Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
23739/18.0T8PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
PENHORA DE IMÓVEL
PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RP2023032823739/18.0T8PRT-B.P1
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O gradus executionis estabelecido no art. 751º, nº 3 do CPC (redacção anterior à introduzida pela Lei anterior à introduzida pela Lei 117/19, de 13/09) traduz limite que o legislador ordinário entendeu estabelecer em vista da penhora de imóvel que constitua a habitação própria e permanente do executado.
II - Trata-se de regra de proporcionalidade que funciona de modo objectivo, em função do valor das dívidas (e em referência ao tempo de pendência da acção executiva), que traduz um ‘esforço de equilíbrio entre ter de se sacrificar o interesse do exequente na satisfação em tempo razoável do seu direito (valor jurídico da adequação) e o interesse do executado em ver a oneração do seu património ser apenas a correspondente à da sua responsabilidade (valor jurídico da proporcionalidade).’
III - A ponderação de interesses conflituantes efectuada pelo legislador ordinário objectivada no nº 3 do art. 751º do CPC, porque conforme à constituição, impõe-se ao julgador, cumprindo a este tão só apreciar do respeito pelas regras objectivas de proporcionalidade aí estabelecidas (no caso, a observância do gradus executionis).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 23739/18.0T8PRT-B.P1

Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO

Apelante (executada): AA.
Apelado (exequente): Banco 1..., SA.
Juízo de execução do Porto (lugar de provimento de Juiz 6) - T. J. da Comarca do Porto.
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Na apensa execução para pagamento de quantia certa que o apelado Banco 1..., SA, instaurou para haver da apelante (e de outros) a quantia global (capital, juros vencidos e acréscimos) de 12.881,92€, foi penhorada a ‘meação dissolvida na comunhão conjugal que a executada AA detém no prédio urbano, correspondente a casa de rés do chão com pátio, com área coberta de 32,50m2 e descoberta de 12,75m2, sita na Travessa ..., ..., freguesia ..., concelho de Gondomar, inscrita na matriz predial sob o nº ...42 e descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº ...74.’
Apresentou-se a executada apelante a deduzir oposição à penhora, pretendendo o respectivo levantamento, alegando recair a mesma sobre imóvel que é sua casa de morada, sendo ela (executada) pessoa de 70 anos e com problemas de saúde, que recebe pensão, sobrevivendo graças à ajuda de familiares que a ajudam, violando a penhora o seu direito constitucional à habitação (art. 65º, nº 1 da CRP), sustentando que o entendimento segundo o qual a casa de morada de família é um bem penhorável não é conforme à Constituição, pois um direito de crédito não pode prevalecer sobre o direito à habitação, violando também o princípio da proporcionalidade, por não terem sido realizadas diligências suficientes e bastantes para averiguar da existência de outros bens penhoráveis.
Contestou o exequente, pugnando pela total improcedência da oposição, argumentando (além de impugnar a factualidade invocada pela executada) a conformidade à Constituição da penhora da casa de morada de família, bem assim o respeito, no caso, pelo princípio da proporcionalidade da penhora.
Findos os articulados, foi proferida decisão que, considerando reunidos para tanto todos os elementos necessários, conheceu do mérito da causa, julgando a oposição improcedente.
Apela a executada, pretendendo a revogação da decisão e substituição por outra que ordene o levantamento da penhora, terminado as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:
I- Vem o presente recurso interposto de Sentença proferida sob a referência 441697908, nos termos do qual o Tribunal a quo considera dados como assentes os factos:
Omissis
(transcrição dos factos considerados assentes na decisão recorrida)
II- Com o devido respeito, não pode a ora Recorrente concordar com a decisão do Tribunal a quo, daí a interposição do presente recurso.
III- Entende o Tribunal a quo que nos termos do artigo 735º, nº 3 do Código de Processo Civil ‘A penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, as quais se presumem, para o efeito de realização da penhora e sem prejuízo de ulterior liquidação, no valor de 20%, 10% e 5% do valor da execução, consoante, respectivamente, este caiba na alçada do tribunal da comarca, a exceda, sem exceder o valor de quatro vezes a alçada do tribunal da Relação, ou seja superior a este último valor’.
