Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA | ||
Descritores: | REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA UNIÃO ESTÁVEL CELEBRADA POR ESCRITURA PÚBLICA | ||
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Nº do Documento: | RP20220310317/21.0YRPRT | ||
Data do Acordão: | 03/10/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDÊNCIA DA ACÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A acção de revisão de sentença estrangeira do nosso ordenamento jurídico tem por objecto especial verificar e reconhecer entre nós o efeito jurídico produzido por uma decisão jurisdicional ou equiparada sobre direitos privados, de modo que esse efeito seja aceite e tratado no nosso ordenamento jurídico como o efeito de uma decisão do sistema judicial ou administrativo e não, simplesmente, como efeito jurídico caucionado pela ordem jurídica estrangeira onde se produziu. II - A união estável que a lei brasileira permite que seja celebrada extrajudicialmente pelos unidos por escritura pública é um acto cujo efeito jurídico se produz naquele ordenamento sem a intervenção de uma autoridade, judicial ou administrativa, chamada a controlar, homologar ou decidir sobre a produção do efeito pessoal, o qual se produz ali por mero efeito potestativo da vontade dos declarantes. III - A união de facto celebrada no Brasil pelos interessados por escritura pública não é passível de revisão e confirmação entre nós através da acção de revisão de sentença estrangeira. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Revisão de Sentença Estrangeira ECLI:PT:TRP:2022:317.21.0YRPRT * Sumário:……………………………… ……………………………… ……………………………… Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto: I. AA, titular do cartão de cidadão n.º ..., emitido pela República Portuguesa, e BB, titular do Passaporte n.º ..., emitido pela República Federativa do Brasil, ambos residentes em ..., Póvoa do Varzim, Portugal, instauraram neste Tribunal da Relação do Porto a presente acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira. Pediram a revisão e confirmação para todos os efeitos legais da «douta sentença proferida no Brasil de reconhecimento de união de facto entre os Requerentes para que a mesma produza todos os efeitos legais em Portugal», referindo-se, no entanto, não a qualquer sentença judicial mas à escritura pública de «Declaração da União de Facto» celebrada no «livro n.º ..., páginas 227/228, perante o Tabelião CC, Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas da Comarca de Mogi das Cruzes - São Paulo, Distrito de Jundiapeba, Brasil». Juntaram certidão da escritura pública mencionada, do Assento de nascimento no Brasil do requerente e do Assento n.º 27448 do ano 2016 da Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa que transcreveu para Portugal o assento de nascimento da requerente. A acção foi instaurada contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, o qual foi citado e não ofereceu contestação. Foi facultado o processo para alegações das partes, mas não foram produzidas alegações. II. O tribunal é competente em razão da matéria, da hierarquia e da nacionalidade. O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem totalmente. As partes possuem personalidade judiciária e são as legítimas, aceitando-se que sendo a acção de revisão instaurada por ambos os interessados, por visar o reconhecimento soberano de efeitos na ordem jurídica portuguesa, a posição de demandado cabe ao Estado Português. Não há nulidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer-se e que obstem ao conhecimento do mérito. III. Estão provados por documento autêntico os seguintes factos: a. A requerente nasceu em São Paulo, Brasil no dia .../.../1956, estando o respectivo assento de nascimento transcrito para Portugal através do Assento n.º ….. do ano 2016 da Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa. b. A requerente casou civilmente em 29-11-1975, casamento que foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 21-10-1985, conforme inscrições do assento de nascimento referido em a. c. O requerente nasceu em .../.../1952, no Brasil, não estando o respectivo assento de nascimento transcrito para Portugal. d. Em 3 de Maio de 2021, os requerentes compareceram no Distrito de Jundiapeba, Município e Comarca de Mogi das Cruzes, Estado de São Paulo, Brasil, perante o Tabelião CC, onde fizeram lavrar «escritura pública de declaração de união estável». e. A referida escritura pública possui o seguinte conteúdo: «ESCRITURA PÚBLICA DE DECLARAÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL QUE FAZEM: BB E AA, COMO SEGUE: Aos três dias do mês de Maio do ano de dois mil e vinte e um (03/05/2021), neste Distrito de Jundiapeba, Município e Comarca de Mogi das Cruzes, Estado de São Paulo, em Tabelionato, perante mim, DD, Escrevente Autorizada, compareceram como declarantes: BB, brasileiro, divorciado, aposentado, portador da carteira nacional de habilitação nº ....., […] nascido em .../.../1952, filho de EE e FF, natural de São Paulo - SP (registro de casamento lavrado no Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais do 21.º Subdistrito Saúde-Município de São Paulo - SP, em 16/10/1976 (Livro ..., página 212, termo ...) e AA, brasileira, divorciada, do lar, portadora da carteira nacional de habilitação nº ....., […] nascida em .../.../1956, filha de GG e HH, natural de São Paulo -SP (registro de casamento lavrado no Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais do 2.º Subdistrito - ..., Município de São Paulo - SP, em 29/11/1975 (Livro ..., fls. 210, termo nº ...), residentes e domiciliados em ... - SP, na Rua ..., ..., .... Os presentes são maiores e capazes, reconhecidos entre si como os próprios, e por mim, Escrevente Autorizada, à vista dos documentos ora enunciados e exibidos, do que dou fé. E, perante mim, pelos OUTORGANTES E RECIPROCAMENTE OUTORGADOS me foi dito que, de livre e espontânea vontade, isentos de toda e qualquer coacção, sugestão ou induzimento, em perfeitas condições mentais e sem qualquer constrangimento, em razão do relacionamento afectivo por eles mantido, fazem as declarações constantes desta escritura: 1) que o relacionamento mantido entre eles, desde o início, é pautado pelo respeito, lealdade e mútua assistência; 2) que têm consciência dos deveres e direitos advindos da união estável, que, por ambos sempre foram respeitados; 3) que reconhecem que o relacionamento mantido entre eles, desenvolveu-se de modo a constituir família; 4) que desejam regular as relações patrimoniais decorrentes do relacionamento mantido; 5) que assim, de livre e espontânea vontade, reconhecem, expressamente, que desde 22/08/1981 mantém um relacionamento público, contínuo e duradouro, caracterizando-se