Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
859/08.3TAPFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
DOLO DIRECTO
DOLO NECESSÁRIO
DOLO EVENTUAL
Nº do Documento: RP20101117859/08.3TAPFR.P1
Data do Acordão: 11/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REENVIADO O PROCESSO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Se, num caso de imputação de um crime de utilização indevida de menor previsto no art. 82º do Código do Trabalho, o tribunal se limita a dar como não provado o dolo directo, alegado na acusação, proferindo decisão de absolvição, sem indagar e decidir sobre a existência de dolo necessário e eventual, verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo comum singular 859/08.3TAPFR do .º Juízo de Paços de Ferreira

Relator - Ernesto Nascimento


Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

I. 1. Efectuado o julgamento foi proferida sentença onde se decidiu absolver os arguidos B………., Lda., C……… e D………. da prática do crime de utilização indevida de menor, por que vinham acusados.

I. 2. Inconformado com o assim decidido, interpôs o MP., recurso, sustentando as seguintes conclusões:

1. o Meritíssimo Juiz “a quo” deu como assente que “em Julho de 2.008, os arguidos C………. e D………. admitiram ao serviço da referida empresa – “B………., Lda.” – E………., nascida a 11 de Dezembro de 1.992, para apertar botões, com o horário das 8,30 horas até às 12,30 horas e das 13,30 horas às 17 horas”;
2. mas como não provado que tenham admitido a identificada menor apesar de saberem que esta não tinha completado a escolaridade obrigatória ou que tivesse completado os 16 anos de idade;
3. no entanto, não cuidou o Meritíssimo Juiz “a quo” de afastar a eventual comissão do crime imputado aos arguidos sob qualquer outro tipo de dolo, nomeadamente necessário ou eventual;
4. é que, afastada a possibilidade de comissão do ilícito penal em apreço com dolo directo, o julgador não pode limitar-se a dar como não provado esse tipo de actuação, mas deve, outrossim, indagar se qualquer dos acusados agiu com dolo necessário ou eventual;
5. de resto, concluir-se na motivação da decisão que manifestamente não era “política da empresa certificar-se da idade dos funcionários e do preenchimento das obrigações escolares”, que a menor E………., à data com 14 anos de idade, foi admitida ao serviço sem exibição de documentos certificativos da idade e da escolaridade completada e não concluir de tudo que, ao menos, foi representada a possibilidade de ser menor e de não a ter completado, é no mínimo desconforme à realidade e ao sentir geral da comunidade;
6. a, aliás douta, sentença recorrida padece, por isso e em nosso modesto entender, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, artigo 410º/2 alínea a) C P Penal e não sendo possível decidir a causa, impõe-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à questão concretamente identificada, ou seja, apurar se os arguidos, em todas as modalidades do dolo, sabiam que a menor E………. tinha (ou não) a idade mínima legalmente exigida e se tinha (ou não) completado a escolaridade obrigatória, à data da sua admissão como trabalhadora da sociedade comercial arguida, artigo 426º/1 C P Penal.

I. 3. Na resposta que apresentaram os arguidos pugnam pela improcedência do recurso.

II. Subidos os autos a este Tribunal a Exma. Sra. Procuradora Geral Adjunta, acompanhando a motivação do recurso, é de parecer que o mesmo merece, naturalmente, provimento.

No cumprimento do estatuído no artigo 417º/2 C P Penal, nada mais foi acrescentado.

No exame preliminar decidiu-se nada obstar ao conhecimento do mérito do recurso e que ao mesmo fora atribuído o efeito adequado.

Seguiram-se os vistos legais.

Os autos foram submetidos à conferência.

Cumpre agora apreciar e decidir.

