Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ISABEL PEIXOTO PEREIRA | ||
| Descritores: | EMBARGOS DE EXECUTADO LIVRANÇA EM BRANCO PACTO DE PREENCHIMENTO AVAL ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA PRESCRIÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RP202411076213/24.2T8PRT-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/07/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3.ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Mesmo que no plano das relações imediatas, imprestável uma mera defesa pelo obrigado cambiário através de Embargos de Executado por simples impugnação ou mediante uma alegação abstracta, conclusiva, hipotética, dubitativa, interrogativa, sem qualquer concreta referência ao real e efectivo teor do contrato e ao efectivo e real teor do pacto de preenchimento, isto é, não basta alegar que o título não devia ter sido preenchido ou que foi preenchido de forma errada. É necessário que se alegue, por referência concreto e real teor do pacto de preenchimento e ao negócio que constitui a relação fundamental causal extracambiária, qual o motivo pelo qual o título não devia ter sido preenchido ou quais são os exactos termos e os correctos montantes que deveriam constar do título em obediência ao pacto de preenchimento. II - É sobre o Executado/Embargante Avalista que recai o ónus de alegação e de prova de que se trata de uma Livrança que foi avalizada em branco, que o Avalista teve intervenção no pacto de preenchimento da Livrança, e a concreta forma e medida em que foi violado o pacto de preenchimento [factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito emergente do título de crédito – art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil], sob pena de permanecer incólume a obrigação cambiária que resulta da literalidade do título de crédito. III - Incumprindo este ónus de alegação de factos concretos, impõe-se o indeferimento liminar dos embargos, com fundamento na improcedência manifesta excepção de preenchimento abusivo. IV - Na relação cambiária, não há direito nem dever de informação do ato de preenchimento da letra ou livrança em branco. Esse direito de ser informado e esse dever de informar, a existirem, inserem-se na relação subjacente. V - Não existe no direito cambiário um direito à informação sobre o preenchimento do título emergente de um dever de boa fé. A boa fé pode modelar o modo de prestar a informação, clara, completa e tempestiva, quando esse direito-dever exista com outra fonte, mas não pode fundar, não pode constituir a fonte daquele direito e daquele dever. VI - Tal fonte terá de sê-lo o pacto de preenchimento ou, excepcionalmente, ainda, no plano das relações imediatas uma configuração particular da relação com o credor que possa reconduzir-se a uma fonte obrigacional do dever de informar do preenchimento do título. VII - Sempre necessária a alegação das circunstâncias reais das quais resultaria, segundo a boa fé, a obrigação de comunicação. Na ausência desta, manifestamente improcedente a excepção. VIII - A data em que ocorre o facto relevante para a exigibilidade da obrigação subjacente (tipicamente, o incumprimento definitivo) apenas marca o momento em que o portador fica constituído no dever de preencher a livrança em branco quando isso resulte do que foi acordado entre os intervenientes (do sentido que era possível deduzir tendo em conta as regras de interpretação previstas nos artigos 236.º a 238.º do CC), do que seria previsivelmente acordado se eles não tivessem omitido aquele ponto ou do que seria imposto pela boa fé, nos termos do artigo 239.º do CC. IX - A jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal vai no sentido de que, não se apurando que a vontade dos intervenientes tenha ou tivesse sido a de estabelecer condicionamentos à data de vencimento e, não sendo estes impostos pela boa fé (cfr. artigo 762.º, n.º 2, do CC), o portador da livrança em branco é livre de a preencher com a data que considerar conveniente. X - Novamente carecida de alegação ou integração a imposição pela boa fé de tais limites, sendo a consequência, na falta desta, a improcedência da excepção do preenchimento abusivo. XI - Admitindo que os avalistas possam invocar a prescrição da obrigação da devedora resultante dos contratos garantidos pelas livranças, o certo é que o ónus de alegação dos factos integradores da prescrição cabe aos embargantes. (Da responsabilidade da Relatora) | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo: 6213/24.2T8PRT-A. P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo de Execução do Porto - Juiz 7 Embargos de Executado
Relatora: Isabel Peixoto Pereira 1º Adjunto: Maria Manuela Esteves Machado 2º Adjunto: António Carneiro da Silva
Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. AA e BB, executados nos autos principais, vieram deduzir embargos de executado, por apenso à acção executiva n.º 6213/24.2T8PRT, em que figura, como exequente, “Banco 1..., S.A.”. Fundamentam-se, em síntese, no seguinte: - Na incompreensão quanto ao facto de ter sido considerado o vencimento da dívida em 14.02.2024; - Suscitam a dúvida quanto ao real valor em dívida; - Alegam não localizar o pacto de preenchimento das livranças; - Referem que, sendo as livranças emitidas com data de 2018, tal contraria a data de vencimento das dívidas alegada pela exequente; - Sustentam que não foi cumprido o dever de interpelação prévia dos embargantes antes do preenchimento das livranças; - Alegam que as datas e os valores das livranças foram preenchidos sem o conhecimento e consentimento dos avalistas, tornando abusivo o seu preenchimento; - Alegam que a dívida já se encontra prescrita, uma vez, tendo na génese contrato de mútuo e sendo o prazo de prescrição de 5 anos, o mesmo já decorreu desde a data do contrato (2018), para além da prescrição da própria obrigação decorrente da livrança, uma vez que já decorreu o prazo de prescrição de 3 anos deste a data de emissão da livrança (2018), para além de que a boa fé implica considerar a livrança com data de vencimento coincidente com o incumprimento/resolução do contrato subjacente; - Alegam que a exequente não cumpriu o PERSI relativamente aos embargantes e nem efetuou comunicação aos mesmos quanto ao incumprimento/resolução dos contratos.
Foram os embargos indeferidos liminarmente, nos termos do art. 732.º, n. 1, al. c), do NCPC, julgando-se serem os mesmos manifestamente improcedentes.
É dessa decisão que vem interposto o presente recurso, mediante a formulação das seguintes conclusões: A – O Tribunal recorrido indeferiu os embargos de executado apresentados por, alegadamente, serem manifestamente infundados. B – Não teve em consideração, salvo melhor opinião, tudo quando alegado pelos embargantes/recorrentes quanto à validade e regularidade do valor exequendo bem como quanto à validade e regularidade do título executivo dado à execução e demais vicissitudes processuais alegadas como a nulidade e prescrição. C – Da mesma forma são liminarmente indeferidos os meios de prova requeridos. D - Entendem os recorrentes que o despacho de indeferimento de admissão de embargos de executado sonega a possibilidade de pleno exercício de meios de prova, motivo pelo qual ao abrigo do artigo 644º e 647º, n.º 4 do CPC recorrem do mesmo, devendo o despacho de indeferimento ser substituído por outro que admita os embargos apresentados, seguindo-se os demais termos a final.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir. II. O objecto do recurso é, desde logo, balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC) e pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida. A única questão que cumpre apreciar é a de saber se o tribunal a quo não podia ter indeferido liminarmente os embargos de executado, o que passa, naturalmente, por saber em que condições é que o tribunal pode indeferir liminarmente a petição de embargos e se tais condições estavam verificadas in casu. O tribunal a quo indeferiu liminarmente os embargos de executado, por manifesta improcedência. Vejamos. Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 728º do CPC, o executado pode opor-se à execução por embargos no prazo de 20 dias a contar da citação. E, quanto aos fundamentos dessa oposição, quando a execução se baseia em outro título que não a sentença (para o que rege o art.º 729º), decisão arbitral (para o que rege o art.º 730º) ou em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, dispõe o art.º 731º que, além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729.º, na parte em que sejam aplicáveis, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração. Uma vez autuados por apenso, os embargos são submetidos a despacho liminar, dispondo o art.º 732º n.º 1 do CPC que são liminarmente indeferidos quando: a) Tiverem sido deduzidos fora do prazo; b) O fundamento não se ajustar ao disposto nos artigos 729.º a 731.º; c) Forem manifestamente improcedentes. Aqui apenas releva a última hipótese. A “manifesta improcedência” dos embargos de executado baseia-se em razões substanciais ligadas à antevisão manifesta da inviabilidade da pretensão, neste caso, de extinção, total ou parcial da execução. Estamos aqui perante um julgamento antecipado do mérito dos embargos de executado, o qual apenas tem cabimento nos casos de evidente inutilidade de qualquer instrução ou discussão posterior, por que, à luz dos factos que é possível considerar adquiridos e do direito aplicável - considerando neste âmbito, não apenas a lei, mas a doutrina e a jurisprudência -, os fundamentos invocados são “manifestamente improcedentes” ou, dito de outra forma, não têm, face aos factos e ao direito aplicável, qualquer viabilidade. Assim tem sido considerado, com formulações variadas, pela jurisprudência, de que se cita, a título exemplificativo, os seguintes Acórdãos: - da RE de 27/10/2022, proc. 2632/21.7T8ENT-A.E1, consultável in www.dgsi.pt/jtre, constando do respectivo sumário: I. Os embargos de executado devem ser rejeitados, designadamente se for manifesta a improcedência da oposição formulada (artigo 732º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil), situação que ocorre quando a pretensão de executado/embargante, seja por razões de facto, seja por motivos de direito, está irremediável e indiscutivelmente condenada ao insucesso injustificando o prosseguimento dos ulteriores termos processuais, em obediência aos princípios de economia processual e proibição da prática de actos inúteis. - da RG de 17/12/2019, processo 3/19.1T8VNF-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, em cujo sumário consta: I- Os embargos de executado devem ser rejeitados, designadamente se for manifesta a improcedência da oposição formulada (art. 732º, n.