assim a entidade familiar a que se refere o artigo 226, parágrafo terceiro da Constituição Federal, bem como o artigo 1.723 do Código Civil Brasileiro e também as Leis Federais 8.971/94 e 9.278/96, consistente em união estável; 6) e que, com o objectivo de prevenir litígios, pactuam, em carácter irretractável e irrevogável, tal como lhes faculta o artigo 1.725 do Código Civil, que as relações patrimoniais advindas da união estável mantida se regem com esteio nas normas atinentes ao regime da COMUNHÃO PARCIAL DE BENS, com base nos artigos 1.658 a 1.666 do Código Civil Brasileiro; 7) que atribuem a esta escritura, para os devidos efeitos de direito, força de transacção, nos termos dos artigos 840 e 841 do Código Civil Brasileiro; 8) os declarantes informam que não desejam alterar os nomes; 9) que feitas as declarações, transacções e outras avenças constantes desta escritura pública, consignam que as estipulações aqui firmadas reflectem, rigorosamente, as respectivas vontades, tendo por objectivo preservar o franco e bom entendimento hoje existente entre eles, permitindo-lhes convivência em bases sólidas e harmónicas, onde a vontade livre e autónoma de cada um prevaleça, por certo no intuito de construir um verdadeiro relacionamento. As partes requerem ao Oficial de Registo Civil das Pessoas Naturais competente que proceda ao registro da presente Escritura no Livro e bem como requerem ao Oficial do Registro de Imóveis competente que pratique todos os actos necessários para o registro da presente Escritura. A pedido das partes, lavrei este instrumento que lhes sendo lido em voz alta, em tudo aceitam, outorgam e assinam. […] Eu, CC, Tabelião, subscrevi, dou fé e assino.» (sublinhados nossos). IV. O n.º 1 do artigo 978.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «necessidade de revisão», estabelece o seguinte: «Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada». Decorre desta norma que, em regra, a sentença proferida por tribunal estrangeiro sobre direitos privados não tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem ser revista e confirmada em Portugal. Em consonância com essa disposição, o artigo 706.º do Código de Processo Civil estabelece que as sentenças proferidas por tribunais ou por árbitros em país estrangeiro só podem servir de base à execução depois de revistas e confirmadas pelo tribunal português competente, sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais. O n.º 2 da mesma norma legal estabelece, porém, que os títulos exarados em país estrangeiro não carecem de revisão para ser exequíveis entre nós. Conforme refere Ferrer Correia, in Lições de Direito Internacional Privado, volume I, Almedina, 2000, pág. 455, «toda a sentença sobre direitos privados, quer provenha de um tribunal de justiça, quer emane de uma autoridade não judiciária legalmente investida no poder de julgar, é susceptível de revisão e confirmação; sendo certo que, por outro lado, só depois de revista e confirmada poderá a decisão surtir na ordem jurídica do foro, os efeitos que lhe competem segundo a lei do país de origem». Os requisitos para que a sentença estrangeira possa ser confirmada encontram-se definidos no artigo 980.º do Código de Processo Civil. São eles os seguintes: a) que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão; b) que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; c) que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; d) que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; e) que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes; f) que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Conforme resulta da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 983.º do Código de Processo Civil, trata-se de requisitos cumulativos necessários para a confirmação da sentença, bastando a falta de um deles para impedir o reconhecimento da decisão estrangeira (Cf. António Marques dos Santos, in Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997 (alterações aos regime anterior), Estudos de direito internacional privado e de direito processual civil internacional, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 320). A acção de revisão de sentença estrangeira é uma acção de simples apreciação positiva cujo objecto é a verificação se a sentença estrangeira reúne as condições de produzir efeitos como acto jurisdicional na ordem jurídica portuguesa. Decorre do artigo 984.º do Código de Processo Civil que o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980.º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito. É comummente aceite que o nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras se inspira basicamente no chamado sistema de delibação ou de revisão meramente formal. Por princípio, o tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa. Desde que o tribunal nacional apure que está perante uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa (cf. Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 141). Por outro lado, no nosso sistema jurídico-processual civil vigora o princípio da legalidade das formas do processo (artigo 546.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), segundo o qual cada forma de processo especial apenas é aplicável aos conflitos que integram a respectiva previsão legal expressa, não podendo ser usada para dirimir conflitos excluídos dessa previsão. A acção de revisão de sentença estrangeira é aquela que tem por objecto a revisão e confirmação de «decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro». É assim pressuposto do recurso a tal forma de processo que tenhamos uma decisão, que essa decisão recaia sobre direitos privados e que a decisão tenha sido proferida por tribunal estrangeiro. Sendo esse o objecto especial desta forma de processo, não podem ser objecto de revisão e confirmação em Portugal, por exemplo, meros actos jurídicos praticados no estrangeiro, ainda que produzam efeitos (constitutivos, extintivos ou modificativos) sobre direitos privados, designadamente aqueles cujos efeitos se produzam por mero efeito potestativo da vontade das partes e não exijam a intervenção de qualquer entidade com competência para decidir conceder ou recusar o efeito de direito privado correspondente à vontade dos interessados. Para assim concluir, cremos, é suficiente ter presente os requisitos da confirmação da sentença estrangeira elencados no artigo 980.