
Ou seja, para além de se atribuir legitimidade aos sujeitos da relação material controvertida (legitimidade directa), resultante de uma presumida coincidência entre as partes na acção e os sujeitos da relação material, a lei excepcionalmente atribui legitimidade aos não titulares da relação material (legitimidade indirecta).
E, nas palavras de Paula Costa e Silva, a legitimidade enquanto pressuposto processual adquire relevância precisamente quando em juízo se encontram, não as partes materiais, mas as partes formais, naquelas situações em que quem está em juízo alega não ser o titular da relação material controvertida.
Como refere Anselmo de Castro, "não poderia, porém, a lei abstrair das muitas situações em que terceiros são profundamente interessados na definição da relação jurídica de outrem. E assim venha a conferir o direito de acção não apenas aos sujeitos da relação material, mas ainda a outros que o não são. Este fenómeno de ampliação do direito de acção verifica-se sempre que o objecto da acção se apresente como algo de prejudicial em relação às pretensões de outros sujeitos (relações conexas) ou afecte interesses públicos".
A doutrina é unânime em considerar como exemplos de atribuição do direito de acção versando sobre relação jurídica a que é estranho ou em que tem apenas um interesse indirecto, a acção de declaração de nulidade dos negócios jurídicos, a acção sub-rogatória prevista no art. 606° do CC, e a acção popular prevista no art. 26°-A do CPC.
Em todas estas hipóteses, em que é atribuída legitimidade processual a quem é titular de um interesse indirecto, surge um fenómeno de substituição processual: a acção é deduzida em nome e no interesse próprio, mas sobre relação jurídica de outrem".
Seguidamente, após explicitar a dualidade entre legitimidade indirecta substitutiva e representativa, conclui referenciando que "quando a disponibilidade adjectiva não decorre da alegada titularidade da situação objectiva, é indispensável a atribuição legal da legitimidade, pois sem essa atribuição legal, a parte não será legítima" (sublinhado nosso).
Por sua vez, o douto aresto da RE de 08/06/2017 reporta-se a situação concreta com algumas semelhanças ao caso sub Júdice. Nomeadamente, naquela, a autora, enquanto herdeira legitimaria de seus pais, ainda vivos, pretendia impugnar a escritura de justificação notarial para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial feita por um terceiro relativamente a bens integrantes do acervo de uma herança indivisa, na qual figuravam como herdeiros, entre outros, os seus ascendentes progenitores.
Defendeu-se que a menção interessado feita constar no art°. 286°, do Cód. Civil (omite-se a expressa referência às citações)"abrange todo aquele a quem a lei confere o direito de impugnar em juízo o facto hipoteticamente gerador da nulidade e esse interesse directo remete para um juízo avaliativo do interesse substantivo subjacente.
Na hipótese vertente cumpre assim fazer a associação entre a regra processual respeitante à legitimidade processual e as normas editadas a propósito da disciplina da sucessão mortis causa, mormente aquelas que se reportam à administração da herança e ao exercício de direitos por parte dos sucessores do de cuius.
E deste modo, estamos perante uma hipótese excepcional em que a legitimidade não é simplesmente aferida pelo desenho da relação material controvertida tal como é configurada pelo(a) autor(a). Efectivamente, à luz da primeira parte do n° 3 do artigo 30° do Código de Processo Civil, existe uma indicação da lei que aponta para a existência de requisitos que condicionam a identificação do titular do interesse relevante para o efeito do preenchimento do pressuposto processual".
Efectuando tal juízo, acrescenta que "na esteira da lição de Rabindranath Capelo de Sousa, também entendemos que não é verdade que os sucessíveis legitimários tenham em vida do autor da sucessão um direito subjectivo à quota-parte que constitui a sua porção legitimaria ou, muito menos, um direito subjectivo aos bens em concreto do património hereditário que possam integrar a sua quota: em face dos concretos poderes ou faculdades jurídicas atribuídas pela lei a tais sucessíveis, estes têm em vida do autor da sucessão uma expectativa juridicamente titulada à sua porção legitimaria.
Também Oliveira Ascensão sublinha que «o legitimário, satisfazendo a sua expectativa, não se torna necessariamente herdeiro. A referência do artigo 2156° a herdeiros só não é incorrecta por, uma vez mais, a palavra herdeiro estar utilizada em sentido amplo, como sucessível». Na letra da lei são herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes, os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima (artigo 2157° do Código Civil).
O direito ao direito a suceder relativamente aos legitimários que não integrem a primeira classe de sucessíveis corresponde a uma simples expectativa e o herdeiro legitimário não tem um direito subjectivo à quota-parte que constitui a sua porção legitimaria em vida do de cuius" (sublinhado nosso).