º 1, al. c) do CPC). II- Os embargos de executado são manifestamente improcedentes quando a pretensão de executado/embargante, seja por razões de facto, seja por motivos de direito, está irremediável e indiscutivelmente condenada ao insucesso. - da RL de 24/04/2019, processo 19047/18.4T8LSB-A.L1-2, consultável in www.dgsi.pt/jtrl e em cujo sumário consta: A manifesta improcedência justificativa do juízo de liminar indeferimento é aquela que decorre da circunstância da pretensão do Executado/embargante, seja por razões de facto, seja por razões de direito, configurar-se, de forma inequívoca, irremediável e indiscutível, condenada ao fracasso, injustificando o prosseguimento dos ulteriores termos processuais, em obediência aos princípios de economia processual e proibição da prática de actos inúteis; Os embargantes interpõem recurso, limitando-se a afirmar: a decisão não teve em consideração, salvo melhor opinião, tudo quando alegado pelos embargantes/recorrentes quanto à validade e regularidade do valor exequendo, bem como quanto à validade e regularidade dos títulos executivos dados à execução e demais vicissitudes processuais alegadas como a nulidade e prescrição. Mais aduzem que o despacho de indeferimento de admissão de embargos de executado sonega a possibilidade de pleno exercício de meios de prova. Este último “argumento” é perfeitamente improcedente… Na verdade, como é sabido, os meios de prova são funcionalizados à demonstração de facto que importe ou releve à decisão de uma causa, pelo que, fundando-se a decisão, justamente, na desnecessidade de averiguação de quaisquer factos, o problema nunca o é de limitação dos meios de prova… Sempre os embargantes não concretizam ou argumentam, refutando, a concreta apreciação pela decisão recorrida das questões que fundamentaram os embargos deduzidos, remetendo-se nas conclusões a uma “ausência de apreciação” manifestamente improcedente, já que, como resulta da mesma decisão, esta faz uma apreciação rigorosa, completa e extensa daqueles argumentos, deles conhecendo mediante a invocação de doutrina e jurisprudência pertinentes e reconduzindo-se aos factos que os autos permitem já haver como provados… Desde logo, impunha-se outro cuidado na interposição do recurso e, decisivamente, nas conclusões, que, nos termos expostos, delimitam o objecto deste, já que o recurso não se reconduz a uma reapreciação genérica e ad nutum da totalidade da fundamentação da decisão recorrida, mas ao conhecimento das questões suscitadas pelo recorrente e em função da argumentação por ele convocada para justificar a discordância. Constata-se que os recorrentes quase nada alegaram (ressalvada a invocação de jurisprudência quanto à necessidade de interpelação dos avalistas e sempre no corpo das alegações) no sentido de convencer do mérito dos fundamentos invocados. Como já ficou referido, o tribunal pode indeferir liminarmente os embargos de executado, se verificar que os mesmos são manifestamente improcedentes. E, face ao que já ficou referido, para tal, o tribunal tem, necessariamente, de analisar o mérito dos fundamentos invocados, pois só assim poderá concluir pela manifesta improcedência fáctica e/ou jurídica dos mesmos. Sem prejuízo, integrando, nos termos e para os efeitos do art. 239º do CC, ex vi do art. 295º do mesmo diploma e porquanto em causa um acto jurídico não negocial, agora as conclusões, mediante a consideração do texto das alegações de recurso, é possível compreender que a dissidência dos recorrentes vai dirigida ao conhecimento nos termos em que o foi pela decisão recorrida dos seguintes fundamentos dos embargos[1]: - a realidade da quantia exequenda constante dos títulos; - a ausência de interpelação admonitória aos avalistas; Donde a violação do pacto de preenchimento; - a prescrição da obrigação exequenda, a implicar agora com o problema da data aposta nos títulos como de vencimento da obrigação, tudo com os efeitos “reclamados” em sede de validade e exequibilidade do título exequendo. Impõe-se verificar se tais fundamentos são, como decidiu o tribunal a quo, manifestamente improcedentes. Dos factos Para apreciação do mérito dos embargos, importa ter presente os seguintes factos relevantes assentes por acordo ou decorrentes de documento com força probatória plena: [E aqui cabe, desde logo, afastar a relevância ou eficácia da impugnação genérica pelos embargantes do conteúdo ou teor de documentos… Assim muito decisivamente quanto ao contrato que titula a relação causal e ao pacto de preenchimento a ele anexo… Na medida em que em causa documentos assinados pelos embargantes mesmos, não tendo posto em causa a autoria das assinaturas, visto o art. 374º do CC, nos termos do artigo 376º do mesmo diploma caracterizada a prova plena das declarações do documento constantes. Naturalmente que tal não sucede quanto aos elementos apostos na livrança exequenda, de cujo regime se cuidará.] 1. A exequente apresentou à execução, como título executivo, a livrança junta como documento 1 do requerimento executivo, cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo inscrito, além do mais, a importância de € 8.483,59, donde consta: a data de emissão de “18-07-27”; a data de vencimento de “2024-02-14”; no local do subscritor, “A..., Unip., Lda.”, com assinatura sobre carimbo; e, no verso, a seguir à expressão “Bom por aval ao subscritor”, as assinaturas dos executados/embargantes 2. A exequente apresentou à execução, como título executivo, a livrança junta como documento 3 do requerimento executivo, cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo inscrito, além do mais, a importância de € 15.967,32, donde consta: a data de emissão de “18-04-03”; a data de vencimento de “2024-02-14”; no local do subscritor, “A..., Unip., Lda.”, com assinatura sobre carimbo; e, no verso, a seguir à expressão “Bom por aval ao subscritor”, as assinaturas dos executados/embargantes. 3. A exequente apresentou à execução, como título executivo, a livrança junta como documento 5 do requerimento executivo, cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo inscrito, além do mais, a importância de € 13.197,89, donde consta: a data de emissão de “15-02-10”; a data de vencimento de “2024-02-14”; no local do subscritor, “A..., Unip., Lda.”, com assinatura sobre carimbo; e, no verso, a seguir à expressão “Bom por aval ao subscritor”, as assinaturas dos executados/embargantes. 4. A livrança referida em 1. havia sido assinada e entregue em branco (pelo menos quanto ao valor e data de vencimento), associada ao documento 2 do requerimento executivo, intitulado “Contrato de Abertura de Crédito”, datado de 26.07.2018, no qual os embargantes apuseram as suas assinaturas enquanto avalistas, com o teor que aqui se dá por reproduzido, de onde consta, além do mais, o seguinte:
(…)
(…)
(…)”. 5. A livrança referida em 2. havia sido assinada e entregue em branco (pelo menos quanto ao valor e data de vencimento), associada ao documento 4 do requerimento executivo, intitulado “Contrato de Mútuo”, datado de 03.04.2018, no qual os embargantes apuseram as suas assinaturas enquanto avalistas, com o teor que aqui se dá por reproduzido, de onde consta, além do mais, o seguinte: (…) 6. A livrança referida em 3. havia sido assinada e entregue em branco (pelo menos quanto ao valor e data de vencimento), associada ao documento 7 do requerimento executivo, intitulado “Contrato de Garantias Acessórias”, datado de 10.02.2015, no qual os embargantes apuseram as suas assinaturas enquanto avalistas, com o teor que aqui se dá por reproduzido, de onde consta, além do mais, o seguinte:
* A livrança em branco define-se como aquela a que, ainda que falte algum ou faltem alguns dos requisitos essenciais mencionados no art. 75.º da Lei Uniforme relativa e Livranças[2]/[3], “incorpora, pelo menos, uma assinatura que tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária”[4],“destinando-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição / entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado ‘acordo ou pacto de preenchimento”[5]. Como se diz, p. ex., no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2019, proferido no processo n.º 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1, “[n]os termos do art. 76º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças, a consequência da falta dos requisitos formais da livrança é a ineficácia, e não a invalidade”, pelo que “a livrança em branco produzirá efeitos quando, em momento ulterior, for preenchida com as indicações em falta, de acordo com o pacto de preenchimento”. Entre os pontos razoavelmente seguros do regime da livrança em branco estão os seguintes: A livrança em branco deve ser preenchida de harmonia com os acordos realizados[6], ou seja, de harmonia com um contrato ou com um pacto de preenchimento, expresso ou tácito[7]. O pacto de preenchimento define-se como o como o acto ou como a “convenção extracartular, informal e não sujeita a forma, em que as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, etc.”[8], ou como o “contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário no que respeita aos elementos que habilitam a formar o título executivo, estabelecendo os requisitos que tornam exigível a obrigação cambiária”[9]. O acórdão do STJ de 13 de Abril de 2011, proferido no processo n.º 2093/04.2TBSTB-A L1.S1, diz, de forma impressiva, que “[o] preenchimento deve respeitar aquele pacto — no fundo o contrato que deve ser pontualmente cumprido — já que a sua observância, é o quid que confere força executiva ao título, mormente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade” — e a fórmula do acórdão de 13 de Abril de 2011 é adoptada, com algumas diferenças, p. ex., pelo acórdãos de 25 de Maio de 2017, proferido no processo n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1, ou de de 13 de Novembro de 2018, proferido no processo n.º 2272/05.5YYLSB-B.L1. Nos termos do art.º 724.º/1/e) CPC, a lei só exige a exposição dos factos que fundamentam o pedido no requerimento executivo (RE) quando os mesmos não constem do título executivo. Deste modo, se a Exequente/Embargada apresenta como título executivo, à luz do art.