Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ANABELA DIAS DA SILVA | ||
| Descritores: | EXECUÇÃO REGIME PROCESSUAL TRANSITÓRIO E EXCEPCIONAL CASA DE MORADA DE FAMÍLIA VENDA EXECUTIVA | ||
| Nº do Documento: | RP20201215410/04.4TBAVR-D.P1 | ||
| Data do Acordão: | 12/15/2020 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A suspensão do dos prazos de actos processuais, em termos genéricos, foi mitigada/levantada com a publicação da Lei n.º 16/2020, de 29.05, que entrou em vigor a 3.06.2020, que expressamente revogou o art.º 7.º da Lei 1-A/2020, estabelecendo então o denominado Regime Processual Transitório e Excepcional (RPTE). II - Ou seja, a partir da entrada em vigor da Lei n.º16/2020, de 29 de Maio (30.05.2020), voltaram a poder ser praticados actos na acção executiva, circunscrevendo-se a suspensão às diligencias que se encontrem relacionados com a concretização da entrega judicial da casa de morada de família. III - A venda, mesmo de imóvel que constitua casa de morada de família dos executados, realizada após 30.05.2020 é plenamente válida e eficaz. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Apelação Processo n.º 410/04.4 TBAVR-D.P1 Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Execução de Ovar Recorrentes – B… e C… Recorrida – D…, SARL Relatora – Anabela Dias da Silva Adjuntas – Desemb. Ana Lucinda Cabral Desemb. Maria do Carmo Domingues Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível) I – Nos presentes autos de presente execução comum para pagamento de quantia certa que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Execução de Ovar e onde é actualmente exequente hipotecário D…, SARL, com sede em .., Rue …, …, Luxemburgo, na qualidade de habilitação de cessionário de F…, SA, que por sua vez havia sido habilitação como cessionário do G…, SA, e são executados B… e C…, foi realizada, em Outubro de 2016, pela Sr.ª Agente de Execução, a penhora do imóvel dos executados constituído por: “Prédio Urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão, sótão, anexos e quintal, com área total de 652,5 m2, sita em …, …, freguesia …, inscrito na matriz respectiva sob o art.º 3170 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº 1331”. * Passou-se à fase de venda do bem penhorado. Existe um credor reclamante – a “H…, CRL”, garantido por hipoteca anterior sobre o bem penhorado. * Depois de várias vicissitudes no que respeita às tentativas de venda do bem penhorado, em 19.11.2018, foi proferido o seguinte despacho: “B… e C…, executados, apresentaram reclamação da de decisão da venda, requerendo que o valor de venda do imóvel seja fixado segundo o seu valor patrimonial tributário, por se desconhecer qual o seu valor de mercado.No entanto, a agente de execução designada nos autos fixou o valor de mercado em € 159 000,00. O valor de base dos bens imóveis corresponde ao maior dos seguintes valores: a) Valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efectuada há menos de seis anos; b) Valor de mercado (cf. art.º812.º, n.º 3 do nCPC). Assim, como o valor de mercado fixado pelo agente de execução é superior ao valor tributário, bem andou aquela agente. Termos em que mantenho a decisão da venda. Notifique”. * Por não terem sido apresentadas propostas para aquisição do bem de valor superior ao mínimo publicitado no âmbito do leilão electrónico, foi decidido que a venda se realizaria mediante negociação particular, nos termos do art.º 832º, al. f) do C.P. Civil.* Depois de ter sido aceite determinada proposta de compra, apresentou-se nos autos, na qualidade de remidora – I… – filha dos executados.E esta, na pessoa do seu mandatário, em 5.06.2020, foi notificada nos seguintes termos: “Fica V/ Exa. devidamente notificado, na qualidade de mandatário da remidora I…, bem como na sequência da comunicação remetida aos autos em 18/03/2020, que no âmbito da venda por negociação particular, se procedeu à marcação de escritura pública para dia 25 de Junho de 2020, pelas 12:00 horas no Cartório Notarial Dra. J…, sito em Rua …, ….