Em acrescido argumentário conclui-se que "em primeiro lugar, o domínio e posse dos bens da herança só se adquirem pela aceitação (artigo 2050°, n° 1), a qual só pode ter lugar depois da abertura da sucessão (artigos 2032°, n° 1, ou seja, depois da morte do de cuius (artigo 2031°). Depois, a vocação sucessória só tem lugar no momento da abertura da sucessão.
Assim, fora dos casos excepcionados por lei, permanece válido o posicionamento teórico de Nuno Espinosa que defende que «o designado legitimário, enquanto tal, em vida do "de cuius" não tem qualquer meio de tutela ou conservação do que seria a sua expectativa jurídica».
Entre estas excepções emergem a legitimidade para arguir a simulação ao abrigo do disposto no artigo 242° do Código Civil e o instituto da inoficiosidade, em que, neste último, o herdeiro legitimário pode obter a revogação ou a redução das liberalidades, em vida e por morte, feitas pelo de cuius.
É incontroverso que os sucessíveis legitimários podem arguir a simulação dos negócios simulados, gratuitos ou onerosos, feitos pelo autor da sucessão com o intuito de os prejudicar. No entanto, face à arquitectura factual e jurídica da acção em curso não estamos perante uma hipótese com esta configuração, pois a providência anulatória em causa é absolutamente omissa quanto à existência de um conluio entre os seus pais e o seu irmão no sentido de a prejudicar na futura partilha de bens nem é invocado que o meio utilizado para concretizar o engano em apreciação foi o recurso a uma acção de justificação notarial.
Não existe na lei uma intenção geral e genérica de proteger os herdeiros legitimários conferindo-lhe legitimidade para atacar os actos que atinjam as suas expectativas em relação à futura sucessão nos bens da herança dos seus antecessores ainda vivos. Essa legitimidade só existe em circunstâncias especiais concretamente definidas na lei" (sublinhado nosso).
Em idêntico sentido, sumariou-se no douto Acórdão desta RL de 15/12/1992 [25], não conferir a nossa lei "aos herdeiros legitimários o direito de, em vida do doador, impugnarem a validade das doações deste, fora do âmbito do n. 2 do artigo 242 do Código Civil. Esta última disposição tem carácter excepcional, só sendo aplicável aos casos nela contemplados.
O disposto no artigo 286 do Código Civil não confere aos herdeiros legitimários legitimidade para pedirem a declaração de nulidade das doações feitas pelos pais, enquanto vivos forem".".
No caso em apreço, a A. não é parte no negócio de doação.
E, a procedência da acção não é susceptível de lhe trazer, objectivamente, uma situação de vantagem ou utilidade. Não se vislumbra, pois, a existência de qualquer interesse directo em demandar, nem que da eventual procedência da demanda resulte, directamente, uma qualquer situação de vantagem ou benefício para a autora. Nem se afigura que a autora, na configuração pela mesma introduzida na exposta causa de pedir, se afirme com a exigível qualidade posicionai de parte face ao litígio em controvérsia, de modo a que tal lhe confira a legitimação processual de que se arroga.
Acresce que, como se refere no Ac. Rei. Lisboa de 17/06/2021, que seguimos de perto, não é possível reconhecer à autora legitimidade indirecta, inexistindo normativo legal que faça estender tal legitimação. A única relação jurídica equacionável, ainda que não expressamente afirmada, é a que resulta da qualidade de herdeira dos 2.° e 3.° réus, e sua potencial herdeira legitimária. E, tal posição, por si só, é insuficiente para lhe conferir o estatuto de interessada para a invocação da nulidade da doação efectuada pelos seus pais à sua irmã. Efectivamente, a autora, enquanto putativa sucessível de seus pais, e durante a vida destes, apenas se pode considerar como detentora de uma expectativa juridicamente titulada à sua porção legitimaria, e não de um qualquer direito subjectivo à quota-parte em que se traduz a sua parcela ou porção legitimaria.
A autora é, pois, um terceiro não possuidor de qualquer interesse, directo ou indirecto, na invocação da nulidade do negócio em causa.
Destarte, a autora não tem legitimidade para arguir a nulidade do negócio, pelo que ocorre ilegitimidade singular activa.