º 703.º/1/c)/“Primeira Parte” CPC, válido e regular título de crédito (Livrança) a causa de pedir consiste e é apenas e exclusivamente a aquisição na esfera jurídica da Exequente/Embargada do direito a exigir a prestação pecuniária cambiária dos Executado/Embargante que resulta, apenas e só, da Subscrição/Aval da Livrança por estes (art.º 75.º LULL). Esta é a causa de pedir da presente Acção Executiva e que consta integralmente e de forma completa dos títulos executivos/títulos de crédito apresentados, cada um dos quais certifica e faz presumir a existência do referido negócio jurídico-cambiário. Porém, julgamos que é hoje jurisprudência pacífica que, caso o título cambiário não tenha entrado em circulação, isto é, situando-nos ainda nas relações cartulares imediatas e estando o título na posse do Tomador/Credor originário, e caso a Livrança tenha sido Subscrita/Avalizada em branco, pode o Subscritor/Avalista – que também subscreveu o pacto de preenchimento – opor ao Portador excepções com fundamento na inobservância do pacto de preenchimento. Contudo, mais julgamos ser pacífico o entendimento, de resto o sufragado pela decisão recorrida, de que não lhe basta, e de nada lhe serve, uma mera defesa através de Embargos de Executado por simples impugnação (ou uma alegação abstracta, conclusiva, hipotética, dubitativa, interrogativa, sem qualquer concreta referência ao real e efectivo teor do contrato e ao efectivo e real teor do pacto de preenchimento), isto é, não basta alegar que o título não devia ter sido preenchido ou que foi preenchido de forma errada. É necessário que se alegue, por referência concreto e real teor do pacto de preenchimento e ao negócio que constitui a relação fundamental causal extracambiária, qual o motivo pelo qual o título não devia ter sido preenchido ou quais são os exactos termos e os correctos montantes que deveriam constar do título em obediência ao pacto de preenchimento. Com efeito, é hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência que é sobre o Executado/Embargante Avalista que recai o ónus de alegação e de prova de que se trata de uma Livrança que foi Subscrita/Emitida em branco, qual o teor do pacto de preenchimento da Livrança que também foi subscrito pelo Avalista, e a concreta forma e medida em que foi violado o pacto de preenchimento [factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito emergente do título de crédito – art.º 342.º/2 CC], sob pena de permanecer incólume a obrigação cambiária que resulta da literalidade do título de crédito [art.os 378.º e 458.º CC]. [verbi gratia: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-10-2020 e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-12-2020, ambos na base de dados da dgsi.] No caso concreto: Os Executados/Embargantes aceitam e não impugnam que tenham Subscrito como Avalistas as livranças de que a Exequente/Embargada é Portadora e que apresentou como títulos executivos cambiários. Assim, para paralisar o direito da Exequente/Embargada de exigir o cumprimento da obrigação cambiária abstracta cuja existência cada uma das Livranças exequendas certifica e faz presumir e da qual os Executados/Embargantes são devedores à luz da literalidade dos títulos, impunha-se-lhe que alegassem: o relato descritivo e factual (e não meramente impugnativo, abstracto, conclusivo, hipotético ou interrogativo) sobre o estado de cumprimento ou de incumprimento da relação fundamental e a sua conjugação com o teor do pacto de preenchimento, permitindo concluir que o título cambiário não devia ter sido preenchido (por não se verificarem os pressupostos do pacto que permitem o preenchimento) ou que foi preenchido de forma incorrecta (alegando factualmente qual é o estado do incumprimento da relação fundamental e quais são os correctos termos e os concretos valores do preenchimento do título de acordo com o respectivo pacto). Com efeito, a petição inicial é que é o articulado (art.º 147.º CPC) que serve para alegar a factualidade que integra a causa de pedir [a lei processual não prevê um segundo momento para a alegação de factos essenciais (art.os 5.º/1 e 573.º/1 CPC)] não serve para iniciar uma espécie de inquérito para ir indagar quais os factos que deveriam constar da petição inicial e dela não constam (art.º 265.º CPC). À Exequente/Embargada competiria, em sede de contestação, tomar posição definida sobre os factos (não sobre alegações meramente impugnativas ou conclusivas ou hipotéticas ou interrogativas) que tivessem sido alegados pelos Executados/Embargantes na petição inicial (art.os 574.º/1 e 732.º/2/3 CPC). À Exequente/Embargada é que bastaria apresentar uma contestação meramente impugnativa do teor da petição inicial, ou nem isso sequer, pois não se pode considerar confessado outra coisa que não sejam factos e, mesmo estes, apenas os que não estiverem em oposição com os factos alegados no requerimento executivo (art.º 732.º/3 CPC). É sobre o Executado/Embargante Avalista que recai o ónus de alegação e de prova de que se trata de uma Livrança que foi avalizada em branco, que o Avalista teve intervenção no pacto de preenchimento da Livrança, e a concreta forma e medida em que foi violado o pacto de preenchimento [factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito emergente do título de crédito – art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil], sob pena de permanecer incólume a obrigação cambiária que resulta da literalidade do título de crédito [ art.os 378.º e 458.º do Código Civil].” Ora, concluindo o tribunal a quo, pelo não cumprimento do ónus de alegação imposto ao embargante, impunha-se o indeferimento liminar da petição de embargos… Ainda que, nessa parte, por lapso manifesto, fossem tabelar e liminarmente admitidos Embargos de Executado cuja petição inicial é, nessa parte, inepta por falta de causa de pedir, os documentos que a Exequente/Embargada pudesse vir a juntar, não teriam nunca o condão de colocar na petição inicial os factos que dela não constam [nem o contraditório sobre tais documentos poderia ser indevidamente usado para tentar fazer introduzir na instância por simples requerimento – em frontal violação do art.º 573.º CPC – factos essenciais e fundamentos de Oposição à Execução que do articulado de petição inicial não constam][10]. Em síntese, a alegação apresentada pelos Executados/Embargantes não permite alcançar e compreender, por referência à relação fundamental causal, como concluem os mesmos (de forma apenas abstracta, conclusiva, hipotética e interrogativa) que as Livranças por si Subscritas/Avalizadas em branco foram preenchidas, quanto ao montante em débito, de forma divergente com o pacto de preenchimento das Livranças, pelo que não tem a alegação apresentada a virtualidade processual de obstar à cobrança coactiva da obrigação cambiária de que os Executados/Embargantes são devedores de acordo com a literalidade dos títulos executivos/títulos de crédito que avalizaram. E não cumpre este desiderato ou obrigação de concretização a menção à discrepância entre o valor inscrito nas livranças e aquele reclamado e reconhecido em sede de insolvência da devedora principal[11], como proficientemente afastado na decisão revidenda. Em conclusão, pretendendo o embargante invocar meios de defesa com base nessa relação causal e nos acordos outorgados com vista ao preenchimento da livrança, deverá, sob pena de indeferimento liminar dos embargos, alegar completamente os factos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito que o exequente pretende exercer (artº 342º, nº 1 e 2 do C.C.)[12]. Este ónus de alegação dos factos essenciais e constitutivos dos fundamentos de embargos, não pode ser suprido nem por despacho de aperfeiçoamento, nem por eventual contestação que venha a ser oposta pelo exequente (à semelhança da possibilidade prevista para as petições iniciais, no artº 186º, nº 3 do C.P.C.), uma vez que a sua existência é condição prévia de admissão dos embargos. Acresce que, prevendo a lei, em casos especiais, a inversão do ónus de prova, não prevê a inversão do ónus de alegação, de indicação concreta dos factos que integram as excepções de direito material, opostas à obrigação causal. Quer isto dizer que a total ausência de factos concretos que integrem os meios de defesa invocados pelos embargantes, não é, à semelhança do disposto para a acção declarativa, objecto de despacho de aperfeiçoamento, pois que só a deficiência e não a total ausência de causa de pedir, pode ser objecto de aperfeiçoamento. Recorde-se que os embargos de executado constituem uma contra-acção, de natureza declarativa a correr por apenso ao processo de execução, mediante o qual o executado/embargante visa “visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do crédito exequendo ou da falta de um pressupostos, específico ou geral, da execução.”[13] podendo os executados suscitar não só questões jurídicas de conhecimento oficioso, como alegar factos novos e invocar questões que, não sendo de conhecimento oficioso estão na sua libre disponibilidade (é o caso do benefício da excussão prévia de bens, de prévia interpelação do devedor e da prévia resolução do contrato, da perda do benefício do prazo, etc). Nesta oposição, podem os executados, porque em sede de título de crédito, deduzir todos os fundamentos de oposição que lhes seria lícito invocar, como meio de defesa, em sede de ação declarativa (artº 731º do C.P.C.). Por essa razão, quando invocadas excepções de direito material, o opoente está onerado com o dever de alegação e prova, dentro dos limites impostos pelos fundamentos admissíveis de oposição à execução, face ao título em causa, dos factos concretos que integram as aludidas exceções. O embargante está onerado, caso queira ver a sua pretensão recebida, de invocar a causa de pedir das exceções de direito material em causa (artº 576º, nº 3 do C.P.C.), idóneas ao fim visado, ou seja, a extinção total ou parcial da execução. Neste campo, conforme já referido, têm plena aplicação as regras respeitantes ao ónus de alegação e prova constantes do artº 342º, nº 1 e 2 do C.P.C., que determina que o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito e extintivos, modificativos e impeditivos do direito contra si invocado, cabe ao que alega o direito ou a excepção.