III. Fundamentação

III. 1. Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º/1 C P Penal.

Assim, a única questão suscitadas pelo recorrente, para apreciação pelo tribunal de recurso, é a de saber se verifica o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

III. 2. Vejamos, então, desde já, a matéria de facto definida pela decisão recorrida.

FACTOS PROVADOS

“1) Os arguidos C………. e D………. são sócios-gerentes da “B………, Lda.”, com o NIPC ………, com sede em ………., ………., Paços de Ferreira.
2) A “B………., Lda.” tem por objecto social a confecção de artigos de vestuário em série, sendo as instalações de laboração na sua sede.
3) Ora, em Julho de 2008 os arguidos C………. e D………. admitiram ao serviço da referida empresa E………., nascida a 11 de Dezembro de 1992, para apertar botões, com o horário das 8,30 horas até às 12,30 horas e das 13,30 horas às 17 horas.
4) A arguida “B………., Lda.” tem antecedentes criminais registados. Por factos praticados em 2001 foi condenada por decisão transitada em julgado a 2009/05/07 pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social numa pena de 210 dias de multa à razão diária de 10€ (processo n.º 1097/07.8TAPFR do ..º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira).
5) O arguido C………. tem antecedentes criminais registados:
a) Por factos praticados em 1998 foi condenado por decisão transitada em julgado a 2002/03/31 pela prática dos crimes de ameaça e detenção de arma proibida numa pena de 180 dias de multa à razão diária de 10€, já extinta pelo pagamento (processo n.º 66/01.6TBLSD do ..º Juízo do Tribunal Judicial de Lousada).
b) Por factos praticados em 17/06/2007 foi condenado por decisão transitada em julgado a 2009/06/01 pela prática dos crimes de injúria e ameaça numa pena, em cúmulo, de 155 dias de multa à razão diária de 8€ (processo n.º 136/07.7GBPFR do ..º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira).
c) Por factos praticados em 2001 foi condenado por decisão transitada em julgado a 2009/05/07 pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social numa pena de 1 ano e 7 meses de prisão suspensa na sua execução (processo n.º 1097/07.8TAPFR do ..º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira).
d) Por factos praticados em 2008/01/16 foi condenado por decisão transitada em julgado a 2009/05/18 pela prática do crime de desobediência qualificada numa pena de 180 dias de multa à razão diária de 12€ (processo n.º 463/08.6TAPFR do ..º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira).
6) A arguida D………. tem antecedentes criminais registados:
a) Por factos praticados em 2005/06/01 foi condenada por decisão transitada em julgado a 2004/07/08 pela prática do crime de ofensa à integridade física simples numa pena de 20 dias de multa à razão diária de 15€, extinta pelo pagamento (processo n.º 231/04.4GBPFR do ..º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira).
b) Por factos praticados em 2001 foi condenada por decisão transitada em julgado a 2009/05/07 pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social numa pena de 1 ano e 9 meses de prisão suspensa na sua execução (processo n.º 1097/07.8TAPFR do ..º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira).

FACTOS NÃO PROVADOS

7) Os arguidos C………. e D………. admitiram a E………. a trabalhar na “B………., Lda.” apesar de saberem que esta não tinha ainda completado a escolaridade obrigatória, nem tinha completado os 16 anos de idade.
8) Os arguidos tinham ainda conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime”.

III. 3. Apreciando.

III. 1. Os fundamentos do recurso.

Defende o recorrente que ao julgar-se como provado que,
“em Julho de 2.008, os arguidos C………. e D………. admitiram ao serviço da referida empresa – “B………., Lda.” – E………., nascida a 11 de Dezembro de 1.992, para apertar botões, com o horário das 8,30 horas até às 12,30 horas e das 13,30 horas às 17 horas” e,
como não provado que,
“tenham admitido a identificada menor apesar de saberem que esta não tinha completado a escolaridade obrigatória ou que tivesse completado os 16 anos de idade”,
sem se cuidar de indagar da eventual comissão do crime imputado aos arguidos sob qualquer outro tipo de dolo, além do que constava da acusação pública – dolo directo,
se incorreu no vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

De resto, contextualiza o recorrente que concluir-se na motivação da decisão recorrida, que manifestamente não era “política da empresa certificar-se da idade dos funcionários e do preenchimento das obrigações escolares”, que a menor E………., à data com 14 anos de idade, foi admitida ao serviço sem exibição de documentos certificativos da idade e da escolaridade completada”, sem se concluir, ao menos, que foi representada a possibilidade de ser menor e de não a ter completado, é no mínimo desconforme à realidade e ao sentir geral da comunidade.
Assim, pugna, por que não sendo possível decidir a causa, se determine o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à questão concretamente identificada, ou seja, apurar se os arguidos, em todas as modalidades do dolo, sabiam que a menor E………. tinha (ou não) a idade mínima legalmente exigida e se tinha (ou não) completado a escolaridade obrigatória, à data da sua admissão como trabalhadora da sociedade comercial arguida.