-… Almada. Caso pretenda concretizar o exercício do direito de remição invocado, deverá comparecer no dia e hora supra indicados, devendo proceder ao depósito da totalidade do preço em falta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil (CPC), no valor de €135.200,00, no prazo de 15 dias, utilizando para o efeito a referência Multibanco constante da notificação em anexo, ou em alternativa através de cheque bancário ou visado à ordem da signatária, Agente Execução K… a apresentar no acto da escritura. Deverá no mesmo prazo proceder à liquidação da guia que se anexa no valor de €15,00 respeitante a emolumentos para obtenção de certidão permanente do prédio a adjudicar, e ainda entregar e apresentar os documentos comprovativos de liquidação das obrigações fiscais inerentes, nomeadamente IMT e IS. Fica ainda V/ Exa, notificado, nos termos do n.º2 do disposto no artigo 843.º do CPC, para proceder ao depósito da quantia, antes do acto da escritura, através de guia que se anexa, no valor de €6.760,00, referente a 5% de indemnização do proponente por este já ter efectuado o depósito do preço, conforme documento comprovativo que se junta em anexo”. * Em 25.06.2020 a Sr.ª Agente de Execução informou nos autos que: “(…) No dia de hoje, pelas 12h00, a signatária deslocou-se ao Cartório Notarial da Dra. J…, sito na Rua …, .., em Almada, dando cumprimento ao douto despacho datado de 24.06.2020, que admite “a remidora a exercer o direito de remição no ato da venda agendado para o dia de amanhã (25.06)”.- No local encontravam-se presentes além da signatária, a Notária Dra. J… e a sua colaboradora L…, bem como a proponente M… e seu marido. - Aguardou-se algum tempo pela chegada da remidora ao local, o que não se verificou. - Em virtude da sua não comparência, e, por conseguinte, do não exercício do direito de remição, procedeu-se à realização da Escritura a favor da proponente. - Como resultado, a signatária irá proceder às devidas notificações das partes da concretização da venda. - Consequentemente, uma vez que a quantia correspondente ao valor da venda encontra-se depositada nos presentes autos pela ora proponente desde o passado dia 03/03/2020, e de não ter sido exercido por parte da remidora o direito de remição, de acordo com o despacho supra mencionado, vai a signatária proceder à adjudicação das quantias devidas à Exequente e aos credores reclamantes e graduados nos presentes autos. Em face do exposto, requer a V. Exª, com a maior brevidade possível, para não prejudicar mais as partes, se digne autorizar conceder o auxílio da força pública, nos termos do n.º 3, do artigo 757.º do CPC, para se proceder ao arrombamento e substituição das fechaduras, no sentido de se investir a actual proprietária na posse efectiva do imóvel, nos termos e para os efeitos do n.º 1, do referido artigo 757.º. Importa referir que os Executados foram notificados para a entrega das chaves do imóvel, que se encontra devoluto, em 19.02.2020, pois já lá não residem, porém nada disseram (…)”. * De seguida vieram os executados e a remidora arguir a nulidade da venda, pedindo que consequentemente fosse decretada a nulidade da escritura de compra e venda do imóvel, outorgada a 25.06.2020.* Em 21.09.2020 foi proferida a seguinte decisão (ora recorrida): “Reclamação de 04.08.2020 com a ref.ª interna 10398361 (apresentada pelos executados B… e C…):Alegando que o imóvel penhorado (prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão, sótão, anexos e quintal, com área total de 652,5 m2, sita em Rua …, …, freguesia …, inscrito na matriz respectiva sob o art.º 3170 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º 1331, daquela freguesia) constitui casa de morada de família dos executados, estes vieram, pela presente reclamação, arguir a nulidade da venda daquele imóvel, realizada no dia 25.06.2020, através de escritura pública, no âmbito de venda por negociação particular, com o fundamento de que esta venda não podia ter sido efectuada durante a situação excepcional causada pela Pandemia Global derivada da proliferação do vírus SARS-Cov-2 (Coronavírus). Invocam, para tanto, os art.ºs 195.º, n.º 1, e 839.º, n.º 1, al. c), ambos do CPC. Apreciando: Nos termos da primeira parte da al. b) do n.º 6 do art.º 7.º L 1-A/2020 (na redacção da L 4-A/2020), foram sustados, na generalidade, os termos da execução, vale dizer, não só o curso dos prazos processuais, como também a prática dos actos e diligências executivas, pois, como estabelecia o mencionado normativo, não se podiam realizar “quaisquer actos” enquanto durasse a situação de urgência, designadamente, os referentes a diligências de penhora e seus actos preparatórios, vendas e entregas judiciais de imóveis. Parece claro, no que se refere ao processo executivo, que a L 4-A/2020, de 6/4, é uma lei interpretativa da L 1-A/2020, de 19/3 (na sua versão originária), nesta se integrando (cfr. art.