Incumprindo este ónus de alegação de factos concretos, impõe-se o seu indeferimento liminar, não com fundamento na nulidade decorrente de ineptidão, mas de improcedência da aludida excepção, uma vez que a petição de embargos, embora no plano formal constitua uma verdadeira petição de ação declarativa, a que são aplicáveis as exigências de forma referidas nos artºs 552º e 147º do C.P.C. “no plano material a oposição consubstancie uma reacção à pretensão executiva” (ac. do TRC de 03/03/21 citado), equiparada assim a uma contestação. Esta equiparação da petição de embargos à contestação decorre da circunstância de se excluir o disposto no artº 669º, nº 2 do C.P.C. (cfr. previsto no artº 728º, nº 3 do C.P.C.), da natureza processual do prazo para dedução de embargos (artº 728º, nº 1 e 138º, nº 1 do C.P.C.) e do princípio da concentração da defesa, previsto no artº 573º, nº 1 do C.P.C.[15] Quer isto dizer que não são aplicáveis à petição de embargos as causas que conduziriam a nulidade, por ineptidão, da petição inicial de ação declarativa, previstas no artº 186º do C.P.C. O que não significa que esteja o embargante desonerado de alegar os factos referentes às excepções de direito material que opõe ao título, mas antes que, não o fazendo, a falta de alegação destes factos conduz ao indeferimento liminar dos embargos, por manifesta improcedência. * Especificamente no que concerne ao aval, é este definido como “o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra garante o pagamento dela por parte de um dos seus subscritores”[16], sendo assim a natureza jurídica da sua obrigação a de garantia da obrigação do avalizado. Ou, por outras palavras, traduz-se no negócio cambiário unilateral e abstracto que tem por conteúdo uma promessa de pagar a letra e por função a garantia desse pagamento. Tal característica de garantia é extensível em termos económicos, pois o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário, que se designa na letra de maneira expressa ou tácita. Isto é, a garantia do avalista vem inserir-se ao lado da obrigação de um determinado subscritor, cobrindo-a, caucionando-a. Ou seja, no que concerne à natureza e medida da responsabilidade do avalista, a sua extensão e conteúdo da obrigação “aferem-se pela do avalizado”, pelo que “qualquer limitação de responsabilidade expressa por este no título aproveita àquele”. Todavia, a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado. Trata-se de uma responsabilidade solidária. O avalista não goza do benefício da excussão prévia, mas responde pelo pagamento da letra solidariamente com os demais subscritores (art. 47º, I). Além de não ser subsidiária, a obrigação do avalista não é, senão imperfeitamente, uma obrigação acessória relativamente à do avalizado. Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao aspecto formal. Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos, que nega igualmente tal subsidariedade, a responsabilidade do avalista é “solidária e cumulativa”, sendo, neste aspecto, “acessória da do avalizado”. Realça, ainda, a posição de autonomia do avalista, ao referenciar a subsistência do aval, “mesmo que o acto do avalizado seja nulo por qualquer razão que não o vício de forma (artº 32º/2 LULL)”. Assim, “a autonomia do aval traduz-se num regime segundo o qual o avalista é responsável pelo pagamento da obrigação cambiária própria como avalista, que se define pela do avalizado, mas que vive e subsiste independentemente desta”. Deste modo, a partir da característica de autonomia do aval, este “evoluiu no sentido de a obrigação do avalista se tornar independente e, portanto, o aval passou a ter natureza diferente da fiança”, adoptando a Lei Uniforme “a tese do aval-fiança objectiva”. Donde, resulta do § 2º, do artº. 32º de tal diploma, que “se a nulidade da obrigação avalizada não destrói a obrigação do avalista, (é porque)…a obrigação do avalista é uma responsabilidade que garante….o pagamento da letra e não constitui uma mera responsabilidade pelo pagamento da letra por parte de uma certa pessoa: o avalizado. Responde-se objectivamente pelo pagamento da letra, não se responde subjectivamente, ou seja, pelo pagamento dela por parte da pessoa avalizada”. Acresce que, tal como os demais actos cambiários, e nos termos supra expostos, o aval possui uma relação subjacente ou fundamental, que é constituída pela relação jurídica que funda a prestação do aval e que pode ser invocada nas relações entre o avalista e o avalizado. Ora, nos termos do pacto de preenchimento em que intervieram, que integra o clausulado dos contratos causais ou subjacentes, os Embargantes autorizaram a Exequente a preencher, accionar ou descontar cada uma das livrança, por si avalizadas [...] pelas quantias que o Cliente (a avalizada) lhe deva ao abrigo de cada um dos contratos, compreendendo a dívida de capital, os juros moratórios e remuneratórios que sejam devidos e outros acréscimos. Cfr. als. a) e b) do clausulado sob o ponto 1 da cláusula 24. do documento 2 do requerimento executivo (cfr. também 21.B do mesmo), intitulado “Contrato de Abertura de Crédito”, datado de 26.07.2018, no que concerne à letra exequenda e identificada em 1 dos factos assentes, junta sob documento nº 1 ao requerimento executivo; cláusula 21 do documento 4 junto ao requerimento executivo, intitulado “Contrato de Mútuo”, datado de 03.04.2018, no que concerne à livrança junta como documento 3 do requerimento executivo e caracterizada sob o ponto 2 dos factos assentes acima; cláusula 1 e 2, 2.1, al. b) do documento junto sob 7 com o requerimento executivo, intitulado “Contrato de Garantias Acessórias”, datado de 10.02.2015, com referência à livrança referida em 3., junta como documento nº 5 àquele requerimento executivo, todas acima transcritas. O Supremo Tribunal de Justiça tem chamado a atenção para que “[q]uem emite uma letra [ou uma livrança] incompleta ou em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em certos e determinados termos”[17]; para que “quem emite uma livrança em branco atribui a quem a entrega o direito de a preencher de acordo com as cláusulas convencionadas entre ambos, em jeito de delegação de confiança”[18]; e para que, “[a]o dar o aval ao subscritor em livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento”. Quanto agora à falta de interpelação dos avalistas para o pagamento. O problema está em averiguar desde logo se o pacto de preenchimento exige a comunicação ou informação do devedor e/ou do garante (avalista). Assim é que, quando o pacto de preenchimento exija a comunicação do facto legitimador[19], a ausência de comunicação determina que o preenchimento seja abusivo. O pacto de preenchimento “[impõe] ao credor a obrigação de comunicar ao avalista do subscritor ou do sacador, antes do preenchimento do título, [que o devedor não tinha cumprido]”[20] — e, por consequência, o credor, ao preencher o título sem cumprir o dever de o comunicar, está a preencher o título “com desrespeito pelo contrato de preenchimento”[21]. Já quando o pacto de preenchimento não exija a comunicação do facto legitimador[22], a ausência de comunicação não determina que o preenchimento seja abusivo. O pacto de preenchimento não impõe nenhuma obrigação de comunicar ao avalista que o devedor não tinha cumprido — e, por isso, o credor, ao preencher o título sem cumprir o dever de o comunicar, está a preencher o título com respeito pelo contrato de preenchimento. Como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Setembro de 2017 — processo n.º 779/14.2TBEVR-B.E1.S1 —, “A falta de interpelação do avalista da subscritora, no âmbito de uma livrança em branco, com vista ao seu preenchimento quanto à data do vencimento e ao montante, só releva se a necessidade dessa interpelação resultar do respetivo pacto de preenchimento”. Impondo-se agora a necessidade da interpretação do(s) acordo(s), do chamado pacto de preenchimento, para determinar se o contrato ou pacto de preenchimento exige a comunicação, ou a informação, do devedor e/ou do garante (avalista) sobre o facto legitimador do preenchimento, sobre a data e sobre o montante a inscrever em cada uma das livranças, muito embora nada tendo sido alegado a um tal propósito, nem na petição de embargos, nem em sede de alegações… O pacto de preenchimento, como todas as cláusulas de um contrato, deve interpretar-se[23]; na interpretação do pacto de preenchimento, deve aplicar-se os princípios e as regras dos arts. 236.º e ss. do Código Civil[24]; e, na aplicação dos princípios e das regras dos arts. 236.º e ss. do Código Civil, deve atender-se a todas as circunstâncias do caso concreto, ou seja, a todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, [colocado] na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta. Ora, cada um e todos os pactos de preenchimento constantes das cláusulas acima identificadas dos contratos enuncia, tão-só, dois requisitos. Em primeiro lugar, que a data de vencimento da livrança seja posterior ao vencimento da obrigação garantida e, em segundo lugar, que a quantia inscrita na livrança seja uma quantia devida pelo cliente ao abrigo do contrato de financiamento garantido. É que sempre se impõe distinguir as condições da exigibilidade ou do vencimento das obrigações, as condições do accionamento ou da execução das garantias e as condições do preenchimento da livrança. Nada nos pactos de preenchimento se reporta à necessidade de qualquer das comunicações, a da resolução por incumprimento da obrigação garantida ou do vencimento desta, nem a da informação dos valores pelos quais vai ser preenchido o título e da data de vencimento neles a apor… Inexistindo essa obrigação pactuada na convenção de preenchimento, ainda quando se considere necessária a comunicação (do que cuidaremos infra), inexistindo comunicação ao avalista quer do acto resolutivo, quer do acto interpelativo, a consequência não se traduz na circunstância das livranças não poderem ser preenchidas e, tendo-o sido, que ocorra preenchimento abusivo e que os títulos sejam inexequíveis relativamente ao avalista, devendo a execução ser declarada extinta. Efectivamente, nesta situação não se descortina que venha muito ao caso a figura do preenchimento abusivo. É que há preenchimento abusivo quando, e apenas quando, o título subscrito e entregue em estado incompleto vem a ser preenchido de forma não correspondente à vontade manifestada pelo obrigado nos termos do pacto de preenchimento subjacente. Como nos diz Carolina Cunha (Manual de Letras e Livranças, p. 175) – e se dúvidas houvesse sobre o assunto, que não há – “se o preenchimento se deu em conformidade não existe conflito; só quando a formação sucessiva do título dá origem a uma divergência entre a vontade e a declaração o ordenamento jurídico é chamado a reagir”. Donde, “não estamos qualquer situação de preenchimento das livranças exequendas em desacordo com o que foi convencionado (pacto de preenchimento), mas, pelo contrário, perante situação em que o preenchimento foi feito de acordo com o estabelecido entre as partes contratantes. A questão não é, pois, de preenchimento abusivo. O acórdão do STJ de 25 de Maio de 2017, proferido no processo n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1, afirma que a comunicação ao avalista do incumprimento “não é condição de exequibilidade do título” e o acórdão de 30 de Abril de 2019, processo n.