IV- Mais entende que, ‘Por outro lado, dispõe o art. 751º, nº 3 do Código de Processo Civil:
3 - Ainda que não se adeque, por excesso, ao montante do crédito exequendo, é admissível a penhora de bens imóveis ou do estabelecimento comercial desde que:
a) A penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses, no caso de a dívida não exceder metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância e o imóvel seja a habitação própria permanente do executado;
b) A penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de 18 meses, no caso de a dívida exceder metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância e o imóvel seja a habitação própria permanente do executado;
c) A penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de seis meses, nos restantes casos.’
‘No caso dos autos, a dívida ainda excede, em muito, metade do valor da alçada do tribunal e penhora de outros bens não permitiu o pagamento integral nos quatro anos já decorridos desde a propositura da execução.
Assim, independentemente do valor ou utilização do imóvel, nunca existiria excesso de penhora.’.
V- Não obstante, o Tribunal a quo, embora afirme compreender toda a situação pessoal da Executada, aqui Recorrente, decide de modo desfavorável à mesma, julgando improcedendo a Oposição à Penhora.
Entende a Recorrente que deveria ter sido ponderado pelo Tribunal a quo, e não foi, era conferir o devido valor aos direitos que estão em confronto. Ou seja, se por um lado temos o direito do devedor satisfazer o seu crédito, por outro lado temos o direito à propriedade e a uma habitação própria condigna.
VI- Dúvidas não restam quanto à penhorabilidade ou não da casa de morada de família, atendendo ao elenco de bens previsto no artigo 821.º e 822.º ambos do CPC.
VII- Se é certo que o direito à habitação do cidadão e da família, consagrado no art. 65.º da CRP, não se confunde com o direito a ter casa própria, sendo que o legislador ordinário, não obstante estar ciente da sua importância, não estabeleceu, em homenagem àquele direito, a impenhorabilidade da casa de morada de família, mas apenas algumas defesas (art. 834.º, n.º 2, do CPC e actual art. 751.º, n.º 3, als. a) e b), do NCPC (2013). Também é certo que, no caso concreto, a penhora, por si só, priva de habitação quem na casa habita, concluindo-se por isso, que aquela atenta, efectivamente, contra o direito constitucional à habitação.
VIII- A penhora recai sobre um imóvel que é a casa de morada de família, cujo agregado familiar é composto pela Recorrente, pessoa de idade já avançada, parcos rendimentos, com 70 anos, e com sérios problemas de saúde. A Recorrente recebe uma pensão, sobrevivendo graças à boa vontade de familiares, que a têm ajudado. No entanto, é uma luta diária e permanente conseguir cumprir com as suas obrigações pontualmente.
IX- E, não podemos nunca esquecer que a Constituição da República Portuguesa estabelece que todos os cidadãos têm direito a habitação.
X- Torna-se evidente estabelecer limites que possibilitem a realização de uma penhora justa, tendo por base o princípio da proporcionalidade e o princípio da adequação. Teria o Tribunal a quo, que analisar em concreto, no âmbito do processo, a situação de cada um dos intervenientes e o impacto que a Execução/Penhora de determinado bem vai ter na vida pessoal de cada um, bem como na sua esfera jurídica. Na verdade, será de todo necessário ponderar o confronto de direitos existentes e, no caso concreto, apurar quais os que prevalecem.
XI- Teremos que analisar se um direito de crédito prevalece sobre o direito à habitação, ainda que a mesma seja uma habitação própria, sendo certo que a penhora recai sobre imóvel que é a casa de morada de família, cujo agregado familiar é composto pela Embargante, pessoa de idade já avançada, com 70 anos, e com sérios problemas de saúde.
XII- Prevê a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 65.º n.º 1 que, ‘todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar’. Mais prevendo, no n.º 2 alínea c) que, incumbe ao Estado, ao assegurar o direito à habitação, que o mesmo estimule a ‘construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada’.