III. 2. Assim é com efeito.
O recurso está manifestamente votado ao sucesso.
Do texto da decisão recorrida ressalta – de forma assaz ostensiva - a verificação do vício invocado.
Aliás, estamos perante um caso paradigmático do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º/2 alínea a) C P Penal.
No contexto definido pelo texto da decisão recorrida, o facto de o tribunal não ter procurado dar resposta à questão das várias modalidades do dolo, importa o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão.

Vejamos então.
Os arguidos foram submetidos a julgamento acusados pela prática em co-autoria material de um crime de utilização indevida de menor, p. e p. pelo artigo 608º/ 1 e 2 do Código do Trabalho aprovado pela Lei 99/2003 e actualmente p. e p. pelo artigo 82º do mesmo diploma, após a revisão operada pela Lei 7/2009 de 12FEV.

Dispunha o artigo 608º/1 do Código de Trabalho (CT), que a utilização de menor em violação do disposto no artigo 55º/1 e do artigo 60º/2, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave não couber por força de outra disposição legal, acrescentando o n.º 2 que no caso do menor não ter ainda completado a idade mínima de admissão nem ter concluído a escolaridade obrigatória, os limites das penas são elevados para o dobro.
Normas estas que regulavam, respectivamente, sobre a idade de admissão ao trabalho e sobre as garantias de protecção da saúde e educação.
Segundo o artigo 55º do CT só podiam ser admitidos a prestar trabalho o menor que tenha completado a idade mínima de admissão e tenha completado a escolaridade obrigatória e disponha de capacidades física e psíquica adequadas ao posto de trabalho (n.º 1), fixando-se a idade mínima de admissão par prestar trabalho nos 16 anos (n.º 2) e nos termos do artigo 60º/2 do CT, era proibida ou condicionada por legislação especial a prestação de trabalhos, que pela sua natureza ou pelas condições em que é prestado, sejam prejudiciais ao desenvolvimento físico, psíquico e moral dos menores.
Entretanto, face à alteração legislativa levada a cabo pela Lei 7/2009, de 12FEV, o crime de utilização indevida de menor passou a estar previsto no artigo 82º do CT.
Não sofreram, no entanto, quaisquer alterações, quer, os seus elementos constitutivos - objectivos e subjectivo, nem a própria moldura penal abstracta.
Trata-se de um crime que apenas é punido a título de dolo, cfr. artigo 13º C Penal.

Qualquer um dos vícios previstos no artigo 410º/2 C P Penal, de que o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, é exemplo, constitui vício da decisão e não de julgamento, que tem que resultar evidenciado do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos a ela estranhos, a não ser por apelo às regras da experiência comum.
Constituem, qualquer deles, por outro lado, vício de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que torna impossível uma decisão logicamente correcta, justa e conforma à lei.
Concretamente, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto determina a formação de forma incorrecta de um juízo, porque a conclusão não é suportada pelas premissas: a matéria de facto não é a suficiente para fundamentar a solução de direito, correcta, legal e justa.
“O termo “decisão”, refere-se, portanto, à decisão justa que devia ter sido proferida, não à decisão recorrida”. [1]
A insuficiência releva-se em termos quantitativos porque o tribunal não esgotou todos os seus poderes de indagação em matéria de facto. Na descoberta da verdade material, o tribunal podia e devia ter ido mais além. Não o tendo feito, a decisão formou-se incorrectamente por deficiência da premissa menor. O suprimento da insuficiência faz-se com a prova de factos essenciais, que fazem alterar a decisão recorrida, já na qualificação jurídica os factos, já na medida concreta da pena ou em ambas as situações, conjuntamente o nos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos. Se os novos factos não determinarem alguma dessas alterações, não são essenciais - o vício não será importante, podendo ser sanado no tribunal de recurso.
Isto porque, a decisão de direito não encontra na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio “lógico-subsuntivo”, em virtude de se ter deixado de investigar toda a matéria com interesse para a decisão da causa.

