Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3450/23.0T8PRT-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
EFEITO COMINATÓRIO
COMPENSAÇÃO ENTRE EX-CÔNJUGES
ATUALIZAÇÃO DO VALOR DA DÍVIDA
Nº do Documento: RP202510093450/23.0T8PRT-F.P1
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O efeito cominatório da falta de reclamação contra a relação de bens (ou a sua apresentação restrita) não é a procedência automática da pretensão do apresentante da reclamação, mas sim que os factos não impugnados se consideram confessados e o tribunal avaliará a questão de direito de acordo com os factos provados... E que também cm sede de processo comum a eficiência do cominatório se restringe aos factos, que nunca ao respetivo enquadramento jurídico.
II - O pagamento pelo cabeça-de-casal com dinheiro próprio do preço de um bem que integrou a comunhão gera a seu favor um crédito sobre o património comum, a possibilitar a compensação de patrimónios, que não uma dívida entre cônjuges, ainda que esse pagamento tenha tido lugar antes do casamento.
III - Os valores a considerar para efeitos de compensação pelo pagamento de dívidas do casal devem ser atualizados, com recurso, indiretamente, ao art. 2109.°, n.° 3, ou, diretamente, ao art. 551.°. do Código Civil .
IV - Não estando em causa dívidas que se relacionem ao património comum, mas uma dívida dos ex-cônjuges entre si, elas não devem ser relacionadas no inventário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 3450/23.0T8PRT-F.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo de Família e Menores do Porto - Juiz 1

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1ª Adjunta: Maria Manuela Barroco Esteves Machado

2ºAdjunto: João Maria Venade

I.

AA instaurou processo de inventário para pôr termo à comunhão de bens do casal que formou com a Recorrida, na sequência da dissolução do seu casamento, celebrado em 24 de fevereiro de 2001, sob o regime da comunhão de adquiridos, por divórcio, decretado em 10 de maio de 2023.

Com o requerimento inicial o ora Recorrente, na qualidade de Cabeça de Casal, juntou a Relação de Bens.

Aquando da apresentação da Relação de Bens, o Recorrente, Cabeça de Casal fez escrever as verbas n° 1, 2 e 3 com o seguinte teor:

PASSIVO

VERBA Nº 1

Débito do património comum para com o Cabeça de Casal proveniente do pagamento com dinheiro próprio da primeira prestação do preço da verba n° 13 em 22 de janeiro de 2000, com a celebração do contrato de cedência de posição contratual, no valor de cento e catorze mil seiscentos e setenta euros e oitenta e quatro cêntimos, (doc n° 1 e 1A) valor que atualizado à data de dezembro de 2022 (coeficiente 1,538 doc n° 2) ascende a cento e setenta e seis mil trezentos e setenta e seis euros e quarenta e quatro cêntimos, acrescido de juros de mora contados desta data, à taxa legal até integral pagamento --176.376,44 €

VERBA N° 2

Debito do património comum para com o Cabeça de Casal proveniente do pagamento com dinheiro próprio de três prestações do preço da verba n° 13 abril, junho e outubro de 2000 no valor de quarenta e quatro mil quatrocentos e oitenta e dois euros e quarenta sentimos, valor que atualizado a data de dezembro de 2022 (coeficiente 1,538 doc n° 3) ascende a sessenta e oito mil quatrocentos e dezanove euros e trinta e três cêntimos, acrescido de juros de mora contados desta data, a taxa legal ate integral pagamento --68.419,33€

VERBA N° 3

Debito do património comum para com o Cabeça de Casal proveniente do pagamento com dinheiro próprio de reforço de sinal do preço da verba n° 13 em 06 de fevereiro de 2001 no valor de noventa e dois mil cento e setenta e sete euros e oitenta e cinco sentimos (doc n° 4), valor que atualizado a data de dezembro de 2022 (coeficiente 1,473 doc n° 5) ascende a cento e trinta e cinco mil oitocentos e quarenta e quatro euros e trinta e dois cêntimos, acrescido de juros de mora contados desta data, a taxa legal ate integral pagamento--135.844,32€.

No final destas verbas foi acrescentada a seguinte nota: a escritura de compra e venda deste imóvel foi celebrada em 24.01.2002, após a celebração do casamento que ocorreu em 24.02.2001, tendo sido pago apenas o remanescente de 5% do preço nessa ocasião, no valor de 13.168,26€, como resulta da cópia da escritura de compra e venda (doc n° 6).

A Requerida apresentou Reclamação contra a Relação de Bens em 23.11.2023 REF8: 47228563, tendo nela contestado algumas das verbas do activo e do passivo que foi relacionado e indicou bens que considerava estarem em falta.

O requerente respondeu, pugnando pela exatidão da Relação de Bens apresentada e contestando, fundamentadamente, a alegada falta de relacionamento de bens apontada pela Recorrida.

Em sede de tentativa de conciliação, as partes acordaram parcialmente quanto aos termos da Relação de bens, nos termos que dos autos resultam.

Em 23.01.2025 foi apresentada pelo requerente uma Relação Adicional de Bens, constando de oito verbas de passivo supervenientes, relativo a pagamento de impostos e seguros dos imóveis, bem como seguro da viatura, bens estes constantes da Relação de Bens, reconduzindo-se ao pagamento destas despesas comuns após o decretamento do divórcio com dinheiros próprios.

Produzida a prova quanto aos bens a relacionar, a Mma Juiz proferiu despacho de saneamento, nos seguintes termos:

No caso dos autos, as verbas de passivo indicadas com os n° 1, 2 e 3 referem-se a montantes que, em data anterior ao casamento e para aquisição de bem que veio a ser comum do casal (porque adquirido posteriormente) foram pagos pelo cabeça de casal e portanto com valores que se presumem apenas seus (ainda não havia património comum pois o casamento ainda não tinha sido celebrado). Sendo o bem em causa (imóvel que constitui a verba n° 13) comum do casal, sempre caberia ao cabeça de casal proceder a metade do pagamento. Assim, o que está em causa nas verbas indicadas como 1, 2 e 3 do passivo é uma dívida da interessada BB perante o cabeça de casal no valor correspondente a metade do que por este foi pago. Tendo o cabeça de casal procedido ao pagamento (antes do casamento) do valor total de 251.331,09€ (sendo 114.670,84€ da verba 1; 44.482,40€ da verba 2 e 92.177,85€ da verba 3) para pagamento do imóvel que veio a ser comum do casal, deve-lhe a interessada BB metade de tal montante, ou seja 125.665,54€ (não havendo juros a considerar).

Mais adiante e decidindo:

As verbas relacionadas como 1 2 e 3 do passivo devem ser retificadas e passar a constar uma única verba nos seguintes termos: "Dívida da interessada BB ao cabeça de casal, referente a metade dos valores pagos por este antes do casamento para aquisição do imóvel relacionado como verba 13 do ativo - no montante de 125.665,54€".

Naquele despacho nada se disse quanto às verbas/passivo relacionadas no Aditamento à relação de Bens apresentado pelo Recorrente em 23.01.2025, que não foi objeto de reclamação.

É dele que vem interposto o presente recurso mediante as seguintes Conclusões:

a) o presente recurso prende-se com duas questões essenciais que considera o Recorrente não terem sido corretamente decididas no douto despacho de saneamento do processo:

a. No tocante as verbas n° 1 2 e 3 do passivo que considera serem dívidas da interessada BB ao Cabeça de casal ao invés de serem dívidas do património comum do casal e não considerada a actualização do seu valor, considerando não ser devida remuneração ou actualização do capital devido;

b. O mesmo despacho não atende, antes ignora, o Aditamento à Relação de Bens apresentado pelo Recorrente em 23.01.2025, com passivo superveniente, que não foi sequer objeto de reclamação.

b) Entende o Recorrente que se trata de uma dívida do património comum do casal para com o Cabeça de Casal e não de uma divida da Recorrida BB para com este, uma vez que se trata de quantias, nas três verbas (n° 1, 2 e 3) que constituem direitos de crédito do Cabeça de Casal provenientes do pagamento com dinheiro próprio antes do casamento que ocorreu em 24 de fevereiro de 2001, de grande parte do preço do imóvel do casal constante da verba n° 12.

c) Temos assim que há um bem imóvel que ficou pertença do casal, cujo preço foi na quase totalidade, (251.328,09 €) em (263.365.29 €) documentadamente pago exclusivamente pelo Cabeça de Casal, antes do casamento, pelo que não podem restar dúvidas de que se trata de uma dívida que é da responsabilidade de ambos os cônjuges e pela qual respondem os bens comuns do casal, em primeiro lugar e antes de qualquer outra como impõe o art. 1689° n° 2 do C. Civil.

d) As dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges são aquelas que, independentemente do regime de bens adotado, obrigam ambos os membros do casal ao seu pagamento encontram-se descritas no art. 691 n° 1 do C. Civil.

e) Esta formulação foi expressamente aceite pela Recorrida, que na sua reclamação contra a Relação de Bens, não foi levantada qualquer dúvida ou questão a respeito da forma como ficaram relacionadas estas três verbas e o seu valor, o que sempre relevaria para efeitos do disposto no art. 1691° n° 1 a) do mesmo diploma, uma vez que estava assente que se trata de uma dívida da responsabilidade comum do casal, sempre assumida par ambos com o consentimento, ao menos tácito da Recorrida (art. 217°, n.0 1 do C.Civil).