XIII- Face ao supra exposto, importa esclarecer quem é a figura do Estado de modo a atribuir tal incumbência e, importa também, esclarecer qual o âmbito dessa incumbência no acesso à habitação própria.
Teremos sempre de questionar de que modo é que, não conseguindo este providenciar pela atribuição de habitação a todos os Cidadãos, não sendo a Recorrente proprietária de mais nenhum bem imóvel, e não dispondo a mesma de capacidade para arrendar locado, o Estado garante o enunciado direito à Habitação constitucionalmente consagrado?
A saber, constitui um requisito para candidatura a uma habitação social ou candidatura a apoio social para habitação arrendada, o candidato não ser titular de qualquer direito de propriedade.
O que significa que, ab initio, a Recorrente teria a sua candidatura indeferida por ser proprietária do imóvel penhorado nos presentes autos.
XIV- A ora Recorrente, teria de se ver despojada do bem imóvel do qual é proprietária para se poder candidatar a um apoio social. Apoio este que, por sua vez, não é nem certo, nem líquido e muito menos célere.
Contudo, no lapso temporal que decorre entre o despojo do referido imóvel e a mera avaliação da candidatura aos apoios supra referidos, a Recorrente tem o seu direito à habitação garantido de que modo?
XV- Note-se que, a figura do Estado, consubstancia-se num poder jurisdicional que é, conforme se disse, o poder dos tribunais em decidir e, assim sendo, não poderia o Tribunal a quo exonerar-se da sua responsabilidade quanto a esta matéria, fazendo prevalecer um mero direito de crédito, sobre o direito da Recorrente.
XVI- Desde logo, proceder-se à penhora do imóvel, casa de morada de família, além de violar tudo quando foi supra exposto, atendendo aos respectivos normativos legais enunciados, coloca a Recorrente numa posição de risco iminente.
XVII- Note-se que, a abandonar o imóvel sujeito a penhora, a Recorrente teria duas opções, ou iria habitar um imóvel arrendado, cuja renda não consegue suportar (atendendo aos valores de mercado praticados) ou teria de se candidatar a uma habitação social. Sendo, qualquer uma das opções insuportáveis para a Recorrente.
XVIII- Deveria o Tribunal a quo ter julgado improcedente a penhora realizada, por ser susceptível de colocar uma pessoa fragilizada economicamente, em situação de risco real, pela mesma ser já de idade avançada (70 anos), com muitos problemas de saúde, não podendo, por via do trabalho, garantir habitação e subsistência. A presente penhora da casa de morada de família, cujo agregado familiar, por si só, é muito frágil, deveria improceder por se tratar de um bem concretamente impenhorável e por se estender além dos limites do penhorável.
Contra-alegou o exequente apelado pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões no mesmo formuladas (artigos 5º, nº 3, 608º, nº 2, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, todos do CPC), sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, a questão decidenda consiste em apurar se a penhora realizada ofende o princípio da proporcionalidade e adequação (e, por isso, o direito fundamental da executada à habitação).
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
A decisão apelada considerou assentes os seguintes factos:
1. A execução de que estes autos dependem, em que a exequente exige o pagamento da quantia de 12.881,93€, teve início em 06 de Novembro de 2018, com base na escritura de mútuo com hipoteca junta aos autos principais.
2. Aí vinha invocado que o bem cuja hipoteca garantia o crédito exequendo já havia sido vendido em sede de insolvência dos mutuários e que a executada AA e o seu marido, BB (entretanto falecido), constituíram-se fiadores e principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido ao Banco Exequente, a título de capital, juros ou despesas, em virtude do empréstimo que os mutuários/executados contraíram junto do Banco mutuante, titulado pela supra citada escritura notarial, com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia.