Assim, cremos que o facto de na decisão recorrida se não ter, seguramente, averiguado, de forma sucessiva, naturalmente, à medida que se ia afastando a mais grave, as várias modalidades de dolo, todas elas contidas na mais grave do dolo directo, afinal a que vinha alegada na acusação pública, decretando-se a absolvição, como consequência da não prova dos factos integradores do dolo directo, configura a existência do apontado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Com efeito, na decisão recorrida apenas se afastou o dolo directo dos arguidos, quanto ao conhecimento de que a trabalhadora que admitiram ao serviço da sociedade não tivesse completado os 16 anos de idade e que não havia completado a escolaridade obrigatória e assim, se concluiu, na falta de prova de qualquer um destes factos, pelo afastamento do dolo directo – e só desta modalidade de dolo - e se decretou a sua absolvição, sendo certo, porém, que à data da sua admissão a trabalhadora tinha, tão só 15 anos de idade (e não 14, como por lapso se refere na decisão recorrida) e não havia completado a escolaridade obrigatória.

Não obstante, assim se ter – sumariamente decidido, digamos - da leitura da decisão recorrida, parece, a dado passo, se bem acompanhamos o raciocínio expendido, surpreender-se a intenção de caminhar no sentido da apreciação das restantes modalidades do dolo – mas percurso, que indubitavelmente – apesar de os arguidos pugnarem em sentido diverso – se não completou.
Isto é do texto, do contexto e da motivação da decisão recorrida não se pode, antes pelo contrário, afirmar que ao se decretar a absolvição dos arguidos pela não prova do dolo, se quis abarcar qualquer uma das suas modalidades e desde logo, o dolo eventual, cuja formulação, atenta a sua especificidade, exigiria outra fundamentação de facto, substancialmente diversa, da que foi encontrada.

Com efeito, expendeu-se não ser política da empresa certificar-se da idade dos funcionários e do preenchimento das obrigações escolares e que a trabalhadora em causa, fora admitida sem exibição de documentos certificativos da idade nem da escolaridade completada.
Não se pode, assim, com efeito, afastar, desde logo e, sem mais, a conclusão, de que - ao menos - foi representada a possibilidade de a trabalhadora ter idade inferior aos 16 anos e de não ter completado a escolaridade obrigatória e de que perante tal os arguido se não hajam conformado.
Ora estes factos, ou melhor o seu conhecimento por parte dos arguidos são determinantes, pois que – em princípio, pelo menos - eles bem sabiam – salvo erro sobre a ilicitude - que, caso, a trabalhadora não tivesse 16 anos de idade e não tivesse completado a escolaridade obrigatória, não a podiam admitir, donde se impõe concluir que o tribunal não apurou a existência, desde logo, da existência de dolo eventual na conduta que lhes vinha imputada.

Como vem provado, a E………., que nascera a 11DEZ1992, foi admitida, em Julho de 2008, pelos arguidos para trabalhar na “B………, Lda.”, sendo menor de 16 anos de idade e não tendo completado a escolaridade obrigatória, que se fixava no 9.º ano de escolaridade.
Contudo, não resultou como provado que os arguidos tenham admitido a identificada menor apesar de saberem que esta não tinha completado nem os 16 anos de idade nem a escolaridade obrigatória.
Daqui – considerou-se prejudicada a tomada de posição sobre o facto alegado na acusação, do conhecimento por parte dos arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime – e concluiu-se, então, dado o facto de o crime ser doloso por natureza, pela absolvição dos arguidos.