º 1959/16.1T8MAI-A.P1.S1, confirma-o, dizendo que a ausência de comunicação “não implica […] que as livranças não [pudessem] ter sido preenchidas”, “[não] significa que o seu preenchimento [fosse] abusivo” [não significa] que as livranças [fossem] inexequíveis quanto ao avalista” e “[não] implica a extinção da execução que foi instaurada”. Da lei, nos termos anotados na decisão recorrida, não resulta um ónus daquela comunicação (da resolução), nem também de uma interpelação ao pagamento ou da comunicação do valor pelo qual vai ser preenchido o título. Já se entendeu serem estas comunicações um dever ou ónus. Assim, Cf. acórdãos do STJ de 25 de Maio de 2017 — processo n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1 — e de 30 de Abril de 2019 — processo n.º 1959/16.1T8MAI-A.P1.S1, sustentando-se que em complemento da comunicação do facto legitimador do preenchimento, o credor tem o dever, ou o ónus de comunicar ao garante (avalista) a data e a quantia a inscrever nas livranças. O já referido Acórdão do STJ de 30/04/2019 sustentou impor-se a comunicação ao Embargante, como avalista, sobre o montante em dívida a inscrever nas livranças e sobre a data do respetivo vencimento, uma vez que, embora estas exigências não decorram dos contratos de financiamento nem sejam só por si impostas pela prestação do aval, assim o impõe o princípio da boa-fé. Já o Acórdão do mesmo STJ de 24/10/2019[25], sustentou que o credor tem o dever, ou o ónus[26], de comunicar ao garante “o facto […] legitimador do preenchimento das livranças e da responsabilização cambiária do avalista”. Nessas teses, ainda quando distintas por não ser idêntica a prefiguração de um dever ou ónus, em causa tão só um problema de exigibilidade[27]. Deste modo, numa situação em que não existiu prévia interpelação ou comunicação ao embargante (sendo exigida, mas não pactuada), tanto valeria, como comunicação do acto resolutivo e como comunicação da existência da dívida (o que tudo representa um acto de interpelação), a comunicação extrajudicial como a citação para a execução. É que sempre então os Embargantes se tornariam conhecedores, através da citação operada na execução, da resolução, do mesmo passo que conhecedores do que estava em dívida[28], do que foi inscrito nas livranças e da data dos respetivos vencimentos. Logo, a prestação a que se vincularam através do aval tornou-se exigível (v. n.º 1 do art. 805.º do CCivil), embora não indiscutível. Donde, tendo-se por exigida uma tal comunicação do Exequente aos avalistas, a sua falta implicaria tão só que a obrigação apenas se considerasse vencida com a sua citação. Isto decorria da conjugação das normas dos art.s 777.º, n.º 1 do CCivil e do 610º n.º 2 al. b) do CPCivil, estipulando esta última que, quando a inexigibilidade derive da falta de interpelação ou do facto de não ter sido pedido o pagamento no domicílio do devedor, a dívida considera-se vencida desde a citação. Deste modo, a falta de comunicação aos embargantes teria apenas como consequência que a obrigação que assumiram como avalistas se tornasse exigível apenas com a citação para a execução. O que, por sua vez, implicaria, não a extinção da execução (como os Embargantes pretendem), mas simplesmente que os juros moratórios seriam devidos a partir da citação… Nessa perspectiva, o facto de não haver preenchimento abusivo da livrança em branco significaria que a ausência de comunicação ao garante (avalista) do facto legitimador do preenchimento sempre apenas terá o efeito previsto no art. 777.º, n.º 1, e no 805.º, n.º 1, do Código Civil e no art. 610.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil — a dívida inscrita na livrança considerar-se-ia vencida desde a data da citação dos executados, o que este tribunal sempre poderia determinar. Partilhamos da posição de Pedro Pais de Vasconcelos[29] quanto à inadmissibilidade desta posição passando a reproduzir, data venia, as objecções a uma tal construção, que o mesmo autor, por facilidade de expressão, designa como “teoria do ónus de informar”. « [a mesma] Resulta de uma concretização transtípica incorreta e padece de diversos vícios de concretização jurídica: - porque não é necessária, podendo a informação em questão ser prestada ao avalista pelo avalizado ou por aquele com quem está ligado pelo pacto de aval; - porque no processo analógico da concretização transtípica, inverte o sentido contrariando o princípio do favor creditoris, próprio do Direito Comercial; - porque não existe no regime jurídico do aval uma lacuna que exija o recurso ao regime jurídico da fiança para dar solução à questão, dado que o regime do aval contém norma e critério de decisão para a mesma; - porque não distingue e mistura, mesmo, a relação cambiária com a relação subjacente, desconsiderando o pacto de aval; - e porque desiguala os valores das responsabilidades do devedor do título e do avalista, com violação direta e insanável do artigo 32º, I, da LULL; - porque viola o regime dos juros que decorre da própria LULL. Esta teoria parte de uma concretização transtípica do regime do artigo 634º do Código Civil, interpretado como consagrando um dever de o credor informar o fiador do vencimento da dívida objeto da fiança quando esta obrigação seja pura ou tenha data de vencimento indeterminado, de tal modo que o fiador não possa saber do vencimento e tenha a oportunidade de cumprir tempestivamente, evitando assim o agravamento da dívida com juros de mora.[30] Esta orientação que, mesmo em Direito Civil, é contrariada pela autoridade de Antunes Varela, não colhe[31]. Do facto de se entender que o fiador deve conhecer a data do vencimento da obrigação afiançada, não se pode concluir, sem mais, que o credor deva ter o dever de interpelar o fiador nem que tenha o dever de o informar. É compreensível o interesse do fiador em ter conhecimento tempestivo do vencimento da dívida afiançada, para que a possa pagar de imediato, evitando o seu agravamento com juros de mora. Mas daí não decorre que o credor tenha um dever acessório de boa fé, nem um ónus, de o interpelar ou de o informar. Tal informação pode melhor ser feita pelo devedor que tem normalmente uma maior proximidade com o fiador e que com ele está juridicamente relacionado pelo contrato de fiança. Para que possa usar dos meios de defesa que o artigo 637º do Código Civil lhe confere, o fiador necessita de ter conhecimento do vencimento da dívida afiançada, seja do vencimento, por interpelação da dívida a prazo incerto ou mesmo sem prazo, seja por vencimento antecipado. Tal conhecimento, pode obtê-lo do credor ou do devedor, qualquer deles o satisfaz, mas nada na lei exonera o devedor nessa matéria ou constitui o credor no dever exclusivo de o fazer. A lei nada diz sobre a questão mas, atendendo ao poder que a lei confere ao fiador de usar contra o credor os meios de defesa que assistem o devedor (artigos 637º a 642º do Código Civil), parece ser mais adequado e mais razoável que seja o devedor a informar o fiador, tanto do vencimento da obrigação afiançada, como de todos os incidentes de crédito que a possam afetar e, principalmente, agravar (como adiante fica demonstrado). É, pois, de concluir que a informação do fiador sobre o vencimento da dívida afiançada, a dever ser-lhe prestada, mais razoavelmente o será pelo devedor do que pelo credor. Sem desenvolver mais esta questão, que o Código Civil suscita no regime do tipo legal da fiança civil, no tema que aqui nos ocupa importa salientar que esta problemática é, toda ela, supérflua em tema de aval. Simplesmente não é necessária, e a sua convocação vem importar do Direito Civil para o Direito Comercial cambiário uma dificuldade que ele não tem e que ele próprio, de acordo com o seu sistema e função, deve evitar. A concretização transtípica analógica[32] só se funda e justifica na necessidade, isto é, na falta, no regime do tipo, de uma regra ou de um critério de decisão que sejam necessários para a concretização num caso concreto. Quando tal regra ou critério de decisão já existam (ou, noutra metodologia, quando não seja justificada uma lacuna) não é lícito aplicar uma parcela de regime de outro tipo que não o que está em questão, principalmente quando se tratar dum tipo legal fechado, como é o do aval. É, pois, ilícita a convocação da problemática do dever ou do ónus de informar ou de interpelar o fiador, para o regime jurídico do aval, no âmbito do qual tal matéria é totalmente impertinente. Ainda que, no caso, se verificasse uma falta de regras ou de critério de decisão e que fosse necessária a concretização transtípica analógica (noutra metodologia: se verificasse uma lacuna que fosse necessário preencher por analogia) nesta matéria, o processo padeceria de uma incorreção consistente no desrespeito pelo sentido da regulação onde a lacuna se verifica. O processo analógico não corresponde à aplicação de uma parcela de regime a um caso omisso dela carecido, sem qualquer modificação ou adaptação. Tal corresponderia a uma aplicação direta dessa parcela de regime a um facto ou complexo de factos não correspondentes à respetiva previsão, o que seria ilegal. Se os factos correspondessem à previsão da parcela de regime, então tratar-se-ia de aplicação direta não analógica. Aplicar uma parcela de regime a um complexo fáctico diferente da sua previsão sem modificação ou adaptação seria uma ilegalidade, se estivéssemos no âmbito da aplicação da lei, ou a uma violação do contrato no caso de concretização contratual. A concretização (noutra metodologia: aplicação) analógica não dispensa alguma modificação ou adaptação. O processo analógico parte da comparação entre o caso e o tipo (entre a lacuna e a parcela de regime a aplicar) e do discernimento das semelhanças e diferenças entre um e outra, e conclui-se pela adaptação ou modificação da parcela de regime a analogar. O critério da comparação, do discernimento das semelhanças e diferenças, da sua relevância e da adaptação ou modificação é o sentido. O direito cambiário (…) é direito objetivamente comercial, pelo que o seu sentido está preenchido inter alia pelo princípio jurídico do favor creditoris, segundo o qual deve proteger o credor em detrimento do devedor, e que se relaciona em contradição com o princípio do favor debitoris, que é um princípio do Direito Civil segundo o qual, ao contrário do anterior, se protege o devedor em detrimento do credor. A orientação ora em crítica inverteu o sentido e concretizou a questão de acordo com o favor debitoris em vez de o fazer – como devia – de acordo com o favor creditoris, isto é, favoreceu o devedor em detrimento do credor em vez de favorecer o credor em detrimento do devedor. Ao fazê-lo, contrariou o artigo 3º do Código Comercial que impõe que «se as questões sobre direitos e obrigações