º do Código de Processo Civil. A confirmação exige, entre outras coisas, que não haja dúvida sobre a inteligência da decisão, que esta tenha transitado em julgado, que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado; que o réu tenha sido regularmente citado para a acção e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes. Todos estes conceitos são indissociáveis de um processo de decisão e da intervenção de uma entidade com competência legal para proferir uma decisão, deles resultando manifestamente que é necessário que estejamos perante uma decisão proferida no âmbito de um processo destinado a dirimir conflitos sobre direitos pessoais no qual hajam sido respeitados os princípios do contraditório e da igualdade das partes. Com todo o devido respeito por opinião diversa, manifestada em diversos arestos dos nossos tribunais, não concebemos como será possível aplicar estas exigências em situações em que não há qualquer decisão e o que existe é apenas a formalização em documento autêntico de uma vontade jurídica manifestada pelos interessados. Uma escritura pública na qual os interessados declaram a sua vontade tendente à produção de efeitos jurídicos privados, designadamente o seu estado civil (divórcio) ou uma situação pessoal (união de facto), e na qual o notário não procede a qualquer intervenção para além da formalização das declarações das partes por escritura pública, não transita em julgado! Para além de não ser de excluir a possibilidade de se arguir que a declaração de vontade levada à escritura tenha sido formada por erro, simulação ou coacção, por exemplo, e se pedir a sua invalidade. Ninguém questiona que não carece de revisão e confirmação em Portugal, através da acção prevista nos artigos 978.º e seguintes do Código de Processo Civil, por exemplo, o casamento, ainda que ele tenha sido celebrado perante um oficial público e/ou dotado de competência (v.g. entidade administrativa ou religiosa) para declarar os nubentes casados e haja mesmo sido antecedido de um processo de verificação dos impedimentos ao casamento cuja ausência aí terá sido fiscalizada e afirmada. Tal como não carece de revisão e confirmação a inscrição do nascimento e/ou da paternidade apesar de esses actos produzirem efeitos pessoais (no caso a requerente obteve a transcrição para Portugal do respectivo assento de nascimento onde constam os averbamentos de … um casamento e de um divórcio)! Isso mesmo resulta afinal de contas do estabelecido nos artigos 6.º e 7.º do Código de Registo Civil. Segundo o n.º 1 do primeiro desses normativos os actos de registo lavrados no estrangeiro pelas entidades estrangeiras competentes podem ingressar no registo civil nacional, em face dos documentos que os comprovem, de acordo com a respectiva lei e mediante a prova de que não contrariam os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português. O n.º 4 acrescenta que isso pode ser feito mesmo em relação a actos que respeitem não a cidadãos nacionais, mas a estrangeiros bastando para o efeito que o requerente mostre legítimo interesse na transcrição. A excepção a esse ingresso directo no registo nacional (com o valor e os efeitos que esse registo possui na ordem jurídica portuguesa) dos actos de registo lavrados no estrangeiro pelas respectivas entidades competentes, encontra-se prevista no subsequente artigo 7.º. Segundo este, as decisões dos tribunais estrangeiros relativas ao estado ou à capacidade civil dos Portugueses, depois de revistas e confirmadas, são directamente registadas por meio de averbamento aos assentos a que respeitam. As decisões dos tribunais estrangeiros, referentes ao estado ou à capacidade civil dos estrangeiros, estão nos mesmos termos sujeitas a registo, lavrado por averbamento ou por assento, consoante constem ou não do registo civil português os assentos a que devam ser averbadas. Daqui resulta que a regra é o ingresso directo no registo civil nacional dos actos de registo lavrados no estrangeiro pelas respectivas entidades competentes, razão pela qual, por exemplo o casamento, o nascimento ou a paternidade são levados ao registo civil nacional em face dos documentos que comprovem a sua inscrição no registo do país de origem, rectius, sem necessidade de qualquer decisão dos tribunais desse país que reconheça ou declare o nascimento, a paternidade ou o casamento e, por maioria, de razão, sem necessidade da revisão de uma tal decisão pelos tribunais nacionais. A excepção é apenas relativa às decisões de tribunais estrangeiros relativas ao estado ou à capacidade civil, só estas carecendo de ser revistas e confirmadas para que o acto reconhecido ou declarado em tais decisões possa ser inscrito no registo nacional. No caso estamos perante uma escritura pública celebrada no Brasil em conformidade com a respectiva legislação na qual duas pessoas declaram viver em união de facto e definem um regime de bens para essa união por remissão para uma figura legal. A pretensão dos requerentes suscita a questão de saber se a escritura pública que apresentam e através da qual nos termos do direito da sua nacionalidade declararam viverem em união de facto, deve ser equiparada a uma sentença de tribunal estrangeiro para efeitos de a mesma carecer de ser revista e confirmada em Portugal. Esta questão tem sido suscitada com alguma frequência nos tribunais nacionais. O Acórdão da Relação de Lisboa de 24/10/2019, processo n.º 2403/19.8YRLSB.L1-2, relatado por Pedro Martins, a que se pode aceder in https://jurisprudencia.csm.org.pt, faz, como aliás é timbre do respectivo relator, uma resenha exaustiva e análise detalhada dessa jurisprudência, com apontamentos da jurisprudência espanhola e brasileira sobre questão idêntica, pelo que nos abstemos de a repetir aqui. Nas escrituras notariais de declaração pelos interessados de que vivem em união de facto não há qualquer intervenção do notário/tabelião, para além da elaboração da escritura, razão pela qual o notário limita-se a recolher as declarações dos interessados e não homologa nada. Em tais escrituras públicas o notário procede apenas à recolha das declarações prestadas, as quais não dependem de homologação, seja ela judicial ou notarial. O notário intervém nas escrituras na sua pura veste de notário, não procedendo a qualquer acto de homologação das declarações dos declarantes e/ou a qualquer fiscalização ou verificação dos pressupostos do efeito jurídico por eles pretendido para as declarações proferidas, não tendo sequer competência para tal. Não resultando da lei nem do texto da escritura qualquer intervenção do tabelião que traduza o exercício do poder de controlar ou homologar a vontade dos outorgantes, é uma pura ficção afirmar que ao redigir a escritura o notário declara a união de facto e/ou homologa a vontade das partes de obter o reconhecimento público dessa relação pessoal. Entre nós o artigo 173.