3. Em 2019/07/12 foi penhorada a meação dissolvida na comunhão conjugal que a executada AA detém no prédio urbano, correspondente a casa de rés-do-chão com pátio, com área coberta de 32,50m2 e descoberta de 12,75m2, sita na Travessa ..., ..., freguesia ..., concelho de Gondomar. Inscrita na matriz predial sob o n.º ...42 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ...74, penhora registada pela AP. ...93 de 2021/09/03 – cfr. auto de penhora e certidão, juntos ao processo principal.
4. Para além desse direito, foi penhorado em 2020/01/10: Quinhão hereditário que a executada AA detém por óbito de BB - NIF: ...; Quinhão hereditário que o executado CC detém por óbito de BB - NIF: ....
5. A penhora recai sobre imóvel que é a casa de morada de família, cujo agregado familiar é composto pela embargante, pessoa com 70 anos, e com sérios problemas de saúde.
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Fundamentação de direito.
A questão discutida na presente oposição à penhora consiste em apreciar da inadmissibilidade da penhora do direito apreendido – note-se que se não trata da penhora de imóvel, antes da meação da executada relativamente a prédio urbano (que é sua casa de morada) –, melhor, da verificação de impenhorabilidade objectiva (que tem por pressuposto ser o bem pertença do executado), relativa, fundamento de oposição à penhora, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 784º do CPC (impenhorabilidade decorrente do enunciado não na lei substantiva, antes na lei processual)[1].
Não discute a apelante a conformidade constitucional das normas legais que permitem a penhora da casa de morada (do direito de propriedade sobre casa de morada de família) – conformidade constitucional que se tem por pacífica, pois que ainda que justifique medidas de protecção contra a privação da habitação, mormente limites à penhora da casa de morada de família[2], não resulta da conformação constitucional do direito à habitação (art. 65º da CRP) qualquer impenhorabilidade do direito de propriedade (ou de direito real de gozo menor) sobre imóvel que constitua a habitação do devedor: o ‘direito de propriedade ou um direito real de gozo sobre a casa de morada de família não é impenhorável na execução’, não gozando o executado ‘do direito a exigir a restrição da penhora de forma a que esta não contenda com a faculdade de usar a casa de morada de família’, não estando essa impenhorabilidade prevista na lei nem a proibindo a Constituição, que garante tão só o direito à habitação, não o direito à propriedade sobre a habitação, ‘pelo que a penhora desta não ofende aquele’, sendo a ‘penhora e venda da residência pertencente ao executado’ a ‘vicissitude patrimonial mais significativa para o comum dos cidadãos, a par da penhora do saldo bancário e penhora de salário’[3].
Seguro e indiscutido, pois, que ‘o imóvel que corresponda a habitação própria permanente do executado e da sua família não é um bem impenhorável’, ainda que a ‘especial afetação desse bem’ tenha merecido atenção do legislador que, ‘tendo em consideração essa circunstância, consagrou diversas medidas destinadas a proteger o executado’[4].
Formas de protecção indirecta do direito à habitação que a lei prevê e consagra – no caso de o bem penhorado constituir a casa de morada de habitação efectiva do executado, ele é o depositário (art. 756º, nº 1, a) do CPC); a suspensão da venda da casa de habitação, quer quando se execute sentença pendente de recurso quer nos casos de dedução de oposição à execução e à penhora (art.s 704º, nº 4, 733, nº 5, 795º, nº 4 e 856º, nº 4 do CPC); a suspensão da entrega do imóvel, depois de efectuada a venda e requerida a sua entrega pelo adquirente, no caso de se suscitarem sérias dificuldades de realojamento (art.s 828º, 861º, nº 6 e 863º, nº 3 a 5 do CPC); por fim, o que especialmente interessa no caso dos autos, a circunstância do imóvel constituir a habitação própria do executado releva no tocante aos pressupostos da admissibilidade da penhora, por meio do estabelecimento de um gradus executionis temporal (art. 751, nº 3, a) e b) do CPC, na versão anterior à introduzida na Lei 117/19, de 13/09).[5]
Também não questiona a apelante que na situação dos autos a penhora respeitou as circunstâncias em que, ainda que inadequada, por excesso, ao montante do crédito exequendo, a lei permite a penhora de imóvel que seja a habitação própria permanente do executado (o gradus executionis temporal estabelecido art. 751º, nº 3, a) do CPC, na redacção anterior à introduzida pela Lei 117/19, de 13/09 – aplicável na situação dos autos, pois que a penhora foi realizada anteriormente ao início da vigência desta Lei[6]) – a decisão recorrida afirmou-o (sem discutir que à penhora do direito, da meação, valha, por inteiro, o regime que a lei consagra para a penhora do direito de propriedade sobre o imóvel que constitua casa de morada do executado), não sendo nessa parte impugnada.