º 13.º, n.º 1, caput, CC), pelo que a produção dos seus efeitos retroagiu a 9/3/2020, como se pode retirar dos art.ºs 5.º e 6.º, n.ºs 1 e 2, 1.ª parte, daquele diploma. No entanto, e como era expectável, o aliviamento (e não o termo) das medidas de suspensão do curso de prazos e da prática de actos judiciais, concretizado pela L 16/2020, de 29/5, foi acompanhado de um regime transitório no domínio de alguns processos e procedimentos, o qual, no caso do processo executivo, se caracteriza por permitir a realização da maioria das diligências e actos de natureza executiva. Isso resulta da circunstância de a L 16/2020 ter revogado o art.º 7.º da L 1-A/2020, e de ter aditado a esta lei o art.º 6.º-A, que estabelece um regime processual transitório e excepcional (RPTE) igualmente aplicável no domínio do processo executivo (cfr. art.ºs 2.º e 8.º da L 16/2020). A L 16/2020, de 29/5, é pós-activa, dado não ter sido acompanhada de uma norma de direito transitório formal. Por conseguinte, ela só dispõe para o futuro, no sentido de que deve ser observada desde o dia em que começa a vigorar para todos os actos que ocorram na sua vigência (cfr. art.º 12.º, n.º 1, 1.ª parte, CC), embora seja de aplicação imediata aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor. Isto significa que o regime processual transitório e excepcional (RPTE) sobre prazos judiciais e diligências estabelecido pelo art.º 6.º-A L 1-A/2020, aditado pelo art.º 2.º L 16/2020, de 29/5, apenas se aplica aos actos processuais executivos que forem praticados após a data da sua entrada em vigor (3/6/2020) e, naturalmente, às consequências jurídicas por estes produzidos (cfr. art.º 10.º L 16/2020). A venda judicial em causa nos autos foi realizada no dia 25 de Junho de 2020, por modo que se lhe aplica o regime decorrente da L 16/2020. Vejamos, então, o que dispõe esta lei. A L 16/2020, de 29/5, manteve-se fiel, do ponto de vista finalista, ao casuísmo já acolhido pela L 1-A/2020 na versão originária, de que compete ao juiz decidir a harmonização e optimização dos interesses em colisão do exequente e do executado para encontrar as soluções justas no caso concreto. Assim, de acordo com o disposto no n.º 7 do art.º 6.º-A da L 1-A/2020, com as alterações introduzidas pela L 16/2020, ficam suspensos no decurso do período de vigência do RPTE os actos a realizar em sede de processo executivo referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis, independentemente da finalidade da utilização destes bens e da finalidade da execução, a requerimento do executado, quando a prática daqueles actos seja susceptível de causar prejuízo à sua subsistência (pressuposto positivo), desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável na satisfação da pretensão executiva (pressuposto negativo). A norma do n.º 7 do art.º6.º-A da L 1-A/2020 (na redacção dada pela L 16/2020) é funcionalmente estruturada como uma norma-regra mínima de garantia, tanto para o executado, como para o exequente, no contexto da mitigação das medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus, que ambos podem invocar incidentalmente na execução, e tem alguma similitude, do ponto de vista da dimensão normativa de protecção, com a segunda parte da al. b) do n.º 6 do art.º 7.º revogado. Sempre que os actos a realizar em sede de processo executivo estejam relacionados com a concretização da venda ou da adjudicação de bens, incluindo os actos preparatórios, o executado é admitido a requerer no processo a suspensão daqueles actos, devendo, para tanto, demonstrar que a prática do ato causa prejuízo à sua subsistência, bem como à do seu agregado familiar. Por seu lado, o exequente (e também o adquirente na venda executiva) pode sobrestar na pretensão do executado se, na resposta ao requerimento por este apresentado, alegar e demonstrar que a suspensão da execução, na fase da venda, provoca prejuízo grave à sua subsistência, bem como do seu agregado familiar, ou um prejuízo irreparável no seu direito. É o caso da entrega de imóvel arrendado ou vendido na execução que o exequente ou o adquirente, consoante os casos, alegue ser destinado à sua habitação própria e permanente. Nesta hipótese, existirá conflito entre o n.º 7 do art.º 6.º-A RPTE com o disposto na al. c) do n.º 6 do mesmo preceito legal. Em qualquer caso, compete ao juiz a ponderação de interesses na situação concreta, à luz dos fundamentos jurídicos previstos no n.