º do Código de Notariado também estabelece os casos em que o notário pode recusar a prática do acto que lhe seja requisitado. Entre esses casos conta-se a situação de o acto ser nulo ou de haver dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos intervenientes. Daí resulta que o notário deverá recusar-se a celebração da escritura no caso de ser do seu conhecimento que a vontade declarada pelos outorgantes não existe ou é diferente da declarada na medida em que isso corresponde a um vício da vontade que determina a nulidade do acto. Ora isto é válido para a celebração de qualquer escritura pública e no entanto certamente ninguém defende que em virtude dessa norma o notário se encontra habilitado a homologar a vontade declarada numa escritura pública de … compra e venda, de mútuo ou de partilha ou a autorizar ou validar a produção dos respectivos efeitos jurídicos materiais! Trata-se apenas de uma disposição que rege sobre a prática do acto notarial, não sobre a produção dos efeitos do acto jurídico formalizado através desse acto notarial. O Acórdão da Relação de Lisboa a que vimos fazendo referência, referindo-se directamente à escritura pública declaratória de união estável brasileira, filia-se na posição que defende a possibilidade de tais escrituras serem «objecto de um processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira dos arts. 980º e seguintes do Código de Processo Civil». Em resumo, o raciocínio desenvolvido no citado Acórdão é o de que a expressão “decisões” usada pelo artigo 978.º do Código de Processo Civil deve ser interpretada como equivalendo não propriamente a decisões mas a “actos caucionados administrativamente pela ordem jurídica em que foram produzidos”, razão pela qual integrarão esse conceito mesmo as meras declarações de vontade dos próprios interessados desde que a lei do país lhes atribua o direito potestativo de constituírem por si mesmos o efeito pessoal desejado e a declaração de vontade obedeça à forma legal. Este raciocínio desloca a tónica da questão da existência de uma intervenção de uma entidade com competência para decidir (isto é, fiscalizar os pressupostos e emitir uma pronuncia sobre a pretensão dos interessados ao efeito privado almejado pelos mesmos, independentemente de a mesma possuir natureza declarativa, constitutiva, homologatória ou de outra natureza), para a aceitação pela ordem jurídica onde o acto foi praticado do efeito jurídico correspondente (ou seja, do caucionamento, leia-se a aceitação, o reconhecimento, pela ordem jurídica daquele acto como acto produtor de efeitos jurídicos válidos). Salvo melhor opinião, este entendimento despreza o objecto assinalado pelo legislador nacional às acções de revisão de sentença estrangeira, alarga esse objecto a domínios relativamente aos quais não existe uma identidade de razões e gera uma solução para um problema que a ordem jurídica nacional resolve sem necessidade de tão elaborada e artificiosa construção. Digamos porquê. As acções de revisão de sentenças estrangeiras encontram-se previstas no nosso ordenamento jurídico para resolver um problema, qual seja, o de saber como deve a ordem jurídica nacional tratar as deliberações de um tribunal estrangeiro que já tenham decidido sobre direitos privados que haja interesse em fazer valer em Portugal. Não se trata, assim, de definir se determinados efeitos jurídicos privados, designadamente pessoais, reconhecidos por uma ordem jurídica estrangeira devem igualmente ser reconhecidos em Portugal, mas somente de definir que valor atribuir àquelas decisões de tribunais estrangeiros ou em que condições lhes atribuir valor e eficácia entre nós de forma que os interessados as possam invocar perante o nosso ordenamento jurídico como se fossem decisões definitivas e executórias dos nossos tribunais. O que está na origem da solução adoptada não é, pois, o respeito pela ordem jurídica dos outros países e o reconhecimento dos efeitos jurídico-privados aí produzidos, é essencialmente o respeito e o reconhecimento da validade do modo como nesses países estão organizados o sistema judicial e/ou administrativo para apreciar e decidir questões de direitos privados, impondo às partes os efeitos dessas decisões uma vez tornadas definitivas e executórias. O alargamento do objecto das acções de revisão de sentença estrangeira, tal como ele se encontra fixado no nosso sistema processual civil, ao reconhecimento dos efeitos jurídicos produzidos no domínio de outra ordem jurídica e reconhecidos por esta, independentemente do modo como eles se produziram (leia-se independentemente de serem resultado de uma decisão judicial), desvirtua o nosso ordenamento nacional. Com efeito, nesse caso o reconhecimento do efeito jurídico é totalmente desarreigado daquilo que na opção do legislador nacional justificava o recurso à acção e os contornos restritos em que a revisão pode ser negada: haver uma intervenção de uma entidade com competência para apreciar e decidir sobre a produção desses efeitos, ter sido proferida uma decisão a reconhecer, constituir, declarar ou homologar a produção desses efeitos, essa decisão ser definitiva e executória, não haver litispendência ou caso julgado relativamente a um processo pendente entre nós sobre a mesma questão, terem sido observados no processo de decisão os princípios do contraditório e da igualdade das partes. Por outro lado, a produção de efeitos jurídico-privados por vontade potestativa das partes, sem fiscalização ou decisão de qualquer entidade jurisdicional ou administrativa a que a ordem jurídica atribua e reconheça competência (rectius: as habilitações e o poder) para verificar se estão reunidas as condições legais para a produção desses efeitos, não pode ser equiparado à produção de efeitos jurídicos por decisão jurisdicional e/ou administrativa subordinada às regras de funcionamento e controle do sistema judicial e/ou administrativo. Por isso, ao nível do reconhecimento dos efeitos jurídicos-privados, aquela situação só deveria ter na nossa ordem jurídica nacional o mesmo tratamento se acaso tivesse sido essa a configuração dada pelo legislador à acção de revisão que seria então de revisão de efeitos jurídico-privados produzidos no estrangeiro e não uma revisão de sentença, rectius, de decisões. Imagine-se um acto jurídico interno que até determinada altura carecia de uma decisão jurisdicional e passou a poder ser alcançado directamente pelas partes por mero efeito da respectiva vontade jurídica correspondente (ainda que essa vontade tenha de ser reduzida a uma determinada forma legal, v.g. a escritura pública). Nessa situação, cremos que ninguém questionará que segundo as regras do nosso ordenamento jurídico não podemos atribuir ao comportamento das partes valor equiparado a uma decisão jurisdicional. Com toda a sinceridade, não vemos por que se há-de chegar então ao mesmo resultado se se tratar de um acto jurídico externo (!) que é precisamente o que resulta de se admitir