comerciais não puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei comercial, nem pelo seu espírito, nem pelos casos análogos nela prevenidos, serão decididas pelo direito civil». Este artigo contém direito imperativo e a sua violação é ilícita, ilegal. Além de contrariar o sentido que deve reger a analogia, esta concretização padece ainda de mais uma incorreção por ter sido feita desnecessariamente. A concretização transtípica analógica (noutra metodologia: a aplicação analógica) duma parcela do regime do tipo da fiança a um caso de aval só seria admissível e lícita quando no regime do aval faltasse uma parcela que devesse existir. Não é suficiente que se entenda que não existe uma parcela de regime no que respeita ao aval, é necessário ainda que essa não existência corresponda a uma falta, que falte, que esteja em falta; que devesse haver essa parcela de regime, quer dizer, que fosse necessário recorrer ao regime da fiança para poder resolver e decidir o caso em questão. Mas não é. Não é necessário convocar e aplicar analogicamente uma parcela do regime da fiança para resolver esta questão com justiça, eficiência e adequação. O regime jurídico do aval da letra ou livrança contém uma solução para a questão dentro do âmbito do seu regime jurídico próprio. A solução facultada pelo regime do aval para a questão da informação do avalista sobre o preenchimento da letra ou livrança pelo portador está na dualização da relação cambiária e da relação subjacente, mais concretamente do pacto de aval em branco. Se a LULL não confere ao avalista o direito a ser informado do preenchimento do título, o pacto de aval celebrado, expressa ou tacitamente, pelo avalista contém, ou não, alguma estipulação sobre a matéria; e esse pacto de aval e essa estipulação provam-se ou não, no caso. Existindo uma solução, uma norma e um critério no regime jurídico das letras e livranças, não há justificação nem fundamento para concretizações transtípicas analógicas, isto é, na metodologia tradicional, não há lacuna, pelo que não há fundamento para procurar soluções no regime jurídico da fiança. Por mais esta razão é incorreta a construção segundo a qual o portador tem o ónus de informar o avalista do preenchimento da letra ou livrança. Mas há mais. A referida construção é ainda incorreta porque não distingue e mistura, mesmo, a relação cambiária com a relação subjacente, desconsiderando o pacto de aval. Como já ficou bem explicitado supra e está muito bem explicado pelo Supremo Tribunal de Justiça[33], o aval é um ato abstrato que se distingue bem da respetiva relação subjacente. Esta é a doutrina clássica aceite em geral sem divergências relevantes. A construção que onera o portador que preenche a livrança (ou letra) com um ónus de informar o avalista, sob a cominação de perder o valor dos juros de mora vencidos entre a data de vencimento aposta no título e a data da citação do avalista, – a teoria do ónus de informação - mistura a relação cambiária com a relação subjacente. Mas esta teoria reduz o valor do crédito cambiário por influência da relação subjacente. Uma influência como esta só é admissível quando a LULL o permite, e os únicos casos em que o permite são os do artigo 10º, quando aplicável, e o artigo 17º, além do artigo 30º II. Porém, estes preceitos não admitem o que a teoria do ónus de informação do avalista postula. A informação, seja um ónus, seja um dever, seja ainda uma cortesia, não emerge da posição cambiária do portador ou do avalista, porque a LULL não o prevê e as posições e relações cambiárias esgotam-se rigorosamente na LULL. É matéria extracambiária que só pode emergir da relação subjacente. O valor da responsabilidade do avalista, diferentemente, é matéria exclusivamente cambiária. A teoria do ónus de informação do avalista reduz o valor da dívida cambiária por força da relação subjacente e fora do âmbito de aplicação dos artigos 10º, 17º e 30º II da LULL. Os artigos 10º e 17º funcionam num modo bem caraterístico consistente na oposição de duas pretensões cruzadas, uma cambiária a uma subjacente, que se compensam parcial ou totalmente. O artigo 30º II funciona pela limitação cambiária no próprio título, com literalidade. Os regimes dos artigos 10º e 17º da LULL são as únicas limitações ao regime de abstração das letras e livranças constante da LULL[34]. A teoria do ónus de informação do avalista pelo portador que preenche a letra ou livrança em branco é, por mais esta razão, incorreta, por permitir opor à pretensão cambiária de valor do aval uma pretensão extracambiária fora dos casos permitidos pela LULL e com a sua violação. Além desta violação da LULL, a construção do ónus de informação desconsidera o pacto de aval. Um ónus ou um dever de informação do avalista pelo portador que preenche a letra ou livrança em branco só pode encontrar fundamento no pacto de aval. Neste pacto, o avalista, ao apor o aval no titulo, pode pactuar com o portador que preenche o título que este o deva informar de tal preenchimento, ou que, se não o fizer, o avalista só deva ter de suportar juros de mora contados desde a data da sua citação, mas não aqueles que se venceram desde a data de vencimento preenchida no título até à data da citação. Se tal tiver sido pactuado, poderá ser oposto ao portador com quem tiver sido pactuado, nos termos do artigo 17º da LULL. Mas a construção do ónus de informação do preenchimento dispensa o pacto de aval, que desconsidera, dispensa a relação subjacente, que também desconsidera, e extrai ónus de uma pura consideração de justiça do caso concreto (…). Finalmente, a última incorreção da teoria do ónus de informação do preenchimento da livrança pelo credor ao devedor, consiste na direta contrariedade à lei. O artigo 32º I da LULL impõe que o valor da responsabilidade do avalista seja o mesmo da responsabilidade do devedor, salvo o caso em que o avalista tenha limitado, no próprio título e nos termos do artigo 30º II da mesma lei. De acordo com a construção em crítica, a responsabilidade, o valor devido pelo devedor da letra ou livrança, e o valor devido pelo avalista são diferentes, mantendo ambas as responsabilidades a natureza cambiária emergente do mesmo título e da LULL. Esta ilegalidade é indesmentível e insanável.» Donde “não se impõe ao portador do título que antes de accionar o avalista do subscritor lhe dê informação acerca da situação de incumprimento que legitima o preenchimento do título”[35].
A posição jurídica cambiária do avalista tem o seu conteúdo jurídico tipificado, na totalidade, na Lei Uniforme sobre as Letras e Livranças (LULL). A posição jurídica extracambiária (subjacente) do avalista contém-se e decorre do que por ele tiver sido estipulado a propósito do seu aval e corresponde à respetiva relação subjacente. Envolve o pacto de aval, que contém tudo o que o avalista estipulou a propósito da prestação do seu aval.[36] A LULL não rege as relações subjacentes – e bem – e em matéria cambiária só contém aquilo que contém. No que falta, não é lícito aplicar, sem mais, o Código Civil, principalmente, o regime civil da fiança. A LULL é direito objetivamente comercial cujo articulado foi retirado do Código Comercial (artigos 278º a 343º) para dar lugar ao regime introduzido pela Convenção de Genebra estabelecendo uma lei uniforme em matéria de letras e livranças[37], pelo que se considera como fazendo parte dele. Assim, o artigo 3º do Código Comercial só permite procurar no Direito Civil soluções para «questões sobre direito e obrigações comerciais que não puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei comercial, nem pelo seu espírito, nem pelos casos análogos nela prevenidos». A aplicação do Direito Civil só é lícita após esgotadas as soluções decorrentes (primeiro) da letra da lei comercial, (segundo) do espírito do Direito Comercial, (terceiro) da analogia a preceitos da lei comercial e só depois de esgotados todos estes recursos, é lícito recorrer ao Direito Civil para resolver questões duvidosas ou para preencher lacunas do regime jurídico cambiário do aval. O recurso ao Direito Civil, em matéria cambiária, só pode ser feito por analogia e nunca por aplicação direta[38]. Ainda quando possa haver-se a boa fé como um princípio geral do direito comercial, não pode ignorar-se o favor creditoris, que rege em Direito Comercial e que protege a posição do credor[39]. Não podem, pois, na concretização transtípica analógica ou na integração a partir daquele princípio geral do ordenamento (a boa fé) ser adotadas soluções concretas que enfraqueçam a posição do credor, que dificultem a cobrabilidade do crédito ou reforcem a posição do devedor[40]. O aval garante o pagamento da letra e não propriamente o seu pagamento pelo avalizado (artigo 30º I)[41], sendo que, como já se avançou, o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. No domínio cambiário, no caso de aval em branco, o artigo 10º LULL permite-lhe opor-se quando demonstre que a letra ou livrança foi preenchida «contrariamente aos acordos realizados» e que o portador que exige o pagamento a adquiriu de má-fé ou cometendo «falta grave», por exemplo, tendo-a furtado ou tendo-a adquirido por endosso mancomunado com o portador com quem foi celebrado o pacto de preenchimento com o fim de evitar a oponibilidade da exceção de preenchimento abusivo nos termos do artigo 17º LULL. O pacto de aval contém o que tiver sido convencionado pelo avalista por ocasião da prestação do aval, como seu fundamento e a seu propósito. Ninguém no seu pleno juízo avaliza uma letra por razão nenhuma. A motivação (quia) e o fim (ut) da prestação do aval, o seu valor, a sua duração, o modo de desvinculação e a contrapartida, se convencionados, preenchem o conteúdo do pacto de aval, acrescido de outras matérias que o avalista tenha eventualmente pactuado. «Na relação cambiária, não há direito nem dever de informação do ato de preenchimento da letra ou livrança em branco. Esse direito de ser informado e esse dever de informar, a existirem, inserem-se na relação subjacente. Na LULL nada consta sobre deveres do portador ou direitos do avalista nesta matéria. Não há, pois, nem direitos nem deveres de informação com natureza cambiária. O único regime cambiário de informação refere-se ao protesto (artigos 45º e 54º LULL) e nada tem a ver com a questão que aqui nos ocupa. Mas pode havê-los de natureza extracambiária. No campo extracambiário, regem as regras gerais dos pactos, no que tange ao pacto de preenchimento e ao pacto de aval, e regem os negócios subjacentes. Mas independentemente da enorme diversidade que podem assumir as convenções subjacentes, importa desde logo distinguir dois tipos de situações: aquelas em que o avalista é um verdadeiro terceiro face à relação subjacente e ao ato cambiário relacionado com o aval, e os casos em que o avalista participa nessa relação subjacente.»