Merecem aqui inteira concordância os transcritos considerandos, bem como a solução dada pela 1.ª instância à questão suscitada da legitimidade activa. Para além da jurisprudência aí citada, também esta Relação e Secção se pronunciou já no sentido de que interessado, para os efeitos do artigo 286.º do Código Civil, é o sujeito de qualquer relação juridicamente tutelável que seja afectada, na sua consistência jurídica ou prática, pelo negócio alegadamente nulo (…). Nada justifica o conhecimento oficioso da nulidade de um negócio se a declaração dessa nulidade não é susceptível de tutelar algum direito ou interesse juridicamente tutelável das partes processuais. É a necessidade de tutela jurídica por via da declaração da nulidade que justifica, a um tempo, a legitimidade do titular do direito ou interesse a tutelar e a oficiosidade daquela declaração (cfr. Acórdão de 05-12-2023, Processo 2688/12.4T8VNG, Rel. Des. Artur Dionísio Oliveira).
Acresce que´, sendo certo que a proibição da violência doméstica é matéria de interesse e ordem pública, daí não se segue que todo e qualquer negócio jurídico celebrado em contexto de violência doméstica deva considerar-se viciado de nulidade absoluta. O crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º do Código Penal, visa punir as condutas violentas (de violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual), dirigidas a uma pessoa especialmente vulnerável em razão de uma dada relação (conjugal ou equiparada), que se manifestam como um exercício ilegítimo de poder (de domínio) sobre a vida, a integridade física, a intimidade, a liberdade ou a honra do outro, caracterizado as mais das vezes por um estado de tensão, de medo, ou de sujeição da vítima, sendo esta bastas vezes tratada como uma mera «coisa» (cfr. Acórdão da Relação de Évora de 25-05-2023, Proc.º 1819/21.4T9STB.E1, in dgsi.pt). A violência doméstica não invalida directamente e necessariamente negócios jurídicos, mas pode ter efeitos indirectos, como afectar a capacidade de livre determinação da vontade da vítima e ter consequências em contratos. A menos que a violência doméstica integre o próprio objecto do contrato (é o caso, v.g., de alguém vincular-se a sofrer actos de violência doméstica ou a fazer a apologia pública de um crime dessa natureza), os tribunais não invalidam automaticamente negócios celebrados em contexto e com base em violência doméstica, cabendo-lhes antes aferir se houve vício da vontade relevante ou incapacidade de agir livremente. Vícios esses que, como é sabido, geram apenas anulabilidade, para cuja arguição só têm legitimidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, dentro do prazo legal de um ano (art.º 287.º, n.º 1, do CCivil).
Mal se compreendendo ainda como possa a decisão recorrida ter incorrido em vício de ultra petita a respeito de tal excepção dilatória, viciando-a de nulidade ex vi dos artigos 615°, n.° 1, alíneas d) e e), do CPC. A referida alínea e) refere-se exclusivamente a decisões condenatórias, e ocorre quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, pelo que a nulidade aí cominada resulta aqui manifestamente deslocada. Quanto à alínea d) - nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia -, resulta da violação do disposto no n.º 2 do art. 608.º do CPC, nos termos do qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras". É a violação daquele dever que torna nula a sentença e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que a omissão de pronúncia se traduz, ao fim e ao cabo, em denegação de justiça e o excesso de pronúncia na violação do princípio dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes. É entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que o julgador não tem que analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as razões jurídicas invocadas pelas partes em abono das suas posições. Apenas tem que resolver as questões que por aquelas lhe tenham sido postas, que não se confundem com os motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões (cfr. A. Reis, Código de Processo Civil anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1981 (reimpressão), págs. 141 e 143; A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pag. 688.). Ora, o que aqui não pode invocar-se é o incumprimento do dever de resolver as questões que as partes tenham submetido – apenas uma, a da legitimidade activa da autora, ficando todas as demais prejudicadas pela sua procedência. Os factos são aqueles que a recorrente alegou, e os argumentos que a recorrente aduziu não têm a virtualidade de delimitar a solução a dar a tais questões - no sentido que a recorrente propugnou -, contrário àquele que a 1.ª instância acolheu.
Por fim, não se vê como possa o tribunal a quo ter infringido os artigos 20°, n.° 1, e 202° da Constituição da República Portuguesa. Consagram tais normas constitucionais, respectivamente, a garantia do acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, e inerente proibição de a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos, e os princípios gerais estruturantes da função jurisdicional. Ora, tais princípios pressupõem que a pretensão da autora deva ser apreciada pelos tribunais, mas já não necessariamente no sentido pretendido pela recorrente.
Acompanha-se, assim, a decisão proferida em 1ª instância no sentido da ilegitimidade da autora na acção, improcedendo a apelação.

Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação interposta e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 28/10/2025
João Proença
Alberto Taveira
Rodrigues Pires