a revisão pelo Tribunal da Relação nacional de uma escritura na qual as partes declaram uma vontade negocial que produz potestativamente um efeito jurídico quanto ao seu estatuto pessoal. Por isso, entendemos que no nosso sistema jurídico não é possível instaurar uma acção de revisão de sentença estrangeira para pedir a revisão e confirmação de um mero acto jurídico produzido noutro país pelos titulares de determinando efeito jurídico-privado, como seja a união de facto realizada no Brasil através de escritura pública dos unidos sem que a produção do efeito pessoal tenha sido objecto da intervenção de qualquer entidade pública, administrativa ou jurisdicional, que fiscalizasse a declaração e de cuja actividade dependesse a produção daquele efeito jurídico. Requerida a revisão de um acto dessa natureza a acção deve ser julgada improcedente. Esta posição de que que a declaração exarada em escritura pública declaratória de união estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião), de que os outorgantes vivem em união de facto, não se encontra abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do Código de Processo Civil, pelo que não pode ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal, foi mais recentemente reiterada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 21-01-2022, proc. n.º 151/21.8YRPRT.S1, Oliveira Abreu, que acompanha o decido nos Acórdãos de 21.03.2019, proc. nº 559/18.6YRLSB.S1, e de 10.12.2019, proc. nº 249/18.0YPRT.S2, ambos de Ilídio Sacarrão Martins, todos in www.dgsi.pt. No mais recente Acórdão citado pode ler-se: «(…) O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras é, em regra, de revisão meramente formal. Assim, o tribunal português competente para a revisão e confirmação, deve verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa. Nessa perspectiva, se o tribunal nacional verificar que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa. Este princípio de revisão formal é atenuado pelo estatuído no art.º 983º do Código de Processo Civil. O sistema do direito português, como o do direito ..., é, portanto, o do reconhecimento das sentenças estrangeiras mediante revisão ou controlo prévio (homologação). Antes de confirmada (homologada), a sentença não opera na ordem jurídica nacional os efeitos que lhe correspondem como acto jurisdicional. Ela é simplesmente um facto jurídico, cuja eficácia está pendente até que sobrevenha a condição legalmente requerida (condicio uiris), que é a decisão de confirmação ou homologação proferida no referido processo especial de revisão de sentença estrangeira. (…) Nas palavras de Ferrer Correia, “reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado requerido, Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem, Estado a quo), ou pelo menos alguns desses efeitos”. (…) O princípio da harmonia jurídica internacional limita-se a afirmar que o direito aplicável deve ser definido, por forma a que a solução a encontrar seja, tanto quanto possível, idêntica à assumida pelos outros Estados, em especial, por aqueles que, em relação ao mesmo litígio, reclamam a competência dos seus Tribunais, não assumindo, portanto, o conteúdo da decisão qualquer importância na determinação da lei aplicável. (…) Não se trata de um sistema em que o tribunal nacional tenha que examinar o processo estrangeiro no qual foi proferida a sentença revidenda e, achando-a conforme, confirmá-la, dando-lhe o “exequatur”, o que implicaria maior morosidade e, levado até ao fim, inutilizaria a sentença estrangeira, obrigando à repetição de todo o processo, no foro nacional. Não há, propriamente, um exame da sentença revidenda, no sentido de que o tribunal de revisão não aprecia o seu mérito, ou seja, se naquela sentença o julgamento foi ou não acertado. No entanto, existe sempre um limite para esta subserviência perante decisões estrangeiras: a não violação dos princípios de ordem pública internacional do Estado Português. (…) A exigência deste requisito está em consonância com o artº 22º do Código Civil, que estabelece que não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português. No caso de revisão de sentença, a mesma só não será concedida quando contiver decisão que conduza a um resultado manifestamente incompatível com esses princípios. (…) Os requerentes pedem a revisão e confirmação de uma Escritura Pública de Declaração de União Estável lavrada no Tabelionato de …, a cargo da Tabeliã …, da qual consta, além do mais, que declararam conviver, desde 8.3.2015, sob o regime de união estável, como marido e mulher, sendo responsáveis pela manutenção do lar comum. Estabelece-se no art. 978º nº 1, do CPC que “sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.” E no nº 2, deste preceito estipula-se que “não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa.”. A respeito do conceito de “decisão”, a que se refere o normativo citado, refere Luís de Lima Pinheiro que, por “decisão” se deve entender qualquer acto público que, segundo a ordem jurídica do Estado de origem, tenha força de caso julgado. Sucede que a escritura pública, cuja revisão e confirmação vem peticionada nesta acção, se limita a atestar as declarações dos requerentes, sem que o Tabelião tenha sobre elas feito incidir qualquer juízo vinculativo, com força de caso julgado, e que, enquanto tal, tivesse competência para emitir. Em suma: a mencionada escritura invocada pelos requerentes não se encontra abrangida pela previsão do art. 978º, nº 1, do CPC, valendo apenas como meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador. Neste sentido, num caso similar ao destes autos, se pronunciou também o ac. do STJ, proferido em 28.2.2019, no proc. nº 106/18.0YRCBR.S1, desta mesma secção, relatado pelo Juiz Conselheiro Nuno Pinto de Oliveira, onde se pode ler: “O direito brasileiro não exige uma decisão judicial para o reconhecimento da união de facto e o direito português não exige que a prova seja feita por uma declaração da junta de freguesia competente. Em todo o caso, a prova feita por uma declaração da junta de freguesia não tem uma força superior à de uma escritura pública. Como escrevem os Professores Francisco Manuel Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “A prova da união de facto é normalmente testemunhal; mas a possibilidade de prova documental não deve excluir-se. Interpretando com largueza o termo vida no artº 34º nº 1, do Decreto-Lei nº 135/99, de 22 de Abril, que regula o modo como “os atestados de residência, vida e situação económica dos cidadãos” devem ser passados pelas juntas de freguesia, pode admitir-se que a junta de freguesia da residência dos interessados passe atestado comprovativo de que uma pessoa vive ou vivia em união de facto com outra. (…) Não