Tão só questiona a apelante a ausência de ponderação concreta, tendo por base os princípios da proporcionalidade e da adequação, a situação das partes e o impacto que a execução do bem penhorado terá na vida e esfera jurídica de cada um (só ponderando os direitos em confronto se poderá, em concreto, decidir qual o que prevalece – designadamente, se o direito de crédito prevalece sobre o direito à habitação).
Argumentação improcedente.
A ponderação entre os direitos em confronto – dum lado, o direito do credor à satisfação do seu crédito (um direito de conteúdo patrimonial, também tutelado pelo art. 62º, nº 1 da CRP, que encerra a garantia da propriedade privada, conceito constitucional de propriedade, mais amplo que o civilístico tradicional, que abrange os direitos de crédito, decorrendo um tal direito à satisfação do crédito da garantia constitucional do direito de propriedade, que congloba, naturalmente, a possibilidade da sua realização coactiva, à custa do património do devedor, constituindo o art. 601º do CC uma expressão, ao nível da lei ordinária, da tutela constitucional do direito do credor), do outro, o direito da executada à habitação (direito reconhecido no art. 65º da CRP que se desdobra numa vertente dupla: uma vertente negativa, traduzida no direito a exigir do Estado ou de terceiros que se abstenham de actos que prejudiquem tal direito e uma vertente positiva, correspondente ao direito a medidas e prestações estaduais visando a sua promoção e protecção; um direito a não ser arbitrariamente privado da habitação, que constitui um direito de defesa, que tem contraponto no dever de abstenção do Estado e de terceiros, e um direito a obter a habitação por via de propriedade ou arrendamento, traduzido na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a tal, constituindo por isso um direito social)[7] – foi efectuada pelo legislador ordinário, ao prescrever, no art. 751º, nº 3 do CPC, sobre as condições em que é permitida a penhora de imóvel que constitua habitação própria do executado.
Ponderação (feita pelo legislador) que não ofendeu qualquer parâmetro constitucional, conjugando equilibradamente os interesses em confronto – ou, pelo menos, não fazendo prevalecer injustificadamente o direito do credor sobre o direito do devedor, permitindo a afectação arbitrária do direito de propriedade ou arbitrária privação da habitação do executado, pois que admitindo que a penhora se não pode limitar ao montante em dívida, fez depender a realização da penhora de imóvel que constitui habitação própria permanente do executado da verificação de determinados requisitos que acautelam suficientemente os direitos do executado[8].
A garantia constitucional do direito de propriedade, que tutela o interesse do devedor em ver o seu património a salvo para lá do necessário à satisfação do direito do credor e que tem como uma das suas dimensões a proibição da privação da propriedade (e do seu uso) de forma arbitrária, objectiva-se, enquanto projecção da ideia de expcecionalidade e não arbitrariedade de qualquer perda forçada de posições jurídicas activas, no princípio da suficiência da penhora[9] – do princípio da proporcionalidade (ou suficiência), com raiz constitucional, resulta que a penhora deve limitar-se àquilo que seja necessário para a satisfação do crédito exequendo e das custas, bem assim respeitar interesses especialmente dignos de tutela (como o direito à habitação) que mereçam ser acautelados.
O gradus executionis estabelecido no art. 751º, nº 3 do CPC traduz limite que o legislador ordinário (na ponderação dos interesses em confronto) entendeu estabelecer em vista da penhora de imóvel que constitua a habitação própria e permanente do executado.