No entanto, a E………. referiu que começou a trabalhar no dia anterior à inspecção que detectou a sua presença na empresa e que lhe pediram que exibisse o seu bilhete de identidade para confirmar ser maior, como alegou ser, bem como um documento que atestasse que tinha a escolaridade obrigatória, como igualmente asseverou possuir, dizendo que não os tinha consigo mas que depois os exibiria.
Versão, de resto, confirmado pelo da sua mãe, a testemunha F………. e ainda por G………. e H………, ambos funcionários da empresa arguida, que confirmaram o que a E………. tinha dito – depoimentos no entanto, não convenceram o tribunal.
Desta prova resulta que os arguidos não tinham conhecimento nem da idade da E………., nem da circunstância de não ter completado o 9.º ano de escolaridade, por aquela o ter escondido,
Se sobre estes factos a testemunha I………., trabalhadora da empresa, naturalmente, nada sabe, o certo é que, adiantou que no seu caso pessoal, a arguida D………. sabia que quando ali começou a trabalhar era menor e que não tinha completado a escolaridade mínima obrigatória.
Este depoimento foi tido, por um lado, como merecedor de credibilidade – atente-se que estamos perante alguém que trabalha ainda na empresa sem que se vislumbre, como plausível a existência de qualquer interesse pessoal em faltar à verdade, prejudicando os sócios da sua entidade patronal - e, por outro como susceptível de abalar a credibilidade dos depoimentos das referidas testemunhas G………. e H………., quando referiram ser política da empresa certificar-se da idade dos funcionários e do preenchimento das obrigações escolares – certificação que falhou na admissão quer da E………., quer da testemunha I………..
Daqui se conclui que se não se provou que os arguidos soubessem que a E………. não tinha ainda completado a escolaridade obrigatória, nem tinha completado os 16 anos de idade, então ficava prejudicado que tivessem conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.

E perante o afastamento do dolo imputado na acusação pública - o directo – ao qual se cinge, a decisão recorrida, concluiu-se que, então, importava, necessariamente, decidir-se pela absolvição dos arguidos.
Não cuidou o Meritíssimo Juiz “a quo”, no entanto, de afastar a eventual comissão do crime imputado aos arguidos sob qualquer outro tipo de dolo, nomeadamente necessário ou eventual.
Efectivamente, afastada a possibilidade de comissão do ilícito penal em apreço com dolo directo, o julgador não pode limitar-se a dar como não provado esse tipo de actuação, mas deve, outrossim, indagar se qualquer dos acusados agiu com dolo necessário ou eventual (ou mesmo com negligência, nos casos em que a punibilidade desta esteja expressamente prevista, o que no caso concreto, todavia, não ocorre).

Donde, atentas as sobreditas regras da experiência comum, se se afirma que não era “política da empresa certificar-se da idade dos funcionários e do preenchimento das obrigações escolares”, se a E………. foi admitida ao serviço, num dia, quando os arguidos lhe pediram que exibisse o seu bilhete de identidade para confirmar ser maior, como alegou ser, e um documento que atestasse que tinha a escolaridade obrigatória, como igualmente asseverou possuir, dizendo que não os tinha consigo mas que depois os exibiria e, no seguinte é encontrada a trabalhar e, não se averiguar, ao menos, da possibilidade de a entidade patronal ter representado o facto de a trabalhadora não ter completado os 16 anos de idade nem a escolaridade obrigatória é susceptível de integrar o apontado vício.

Do texto da decisão recorrida e maxime da sua linha de raciocínio, resulta que não foi nem efectiva nem implicitamente indagado e ponderado na douta sentença a quo, se qualquer dos acusados agiu com dolo necessário ou eventual ou mesmo com negligência, tendo-se concluído que a punibilidade desta não estava expressamente prevista.
A fórmula encontrada para decidir pelo não prova do elemento subjectivo - não se provou que os arguidos admitiram a E………. a trabalhar na “B………., Lda.” apesar de saberem que esta não tinha ainda completado a escolaridade obrigatória, nem tinha completado os 16 anos de idade - não consente se afirme que na decisão recorrida se esgotou o conhecimento e a apreciação das diversas modalidades de dolo.
Obviamente que se teve, tão só, presente o dolo directo. Em momento algum se pode subentender, sequer, que a decisão recorrida tenha tido presente, ou que os arguidos tenham representado como consequência necessária da sua conduta a perpetração de um facto tipicamente ilícito, ou que tenham assumido esse risco, conformando-se com a sua realização.
Omitiu-se na decisão recorrida, este dever, em busca da procura da verdade material, o dever se se averiguar, afirmar ou afastar, que na conduta dos arguidos estivesse presente as outras modalidades do dolo.