f) Pelo que, data venia, não poderia o Tribunal alterar a configuração e classificação que lhe foi dada pelo Cabeça de Casal e ao mesmo tempo credor, no sentido de classificar estas três verbas do passivo como "Débitos do património comum para com o Cabeça de Casal", passando a considerá-las aglutinadas numa só verba, coma dívida da interessada BB ao Cabeça de Casal, a serem tidas em conta na partilha, nos termos previstos no n° 3 do art. 1689° do C. Civil, decisão que deve ser alterada no sentido de ser substituída por outra que mantenha a formulação dada na Relação de Bens apresentada pelo Recorrente em cada uma das referidas verbas, que não mereceu qualquer oposição da Recorrida.

g) Conforme resulta dos autos, através dos documentos n° 1 a 6 juntos com a Relação de Bens, trata-se de um pagamento efetuado pelo Recorrente, antes do casamento, da quantia de que permitiu que o património do casal ficasse valorizado com a aquisição de um bem imóvel pelo preço então de 263.365.29 € despendendo apenas a quantia de 13.168,26€.

h) Com um investimento efetuado nos anos de 2000/2001 com capital exclusivamente do Recorrente, o casal viu o seu património, muitíssimo valorizado, por passar a dispor de um bem imóvel, de cujo preço apenas pagou menos de 5% e que teve uma valorização de, pelo menos 200 % ou mais, pelo que verifica-se um verdadeiro enriquecimento do património comum, à custa do património próprio do cônjuge ora Cabeça de Casal, na medida da valorização do preço de mercado do imóvel, ou quando menos, da frutificação que o capital.

i) O Recorrente, na qualidade de credor, ao elaborar a Relação de Bens que apresentou em juízo, considerou justamente a valorização do capital que o património comum lhe deve, nos termos em que o fez, através da aplicação do coeficiente de actualização do INE, considerado o índice de preços no consumidor (Media anual), desde a data da entrega do capital até dezembro de 2022, ano em que foi decretado o divórcio, valor a que deverão acrescer juros de mora à taxa legal até integral pagamento.

j) Ainda que assim não se entendesse, o que não se concede, sempre seria aplicável o regime do Instituto do Enriquecimento Sem Causa que permitiria atualizar o capital entregue pelo credor, conforme se estabelece no art. 473° do C. Civil que prevê expressamente que "Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou", definindo o art. 479° do C. Civil a medida da restituição.

k) Mais uma vez, consultando a reclamação contra a Relação de Bens apresentada pela Recorrida, não foi suscitada qualquer oposição ou contestação à pretensão do Cabeça de Casal, ao mesmo tempo credor, devendo ter-se a formulação de cada uma das verbas n° 1, 2 e 3 como fixada, uma vez que na tramitação da Reclamação contra a Relação de Bens e sua resposta, prevista no art. 1105° n° 1 a 3 do CPC, devem ser observadas as regras do Processo Civil no tocante à especificação daquilo que se contesta ou contradiz, o que, manifestamente a Reclamante não fez e a Mma Juiz a quo não respeitou.

I) A Reclamação contra a Relação de Bens segue o regime da contestação previsto nos art. 573° e 574° do CPC de modo a que, nessa peça, deve ser apresentada toda a defesa e deve o Reclamante tomar posição definida perante toda a matéria invocada pela contraparte, considerando-se admitida por acordo toda a matéria que não for impugnada.

m) "Relativamente à Relação de bens, o efeito cominatório da falta de reclamação contra

a mesma ou da apresentação de uma reclamação restrita (o interessado só impugna algumas verbas daquela relação ou alega a existência de bens ou dívidas não relacionados) e o que decorre do regime contido, para o processo declarativo comum, nos artigos 566° e 567°, n° 1, do CPC, para a situação de revelia, e no artigo 574°, n° 1, para o incumprimento do ónus de impugnação, sem prejuízo do disposto no n° 1 do artigo 1106° quanto ao reconhecimento do passivo. E um efeito cominatório semipleno: no caso de revelia, consideram-se confessados os factos alegados na relação de bens (art. 567°, n° 1) e, no caso de falta de impugnação, admitidos por acordo os factos que não hajam sido objeto dessa impugnação (art. 574°, n° 1), com as excepções à produção de tal efeito estabelecidas nos artigos 568° e 574°, n°s 2 a 4." - Ac RG de 23.03.2023 no processo 392/21.STSVLN.Gl citado no texto das alegacões.

n) Isto equivale a dizer que, ainda que não fosse de considerar a actualização do capital de que é credor, alegada pelo Cabeça de Casal na Relação de Bens, o que se admite apenas como mero exercício de raciocínio, a verdade é que o Tribunal a quo, tendo em conta o efeito da falta de contestação de tal matéria, não podia deixar de considerar as verbas n° 1, 2 e 3 nos precisos termos constantes da Relação de Bens que foi apresentada e não foram objeto de qualquer impugnação na Reclamação contra a Relação de Bens apresentada pela contraparte, que assim se considerou como assente por aceite, tendo em conta o efeito cominatório do disposto no art. 574° n° 1 e 2 do CPC, pelo que deve ser substituída por outra que confirme a Relação de Bens nos precisos termos apresentados pelo Cabeça de Casal quanto às verbas n° 1, 2 e 3 do Passivo.

o) O Recorrente apresentou uma Relação Adicional de Bens, onde fez incluir oito verbas de passivo relativo a pagamento de impostos e seguros dos imóveis, bem como seguro da viatura, tudo despesas do património comum relativas a bens constantes da Relação de Bens, supervenientes, que assegurou sempre com dinheiros próprios, porque, após o decretamento do divórcio em 10 de maio de 2023 e depois de ter dado entrada o processo de inventário em 22.09.2023, conforme justificou no respetivo articulado.

p) A Recorrida não apresentou qualquer resposta ou reclamação contra essa Relação Adicional de Bens, como devia se com ela não concordasse, da qual foi notificada no mesmo dia em que a mesma deu entrada em juízo, valendo também aqui tudo aquilo que ficou dito a respeito da falta de reclamação contra este aditamento da Relação de Bens a respeito da Relação de Bens, cujo conteúdo se tem aqui por integrado por razões de economia processual.

q) A Mma Juiz a quo ignorou esse documento e não o despachou nem muito menos o considerou no despacho de saneamento do processo que proferiu em 08.04.2025, quando competia ao Tribunal fixar esta questão suscetível de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, pelo que deve, também nesta sede, ser substituído por outro que admita a inclusão destas verbas do passivo na Relação de Bens a considerar a final.

Conclui pedindo seja revogado o despacho de saneamento do processo, sendo substituído por outro, a proferir, mediante a admissão das verbas n° 1, 2 e 3 do passivo nos precisos termos em que foram relacionadas pelo Recorrente, quer quanto à admissão do aditamento à Relação de Bens com passivo superveniente…

Não foram apresentadas contra-alegações.

Demarcadas pelas conclusões das alegações, são as seguintes as questões a tratar:
1. Da nulidade da decisão por omissão de pronúncia quanto aos termos da Reclamação Adicional de bens, da possibilidade do seu suprimento por este Tribunal e dos termos desta;
2. Do efeito cominatório da falta de reclamação ao modo ou termos do relacionamento de um crédito/dívida e, por via da resposta negativa à pretensão de consideração qua tale da reclamação em todos e cada um dos seus pressupostos;
3. Da natureza do (s) crédito(s) do Recorrente e do responsável pelo seu pagamento, como da exigibilidade e termos da actualização do crédito e, assim, do erro de juízo da decisão recorrida.

II.
1. Desde logo, muito embora não se lhe tendo referido como tal, com o que não conhecida pelo Tribunal Recorrido, como podia tê-lo sido, em causa com a arguição da falta de decisão quanto aos termos da Relação de Bens Adicional apresentada a invocação da nulidade da decisão por omissão de pronúncia.

Tal como se refere em aresto da Relação de Lisboa, de 24-03-2022, proferido no âmbito do processo nº 7960/14.2T8LSB-A.L1-2, Relator Carlos Castelo Branco, acessível em www.dgsi.pt: « I) A nulidade por omissão de pronúncia (cfr. artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC) apenas terá lugar quando existir, por parte do julgador, o dever de pronúncia ou de decisão, em conformidade com o prescrito no artigo 608.º, n.º 2, do CPC.».

Tem-se como sendo esse o caso.

Pese embora, efectivamente, a produção da prova que precedeu a decisão o tenha sido com referência à Relação de bens inicial e primeiramente apresentada, como resulta da parte final do despacho respectivo, houve-se aquela sede como a da decisão completa e definitiva sobre os bens e dívidas/créditos a partilhar (sem prejuízo agora das remissões para os meios comuns), na medida da determinação do prosseguimento da tramitação mediante a forma à partilha, com o que era aquele despacho/decisão o lugar/sede e momento próprios para a decisão quanto à pertinência e termos da Relação Adicional também apresentada. É o que impõem as disposições conjugadas dos artigos 1110º, n.º 1, al. a) e 1106º, 1, ambos do CPC.

Assim, nesse aspecto verifica-se a arguida omissão de pronúncia. Neste sentido, aliás, aponta aresto da Relação de Coimbra, de 08-07-2021, proferido no âmbito do processo nº 5281/19.3T8VIS.C1, Nº Convencional, JTRC, Relator Moreira do Carmo, acessível em www.dgsi.pt, que, na parte para aqui relevante, logrou o seguinte sumário: «1. Uma coisa é a nulidade processual, por ex. a omissão de um acto que a lei prescreva, relacionada com um acto de sequência processual, e por isso um vício atinente à sua existência, outra bem diferente é uma nulidade da sentença ou despacho, e por isso um vício do conteúdo do acto, por ex. a omissão de pronúncia, um vício referente aos limites. 2. Se o tribunal omite o conhecimento de um requerimento probatório da parte estamos não perante uma nulidade processual mas, sim, face a um típico caso de omissão de pronúncia da decisão recorrida.» Como bem anota Fernando Amâncio Ferreira « a distinção entre nulidades de processo e nulidades de sentença consiste fundamentalmente no seguinte: enquanto as primeiras se identificam com quaisquer desvios ao formalismo processual prescrito na lei, quer por se praticar um acto proibido, quer por se omitir um acto prescrito na lei, quer por se realizar um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido, as segundas resultam da violação da lei processual por parte do juiz ao proferir alguma decisão, situando-se no âmbito restrito da elaboração de decisões judiciais desde que essa violação preencha um dos casos contemplados no nº 1º do artigo 668º » – Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Almedina, pág 51/52.