º 1 do art.º 335.º do Código Civil. Ora, o que se verifica é que os executados não requereram, antes da realização da venda, o incidente previsto no n.º 7 do art.º 6.º-A da L 1-A/2020 (na redacção dada pela L 16/2020), com vista a obter a suspensão da sua prática. Não o tendo feito, nenhum vício subsiste no acto da venda, dado que competia aos próprios executados requerer a suspensão da venda, nos termos expostos. Noutras palavras: a venda judicial de imóvel, mesmo que este fosse destinado a habitação própria permanente do executado, realizada após 3/6/2020 é válida se o executado não requereu oportunamente (ou seja, em momento anterior) a suspensão da prática desse acto. Por conseguinte, os executados apenas de si se podem queixar, por não terem reagido em tempo oportuno. Termos em que improcede a nulidade arguida. Notifique (incluindo a adquirente do imóvel). * Reclamação de 10.08.2020 com a ref.ª interna 10413181 (apresentada pela remidora I…) (…) Pelo exposto, julgo improcedente a nulidade arguida.Notifique (incluindo a adquirente)”. * Foi proferido, a 23.09.2020, o seguinte despacho: “Autorizo o uso da força pública para a realização do acto de entrega judicial de imóvel (vendido na execução), com arrombamento, caso se revele necessário (a realizar entre as 7 e as 21 horas).O prazo de validade deste despacho é de 45 dias. Notifique”. * Vieram depois os executados, a 26.10.2020, requerer que fosse decretada a suspensão das diligências de entrega da casa de morada de família nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 6.º-A da Lei 1-A/2020, e que fossem os adquirentes notificados para reporem os consumos de água, luz e gás que mandaram cancelar, ou, em alternativa, serem os executados autorizados a fazê-lo.* Por fim, a 23.11.2020 foi proferido o seguinte despacho: “Requerimento apresentado, em 26.10.2020, pelos executados B… e C… (ref.ª interna 10696351)Através do mesmo requerimento, pretendem os executados que: a) ser decretada a suspensão das diligências de entrega da casa de morada de família nos ternos da alínea b) do n.º 6 do artigo 6.º-A da Lei 1-A/2020, e b) Serem os adquirentes notificados para reporem os consumos de água, luz e gás que mandaram cancelar, ou, em alternativa, serem os executados autorizados a fazê-lo. Os credores não se pronunciaram. Apreciando: Desta vez, os executados andaram bem, ao terem suscitado, em tempo, o incidente adequado a tutelar os seus interesses. Em contrapartida, andou mal a Sr.ª agente de execução, dado que deveria ter suspendido a diligência de entrega logo que constatasse que o imóvel é susceptível de constituir casa de morada de família dos executados, lavrando certidão da ocorrência e juntando documentos que eventualmente fossem exibidos pelos executados ou pelos ocupantes do imóvel. Pelo que se percebe, a Sr.ª agente de execução suspendeu a diligência de entrega de imóvel por outros motivos que não os legais Com efeito, a finalidade destinada a casa de morada de família é uma condição necessária, e não apenas suficiente, por modo que a qualificação daquela finalidade basta, por si mesma, para suspender, durante o período de vigência do RPTE, o acto de entrega do imóvel vendido (cfr. art.º 6.º-A, n.º 6, al. b), L. 1-A/2020, com as alterações da L. 16/2020, de 29/5). Numa situação de pandemia, como aquela que é causada pelo coronavírus SARS- CoV -2 e da doença COVID -19, que o país atravessa, facilmente se compreende o propósito do legislador de evitar que as famílias fiquem sem habitação (própria ou arrendada), não apenas devido às disfunções que essa situação provoca no seio familiar, como, sobretudo, para evitar o inusitado crescimento de pessoas em situação de sem-abrigo, face à previsível falta de resposta das entidades assistenciais, dado que as pessoas ficam mais vulneráveis e expostas aos perigos de contágio e disseminação do vírus. Com esse objectivo, manteve-se suspensa a entrega judicial de imóvel destinado a casa de morada de família do executado, que já se encontrava prevista no art.º 7.º, n.º 6, al. b), 1.ª parte, L. 1- A/2020, na redacção da L. 4-A/2020, de 6/4 (cfr. art.º 6.º-A, n.º 6, al. b), L. 1-A/2020, com as alterações da L. 16/2020, de 29/5). Parece dever entender-se, para os mesmos fins, que será indiferente que o credor exequente beneficie sobre a casa de morada de família penhorada de garantia anterior à execução, bem como a natureza dessa garantia, e ainda que na execução concorram credores reclamantes. Para efeitos do conceito de casa de morada de família para efeitos de aplicação do RPTE (estabelecido pelo art.