se tratando, porém, normalmente, de facto atestado “com base nas percepções da entidade documentadora” (artº 371º nº 1, C.Civ), o documento não faz prova plena, podendo provar-se que o facto não é verdadeiro, pois a união de facto não existiu ou não existiu durante determinado período. O documento prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação”. Entre a força probatória da declaração emitida pela junta de freguesia e da escritura pública há uma relação de semelhança - como a declaração emitida pela junta de freguesia, a escritura “prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação”. E continua o referido acórdão de 28.02.2019, “nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem (muito menos) a escritura declaratória de união estável prevista pela lei … fazem com que o acto composto pelas declarações dos requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” - com a consequência de que a escritura declaratória de união estável apresentada pelos Requerentes não pode ser confirmada / revista”.” Tudo visto, reconhece este Tribunal ad quem que as conclusões trazidas à discussão pelos Recorrentes/Requerentes/AA e BB não encerram virtualidade bastante no sentido de modificar o destino delineado no acórdão proferido pelo Tribunal recorrido, donde, não merece qualquer censura a solução traçada no acórdão sob escrutínio.» A mesma posição foi adoptada no Acórdão desta Relação de 23-04-2020, proc. n.º 95/20.YRPRT, Filipe Caroço, em que interviemos como Adjunto, e no qual se pode ler: «(…) o reconhecimento de união estável entre duas pessoas entre si conviventes como se de cônjuges se trate (não o sendo), nos termos referidos na dita escritura pública, do ponto de vista da relação pessoal, tem paralelo no sistema jurídico nacional, desde logo de acordo com a Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, que define esta união como a situação jurídica duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos, e adopta medidas para a sua de protecção (respectivo art.º 1º, nºs 1 e 2). E, se é verdade que o Código Civil brasileiro legitimou “como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família” (art.º 1723º), não é menos acertado afirmar que, no nosso sistema jurídico, a jurisprudência também vem reconhecendo a união de facto como uma instituição familiar. O mesmo se passa na doutrina. Telma de Carvalho escreve: “Os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira (anotação ao artigo 36º da Constituição da República Portuguesa, J.J. Gomes/Moreira, Vital — Constituição da República Portuguesa Anotada; vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora (1984), p. 220), consideram que a redacção do referido preceito não permite “a redução do conceito de família à união conjugal baseada no casamento”, consideram que este preceito permite abarcar as uniões de facto, nomeadamente porque “Constitucionalmente o casal nascido da união de facto também é família, e ainda que os seus membros não tenham o estatuto de cônjuges, seguramente que não há distinções quanto às relações de filiação daí decorrentes”. Com efeito, a escritura pública outorgada pelos Requerentes no Brasil, …, ao traduzir uma declaração conjunta de uma união estável entre as duas pessoas declarantes, não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Dai que se dava ter por verificado também o requisito da al. f) do art.º 980º. A controvérsia surge aqui ao nível do requisito da decisão, ou seja, saber se aquela escritura pública pode ser entendida como uma decisão estrangeira relevante para efeitos da sua revisão; se deve ser objecto de revisão para produzir efeitos em Portugal. (…) O Regulamento (EU) 2016/1103 do Conselho, de 24 de Junho de 2016, que implementa a cooperação reforçada no domínio da competência, da lei aplicável, do reconhecimento e da execução de decisões em matéria de regimes matrimoniais, estabelece no respectivo art.º 3º, nº 2, que “para efeitos do presente regulamento, a noção de «órgão jurisdicional» inclui os tribunais e as outras autoridades e profissionais do direito competentes em matéria de regimes matrimoniais que exerçam funções jurisdicionais ou ajam no exercício de uma delegação de poderes conferida por um tribunal ou sob o seu controlo, desde que essas outras autoridades e profissionais do direito ofereçam garantias no que respeita à sua imparcialidade e ao direito de todas as partes a serem ouvidas, e desde que as suas decisões nos termos da lei do Estado-Membro onde estão estabelecidos: a) Possam ser objecto de recurso perante um tribunal ou de controlo por este; b) Tenham força e efeitos equivalentes aos de uma decisão de um tribunal na mesma matéria.” Por sua vez, o Regulamento (EU) 2016/1104 do Conselho, de 24 de Junho de 2016, que implementa a cooperação reforçada no domínio da competência, da lei aplicável, do reconhecimento e da execução de decisões em matéria de efeitos patrimoniais das parcerias registadas estabelece também no respectivo art.º 3º, nº 2, que “para efeitos do presente regulamento, a noção de «órgão jurisdicional» inclui os tribunais e todas as outras autoridades e profissionais do direito competentes em matéria de efeitos patrimoniais das parcerias registadas que exerçam funções jurisdicionais ou ajam no exercício de uma delegação de poderes conferida por um tribunal ou sob o seu controlo, desde que essas outras autoridades e profissionais do direito ofereçam garantias no que respeita à sua imparcialidade e ao direito de todas as partes a serem ouvidas, e desde que as suas decisões nos termos da lei do Estado-Membro onde estão estabelecidos: a) Possam ser objecto de recurso perante um tribunal ou de controlo por este; e b) Tenham força e efeitos equivalentes aos de uma decisão de um tribunal na mesma matéria.” Embora este Regulamento não se aplique ao caso, o mesmo vincula a nossa ordem jurídica interna nos termos do art.º 8º da Constituição da República e torna evidente que à nossa ordem jurídica, não é estranha a noção de um «órgão jurisdicional que consista em profissional do direito que aja sob o controlo de um tribunal, desde que ofereça garantias no que respeita à sua imparcialidade e ao direito de todas as partes a serem ouvidas, e desde que as suas decisões nos termos da lei do Estado-Membro onde estão estabelecidos possam ser objecto de controlo por um tribunal e tenham força e efeitos equivalentes aos de uma decisão de um tribunal na mesma matéria. Também a Convenção de Haia sobre Reconhecimento de Divórcios e Separações de Pessoas (Resolução da Assembleia da República n.º 23/84), determina no seu art.