Uma vez que se verifica, nos termos que acabam de sufragar-se, a arguida omissão de pronúncia em correspondência à Relação Adicional de bens, cumpre aqui, ao abrigo do disposto no artigo 665º do CPC15, conhecê-la, rectius, supri-la, porquanto dispondo este Tribunal de todos os elementos necessários para a decisão, evidenciando-se outrossim a desnecessidade de ouvir as partes sobre a questão, quer quando se atente na notificação à interessada da relação de bens adicional, sem reclamação, ainda que com os efeitos que se elucidarão sob a questão seguinte a apreciar e, decisivamente, aos termos dos documentos juntos com aquela reclamação adicional, quer quando se pondere que a parte contrária teve oportunidade já de se pronunciar em sede de resposta ao recurso, com o que redundante e despiciendo um renovado contraditório.

Como se adiantou, na medida em que não deixa de convocar o Recorrente a eficiência do cominatório, por ausência de reclamação pela interessada/requerida, quanto aos termos da Relação Adicional versada, no que interessa já não apenas ao valor/montante da dívida e ao titular do crédito, mas ainda à natureza da dívida, conhecer-se à da questão omitida após o desenvolvimento do problema da determinação do conteúdo do cominatório semipleno reconhecidamente correspondente à ausência de reclamação à Relação de bens, por ser susceptível de implicação.


2.

Como proficientemente se discorreu no Acórdão desta Relação de 08.04.2024, no Processo 6305/12.0TBMAI-B.P1, acessível na base de dados da dgsi, tendo presente que no caso dos autos se está perante um inventário para separação de bens, sendo-lhe aplicável, vista a data da sua instauração, o regime jurídico resultante do Código de Processo Civil, com a redacção que decorre da Lei nº 117/2019, de 13/09, donde é-lhe aplicável o regime do processo especial de inventário consequente a divórcio sendo que este, por via do artigo 1084º, número 2 do CPC, é regulado pelas normas que regulam o inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária e que, por sua vez, o artigo 549º do mesmo diploma, manda aplicar as regras de processo comum a todos os processos especiais no que neles não esteja prevenido: « Convocadas as normas legais cuja interpretação deve ser feita com vista a decidir a questão enunciada, há, ainda, que recordar que no anterior regime do processo especial de inventário a regra quanto à tramitação da reclamação à relação de bens era diversa da que foi introduzida pela Lei 117/2019 de 13 de setembro. Previa o artigo 35º da Lei 23/2013 de 5 de março que: “1 - Quando seja deduzida reclamação contra a relação de bens, é o cabeça de casal notificado para, no prazo de 10 dias, relacionar os bens em falta ou dizer o que lhe oferecer sobre a matéria da reclamação. 2 - Se confessar a existência dos bens cuja falta foi invocada, o cabeça de casal procede imediatamente, ou no prazo que lhe for concedido, ao aditamento da relação de bens inicialmente apresentada, notificando-se os restantes interessados da modificação efetuada. 3 - Não se verificando a situação prevista no número anterior, são notificados os restantes interessados com legitimidade para se pronunciarem, no prazo de 15 dias, aplicando-se o disposto no n.º 2 do artigo 31.º e decidindo o notário da existência de bens e da pertinência da sua relacionação, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.”

O regime legal instituído pela Lei 117/2019 de 13 de setembro passou a consagrar no processo especial de inventário uma fase de saneamento, em que o juiz deve resolver todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar (cfr. artigo 1110º, número 1 a) do Código de Processo Civil). Nem por isso, todavia, se pode afirmar que a reclamação à relação de bens tenha deixado de ser um incidente do processo especial de inventário, muito embora a respetiva decisão seja proferida em sede de saneamento do processo, em conjunto com as demais elencadas no artigo 1104º e todas as que são “suscetíveis de influir na partilha”, como consta da redação do artigo 1110º, número 1 do Código de Processo Civil.[1]

Sendo importante elemento da hermenêutica legal a reconstituição do pensamento do legislador, será útil, no cumprimento desse desiderato previsto no artigo 9º, número 1 do Código Civil, ter presente o que o referido legislador deixou expresso na exposição de motivos da proposta de lei 202/XIII que veio a dar lugar à atual redação legal do processo especial de inventário.

Ora, ali se pode ler, no que aqui releva, que: “A transferência da competência quanto ao tratamento dos processos de inventário para os cartórios notariais, instrumentalizada através da Lei n.º 23/2013, de 5 de março, que aprovou o regime jurídico do processo de inventário, teve por finalidades agilizar aquele tratamento e descongestionar o sistema judicial. A implementação desta solução, além de nunca ter obtido o consenso da comunidade jurídica e dos operadores judiciários e não judiciários, enfrentou desafios inultrapassáveis (…) pela constatação de tempos desrazoáveis de resolução, com prejuízos, tanto para a situação jurídica dos cidadãos, como para o interesse coletivo (…) Para a superação destes constrangimentos, considera-se adequado, por assegurar a concordância prática de todos os interesses em presença, o estabelecimento de um princípio de competência concorrente, permitindo ao utente do serviço de justiça, em regra, a opção pelo recurso ao tribunal ou ao cartório notarial, conforme o juízo que faça, no caso concreto, sobre a qualidade, a eficiência e celeridade daquele serviço prestado pelo juiz ou pelo notário. (…) O processo de inventário judicial é recodificado no Código de Processo Civil, com o mínimo de perturbação para a sua sistemática. A tramitação do processo – que é largamente simplificada, à luz dos princípios orientadores da celeridade do procedimento e da equidade da partilha – obedece ao princípio da unidade, sendo essencialmente homótropa, quer o inventário corra perante o juiz ou perante o notário (…). (sublinhado nosso).

Um dos responsáveis pelo texto da nova Lei, Pinheiro Torres[2] salienta que mesmo o anterior regime legal do processo especial de inventário (o previsto no Código de Processo Civil de 1961), tinha uma “tramitação excessivamente “sinuosa” (ou pouco linear)”. Segundo o mesmo Autor, a explicação para o fenómeno, que comportava inúmeras oportunidades de entorpecimento do seu andamento, decorria “(…) da inexistência generalizada de preclusões, que tornavam o processo, a todo o tempo, permeável a incidentes e ao surgimento de “velhas” questões, como se de novas questões se tratasse. Impôs-se, assim, ponderar a necessidade de alterar o paradigma do processo, tornando-o uma verdadeira acção, valorizando os articulados, cometendo a sua direcção mais efectiva ao Juiz, reforçando a responsabilidade das partes na prática dos actos processuais[3].

Esta intenção de fazer cessar a “inexistência geral de preclusões”, assim explicada por um dos autores do novo texto, encontra-se claramente expressa nas normas legais do processo especial de inventário acima transcritas e na sua relação com as normas de processo comum, subsidiariamente aplicáveis.

São vários os autores que defendem a existência de um efeito cominatório a retirar da falta de resposta à reclamação à relação de bens, bem como, na mesma linha, os que afirmam a preclusão do direito dos interessados de reclamar da mesma, no prazo legalmente previsto.

Neste sentido podem citar-se:

- Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[4] que afirmam que “A não ser que a lei disponha de modo diverso, por aplicação supletiva das regras gerais, a falta de oposição determina a aplicação do efeito cominatório semipleno, nos termos da conjugação dos artigos 549º, número 1 e 574º.”;

- Lopes do Rego[5] que defende que: “(…) do regime estabelecido no art. 1104.º CPC decorre obviamente um princípio de concentração no momento da oposição de todas as impugnações, reclamações e meios de defesa que os citados entendam dever deduzir perante a abertura da sucessão e os elementos adquiridos na fase inicial do processo, em consequência do conteúdo da petição de inventário, eventualmente complementada pelas declarações de cabeça de casal; e isto quer tais impugnações respeitem à tradicional oposição ao inventário e à impugnação da legitimidade dos citados ou da competência do cabeça de casal, quer quanto às reclamações contra a relação de bens e à impugnação dos créditos e dívidas da herança (instituindo-se aqui explicitamente um efeito cominatório, conduzindo a revelia ao reconhecimento das dívidas não impugnadas, salvo se se verificarem as circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 574.º CPC). Ou seja, adota-se, na fase de oposição, um princípio de concentração na invocação de todos os meios de defesa idêntico ao que vigora no art. 573.º do CPC: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, ativo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes(…)”;

- Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres[6] afirmam, ainda, que: “importa salientar que, no novo regime do inventário, foi introduzido um ónus de contestação do requerimento inicial (arts. 1104.º e 1106.º) e um ónus de resposta à contestação (art. 1105.º, n.º 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta ao requerimento inicial ou à oposição, a aceitação dos termos desse requerimento inicial ou dessa oposição. Passa, assim, a vigorar um verdadeiro sistema de preclusões, até agora inexistente, no processo de inventário (…) em regra – nada se prevendo sobre esta matéria no âmbito do processo de inventário, com exceção do que se estabelece para o reconhecimento do passivo (art. 1106.º, n.º 1) – vigora o efeito cominatório semipleno, considerando-se, no caso de revelia, confessados os factos alegados no requerimento de inventário (art. 567.º, n.º 1) e, no caso de falta de impugnação, admitidos por acordo os factos que não hajam sido objeto dessa impugnação (art. 574.º, n.º 1)”.