º 6.º-A, da L. 1-A/2020, com as alterações da L. 16/2020, de 29/5), a natureza da garantia de que beneficia o credor (exequente ou reclamante) não justifica que se atribuam sentidos diferentes consoante a dívida esteja ou não garantida por hipoteca. Por conseguinte, aquele conceito tem, em qualquer caso, o sentido que a doutrina e a jurisprudência retiram do art.º 1673.º, n.º 1, do CC, ou seja, como o local onde de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges e dos filhos, constituindo, pois, a residência habitual principal do agregado familiar, seja comum ou própria de um dos cônjuges. Esta finalidade do imóvel objecto da venda executiva não é controvertida entre as partes na execução; pelo menos, os credores não se manifestaram no sentido de se oporem a essa caracterização do destino daquele imóvel. Por fim, cumpre dizer que o conceito de prejuízo usado pelo n.º 7 do art.º 6.º-A RPTE é uma realidade jurídica que significa muito pouco, excepto quando estiver em causa a entrega judicial da casa de morada de família – que é a situação dos autos –, em que a verificação, em concreto, dessa finalidade do imóvel é suficiente para suspender a execução, para que as pessoas não fiquem desalojadas. Pelo exposto, mantenho suspensa a diligência de entrega judicial do imóvel vendido na execução (prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão, sótão, anexos e quintal, com área total de 652,5 m2, sita em Rua …, …, freguesia …, inscrito na matriz respectiva sob o art.º 3170 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º 1331, daquela freguesia), por constituir casa de morada de família dos executados, durante o período de vigência do RPTE (estabelecido pelo art.º 6.º-A, da L. 1-A/2020, com as alterações da L. 16/2020, de 29/5). Autorizo os Executados a reporem os consumos de água, luz e gás, que terão sido, entretanto, cancelados. Notifique”. * Inconformados com a decisão proferida em 21.09.2020, dela vieram os executados recorrer de apelação pedindo a sua revogação e substituição por outra que declare a nulidade da escritura pública realizada a 25 de Junho de 2020, bem como de todos os termos subsequentes.* Os apelantes juntaram aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões: A. Por despacho datado de 21.09.2020, o Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão:“(…) a venda judicial de imóvel, mesmo que este fosse destinado a habitação própria permanente do executado, realizada após 3.06.2020 é válida se o executado não requereu oportunamente (ou seja, em momento anterior) a suspensão da prática desse acto. Por conseguinte, os executados apenas de si se podem queixar, por não terem reagido em tempo oportuno. Termos em que improcede a nulidade arguida (...)” B. A decisão incorporada no despacho de que ora se recorre, viola o disposto na alínea b) do n.º 6 do artigo 6.º-A da Lei 1-A de 2020, bem como o artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa. C. Na decisão proferida, o Tribunal a quo faz uma interpretação (demasiado) extensiva do preceito legal invocado pelos recorrentes, remetendo para trâmites que deveriam ter sido observados, os quais jamais a Lei 1-A/2020 alguma vez previu, estabelecendo uma ligação entre os n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º-A da Lei 1-A/2020, sem que haja qualquer relação de remissão entre estes dois preceitos. D. Uma coisa são diligências relacionadas com casa de morada de família e outra coisa são outros actos de venda de outros bens imóveis do executado susceptíveis de lhe causar “prejuízo irreparável”. E. Ao fazer esta separação de preceitos, o legislador decidiu proteger o direito de habitar na casa de morada de família, em termos excepcionais, por motivos de saúde pública e por exigências constitucionais de protecção dos direitos fundamentais de habitação. F. A actual redacção do artigo 6.º-A, n.º 6 al. b), não encontra incorporado em si os trâmites de petição de suspensão positivados no revogado artigo 7.º, n.º 6 da Lei 1-A/2020, uma vez que este último remetia o levantamento da suspensão para decisão judicial quando causasse prejuízo ao exequente. G. Nos presentes autos nunca foi requerido e muito menos efectuado o levantamento da suspensão, pelo exequente ou qualquer interessado, incluindo os proponentes. H. Não tendo sido levantada a suspensão nunca poderia ter sido efectuada a venda e muito menos realizada a escritura pública. I. O artigo 6.