º 1º: “A presente Convenção aplica-se ao reconhecimento num Estado contratante de divórcios e separações de pessoas obtidas noutro Estado contratante na sequência de um processo judicial ou outro oficialmente reconhecidos neste último Estado e que aí produzam efeitos legais”. A Convenção não condiciona a sua aplicação à existência de um processo judicial, bastando um procedimento que seja reconhecido no outro Estado e que aí produza efeitos legais. Não podem relevar, para efeito de revisão, todos e quaisquer actos provindos de autoridade administrativa, ainda que não ofenda a ordem pública portuguesa, quanto à maneira como regulou os interesses privados. Pode entender-se que a intervenção do notário/tabelião de notas, no âmbito da escritura da união estável, é uma intervenção integrante de uma função pública transferida pelo Estado ao particular, por meio de delegação administrativa sui generis. A questão não passa propriamente pela discussão acerca da competência funcional do tabelião (ou notário) que a celebrou, nem pela autenticidade do documento em causa, mas antes pela sua natureza substancial, importando saber se aquela decisão administrativa tem efeitos constitutivos, sendo susceptível de produzir efeitos idênticos ou equivalentes a uma decisão judicial propriamente dita. Não pode defender-se que a intervenção do tabelião brasileiro cauciona a efectiva convivência dos declarantes, típica da união de facto. A prova plena que caracteriza as escrituras públicas não vai além dos actos praticados pela entidade documentadora ou por ela ali percecionados (art.º 371º, nº 1, do Código Civil). Basta ler a escritura pública em causa para constatar que o tabelião se limitou a fazer constar o que lhe foi dito pelos aqui Requerentes. Nada homologou e nada decidiu; limitou-se o notário, na parte que aqui interessa, a tomar nota das declarações dos declarantes. (…) Com efeito, entendeu-se estar perante um simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa, ou seja, de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal, pelo que a mencionada escritura invocada pelos Requerentes, fica excluída do processo de revisão de sentença estrangeira (artigo 980º, nº 2, do Código de Processo Civil). (…) Nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira, meramente constativa dessa união, e apenas pelos próprios interessados, fazem com que o acto composto pelas declarações dos Requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” --- com a consequência de que a escritura declaratória de união estável apresentada pelos Requerentes não pode ser confirmada/revista. Se na escritura pública da união de facto, não há qualquer expressão formal de vontade do notário (tabelião) enquanto agente administrativo, nem qualquer controlo da situação declarada pelos interessados, não a podemos equiparar a uma sentença impugnável e já transitada em julgado. Na definição do que seja uma sentença ou um acto equiparado para efeito de confirmação e revisão, não podemos alhear-nos do nosso direito interno, da nossa ordem jurídica, designadamente no quadro da União e dos seus Regulamentos, sob pena de estarmos a rever um acto relativamente ao qual não pode haver revisão, porventura actos puramente privados e decisões administrativas sem qualquer controlo judicial. A não ser assim e a olhar apenas para o direito regulador do acto revidendo, poderemos estar mesmo a confirmar e a rever um acto puramente privado, que à luz do nosso Direito não é susceptível de qualquer controlo judicial ou um acto puramente administrativo e não caucionado pela ordem jurídica como uma decisão judicial ou equiparada. Não pode reconhecer-se em Portugal uma situação de união de facto estável que assenta apenas nas declarações dos interessados e em que o oficial público, para o efeito, se limita a constatar e a registar o que diante de si foi por eles declarado, no caso, até com dispensa (da presença) de testemunhas. Os Requerentes não estão impedidos, em condições de igualdade com os demais cidadãos, de recorrer à ordem jurídica interna, através do exercício do direito de acção, para verem reconhecida a sua alegada união de facto, valendo a escritura pública como meio de prova dessa situação, tal como o atestado emitido pela junta de freguesia ou outro meio de prova, incluindo testemunhal. A situação enquadra-se no nº 2 do art.º 978º do Código de Processo Civil. A união de facto pode ser invocada em acção comum, nos tribunais portugueses, sendo, por isso, desnecessário o presente processo de revisão.» Essa posição foi ainda adoptada no Acórdão desta Relação de 08-02-2018, proc. n.º 292/17.6YRPRT, Judite Pires, in www.dgsi.pt, no qual interviemos igualmente como Adjunto. Pode ler-se nesse aresto: «No caso dos autos não existe qualquer decisão de uma autoridade – judicial ou não – estrangeira sobre direitos privados. No caso dos autos o que existe é uma declaração formal de vontade da autora/requerente e do réu/requerido a que a lei estrangeira atribui determinados efeitos de alteração do seu estado civil, incluindo para efeito de registo. Ora uma simples declaração de vontade expressa de modo formal no estrangeiro não pode, salvo melhor entendimento, valer como “decisão” de uma autoridade estrangeira para efeitos da necessidade de revisão. Nem a dispensa de homologação judicial a torna equivalente à formalidade omitida, ou seja à dispensada sentença de homologação ou de decretamento do divórcio”. (…) De facto, acha-se sedimentado o entendimento jurisprudencial de que as decisões emanadas de autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados devem ser consideradas como abrangida pela previsão do pretérito artigo 1094º, n.º 1 do Código de Processo Civil e artigo 978.º, n.º 1 da lei processual actualmente em vigor, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal. De acordo com a decisão singular proferida no processo n.º 1072/09.8YRLSB-7, [www.dgsi.pt], do Tribunal da Relação de Lisboa, “importa interpretar extensivamente o conceito de “decisão” ínsito no n.º1 do art.º 1094 do CPC, não o confinando apenas às decisões que emanam dos tribunais (ainda que por tribunal arbitral – cfr. o referido preceito ao prever as decisões proferidas por árbitros estrangeiros), já que o critério a ter em conta para a sujeição ao processo de revisão assenta na natureza da decisão, não necessariamente, no órgão de que emana. Assim, há que considerar “decisão estrangeira” para efeitos de necessidade de revisão e confirmação ao abrigo do processo especial previsto nos artigos 1094 e seguintes, aquela que se mostre passível de se consubstanciar como definitiva e com força de caso julgado, pois que o que verdadeiramente importa e se pretende para a necessidade de revisão é avaliar se a “decisão” estrangeira produz efeitos idênticos ou equivalentes a uma decisão judicial propriamente dita, pouco relevando o órgão que a promana dado que cada Estado é livre em definir as matérias que cabem na competência dos tribunais, não se mostrando o respectivo critério uniforme em todos os Estados. Acresce por outro lado que em relação a muitas matérias, designadamente as ligadas à área da família e menores, como é o caso da dissolução do casamento, os Estados têm atribuído a certas autoridades (administrativas e outras) o poder de intervir nesses litígios”. Deverá a escritura de declaração de união estável, cuja revisão é aqui requerida, também considerar-se abrangida pela n.