Também a jurisprudência tem vindo a afirmar as consequências, respetivamente preclusiva e cominatória semiplena, da falta de oposição à relação de bens e da falta de resposta a tal reclamação, respetivamente.

Neste sentido encontram-se nomeadamente os seguintes Acórdãos (no que ao nosso caso importa):

- do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2023[7];

- do Tribunal da Relação de Guimarães de 23-03-2023[8] em cujo sumário se pode ler: “Relativamente à relação de bens, o efeito cominatório da falta de reclamação contra a mesma ou da apresentação de uma reclamação restrita (o interessado só impugna algumas verbas daquela relação ou alega a existência de bens ou dívidas não relacionados) é o que decorre do regime contido, para o processo declarativo comum, nos artigos 566º e 567º, nº 1, do CPC, para a situação de revelia, e no artigo 574º, nº 1, para o incumprimento do ónus de impugnação, sem prejuízo do disposto no nº 1 do artigo 1106º quanto ao reconhecimento do passivo. É um efeito cominatório semipleno: no caso de revelia, consideram-se confessados os factos alegados na relação de bens (art. 567º, nº 1) e, no caso de falta de impugnação, admitidos por acordo os factos que não hajam sido objeto dessa impugnação (art. 574º, nº 1), com as exceções à produção de tal efeito estabelecidas nos artigos 568º e 574º, nºs 2 a 4. A falta de resposta à reclamação contra a relação de bens produz o efeito estabelecido no artigo 574º, por aplicação do disposto no artigo 587º, nº 1, ambos do CPC. Há um ónus de resposta à reclamação (art. 1105º, nº 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta, a aceitação dos termos dessa reclamação, sempre com a ressalva relativa ao reconhecimento do passivo (art. 1106º, nº 1, do CPC) e das exceções previstas nos artigos 568º e 574º, nºs 2 a 4.”;

- da Relação de Lisboa de 09-02-2023[9] em que se conclui: “Não se descortina qualquer razão plausível ou ponderosa que justifique, para o processo de inventário, o afastamento do efeito cominatório estabelecido no Código de Processo Civil para os processos e incidentes em geral, pelo que, por aplicação das regras supletivas, a falta de impugnação determina a aplicação do efeito cominatório semipleno, nos termos conjugados dos artigos 549º nº 1 e 574º do Código de Processo Civil.” (…)

Concordamos com a citada doutrina e jurisprudência, no seguimento da análise que cima se fez das actuais normas reguladoras do processo especial de inventário, da sua comparação com os regimes legais anteriores e do propósito anunciado pelo legislador com reforma do seu regime legal, em 2019.

Dúvidas não há que - não estando afastado por qualquer forma tal efeito nem havendo qualquer razão para o afastar -, se deve aplicar ao inventário o princípio geral que resulta do processo comum. Ora, neste está previsto o efeito cominatório (semipleno) da falta de impugnação, na contestação, dos factos alegados na petição inicial (artigo 574º, número 2 do Código de Processo Civil), igual efeito tendo a falta de impugnação pelo autor dos novos factos alegados pelo réu na contestação.

Assim, é de concluir que deve extrair-se da falta de reclamação à relação de bens efeito cominatório que, contudo, se reflete apenas ao nível dos factos que se devem considerar admitidos por falta de impugnação»

Sempre, nos termos gerais, o efeito cominatório da falta de reclamação contra a relação de bens (ou a sua apresentação restrita) não é a procedência automática da pretensão do apresentante da reclamação, mas sim que os factos não impugnados se consideram confessados e o tribunal avaliará a questão de direito de acordo com os factos provados… É que também em sede de processo comum a eficiência do cominatório se restringe aos factos, que nunca ao respectivo enquadramento jurídico.

Donde, desde logo, ainda que a aplicar-se esta disciplina e já se verá que não é sequer aplicável, manifestamente excluída a aquisição por confissão do responsável pela satisfação ou pagamento, no sentido da determinação de estar em causa uma dívida do património comum ou do ex-cônjuge, como também a questão da exigibilidade de uma actualização do crédito relacionado…

Decisivamente, excluídas daquele regime as dívidas.

Com efeito, quanto ao passivo, a lei prevê:

- que o mesmo seja relacionado pelo cabeça-de-casal, podendo os restantes interessados no inventário impugnar a sua existência e/ou o seu montante (arts. 1097º, nº 3, al. d), 1098º, nº 3, e 1104º, nº 1, al. e), todos do C.P.C.);

- que o mesmo, não sendo relacionado pelo cabeça-de-casal, possa ser reclamado pelos credores respectivos até à conferência de interessados (cfr. art. 1088º do C.P.C.).

Na primeira situação, que é a dos autos, a verificação do passivo é efectuada nos termos do art. 1106º do C.P.C., na segunda situação a apreciação poderá ter lugar na conferência de interessados em conformidade com o disposto no art. 1111º, nº 3, do C.P.C.. E, neste caso, ainda que alguma reclamação tenha sido apresentada antes, porque até à conferência podem ser apresentadas outras reclamações de outros credores, sendo adequado que tudo seja decidido de uma só vez nesta ocasião, isto é, no momento final para apresentação de reclamações pelos credores.

Neste sentido, veja-se João Espírito Santo, O inventário judicial: genealogia, recodificação e regime geral, in Revista de Direito Comercial, “liber amicorum”, págs. 278 a 283 e 299 a 302, disponível para consulta, e onde consultámos, na Internet, em https://www.revistadedireitocomercial.com/o-inventario-judicial-genealogia-recodificacao-e-regime-geral). Igualmente indicando o caso previsto no art. 1088º do C.P.C. como exemplo de situação de apreciação do passivo a submeter à conferência de interessados, veja-se António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Vol. II, 2ª ed., Almedina, pág. 627.

Deste modo, está em causa, quanto às verbas 1 a 3 da Relação Inicial e a todas as verbas da Relação adicional, uma situação de passivo relacionado pelo cabeça-de-casal, não impugnado pelo outro interessado no inventário (são apenas dois os interessados no presente inventário, o cabeça-de-casal e a recorrida).

Assim, quanto a esta situação aplicam-se as regras de verificação do passivo previstas no art. 1106º do C.P.C, no qual se prevê a tramitação da verificação do passivo nos casos das dívidas que são relacionadas pelo cabeça-de-casal e nos termos do qual se consideram reconhecidas as que não sejam impugnadas pelos interessados directos (nº 1).

Sempre tal reconhecimento o é da dívida mesma, que não do património responsável pela sua satisfação.

É o que o impõe, em primeiro lugar, a coerência sistémica e o estrutural princípio do nosso direito processual, no que tange às consequências da falta de impugnação/contestação, de acordo aliás, com a regra geral de que na aplicação do direito é o juiz livre ou soberano. Na verdade, as partes não podem dispor dos fundamentos de direito material da decisão, os quais têm de ser observados no despacho que decida as questões susceptíveis de influir na partilha, o que não é posto em causa pela admissão dos negócios de auto-composição do litígio, sendo que não há, no nosso ordenamento, disposição alguma de onde se retire a possibilidade de as partes disporem da solução jurídica do caso ou de parte dele, visto o já aludido princípio jura novit curia, consagrado no art. 664 do Código de Processo Civil[10].

De todo o modo, avulta estar em causa um inventário para separação do património conjugal e atenta a regra da (tendencial[11]) imutabilidade do regime de bens do casamento no nosso direito, cfr. art. 1714º do CC, que podia ser contornada sem a análise judicial da natureza da dívida.

Assim é que, quanto aos créditos a considerar nos inventários com vista à cessação das relações patrimoniais entre cônjuges, o inventário subsequente ao divórcio destina-se a pôr termo à comunhão de bens resultante do casamento, a relacionar os bens que integram o património conjugal e a servir de base à respetiva liquidação, tendo em vista a data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (cf. artigos 1404.º, n.o 1, e 1326.º, n.ª 1, do Código de Processo Civil e artigos 1688.º e 1789.º Código Civil).

Nessa partilha, em que se dividem os patrimónios de cada cônjuge e os bens comuns (em regra de acordo com o regime de bens que vigorou durante o casamento, com as exceções previstas nos artigos 1719.º e 1790.º do Código Civil), tem-se como objetivo essencial obter um equilíbrio entre os diversos patrimónios, de modo a que não haja enriquecimento de um deles à custa do outro.

Assim, considera-se que "o processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos. É na partilha que os cônjuges recebem os bens próprios e a sua meação no património comum, é na partilha que cada um deles confere o que deve ao património comum (artº 1689º, no 1), e é no momento da partilha que o crédito de um deles sobre o outro, ou do património comum sobre um deles, e ainda o dos credores do património comum, se tornam exigíveis (artºs 1697º e 1695º, no 1)", como se disse no Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 06-05-2008 no processo 202-E/1999.C1 (na base de dados da dgsi).

O processo especial de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento destina-se não só a dividir os bens do casal, mas a liquidar as responsabilidades mútuas e as dívidas do casal.

Tudo para dizer que a falta de impugnação de crédito reclamado não determina se não o reconhecimento da dívida, que não directa e imediatamente a afirmação do património responsável pelo pagamento, com o que não assiste razão ao Recorrente quanto ao “efeito” da ausência de impugnação dos créditos, ainda no que à Relação Adicional importa…, o que implica que tenha que se conhecer do acerto da qualificação pelo Tribunal e, no que importa à Relação Adicional de passivo, da oportunidade e pertinência do Relacionamento e da natureza do crédito.


3.
a) Quanto às responsabilidades entre os cônjuges, há que distinguir as compensações stricto sensu dos simples créditos entre cônjuges.