[42] Na situação decidenda, como se infere dos contratos juntos e que integram as relações causais, os avalistas participaram nos contratos, na relação jurídica ou mesmo no negócio que constituem a relação subjacente ao acto cambiário da avalizada. Nesses casos, existe uma relação tripartida, trilateral ou triangular que envolve o portador que cobra o título, o avalizado (subscritor, ou sacador, ou aceitante, ou endossante) que deve o título e o avalista. Nestes casos, o avalista encontra-se naquilo que tradicionalmente se designa por “relações imediatas” e pode deduzir, contra o portador exequente, exceções emergentes da relação subjacente em que é parte conjuntamente com ele; como se viu. O dever de informação (do vencimento antecipado da obrigação avalizada, da resolução e do preenchimento da letra ou livrança e respectivo valor, como a concessão de um prazo ao avalista para pagar) não existe na relação cambiária, que só contém o que conste da LULL. Na relação subjacente, pode existir ou não, mas a sua existência, o seu facto constitutivo e o seu conteúdo concreto, para relevarem, têm de ser alegados e provados pela parte a quem aproveitam e que os invoca. Ora, como se viu, não constando do pacto de preenchimento, nenhuma alegação na petição de embargos quanto ao fundamento na relação causal da obrigação de informar, mormente a invocação de uma relação de clientela com a exequente… Sempre insustentável a concretização de um dever de informar o avalista do preenchimento da livrança (ou da letra) com mero fundamento na boa fé, como por vezes se faz, com invocação do artigo 762º, nº 2 do Código Civil. A boa fé não pode ser invocada para fundar tudo o que quer que seja no direito dos negócios jurídicos privados. A literalidade no direito cambiário não permite surpresas e impede que um portador seja posto perante questões, oposições ou exceções com que não possa contar, por constarem do próprio título (literalidade), ou por terem sido por ele próprio estipuladas extracambiariamente com a pessoa a quem, no caso concreto, esteja a exigir o seu pagamento. Não existe no direito cambiário um direito à informação sobre o preenchimento do título emergente de um dever de boa fé. A boa fé pode modelar o modo de prestar a informação, clara, completa e tempestiva, quando esse direito-dever exista com outra fonte, mas não pode fundar, não pode constituir a fonte daquele direito e daquele dever[43]. O regime jurídico cambiário, pela sua própria natureza, tem de ser literal, completo, global, integral e internacionalmente uniforme. Não se compadece com particularismos, salvo os expressamente previstos na Convenção de Genebra de 1930 e no texto da Lei Uniforme, nem com decisões surpresa contrárias à letra da lei. O avalista, quando toma a decisão de apor o seu aval numa letra ou livrança, deve pensar nas responsabilidades que está a assumir… Se o avalista em branco quiser ser informado do preenchimento do título terá, pois, de assim o estipular no pacto de aval e só o pode exigir de quem for parte nesse mesmo pacto. Se o pacto tiver sido celebrado com o subscritor avalizado, caso mais frequente, o avalista só pode exigir informação e obtê-la desse mesmo subscritor; se tiver sido celebrado também como o primeiro portador, como também sucede embora menos frequentemente, a informação poderá ser exigida de ambos e deverá ser prestada por ambos. Se a obrigação de informação tiver sido acordada, em separado, no pacto de preenchimento celebrado apenas entre o subscritor e o primeiro portador, e no pacto de aval celebrado entre o avalista e o subscritor, o portador deve informar o subscritor e este deve informar o avalista, não havendo obrigação nem pretensão direta entre o avalista e o portador que preenche o título. Se nada estiver estipulado com o portador que preenche o título, ou porque tal não ocorreu aos intervenientes, ou porque não chegaram a acordo sobre tal estipulação, não pode ser a boa fé a fundar esse dever ou mesmo um ónus. O problema podia ser agora o da consideração como de manifesta improcedência da oposição apresentada quanto a essa falta de notificação, por via da existência da jurisprudência acima convocada e ainda quando se sufrague a posição da instância recorrida…, tendo-se já como uma questão razoavelmente controvertida… Não é o que sucede na situação decidenda. Desde logo, apelam os embargantes a uma obrigação legal de comunicação, inexistente. Mais se reconduzem indistintamente à falta de comunicação de informações que apenas regem quanto ao avalizado – a comunicação de vencimento/resolução, v.g.[44] – e à ausência de informação quanto ao momento do preenchimento da livrança no que interessa ao valor e data de vencimento… Ausente a alegação de um qualquer relacionamento com o exequente que fundamentasse um tal dever ou exigência[45], assumido na petição de embargos o conhecimento da exigência pelo credor à avalizada do crédito, vista ademais a relação intercedente entre os avalistas e a avalizada, sendo um deles o legal representante e a outra a mulher, não alegam os embargantes qualquer facto apto a caracterizar a emergência do dever de comunicação à luz da boa fé. É que esta não se constitui como uma categoria puramente conceptual e racional, independentemente de se ter provado que o devedor tinha tido a possibilidade e a vontade de pagar na data de vencimento preenchida na livrança… Novamente, aqui nos remetendo igualmente à acima descrita imprestabilidade da alegação em sede de embargos (quanto ao valor inscrito nos títulos), insuprível, o facto (quando muito) modificativo da obrigação exequenda carecia de estar consubstanciado nas circunstâncias reais das quais resultaria, segundo a boa fé, a obrigação de comunicação. Não o estando, bem assim manifestamente improcedente a argumentação, vazia de conteúdo útil ou aproveitável. * Quanto agora à prescrição da obrigação subjacente e ao preenchimento ou datação do vencimento dos títulos, nos termos em que o foi. Já se viu que pacto de preenchimento define-se como o acto ou como a “convenção extracartular, não sujeita a forma, em que as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, etc.”[46], ou como o contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário no que respeita aos elementos que habilitam a formar o título executivo, estabelecendo os requisitos que tornam exigível a obrigação cambiária. O acórdão do STJ de 13 de Abril de 2011, proferido no processo n.º 2093/04.2TBSTB-A L1.S1, diz, de forma impressiva, que “[o] preenchimento deve respeitar aquele pacto — no fundo o contrato que deve ser pontualmente cumprido — já que a sua observância, é o quid que confere força executiva ao título, mormente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade” — e a fórmula do acórdão de 13 de Abril de 2011 é adoptada, com algumas diferenças, p. ex., pelo acórdãos de 25 de Maio de 2017, proferido no processo n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1, ou de de 13 de Novembro de 2018, proferido no processo n.º 2272/05.5YYLSB-B.L1. Desde logo, saber se ocorre a prescrição pressupõe, evidentemente, saber qual é data de vencimento da obrigação (desde logo a cartular) pois começa aí, em princípio, a contar-se o prazo de prescrição. A verdade é que, havendo preenchimento abusivo, esta pode não ser a data efectivamente aposta na livrança, mas uma outra (a data que deveria ser se não tivesse havido preenchimento abusivo). O que não impede que se veja que uma coisa é saber se é admissível, em face do Direito, preencher a livrança com a data com que foi preenchida e uma coisa diferente é saber se o direito cartular prescreveu. Veja-se, levando às últimas consequências a distinção entre as duas questões, o que diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.09.2003 (Proc. 03A2113): “A prescrição da obrigação cambiária conta-se a partir da data do vencimento e essa data é a que consta do título e não aquela que, eventualmente, deveria constar de acordo com o pacto de preenchimento”. A livrança está regulada, de forma sumária, nos artigos 75.º a 78.º da LULL, aplicando-se-lhe, a título subsidiário, o regime da letra de câmbio (ex vi do artigo 77.º da LULL). A questão da prescrição do direito cartular prende-se directamente com o artigo 70.º da Lei Uniforme de Letras e Livranças (doravante LULL), onde se dispõe: “Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento (…)”. Embora o preceito se refira expressamente à “prescrição das acções”, deve esclarecer-se que ele não regula a prescrição do direito de acção (sempre seria caducidade) mas sim a prescrição do direito. A regra é aplicável às livranças por força do artigo 77.º da LULL, que determina: “São aplicáveis às livranças, na parte em que não sejam contrárias à natureza deste escrito, as disposições relativas às letras e respeitantes a (…) prescrição (artigos 70.º e 71.º) (…)”. Relevante é ainda e sempre o artigo 32.º da LULL, por força do qual os avalistas estão sujeitos ao mesmo regime de prescrição que é aplicável aos seus avalizados. Não se suscitando dúvidas sobre a regularidade do preenchimento da letra ou da livrança, a questão da prescrição é linear: apenas há que apurar se a acção foi proposta dentro do prazo de três anos a contar da data de vencimento, conforme previsto no artigo 70.º da LULL. Como se diz no Acórdão do STJ de 19.06.2019 (Proc. 1025/18.5T8PRT.P1.S1): “Numa livrança em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 70º ex vi do artigo 77º, da LULL conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, quer essa data coincida ou não com o incumprimento do contrato subjacente ou com o vencimento da obrigação subjacente (…)”. Destaca-se aí ainda a convergência da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça: “A questão de saber se o início de contagem do prazo de prescrição de três anos, previsto no art. 70º, nº 1, da LU (ex vi art. 77º da LU) se afere em função da data de vencimento inscrita na livrança ou com base no vencimento da obrigação causal, tem sido respondida em sentido afirmativo da primeira proposição pela jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal (cfr. entre muitos outros, os acórdãos de 12/11/2002(proc. nº 3366/02), de 30/09/2003 (proc. n.º 2113/03), de 29/11/2005(proc. nº 3179/05), de 09/02/2012 (proc. n.º 27951/06.6YYLSB-A.L1.S1), de 19/10/2017 (proc. n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1),consultáveis em www.dgsi.pt), não havendo razões justificativas para nos afastarmos desta orientação consolidada”. A verdade é que, como se disse atrás, por força de preenchimento abusivo, a data de vencimento da obrigação cartular pode acabar por não ser a data efectivamente aposta na livrança, mas uma outra. E, com base nesta, pode vir concluir-se que, afinal, o direito prescreveu. Deve, por conseguinte, remeter-se a resposta definitiva à questão da prescrição para momento posterior. Explicam com notável clareza Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos que os signatários de uma letra ou livrança em branco estão vinculados mesmo antes do preenchimento da letra ou livrança: “Conjugados os artigos 1.º e 10.