º-A, n.º 6 al. b) é claro e diz apenas “ficam suspensos”, tendo esta norma natureza imperativa e os seus efeitos produzem-se ope legis. J. Pelo que não poderia a Sr.ª Agente de Execução, bem sabendo que o imóvel era a casa de morada de família dos executados, ter concluído as diligências de venda, sendo todos os actos de venda praticados na vigência da Lei 1-A/2020 nulos, bem como todos os actos subsequentes. L. A decisão recorrida viola o disposto no artigo 6.º-A, n.º 6 al. b) da Lei 1-A/2020 de 13 de Março com a redacção que lhe foi dada pela Lei 16/2020 de 29 de Maio, bem como o disposto no artigo 65.º do CRP. Não há contra-alegações. II – Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os que estão enunciados no supra elaborado relatório, pelo que, por razões de economia processual, nos dispensamos de os reproduzir aqui. III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. * Ora, visto o teor das alegações dos apelantes é questão a apreciar no presente recurso:- Da alegada nulidade/invalidade da venda realizada. * Dúvidas não há de que a humanidade vive uma situação excepcional derivada da existência de uma pandemia. * Na verdade, a original situação epidémica evoluiu muito rapidamente por todo o mundo e, em particular, pela União Europeia, daí que a “Organização Mundial de Saúde” (OMS) a tenha qualificado, no dia 11.03.2020, como da emergência de saúde pública ocasionada pela disseminação do vírus SARS CoV-2, e da consequente doença COVID‑19, como uma pandemia mundial. E como tentativa de prevenir a doença e conter a pandemia, foram adoptadas pela generalidade dos países medidas de forte restrição de direitos e liberdades, em particular no que respeita aos direitos de circulação e às liberdades económicas. Em concreto, em Portugal, o Decreto do Presidente da República n.º 14‑A/2020, de 18.03.20, declarou o (1.º, actualmente de 6) estado de emergência, com a duração de 15 dias, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública. Nessa sequência e como resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, foram publicados diversos diplomas de natureza iminentemente excepcional – tendo em atenção a regra a regra geral é – como se sabe – a de que a lei especial e excepcional prefere à lei geral, no âmbito do respectivo perímetro de intervenção. Desde logo foi publicada a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março (já com várias alterações, sendo a mais recente a operada pela Lei n.º 16/2020, de 29.05) que, de forma que se nos afigura exemplificativa do espírito de todas as demais leis, determina expressamente, no respectivo art.º 9.º que “Sem prejuízo das competências atribuídas pela Constituição e pela lei a órgãos de soberania de carácter electivo, o disposto na presente lei, bem como no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Marco, prevalece sobre normas legais, gerais e especiais que disponham em sentido contrario, designadamente as contantes da Lei do Orçamento do Estado.” * Em causa neste recurso, está em saber-se se assiste razão aos apelantes quando pretendem que a escritura pública outorgada a 25.06.20, no âmbito da venda executiva do imóvel penhorado nos autos, que alegam ser a casa de morada de família dos mesmos, seja declarada nula por violação do disposto no art.º 6.º-A, n.º 6 al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 13 de Março, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º16/2020, de 29 de Maio, já que por força de tais preceitos todos os actos relacionados com a entrega da casa de morada de família, onde se inclui, segundo os mesmos, a venda executiva, se encontravam suspensas.* Ora, atenta a data de realização do acto posto em causa pelos apelantes e a data da entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, que procedeu a alterações à Lei n.º 1-A/2020, e que, nomeadamente eliminou o anterior art.º 7.º da Lei nº 1-A/2020, dúvidas não há de que é à luz desta versão legislativa que se encontrará a decisão da questão em apreço nos autos. Na verdade, a Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio aditou o art.º 6.º-A, sob a epígrafe “Regime processual transitório e excepcional” preceitua que: “1 - No decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excepcional e transitório previsto no presente artigo. 