As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento, designadamente através do divórcio (art.1788 e 1795-A do CC), produzindo-se, neste caso, os seus efeitos entre eles a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, retroagindo-se à data da propositura da acção (arts.1688 e 1789 nº1 do CC).

Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha dos bens do casal (art.1689 do CC ), e sendo esta judicial, através do processo especial de inventário. Na partilha, cada cônjuge receberá os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns, conferindo previamente o que dever a este património.

Na vigência da relação matrimonial os cônjuges tornam-se devedores entre si, através da transferência de valores entre os patrimónios – o património comum e os dois patrimónios próprios. Nestes casos, surge o chamado “crédito de compensação” a favor do cônjuge que pagou a mais que a sua parte sobre o outro, mas cuja exigibilidade a lei difere para a partilha.

A razão de ser deste diferimento prende-se essencialmente com o propósito de se evitarem desentendimentos ou perturbações conjugais e a exigibilidade imediata implicaria atribuir ao cônjuge credor um meio fácil (a ameaça de cobrança) de tutelar economicamente a actividade do cônjuge devedor, como justificou Braga da Cruz no seu anteprojecto (Capacidade Patrimonial dos Cônjuges, BMJ nº69, pág.413 e segs.), ou noutra perspectiva, a não exigibilidade imediata radica na própria natureza jurídica da comunhão (Cristina Dias, “Das Compensações pelo pagamento das dívidas do casal”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, vol.1º, 2004, pág.323).

As compensações dão-se só nos regimes de comunhão e verificam-se quando há movimentos entre o património comum e os patrimónios próprios dos cônjuges: quando um destes patrimónios (um património próprio ou o património comum) responde por dívidas de outro património (o comum, se o que respondeu foi um património próprio, ou um património próprio se o que respondeu foi o património comum). Exemplo mais comum é o do caso em que um dos cônjuges responde por dívidas que a ambos responsabilizava: este tem direito a ser reembolsado de metade do montante global de tais pagamentos, surgindo um crédito de compensação a seu favor, o qual só é exigível no momento da partilha dos bens do casal; esta compensação tem lugar preferencialmente na meação do cônjuge devedor no património comum (artigos 1697º no 1 e 2, 1730.º, 524.º e 1697.º e 1689º no 3 do Código Civil).

"A compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça injustamente em detrimento e à custa de outra." cf Cristina M. Araújo Dias, Do regime da responsabilidade (pessoal e patrimonial) por dívidas dos cônjuges (problemas, críticas e sugestões), pag 582.

É pacífico que nos termos do artigo 1691.º, n.o 1, alínea a), do Código Civil se ambos os cônjuges, no decurso do casamento, contraem um empréstimo, a obrigação de reembolso de tal empréstimo responsabiliza ambos os cônjuges. Se um dos cônjuges suporta essa dívida tem direito a ver reposto no seu património o que pagou em excesso em benefício do património comum; é uma típica dívida de compensação.

Nestes casos, em que se impõe uma compensação stricto sensu, mesmo que o pagamento ocorra depois da data em que a terminaram as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, desde que a dívida tenha sido contraída no decurso da comunhão e a ambos responsabilize, deve ser atendida no inventário, sem necessidade de recorrer a ação autónoma. (Neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/03/2017 no processo 5208/14.9T8ALM-B.L1, na mesma base de dados da dgsi e Cristina M. Araújo Dias, obra citada, 585). Com efeito, a mesma tem origem em crédito comum anterior a essa dissolução, não pode ser exigida anteriormente à mesma e deve ser paga preferencialmente pela meação do cônjuge devedor no património comum.

Ao invés das dívidas de compensação, os créditos entre cônjuges são apenas dívidas entre os cônjuges, em cuja origem não entrou o património comum, sendo possíveis em qualquer regime de bens e exigíveis a todo o tempo.

Quanto às dívidas resultantes de compensação (stricto sensu) é discutido se têm que ser incluídas na relação de bens ou ser ou apenas atendidas no despacho que dá a forma à partilha. No sentido de que estes créditos de compensação não devem ser incluídas na relação de bens, apesar de serem considerados no momento da partilha para serem pagos, argumentando que estes não respeitam ao património comum do casal, pugna Augusto Lopes Cardoso Partilhas Judiciais 3.ª edição Vol III pags 391 e 392 e no mesmo sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/02/2007 no Agravo n.o 4445/06.

Contra tal entendimento tem seguido a jurisprudência mais recente cfr., entre muitos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2013 no processo 1385/10.6TBBCL-C.G1, citando, por seu turno, também jurisprudência do Relação do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/01/2013, Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 06-04-2010 no processo 113-D/2001.L1-1, Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-02-2005 no processo 4018/04 e de 08-11-2001, no processo 4931/10.1TBLRA.C1.

No entanto, porque os créditos de compensação (stricto sensu) têm um regime próprio, visto que não podem ser exigidos em momento anterior ao da partilha (nos termos do artigo 1697º no 1 do Código), pode justificar-se que sigam um regime diferente do regime regra imposto no processo de inventário vigente à data da sua instauração. O mesmo já não ocorre no caso dos créditos entre cônjuges que não tenham tal restrição temporal na sua exigência.

Sempre se põe o problema da data da constituição das dívidas para a sua consideração no inventário. Em princípio, no inventário para partilha dos bens do casal deve constar o activo e o passivo existente até à data da propositura da ação de divórcio (porque a esta data retroagem os seus efeitos patrimoniais nos termos do artigo 1789º no 1 do Código Civil).

Como se viu, quando se trata de uma compensação entre o património próprio do requerente e o património comum, apesar de a dívida surgir depois de cessarem as relações patrimoniais entre os cônjuges, porque tem origem em crédito comum anterior, integrando o passivo comum, deve ser considerada no inventário. Em causa a aplicação de um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro, sob pena da verificação um enriquecimento injusto de um dos cônjuges à custa do património comum, resultado avesso à vontade do legislador e incoerente com o regime jurídico global da partilha, centrado no respeito pela regra da metade consagrada no artigo 1730.º do Código Civil, norma inderrogável conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-02-2022 (proc. n.º 322/13.0TVLSB.E1.S1), sendo tal princípio geral de compensação de patrimónios, também aceite pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 21-04-2022 (proc. n.º 463/13).

Ocorrendo uma osmose entre as diferentes massas patrimoniais (ainda quando a disposição patrimonial o tenha sido anterior ao matrimónio, foi a causa do enriquecimento do património comum, por via da aquisição do imóvel por ambos os cônjuges, já na constância do matrimónio, sem o pagamento daquela parte do preço já satisfeita), o princípio da equidade nas relações patrimoniais entre os cônjuges impõe a reintegração do equilíbrio patrimonial inicial. Muito embora não haja uma norma legal específica, o princípio geral da compensação deduz-se claramente do art.1689 CC.

A doutrina civilista considera ser esta a melhor solução, porque baseada no princípio geral de compensação e da proibição do enriquecimento indevido.

Para a Prof. Rita Lobo Xavier – “(…) deve entender-se que o património empobrecido tem um direito a uma compensação no momento da dissolução do regime, em qualquer situação em que se verifique o enriquecimento de uma das massas patrimoniais à custa da outra, mesmo que não exista uma norma legal específica a ressalvar expressamente a correspondente compensação.

A não ser assim, verificar-se-ia um enriquecimento injusto da comunhão à custas do património de cada um dos cônjuges ou de um destes à custas daquela.

Estas compensações entre as várias massas patrimoniais existentes nos regimes de comunhão visam, ao fim e ao cabo, a reintegração do equilíbrio patrimonial quebrado pelo fluxo de valores entre as massas, através das correcção das situações em que uma delas se enriqueceu em detrimento da outra. O mecanismo das compensações é, assim, mais uma das manifestações do princípio da equidade que rege as relações patrimoniais entre os cônjuges (Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, Coimbra, Almedina, 2000, pág.396 a 398). Ainda na Revista de Direito e de Estudos Sociais", Ano XXXIX, n.º 1-2-3, Janeiro/Setembro de 1997, págs. 195/212.

Também a Prof. Cristina Dias justifica a premência de um princípio geral da compensação entre as diferentes massas patrimoniais com vista a salvaguardar o equilíbrio patrimonial, ao escrever o seguinte: “Ao contrário de outros preceitos legais (cf., por ex., o art.1697, em matéria de dívidas) não há uma disposição que expressamente contemple esta situação.

Mas deverá admitir-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e o comum sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento do outro. A não ser assim, verificar-se ia um enriquecimento injusto da comunhão à custas do património de um dos cônjuges, ou de um destes à custas daquele” (Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, ano 1, nº2, 2004, pág. 121).

Assim, compensação é o meio de prestação de contas do movimento de valores entre a comunhão e o património próprio de cada cônjuge que se verifica nos regimes de comunhão.

Como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 17.06.2019, na base de dados da DGSI: “Deve, contudo, admitir-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro[12]. Caso contrário, verificar-se-ia um enriquecimento injusto da comunhão à custa do património de um dos cônjuges ou de um dos cônjuges à custa do património comum.

Por isso, e como refere Cristina Araújo Dias “apesar de não estar expressamente previsto, admitimos também a existência de compensações nos termos do art. 1723.º, al. c)”.