Regras de proporcionalidade (do nº 3 do art. 751º do CPC) que funcionam de modo objectivo, em função do valor das dívidas (e em referência ao tempo de pendência da acção executiva), traduzindo um ‘esforço de equilíbrio entre ter de se sacrificar o interesse do exequente na satisfação em tempo razoável do seu direito (valor jurídico da adequação) e o interesse do executado em ver a oneração do seu património ser apenas a correspondente à da sua responsabilidade (valor jurídico da proporcionalidade).’[10]
Ponderação de interesses conflituantes efectuada pelo legislador ordinário (no exercício da margem de escolha e definição de soluções que a Constituição lhe concede – e, como referido, sem ofender qualquer parâmetro constitucional) que se impõe ao julgador[11], não cumprindo a este, pois, em cada caso concreto, fazer uma tal ponderação – a ponderação feita pelo legislador, porque conforme com a Constituição, impõe-se ao julgador, cumprindo-lhe tão só apreciar do respeito pelas regras de proporcionalidade estabelecidas (no caso, a observância do gradus executionis).
De recusar, pois, que o tribunal, em vista de apreciar da admissibilidade da penhora de imóvel que constitua habitação permanente do executado, tenha de ponderar, à luz das respectivas garantias constitucionais, se o direito de crédito prevalece sobre o direito à habitação, pois que apenas lhe cumpre apreciar se existe ou não violação das regras de proporcionalidade (objectivas) prescritas no nº 3 do art. 735 do CPC.
Concluiu a decisão apelada terem sido respeitadas e observadas tais regras – apreciação e julgamento que a apelante não impugna.
Atento o exposto (mesmo admitindo a aplicação do preceituado no nº 3 do art. 751º do CPC à penhora de direitos reais menores relativos a imóvel que seja habitação própria do executado), improcede a apelação, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (em jeito de sumário, nos termos nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em manter a sentença apelada.

Não são devidas custas (a apelante, que decai no recurso, goza do benefício do apoio judiciário[12]).
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Porto, 28/03/2023
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)

João Ramos Lopes
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
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[1] José Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª Edição, pp. 320/321.
[2] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, 2007, p. 835.
[3] Rui Pinto, A Ação Executiva, 2020, 2ª reimpressão, pp. 483/484 (itálicos no original).
[4] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 612/2019, de 22/10/2019 (proferido no processo nº 431/18, 2ª Secção), consultável no sítio tribunalconstitucional.pt, que não julgou inconstitucional a norma do nº 3 do rt. 751º do CPC, na redacção anterior à Lei nº 117/19, de 13/09.
[5] Citado acórdão do TC nº 612/2019 e Rui Pinto, A Ação Executiva (…), pp. 484/485.
[6] A esta redacção do art. 751º, nº 3 do CPC nos referiremos ao longo do presente acórdão.
[7] Citado acórdão do TC nº 612/2019.
[8] Cfr., mais uma vez, o citado acórdão do TC nº 612/2019.
[9] Ainda o citado acórdão do TC nº 612/2019.
[10] Rui Pinto, A Ação Executiva (…), p. 537 e p. 541 (itálicos no original).
[11] Cfr., a propósito, o acórdão da Relação de Lisboa de 27/02/2020 (Teresa Sandiães), no sítio www.dgsi.pt, referindo que o ‘Tribunal Constitucional tem entendido que quando é o legislador a efetuar a ponderação dos interesses em conflito, essa ponderação deve impor-se ao julgador’ (estribando-se nos acórdãos do TC nº nºs 187/2001, 491/2002 e 26/2007).
[12] Não tem fundamento legal a condenação das partes vencidas, enquanto beneficiárias de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, no pagamento das custas relativas às ações e aos recursos – Salvador da Costa, ‘Condenação do recorrente no pagamento das custas do recurso no caso de beneficiar de apoio judiciário’ - artigo no Blog do IPPC (https://blogippc.blogspot.com), em 24 Outubro de 2020.