Da mesma forma, que na decisão recorrida por um lado se considerou prejudicado o conhecimento do facto alegado na acusação pública, “os arguidos tinham ainda conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime” quando, por outro lado, se considerou o mesmo como não provado.

A prevalecer a tese do não provado, sempre estaríamos perante um caso de erro notório na apreciação da prova, atentas as regras da experiência comum - na falta de qualquer análise crítica da prova produzida que o pudesse assegurar.
A prevalecer a tese da prejudicialidade, então o renovado conhecimento da questão do conhecimento dos requisitos legais para a contratação da trabalhadora, ainda que numa outra modalidade de dolo, importa, o reactivar deste conhecimento à luz, agora, do resultado desta apreciação.

Nem se diga que se está, por esta via a transportar para os arguidos qualquer “ónus” de prova negativa, como o fazem os arguidos.
No processo penal não existe qualquer ónus da prova, muito menos a cargo do arguido.
Se não se lograr fazer aprova dos factos constitutivos do tipo legal – maxime, do elemento subjectivo – o que se impõe, é a sua absolvição.
Da mesma forma, como é sabido, na falta de prova directa sobre o elemento subjectivo e não sendo o mesmo assumido pelo agente, a sua existência ou não há-de resultar da conclusão a extrair do conjunto da materialidade objectiva apurada.

Assim em resumo: [2]
apesar de não se provar o conhecimento pelos arguidos de a trabalhadora não ter ainda 16 anos de idade e não ter concluído a escolaridade obrigatória, em termos de dolo directo – o alegado na acusação - o julgador não estava dispensado de indagar se ocorria outro tipo de dolo - necessário ou eventual;
isto porque, nos casos em que é imputada ao arguido uma conduta levada a cabo com dolo directo e tal modo de proceder não se apura, o juiz não se deve limitar a dar como não provada a actuação com dolo directo, tem de indagar se o arguido agiu com dolo necessário ou eventual – ou mesmo com negligência nos casos excepcionais em que a conduta é punida a esse título – e dar conta dessa indagação nos factos provados, caso se tenha provado, ou nos não provados, se não se provou;
como também, ao menos, quando ao arguido é imputada uma conduta levada a cabo com dolo directo deve-se utilizar uma fórmula que esgote as diversas modalidades de dolo – e a negligência se o caso a admitir – para que não reste qualquer dúvida de que essa matéria foi averiguada, primeiro e apreciada, depois.

III. 3. A consequência da existência deste vício é – porque não é possível decidir a causa - o reenvio do processo, nos termos do artigo 426º/1 C P Penal, para novo julgamento, a realizar nos termos do artigo 426-A do mesmo diploma, relativamente à questão concretamente identificada: apurar - em todas as outras modalidades de dolo - se os arguidos sabiam que a trabalhadora não tinha 16 anos de idade nem tinha concluído a escolaridade obrigatória.

IV. DISPOSITIVO

Nestes termos e com os fundamentos acabados de expor, acorda-se em decretar o reenvio parcial, para novo julgamento relativamente à questão acima identificada.

Sem tributação.

Consigna-se, nos termos do artigo 94º/2 C P Penal, que o antecedente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto. 2010.Novembro.17
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
Olga Maria dos Santos Maurício

________________
[1] Cfr. neste sentido o Ac. STJ de 13.5.98, relator Joaquim Dias, in CJ, S, II, 199.
[2] Como se decidiu no Ac. deste Tribunal de 24OUT2007, em situação absolutamente similar, de resto.