A mesma autora refere ter seguido o entendimento defendido por M.ª Rita A. G. Lobo Xavier, Limites à autonomia privada Na Disciplina Das Relações Patrimoniais Entre Os Cônjuges, pag. 395. referindo na nota 1359 o seguinte: “Sobre esta hipótese de um direito de compensação do cônjuge prejudicado com o ingresso de um bem próprio na comunhão, por não indicação da proveniência dos valores em causa, nos termos da al. c) do art. 1723.º, no momento da dissolução e partilha do património comum, v., M.ª Rita A. G. Lobo Xavier, “A sub-rogação real indirecta...”, loc. cit., pp. 185 e segs., e Limites à autonomia privada..., cit., pp. 350 e segs. Com efeito, se a compensação visa evitar o enriquecimento injusto de um património à custa de outro, comprovando-se que o ingresso de um bem na comunhão empobreceu o património próprio de um dos cônjuges, não nos choca admitir a compensação deste pelo património comum, muito embora o art. 1723.º, al. c), não o refira expressamente. As normas reguladoras das compensações “reafirmam um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles se encontre enriquecido em detrimento de outro” (M.ª Rita A. G. Lobo Xavier, Limites à autonomia privada..., cit., p. 352). Aceitando também a existência de uma compensação nessa situação, v., Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. cit., p. 473.

Será de admitir a existência de compensações em qualquer situação em que, no final do regime de bens, um dos patrimónios se encontre empobrecido em detrimento do outro (…)”.

Daqui decorre que sendo a referido dívida compensável nos termos sobreditos, também ela devia ser exigida no momento da partilha e no âmbito do respectivo inventário para partilha dos bens comuns do casal.”

Ora, nessa parte, assiste inteira razão ao Recorrente, já que, quando se atente em que os créditos reclamados sob as verbas nºos 1 a 3 da Relação de Bens correspondem ao pagamento por ele, com dinheiro próprio e exclusivamente seu, como admitido, do preço de um bem que integrou a comunhão (ainda quando o pagamento o tenha sido antes do casamento, não há dúvidas de que se traduziu num enriquecimento do património comum, por via da “poupança” do preço do imóvel que foi adquirido[13]), está aqui em causa um crédito do Reclamante/cabeça-de-casal sobre o património comum, uma verdadeira e própria compensação de patrimónios, que não uma dívida entre cônjuges.

Impõe-se, por conseguinte, nessa parte, o provimento do recurso, considerando-se nos termos da Relação/Reclamação, sem prejuízo da decisão ainda a proferir sobre actualização e juros, o crédito de capital/nominal sob as verbas nºs 1 a 3 da Relação como uma dívida do património comum ao cabeça-de casal. Este é credor do património comum de tais quantias.

b) Da mesma forma entendemos que também as dívidas entre cônjuges, originadas em acto anterior ao terminus das relações patrimoniais entre estes, devem ser relacionadas no inventário, tanto mais que observam o regime do 1689º no 3 do Código Civil: "os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum".

O mesmo já não tem, no entanto, razão de ser quando os créditos entre cônjuges, de natureza não compensatória, tenham origem em acto posterior à cessação das relações patrimoniais entre cônjuges, ou seja, neste caso, à acção de divórcio. Assim, em princípio, estes créditos posteriores ao terminus das relações patrimoniais entre os cônjuges baseadas no casamento não têm que ser consideradas no inventário que serve para a partilha dessa comunhão e definição dos patrimónios envolvidos na mesma.

Assim, a totalidade dos créditos constantes da Relação Adicional, que, nos termos desta, se constituem como dívida de um cônjuge perante o outro (na proporção de 50% do total da despesa), em sede agora da administração pelo cabeça-de-casal do património comum indiviso. De resto, assim ainda parte das dívidas reclamadas e objecto de reconhecimento como dívidas de um cônjuge ao outro no despacho recorrido (sob as verbas 4 e 5 do passivo).

Nessa medida, não estando em causa dívidas que se relacionem ao património comum, mas uma dívida dos ex-cônjuges entre si, subsequente à cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, ainda quando se reconheça que o procedimento da sua reclamação é susceptível de “evitar” uma acção ulterior de prestação de contas pelo cabeça-de-casal[14], não se tem por pertinente o seu relacionamento em inventário, porquanto irrelevante para a partilha.

Termos em que não se concede provimento ao Recurso, já que em causa na Relação Adicional apresentada dívidas que não têm que ser relacionadas ou incluídas no inventário, sem prejuízo agora de, na ausência de reclamação/impugnação e num saudável princípio de economia de meios, poderem as partes acordar na sua existência e reconhecimento, como crédito de um sobre o outro.


b) Quanto agora à actualização dos créditos do cabeça-de-casal Recorrente sobre o património comum e juros, como reclamados

A solução de compensação de patrimónios, que nos regimes de comunhão é diferida para o momento da partilha, não merece a concordância de Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado, Vol. IV, págs. 426 e 427, todavia merece o aplauso de Rita Lobo Xavier, obra citada, págs. 394 a 405.A solução pode não ser equitativa: pense-se no caso de durante largo tempo o cônjuge prejudicado ficar privado de administrar aquilo que lhe pertence, vendo afectada a sua autonomia patrimonial que só recuperará com a partilha após a dissolução do casamento, podendo a compensação nem sequer ser feita em espécie.

A propósito, reflecte a Professora Cristina M. Araújo Dias, in Compensações Devidas Pelo Pagamento de Dívidas do Casal (Da Correcção do Regime Actual), quando - pág. 209 - afirma: "O facto de as compensações apenas serem determinadas e exigíveis no momento da liquidação e partilha comporta necessariamente um problema, o da depreciação monetária. Pense-se no caso de os bens comuns responderem por dívidas próprias de um dos cônjuges, ou de o produto da venda de um bem próprio ter sido utilizado na aquisição de um bem comum...Tal originará o surgimento de um crédito compensatório a favor ou contra o património comum. Se o pagamento de tal crédito se efectua no momento da liquidação e partilha, o património credor será prejudicado, sobretudo se passaram vários anos entre o nascimento da compensação e a sua satisfação, já que a incidência da depreciação monetária apresentará consequências consideráveis [...]. Todo o crédito de uma quantia em dinheiro, qualquer que seja a sua origem, perde uma parte do seu valor económico quando a moeda sofre depreciação. Os efeitos desfavoráveis da instabilidade monetária traduzem-se no favorecimento do cônjuge devedor, atribuindo um montante compensatório irrisório".

Se assim acontecer, não sendo a compensação feita em espécie, poder-se-á questionar se repõe com equidade os danos sofridos, desde logo, se existir um lapso de tempo que pode ser não negligenciável, entre a utilização de meios próprios pelo cônjuge adquirente e o momento em que, operada a dissolução do casamento e a partilha, ocorrerá a compensação entre patrimónios.

A figura do crédito compensatório inspira-se, como já referido, no enriquecimento sem causa (art.º 473º e ss.). Não se trata tanto de uma aplicação daquele instituto e dos seus pressupostos, mas sim de uma alusão ao princípio geral da proibição do enriquecimento injustificado[15], que impregna todo o Direito positivo e, consequentemente, o Direito matrimonial[16].

As particularidades das relações patrimoniais entre os cônjuges, traduzidas na obrigação de comunhão de vida e na realização de um equilíbrio patrimonial justo, exigem um estatuto próprio e uma regulamentação específica face às restantes relações jurídicas estabelecidas entre pessoas não casadas. Por isso, as compensações entre as diferentes massas patrimoniais só são devidas no final da comunhão de vida e partilha dos bens.

As razões da proibição da partilha dos bens comuns antes de cessarem as relações patrimoniais entre os cônjuges, como já adiantado, prendem-se com a ideia da proteção de um património comum especialmente afetado às necessidades da vida familiar. Têm a ver, além disso, com a própria natureza deste património comum, regulado pela lei como um património coletivo, tendo os cônjuges apenas direito a uma meação, em regra, só concretizável após a dissolução do casamento. Faz sentido, portanto, que a liquidação da comunhão ocorra somente no momento da dissolução da mesma e que só nessa altura se concretize o direito de cada um dos cônjuges sobre os bens que fazem parte da comunhão. Permite-se, assim, a correção dos desequilíbrios entre as várias massas, através do estabelecimento de uma conta entre cada um dos cônjuges e o património comum. O respetivo saldo dá lugar a uma compensação em benefício da massa empobrecida, restabelecendo-se o equilíbrio perturbado durante a vida conjugal. Tal princípio pode deduzir-se também do art. 1689º, n.ºs 1 e 3, onde se prevê a ordem das operações da partilha, estabelecendo uma hierarquia das dívidas e determinando as massas patrimoniais prioritariamente responsáveis. Assim, no momento da partilha, cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum, e este aos patrimónios próprios dos cônjuges, tudo o que lhe dever. Visto que as compensações só têm lugar no momento da liquidação e partilha da comunhão, o problema da atualização dos valores a considerar é muito importante, pelo que a inflação pode tornar o seu valor nominal irrisório[17].

PEREIRA COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, vol. I, 5.ª ed., Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 439, referem não poder aceitar-se que o legislador preveja várias hipóteses de colaboração financeira entre os patrimónios, atendendo às relações de confiança e cooperação entre os cônjuges, e depois imponha compensações pelo valor nominal, impedindo que se atinja um reequilíbrio económico sério. Para mais, se o diferimento da exigibilidade encontra uma das razões na intenção de evitar litígios entre os cônjuges, o diferimento sem atualizações de valores será maior fonte de conflitos e de ressentimentos do que a exigibilidade imediata. Por fim, referem que “a regra do diferimento das compensações, associada ao princípio nominalista, não quadra bem com um regime que se mostra preocupado com a imutabilidade dos regimes de bens e com as fraudes que possam desequilibrar os valores dos três patrimónios”.

Como bem anota, novamente, Cristina Dias, Responsabilidade por dívidas e compensação entre patrimónios, Revista Electrónica de Direito, Junho de 2000,nº 2, Vol. 22, acessível em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://cij.up.pt/client/files/0000000001/2-cristina-dias_1606.pdf, p. 23 e ss.: «A avaliação das compensações no momento em que se tornam exigíveis não constitui uma inovação.