º da LULL, tem de se admitir que todos os que aponham a sua assinatura numa letra ou livrança em branco ficam vinculados duplamente. Por um lado, ficam numa situação jurídica de sujeição ao exercício do poder potestativo de preenchimento do título por qualquer dos portadores e, por outro lado, ficam ainda obrigados ao seu pagamento conforme a qualidade em que o assinam e a sua posição na cadeia cambiária. A questão não é de tempo, não é relevante a data do preenchimento, mas apenas que, ao tempo da sua cobrança, ele esteja preenchido. Na maior parte das vezes, nem é possível saber com precisão quando é que vieram a ser preenchidos (…). Não tem sentido permitir a sua desvinculação antes do preenchimento. Os signatários de letras ou livranças em branco sabem que esses títulos estão em branco, porque tiveram oportunidade de o constatar quando os tiveram na mão para os assinar e quando os endossaram ainda em branco. Sabem também que esses títulos poderão mais tarde vir a ser preenchidos e apresentados a pagamento. Sabem ainda em que condições deverão ser preenchidos. Não é aceitável, nem crível, nem admissível que não saibam bem o que está convencionado sobre o seu preenchimento e os riscos envolvidos” [47]. Mais adiante, precisam os autores: “Estruturalmente, a posição jurídica do interveniente na letra em branco, antes do preenchimento, é de sujeição. Está sujeito a que o portador a preencha, pelo valor que for e com vencimento na data que for. O portador, ao preencher a letra, exerce um poder potestativo. Quando, além de aceite ou sacada em branco, a letra seja ainda avalizada em branco, o pacto de preenchimento torna-se mais complexo. Pode incluir o avalista numa estrutura trilateral. Não é crível que alguém avalize em branco sem se informar do conteúdo do pacto de preenchimento e do risco que assume”[48]. Não obstante tecidas a propósito da letra ou livrança ainda em branco (i.e., ainda antes de preenchida), estas considerações têm interesse para compreender a posição dos signatários e, sobretudo, dos avalistas em face do portador da letra ou livrança depois de preenchida. Percebe-se que os avalistas estão, ab initio, numa posição de verdadeira sujeição jurídica[49]. Ora, pronunciando-se sobre uma hipótese próxima daquela que tratam os presentes autos, os AA citados em último lugar[50]: “A mesma doutrina [não ocorre preenchimento abusivo] vale quando é invocado pelo avalista para se desvincular que não pode ficar obrigado sem prazo e indefinidamente no tempo. Após o preenchimento, a obrigação do avalista já deixou de ser sem prazo. Antes do preenchimento, o avalista só pode invocar a incerteza do tempo de duração da vinculação se assim o tiver estipulado com o portador. Se o convencionar com o portador, pode opor-lhe esta convenção em relação a responsabilidades que emerjam da relação subjacente após esse limite temporal.”. Acontece que, como se disse atrás, o preenchimento abusivo – preenchimento abusivo stricto sensu – decorre da violação do convencionado entre as partes, maxime do pacto de preenchimento. Outrossim o preenchimento abusivo deve ser alegado/ caracterizado pelo embargante / recorrente uma vez que é ele o obrigado cambiário, portanto o sujeito a quem a excepção de preenchimento abusivo aproveita (cfr. artigo 342.º, n.º 2, do CC)[51]. Irrelevante a menção conclusiva nos embargos ao preenchimento abusivo nessa parte… É que não se reconduziu, como se impunha, aos termos dos pactos de preenchimento juntos à petição executiva… Ora aqueles, já mencionados, apenas exigem o incumprimento da obrigação do avalizado, estabelecendo-se em todos os três pactos que a data de vencimento será fixada pela credora, em caso de incumprimento pela devedora da obrigação assumida, quando decidir preencher o título. A fórmula inserida no pacto de preenchimento não deixa grandes dúvidas quanto à total liberdade atribuída ao portador da livrança… Sempre não vem alegado pelos embargantes que a vontade (real ou hipotética) dos intervenientes era no sentido da fixação da data de vencimento da obrigação cartular em função da data de incumprimento da obrigação subjacente. Ora, nem por via de interpretação (cfr., sobretudo, artigos 236.º a 238.º do CC) nem por via de integração (cfr. artigo 239.º do CC) se consegue identificar uma tal vontade quanto à data de vencimento da obrigação cartular. Adiante-se: a lei não estabelece um prazo-limite para a data a inscrever na livrança em branco como data de vencimento da obrigação cartular. A jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal vai no sentido de que, não se apurando que a vontade dos intervenientes tenha ou tivesse sido a de estabelecer condicionamentos à data de vencimento e, não sendo estes impostos pela boa fé (cfr. artigo 762.º, n.º 2, do CC), o portador da livrança em branco é livre de a preencher com a data que considerar conveniente. Vejam-se, por exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5.12.1991 (Proc. 080851); de 20.10.2015 (Proc. 60/10.6TBMTS.P1.S1); de 4.07.2019 (Proc. 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1). Quanto à boa fé, convoca-se o Acórdão do mesmo STJ de 19.10.2017 (Proc. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1), no qual se decidiu, “IV. O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole, com a sua conduta, os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. V. O simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende. VI. O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos mais de doze anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de sete anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a instauração da ação executiva contra a avalista desta sociedade, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no artigo 334º do Código Civil, na modalidade de "venire contra factum proprium". Na doutrina portuguesa defendem a existência de um limite temporal para o preenchimento da livrança – um momento que define a data a inscrever na livrança ou, pelo menos, determina o início de um prazo razoável para a data a inscrever na livrança, Carolina Cunha, Manual de letras e livranças, cit., pp. 205-206 e ainda Heinrich Ewald Hörster / Maria Emília Teixeira, Aval e prescrição, Revista de Direito Comercial, 2022, p. 204 (https://www.revistadedireitocomercial.com/aval-e-prescricao).[52] Consolidada na jurisprudência do Supremo Tribunal a tese oposta, como muito bem observado no Acórdão daquele mesmo Tribunal de 21.04.2022 (processo 3941/20.5T8STB-A.E1.S1), que vimos seguindo de perto. Não vem alegado, novamente, nos embargos qualquer circunstancialismo que configure um abuso do direito (cfr. artigo 334.º do CC), na modalidade de venire contra factum proprium ou de suppressio, a justificar o apelo à boa fé. Ora, o facto de o recorrido não ter exercido o direito imediatamente a seguir ao incumprimento da obrigação pela avalizada não é só por si apto a criar nos recorrentes, nada vindo alegado quanto às circunstâncias que rodearam essa inacção (ressalvada a insolvência da avalizada, que justifica até o lapso de tempo decorrido, como anotado na decisão recorrida), a confiança que o mesmo já não viria a ser exercido e de que por essa razão o seu exercício agora não seja admissível. Cumpre salientar ainda que ao menos o embargante / recorrente, na qualidade de avalista da sociedade subscritora, interveio pessoalmente não só no negócio que está na origem da livrança em branco como na criação da livrança e do respectivo pacto de preenchimento. O destaque justifica-se para afastar a possibilidade de se dizer que ele estava sujeito a uma vinculação indeterminada por força do aval dado à subscritora. Enquanto avalista (e ainda gerente, legal representante) da subscritora, o embargante / recorrente detinha uma posição privilegiada quanto ao conhecimento e teve a possibilidade de acompanhar de perto o desenrolar dos acontecimentos. Ele tinha, inclusivamente, o poder de se desvincular, se quisesse, cumprindo voluntariamente a obrigação que sobre ele impendia e que, ele bem sabia, mantendo-se o aval prestado, podia ser-lhe exigida a qualquer momento. É admissível, aliás, equacionar-se a hipótese de que a postergação do preenchimento da livrança relativamente à insolvência da sociedade subscritora tenha surgido apenas por terem fracassado as tentativas de o portador da livrança resolver de forma mais consensual a situação, portanto, tenha sido em benefício do recorrente e dos outros avalistas, como novamente anota a decisão recorrida. Inexistindo preenchimento abusivo, obviamente que não se acha prescrita a obrigação cartular. Acontece que, admitindo que os avalistas possam invocar a prescrição da obrigação da devedora resultante dos contratos garantidos pelas livranças, o certo é que o ónus de alegação dos factos integradores da prescrição cabia aos embargantes[53]. Ora, a este respeito, a alegação dos embargantes não permite considerar verificada a prescrição, antes pelo contrário, isto mesmo que, por facilidade de raciocínio, se admitisse que o prazo de prescrição associado aos três créditos (que, na verdade, são distintos) era de 5 anos, como pretendem os embargantes. Na verdade, o início do prazo de prescrição nunca se verificaria na data da celebração dos contratos, pois, evidentemente, apenas na data de algum incumprimento tal seria despoletado. Assim sendo, como exemplar e apoditicamente se aduz na decisão recorrida: “o facto de os contratos terem sido celebrados em 2015 ou 2018 é irrelevante e a verdade é que os embargantes não alegam que os créditos reclamados se tenham vencido mais de 5 anos antes face à interrupção da prescrição associada à presente execução[54] (5º dia subsequente à interposição, nos termos do art. 323.º, n.º 2, do NCPC), sendo que, em qualquer caso, haveria que contabilizar-se ainda os períodos de suspensão da prescrição decorrentes do regime excecional associado à pandemia da Covid-19 (entre 09.03.2020 e 02.06.2020 e entre 22.01.2021 e 05.04.2021, por força da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03 e das suas sucessivas alterações, até à Lei n.º 13-B/2021, de 05.04). Acresce que, compulsando a própria alegação dos embargantes, estes invocam, por um lado, um facto suspensivo da prescrição associado ao processo de insolvência da sociedade devedora, na sequência do processo de insolvência da mesma e durante todo o decurso do processo (cfr. art. 100.º do CIRE); e, por outro lado, invocam ainda facto determinante da aplicação do prazo ordinário de 20 anos de prescrição aos créditos dos contratos subjacentes às livranças exequendas, nos termos do art. 311.º, n.º 1, do CC, ao, como dizem os embargantes, tais créditos terem sido reconhecidos no processo de insolvência.” Improcedente e manifestamente, pois, a arguida prescrição. * Impõe-se, assim, conforme decidiu o tribunal a quo, indeferir os embargos liminarmente, por manifesta improcedência das exceções invocadas (artº 732º, nº 1, c) do C.P.C.)
III. Termos, pois, em que, perante o que se deixou exposto, se nega provimento à apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelos Recorrentes. Notifique.
Porto, 07 de Novembro de 2024 Isabel Peixoto Pereira Maria Machado António Carneiro da Silva ___________________________________ |