2 - (…) 3 – (…) 4 – (…) 5 – (…) 6 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório: a) (…) b) Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família; c) (…) d) (…) e) (…) 7 - Nos casos em que os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes. 8 – (…) 9 – (…) 10 – (…)” (sublinhados nossos) * Ora, no regime resultante desta alteração da Lei n.º 1-A/2020, a suspensão dos actos na acção executiva é restringida, tão só, aos relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família. Ou seja, a partir da sua entrada em vigor (dia 30 de Maio de 2020, nos termos do art.º 10.º da Lei n.º 16/2020), voltaram a poder ser praticados actos na acção executiva, circunscrevendo-se a suspensão às diligencias relacionadas com a entrega judicial da casa de morada de família.E é este regime excepcional, relativo a um específico acto de cariz executivo – suspensão de diligências relacionadas com a entrega judicial da casa de morada de família – que a alínea b) do n.º 6 do art.º 6º-A da Lei n.º 1-A/2020 preceitua. É certo que o anterior art.º 7.º da Lei n.º 1-A/2020, na redacção da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril, sob a epígrafe “Prazos e diligências”, preceituava que: “1- Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de actos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, (…) ficam suspensos até à cessação da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença Covid-19, a decretar nos termos do n.º seguinte. (…) 6 – Ficam também suspensos: a) (…) b) Quaisquer actos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judicias de imóveis e diligências de penhora e seus actos preparatórios, com excepção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos do n.º 2 do artigo 137.º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial. (…).” (sublinhados nossos). * Da análise das referidas normas e da sua natural sucessão no tempo, temos de concluir que a proibição, introduzida pela redacção que a Lei n.º 4-A/2020 no art.º 7.º, n.º 6, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, da prática de quaisquer actos a realizar em processo executivo, designadamente os referentes à venda, não traduz mais do que um corolário, no âmbito do processo executivo, do princípio da suspensão dos prazos de actos processuais estabelecida no n.º 1 do mesmo art.º 7.º.Mas a referida suspensão do dos prazos de actos processuais, em termos genéricos, foi mitigada/levantada com a publicação da Lei 16/2020, de 29.05, que entrou em vigor a 3.06.2020, que expressamente revogou o art.º 7.º da Lei 1-A/2020, estabelecendo então o denominado Regime Processual Transitório e Excepcional (RPTE). Ou seja, e em conclusão, no regime resultante desta alteração da Lei 1-A/2020, a suspensão dos actos na acção executiva é restringida, tão só, aos actos relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família. Ou seja, a partir da sua entrada em vigor (dia 30.05. 2020), voltaram a poder ser praticados a generalidade de actos na acção executiva, circunscrevendo-se a suspensão às diligencias relacionadas com a entrega judicial da casa de morada de família. Destarte, à data da realização da escritura pública apontada pelos apelantes inexistia qualquer suspensão genérica de prazos processuais por via de lei, assim como inexistia qualquer suspensão determinada por lei da prática de quaisquer actos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a penhoras, vendas, etc.. Nessa ocasião, a única proibição imposta por lei, mormente, em sede de processo executivo, dizia respeito à prática de actos relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família, e é certo que essa entrega “in casu” não se verificou, pois o que ocorreu foi tão só a outorga de escritura pública de venda a terceiro da alegada casa de morada de família dos apelantes em sede de processo executivo contra os mesmos, instaurado, sendo a mesma plenamente válida e eficaz. E assim, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida, que quanto a nós fez a correcta análise, interpretação e aplicação das normas aplicáveis ao caso em apreço e não viola qualquer princípio ou norma constitucional. Pelo que sem necessidade de outras considerações, têm de improceder as conclusões dos apelantes. Sumário: ……………………………… ……………………………… ……………………………… IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelos apelantes. Porto, 2020.12.15 Anabela Dias da Silva Ana Lucinda Cabral Maria do Carmo Domingues |