O art. 2109º do nosso Cód. Civil, em matéria sucessória, determinando o valor dos bens doados ao tempo da sua avaliação, ou seja, no momento da abertura da sucessão, consagra tal solução. Assim, o crédito compensatório deverá atualizar-se atendendo à depreciação monetária. Aquela solução pode defender-se para o direito matrimonial sempre que estejam em causa transferências de bens de um património para um outro. O valor do bem em causa, origem da compensação, deverá ser (re)avaliado no momento da liquidação e partilha da comunhão.

Mas outro problema se coloca se o que estiver em causa for um determinado montante em dinheiro, como acontece com o pagamento de dívidas, em que a compensação terá necessariamente de ser pelo menos igual ao montante desembolsado por um património para o pagamento de dívidas do outro. Aqui a questão será a de determinar o factor de referência da avaliação, ou seja, não há aí nenhuma referência a um bem determinado relativamente ao qual se reavalie o seu valor[18]. Há que encontrar um valor de referência para a atualização das compensações estando em causa o pagamento de dívidas do casal (ou, em geral, transferências de fundos ou dinheiro de um património para outro). (…)

A prestação que se deve restituir, independentemente das flutuações monetárias, será estipulada não com base num quantitativo numerário fixo mas num montante em numerário proporcional à evolução e curso que terá uma dada mercadoria, uma dada divisa... Introduz-se um valor constante, independentemente das flutuações monetárias. …

A contextualização social das compensações não era na altura em que surgiu no Código Civil a que encontramos hoje. A mentalidade da sociedade e do legislador estava estruturada de forma diferente da atual no que se refere aos problemas da estabilidade e depreciação monetária. Assentando num pressuposto de estabilidade económica e monetária, o Cód. Civil, em 1966, não tinha necessidade de prever atualizações do valor das compensações.

Nesse contexto, não havia razões para afastar o princípio do nominalismo, já que não acarretava a contrapartida das consequências danosas derivadas da depreciação monetária. Por isso, as compensações, ainda que apenas exigíveis no momento da partilha, seriam regidas pelo seu valor nominal. Simplesmente, hoje temos de atender às constantes flutuações da moeda e às suas inevitáveis desvalorizações. Admitir uma compensação pelo seu valor nominal, sem a respetiva atualização, seria permitir o enriquecimento de um património à custa de outro, frustrando-se o objetivo de equilíbrio pretendido.

Haverá que aferir se não encontramos no nosso Cód. Civil uma situação que sirva de base para a atualização das compensações, destruindo os efeitos prejudiciais da depreciação. Estando em causa nas compensações, e, em especial, nas compensações pelo pagamento das dívidas do casal, uma prestação pecuniária constituída não por bens de consumo mas por espécies simbólicas ou convencionais[19] que são um instrumento geral de trocas o problema que se suscita quanto ao seu cumprimento é o de saber se, no momento do cumprimento, o património devedor da compensação fica adstrito a uma prestação idêntica à prestação fixada no momento do surgimento da compensação ou se essa prestação deverá ser atualizada por forma a facultar ao património credor da mesma um poder aquisitivo real tão aproximado quanto possível do que a prestação lhe proporcionaria no momento em que se constituiu o facto gerador da compensação.

Na parte geral do Direito das Obrigações, o princípio nominalista ou da não atualização encontra expressão no art. 550º[20], reconhecendo-se, desde logo, às partes a faculdade de escolherem o regime que entenderem na determinação do objeto da prestação, nomeadamente através da inserção de cláusulas de atualização adequadas, sobretudo em períodos de mais acentuada instabilidade monetária. Adaptando tal entendimento ao direito patrimonial matrimonial, admitimos que os cônjuges possam prever tais cláusulas nas convenções matrimoniais, prevendo atualizações das eventuais compensações a existir no momento da partilha da comunhão.

Na falta de estipulação das partes, na ausência de “cláusulas de salvaguarda”, consagra-se o princípio nominalista, mandando-se efetuar o pagamento em moeda corrente e atendendo ao valor nominal da moeda na data do cumprimento, independentemente de eventuais desvalorizações monetárias que tenham ocorrido. Assim, aplicando tal princípio no âmbito das compensações pelo pagamento de dívidas do casal, se a compensação surge pelo pagamento de uma dívida no valor de 5.000€, será efetuada pela entrega (ou imputação) do mesmo valor de 5.000€ ao património empobrecido e credor da compensação, seja qual for o coeficiente de valorização ou desvalorização que a moeda tenha sofrido entre o momento do seu surgimento e o momento da sua liquidação e pagamento. O princípio do nominalismo representa o critério mais cómodo, mas há casos em que a lei, independentemente de qualquer estipulação das partes, se afasta de tal princípio e manda atualizar a prestação ou permite que a atualização se faça em determinados termos. O nominalismo é, portanto, atenuado pelo princípio da indexação ou correção monetária, ou seja, teremos obrigações indexadas, atualizáveis em função de alterações monetárias e do índice geral dos preços.

Abstraindo-nos de outros casos em que se preveem tais atualizações[21], o art. 2109.º, n.º 3, manda atualizar as doações em dinheiro sujeitas a colação, bem como os encargos em dinheiro que as onerem e forem cumpridos pelo donatário. Na base de tal atualização está o mesmo entendimento que justifica a colação, ou seja, doando certos bens a algum dos descendentes, o ascendente quis antecipar, no todo ou em parte, o quinhão sucessório do donatário, e não beneficiá-lo quanto à partilha, em prejuízo dos outros descendentes. Não pode esquecer-se que a soma doada a um descendente em vida do doador pode não ter o mesmo valor que igual soma atribuída aos outros no momento da morte do ascendente. Por isso, deverá atualizar-se o valor da doação, bem como, para não prejudicar o donatário, os encargos em dinheiro por ele satisfeitos, quando aquela tenha tido por objeto uma soma em dinheiro[22].

Pelas mesmas razões se prescreve a atualização das tornas em dinheiro, no caso de partilha em vida, quando o seu pagamento não seja logo efetuado (cfr. o art. 2029.º, n.º 3). Também aqui o presuntivo herdeiro legitimário que recebeu bens ficaria beneficiado perante os outros, se não fosse atualizada a prestação pecuniária a que ficou adstrito em virtude da partilha.

Atendendo ao exposto, não podemos deixar de defender a actualização das compensações devidas pelo pagamento das dívidas do casal. Traduzindo uma obrigação pecuniária, um valor monetário que apenas é exigido no momento da partilha da comunhão, tal valor terá de ser atualizado, sob pena de se agravar o enriquecimento de um património em detrimento de outro, não restaurando o equilíbrio necessário.

Isso assente, resta saber como se procederá a atualização das compensações, na ausência de regulamentação expressa. Quer socorrendo-nos indiretamente do art. 2109.º, n.º 3, quer utilizando diretamente o art. 551.º, que regula a atualização das obrigações pecuniárias, devemos atender aos índices dos preços, de modo a restabelecer, entre a prestação compensatória e a quantidade de mercadorias a que ela equivale, a relação existente na data em que a compensação surgiu. Não se mencionam quais os índices de preços atendíveis, devendo utilizar-se os números-índices elaborados periodicamente pelo Instituto Nacional de Estatística[23]. Concluindo, havendo diferimento da exigibilidade das compensações para o momento da liquidação e partilha da comunhão, deve assegurar-se, face às desvalorizações monetárias, as necessárias atualizações do montante apurado das compensações pelo índice geral de preços, nos termos do art. 551.º do Código Civil. O problema levantado pela exigibilidade diferida, o de compensações irrisórias, não salvaguardando o equilíbrio visado entre os diferentes patrimónios existentes nos regimes de comunhão, é contornado se se admitir atualizações dos valores em causa, não restringindo as compensações devidas no momento da liquidação e partilha da comunhão ao seu valor meramente nominal à data do facto que lhes deu origem (no caso em análise, o pagamento de uma dívida).»

Temos para nós como inteiramente procedente a argumentação que antecede e, pois, devida a actualização, nos termos propostos aquando da Reclamação pelo Credor, i.é., de acordo com o índice de Evolução de Preços do INE (excluída a habitação), sendo-o contudo e até ao/no momento ou ocasião mesma da partilha, por isso que da elaboração do respectivo mapa, com o que não devidos juros de mora, atenta a ocasião de exigibilidade da dívida[24], nos termos expostos e o modo como é feita a compensação[25].

III.

Tudo visto, concede-se parcial provimento ao Recurso interposto e decide-se:
1. alterar a decisão recorrida, no que tange à pronúncia acerca das verbas 1 a 3 do Passivo relacionado na Relação de Bens, passando a ter-se como reconhecido, como passivo do património comum:

VERBA Nº 1

Débito do património comum ao Cabeça de Casal, no valor de cento e catorze mil seiscentos e setenta euros e oitenta e quatro cêntimos, actualizado desde 22 de janeiro de 2000 e até à data da elaboração do mapa da partilha, de acordo com o índice médio de Evolução de Preços do INE (excluída a habitação)

VERBA N° 2

Débito do património comum ao Cabeça de Casal, no valor de quarenta e quatro mil quatrocentos e oitenta e dois euros e quarenta cêntimos, actualizado desde o final do mês de Outubro de 2000[26] e até à data da elaboração do mapa da partilha, de acordo com o índice médio de Evolução de Preços do INE (excluída a habitação)

VERBA N° 3

Débito do património comum ao Cabeça de Casal no valor de noventa e dois mil cento e setenta e sete euros e oitenta e cinco Cêntimos, actualizado desde 06.02.2001 e até à data da elaboração do mapa da partilha, de acordo com o índice médio de Evolução de Preços do INE (excluída a habitação),

não havendo juros de mora a atender/atribuir;
2. Suprir a nulidade da decisão recorrida decorrente da omissão de pronúncia quanto à Relação Adicional de Passivo apresentada, entendendo que aquele passivo, constituindo-se como uma dívida (na proporção de 50% dos valores satisfeitos ou pagos) da requerida para com o cabeça de casal, já após a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, não tem que ser relacionado e considerado na partilha.