º 1 do artigo 978.º do Código de Processo Civil? Segundo o artigo 1723.º, corpo, do Código Civil brasileiro, aprovado pela Lei n.º 10406/02, “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família”. Conferindo a lei brasileira tutela à união estável, designadamente através da Lei n.º 8.971, de 29 de Dezembro de 1994, em matéria de direitos a alimentos e sucessórios, a sua formalização revela-se de toda a conveniência. A união estável poderá ser formalizada através de uma destas formas: - por escritura pública de declaração de união estável celebrada em Cartório de Notas, ou; - por meio de contrato particular, o qual pode ser levado a registo no Cartório de Registro de Títulos e Documentos. A escritura pública de união estável é uma declaração pública, na qual um homem e uma mulher, inexistindo impedimentos para casar, declaram que vivem juntos, em união estável, como se casados fossem e com objectivo de constituir família. Nesse instrumento poderão os conviventes definir o regime de bens que vigorará entre eles, bem como inserir outras cláusulas, nomeadamente de ordem patrimonial, de acordo com a vontade de ambos. A utilização desta forma pública garante maior segurança às partes, pois além da fé pública que resulta da escritura lavrada pelo Tabelião de Notas (notário oficial) e da autenticidade reconhecida a tal documento, a mesma confere publicidade dos termos nela contidos perante terceiros (produzindo, assim, efeito erga omnes). Além dessa publicidade automática, a escritura pública de declaração de união estável ficará arquivada no Tabelionato de Notas, sendo o respectivo original conservado de forma perpétua. Além da escritura, pode a união estável também ser formalizada, como se referiu, por meio de contrato particular. Tratando-se de um instrumento particular, só produzirá efeitos entre os conviventes enquanto não for objecto de registo. Após a sua celebração poderá, no entanto, ser levado a registo no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, sendo-lhe, por esse meio, conferida publicidade perante terceiros. No caso dos autos não está em causa a entidade pública – tabelião de notas, que corresponde à figura do notário em Portugal – que interveio na celebração da escritura pública de declaração de união estável, cuja competência para o acto não suscita sequer discussão. (…) A resposta quanto à questão aqui colocada - isto é, se a escritura pública de união estável celebrada no Brasil, de acordo com os preceitos legais desse país, encontra acolhimento no n.º 1 do artigo 978.º do Código de Processo Civil - não passa tanto pela discussão acerca da competência funcional do tabelião que a celebrou – que a tem -, nem pela autenticidade do documento em causa – sendo indiscutível essa autenticidade -, mas antes pela sua natureza substancial, importando saber se aquela “decisão” administrativa tem efeitos constitutivos, sendo susceptível de produzir efeitos idênticos ou equivalentes a uma decisão judicial propriamente dita. Ao contrário das escrituras de separação ou de divórcio, que decretam quer a separação consensual quer a conversão em divórcio da separação judicial dos cônjuges, nas quais o tabelião não se limita a testar as declarações dos outorgantes, antes decretando, ainda que por via homologatória, a separação judicial ou o divórcio, a escritura de união estável não tem qualquer efeito constitutivo. A escritura de união estável não define, nem altera o estado civil dos outorgantes. Trata-se de um instrumento emanado de autoridade administrativa, com efeitos meramente declaratórios. Através dela os outorgantes declaram acharem-se abrangidos por uma determinada situação de facto – a designada união estável -, acordando sobre aspectos específicos que entendam dever vigorar na pendência dessa situação de facto, designadamente regime de bens, limitando-se a autoridade administrativa que lavra a escritura a testar as declarações dos outorgantes, não deixando, no entanto, de exercer controlo sobre o conteúdo dessas declarações, nomeadamente, se a mesmas não atentam contra a lei nacional, e sobre a forma como são produzidas, detectando eventuais incapacidades, erros de direito ou de facto, coacções encobertas, fraudes à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas. Mas, repete-se, a escritura declaratória de união estável não é constitutiva de qualquer estado civil. Apenas atesta, a partir das declarações dos seus outorgantes, a existência de uma determinada situação de facto que a lei brasileira reconduz à figura da união estável, a qual, à semelhança do que sucede no ordenamento jurídico português com a união de facto, pode ser provada por qualquer meio legalmente permitido, não se exigindo, para o efeito, sequer a sua formalização através de contrato particular ou escritura pública, embora se reconheça maior eficácia probatória à que resulta da formalização através deste instrumento público pela fé pública de que o mesmo goza. Em suma, não podendo, pelas razões expostas, a escritura de união estável celebrada perante autoridade administrativa brasileira competente, ser equiparada a “decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro” a que alude o n.º 1 do artigo 978.º do Código de Processo Civil português, não tendo aquela escritura aptidão para produzir efeitos idênticos ou equivalentes aos de uma decisão judicial propriamente dita, não é a mesma passível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, o que determina a improcedência da presente acção.» Não se vislumbrando argumento ou razão para alterar a posição que vimos adoptando e que como vimos é ainda adoptada por parte do Supremo Tribunal de Justiça, ao qual caberá uniformizar a jurisprudência pondo fim à divergência, a acção deve ser julgada improcedente. V. Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar a presente acção improcedente e recusar a revisão e confirmação do acto apresentado pelos requerentes. Custas da acção pelos requerentes. * Porto, 10 de Março de 2022.* Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 672)Os Juízes Desembargadores Francisca Mota Vieira Paulo Dias da Silva [a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas certificadas] |