Custas do Recurso na proporção de 2/3 pela Recorrida.

Notifique.


Porto, 09 de Outubro de 2025
Isabel Peixoto Pereira
Manuela Machado
João Venade
________________
[1] Quanto à natureza incidental da reclamação à relação de bens e o seu reflexo no prazo de recurso da respetiva decisão, entre outros o acórdão da Relação de Coimbra de 08-03-2022, número 192/21.8AGN-B.C1, disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/206327/. No mesmo sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, II volume, página 613.
[2]Autor que foi membro do Grupo de Trabalho nomeado para a revisão do processo especial de inventário, em artigo intitulado Notas breves de apresentação do processo de inventário na redacção dada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, inserido na coletânea Inventário: o novo regime, publicação do Centro de Estudos Judiciários disponível em: https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=8LotKRQOhKg=&portalid=30.

[3] Op. cit. páginas 13 e 14.
[4] Código de Processo Civil Anotado, Almedina, II volume, páginas 572 e 573.
[5] A recapitulação do inventário, Julgar Online, dezembro de 2019, páginas 12 e 13. Disponível em:
file:///C:/Users/MJ01945/Downloads/20191216-ARTIGO-JULGAR-A-Recapitula%C3%A7%C3%A3o-do-Invent%C3%A1rio-revis%C3%A3o-Carlos-Lopes-do-Rego-v5%20(1).pdf.
[6] O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, páginas 44
[7] Processo 1190/20-1T8FLG-A.P1, disponível em: https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f57674c2fa6c267a80258aac003ad30e?OpenDocumen
[8] Processo 392/21.8T8VLN.G12 disponível em:
https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/c55b22c37cef983280258983004dfdd6?OpenDocument
[9] Processo 92/22.1 T8RGR.L1-8, disponível em:
http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/a49b1993e9775c2f8025895f00522746?OpenDocument
[10] Em contrário, costuma argumentar-se com a supressão de parte do litígio que o acordo ou o reconhecimento implica e que a decisão jurídica da causa só interessa na medida em que há litígio entre as partes; o acordo sobre uma situação jurídica prejudicial suprimiria, quanto a ela, o litígio, subtraindo-a ao juízo do tribunal. É exemplo deste entendimento o já longínquo Ac. do STJ de 17.06.1998, CJ (STJ), ano VI, t. 2, ps. 129 e ss..

[11] Assim é que a Jurisprudência e Doutrina têm evoluído no sentido de considerar esta regra com maior flexibilidade, recorrendo à razão subjacente para admitir em sentido diverso.
[12] Cfr. neste sentido também, como já referido, Cristina Araújo Dias, Processo de inventário, administração e disposição de bens (conta bancária) e compensações no momento da partilha dos bens do casal, Comentário ao Ac. RE de 21.1.02, Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, nº 2, 2004, pág. 121 e Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões, Coimbra, 2009, págs. 769 a 792; sobre o problema da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa relativamente a atribuições patrimoniais realizadas na constância do casamento após o divórcio entre os cônjuges, cfr. Luís Manuel Teles de Menezes de Leitão, O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, CEF, 1996, págs. 513 a 516.
[13] Nesse sentido, meramente formal e rebatível, como resulta, a argumentação de que a disposição ou mobilização de bem próprio a favor da comunhão o foi anterior ao casamento. O que releva é que esta o tenha sido em termos de beneficiar o património comum, independentemente da data da sua realização…
[14] Não se ignorando jurisprudência que sufraga a conveniência do relacionamento ainda nestes casos.
[15] O art.º 473º, nº1, consagra, em forma de norma, este princípio - Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. A sua formulação genérica funciona como uma ideia jurídica geral, que institui uma pauta de orientação segundo determinados pontos de vista, que cabe à doutrina e jurisprudência concretizar em categorias jurídicas específicas - cfr. MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles, Direito das Obrigações, Vol. I - Introdução - Da Constituição das Obrigações, 4ª edição, 2017, Almedina, p. 52-53
[16] XAVIER, Rita Lobo, Limites à Autonomia Privada..., p. 403-404.
[17]GUILHERME DE OLIVEIRA, “Sobre o contrato-promessa de partilha dos bens comuns – anotação ao ac. da R.C., de 28 de Novembro de 1995”, RLJ, ano 129º, 1996/1997, pp. 274 e ss., a propósito da promessa de partilha dos bens comuns, refere que o valor dos bens concretos e das meações deve ser actual e referido ao momento da partilha.
[18] No caso de pagamento de dívidas, há apenas uma soma em dinheiro. A comunhão terá direito, no momento da partilha, a uma compensação. Face à desvalorização monetária, tal valor não poderá ser o montante em dinheiro pago no momento do surgimento do direito a uma compensação. Mas qual a referência para atualizar tal valor?
[19] ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, vol. I, 10ª ed., Coimbra, Almedina, 2000, p. 852. V. também, VAZ SERRA, “Obrigações pecuniárias”, B.M.J., n.º 52º, 1956, pp. 5 e ss. e pp. 46 e ss.; MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral das Obrigações, com colab. de Rui de Alarcão, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 1966, pp. 215 e ss.; PEREIRA COELHO, Obrigações – sumários das lições ao curso de 1966/67, policopiado, Coimbra, 1967, pp. 131 e ss.; MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, vol. I, Lisboa, AAFDL, 1980, pp. 350-355; ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 8ª ed., Coimbra, Almedina, 2000, pp. 671 e ss.; JORGE RIBEIRO DE FARIA, Direito das Obrigações, vol. II, reimpressão, Coimbra, Almedina, 2001, pp. 209 e ss.
[20] MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., pp. 232 e 233, apresenta algumas razões justificativas do princípio nominalista, nomeadamente, a de a consagração de tal princípio evitar as dificuldades de apreciação do coeficiente exato da desvalorização ou valorização da moeda entre o momento da constituição e o do cumprimento da obrigação, bem como o de evitar injustiças relativas à aplicação dada aos bens ou às somas devidas. Acresce que a atualização das prestações pecuniárias introduziria um elemento de forte perturbação da vida económica e jurídica, pois o valor do dinheiro é suscetível de alterações constantes que dariam origem a reajustamentos (cfr., VAZ SERRA, “Obrigações...”, loc. cit., pp. 50 e ss.).
[21] Cfr., por exemplo, os arts. 567.º e 2012.º do Código Civil. V. ANTUNES VARELA, Obrigações..., cit., pp. 856-858.
[22] Como referem PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, ob. cit., vol. I, 4.ª ed., 1987, p. 560, com aquela atualização pretende a lei manter o valor aquisitivo da prestação em relação à generalidade das mercadorias ou em relação ao conjunto de mercadorias que são tomadas em conta na determinação ponderada dos índices dos preços. Se a prestação era de 100, deverá pagar-se, não 100, mas o necessário para adquirir a quantidade de mercadorias que no momento da constituição da obrigação se adquiria por 100.
[23] O Instituto Nacional de Estatística publica vários índices de preços que tomam como ponto de referência determinado ano. O nível geral dos preços nos anos subsequentes é dado por um número que exprime a variação ou evolução geral dos preços. Com vista à atualização de uma dada prestação pecuniária, deverá tomar-se em consideração, no índice de preços ao consumidor, o número referente ao tempo da constituição da obrigação e o último publicado, estabelecendo-se o devido confronto entre eles (VAZ SERRA, “Obrigações...”, loc. cit., pp. 22 e ss. e pp. 67 e ss.; MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., pp. 249 e ss.).
[24] O respetivo crédito só é exigível no momento da partilha, cfr. 1697º do CC.
[25] Relacionando-se primeiramente os bens e direitos comuns, segundo o regime vigente no casamento e com a ressalva das exceções dos arts.1719.º e 1790.º, seguir-se-á o cálculo do ativo comum líquido, através da “correção de desequilíbrios pelo mecanismo das compensações e o pagamento de dívidas” que existam perante terceiros e entre os próprios cônjuges. Assim, ter-se-á em conta o que os cônjuges devem ao património comum, o que deve o património comum a um dos cônjuges e o que os cônjuges devem a terceiros. As compensações servirão para correção de eventuais desequilíbrios que tenham existido na constância do casamento, resultantes de transferências entre os patrimónios dos cônjuges ou entre os seus patrimónios e o património comum e vice-versa (art.1697.º). Desse modo, cria-se no seio conjugal “uma espécie de conta-corrente entre o património comum e os patrimónios próprios, uma conta que se fecha apenas no momento da partilha” (FRANCISCO PEREIRA COELHO E GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso… ob. cit., p.430). Assim, na medida em que à data da partilha (elaboração do mapa, como cálculo das operações respectivas, cfr. 11120º do CPC) as compensações da massa comum a um dos cônjuges deverão ser apuradas e imputadas a esse cônjuge credor antes do pagamento das dívidas e liquidação do passivo, para que integrem o passivo da comunhão, cfr. CRISTINA DIAS, A partilha dos bens do casal nos casos de divórcio. A solução do art. 1790.º do Código Civil”, Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família n.º 15, 2011, Coimbra Editora, (p. 19 a 31), p. 21, não há mora a acautelar por via dos juros respectivos.
[26] Inexiste, vistos os termos do relacionamento e a ausência, nessa parte, de documentação do pagamento, forma de determinar a concreta ocasião do pagamento respectivo, razão da precisão necessária.