Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3/20.9T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: ARRENDAMENTO RURAL
INDEMNIZAÇÃO POR BENFEITORIAS
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
BENFEITORIAS NECESSÁRIAS
BENFEITORIAS ÚTEIS
Nº do Documento: RP202310123/20.9T8AMT.P1
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de arrendamento rural celebrado em 1993, de forma verbal, não convertido à forma escrita, regula-se pelo regime do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25/10.
II - O referido contrato pode ser validamente resolvido em 2017, por falta de pagamento de rendas, por comunicação extrajudicial.
III - Ocorrida a resolução, o arrendatário pode receber indemnização pelas benfeitorias necessárias que realizou e também pelas benfeitorias úteis, nestas se tiver havido consentimento escrito do senhorio para a sua realização.
IV - Nada obsta à celebração de um acordo entre senhorio e arrendatário no sentido de, durante sete anos, o arrendatário não pagar renda para realizar aquelas benfeitorias necessárias.
IV.I - Pedindo agora o arrendatário um valor pela realização das benfeitorias, na falta de prova de outros factos que possam afastar a aplicabilidade do acordo, deve concluir-se que o arrendatário não tem direito a receber esse outro valor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3/20.9T8AMT.P1.

João Venade.
Ana Luísa Loureiro.
Manuela Machado.
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1). Relatório.
Herança indivisa de AA, representada pela cabeça-de-casal
BB, residente na Rua ... Maia, propôs contra
CC, residente na Rua ..., ..., Amarante
Ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pedindo que o Réu seja condenado a:
. reconhecer a resolução de contrato de arrendamento rural operada pela Autora por via da notificação judicial avulsa remetida para aquele e recebida pelo mesmo em 18/10/2017;
. restituir-lhe a posse dos prédios identificados nos autos, através da entrega dos mesmos, livres de pessoas e bens.
O sustento de tais pedidos radica, em síntese, no seguinte:
. é dona de determinados prédios rústicos;
. por contrato verbal de arrendamento, sem prazo, celebrado em há cerca de vinte anos, o falecido marido da Autora deu ao Réu a exploração dos mencionados prédios rústicos, mediante a entrega em dinheiro do resultado da venda de metade da produção agrícola e vitivinícola que fosse produzida;
. a referida renda nunca foi paga;
. em 2015, a cabeça-de-casal, através de um dos seus filhos, propôs ao Réu que o referido arrendamento rural fosse reduzido a escrito, o que foi recusado;
. face ao incumprimento, a Autora, através de agente de execução, ocorrido em 18/10/2017, comunicou ao Réu a sua intenção de resolver o referido contrato de arrendamento;
. estando decorrido o prazo de um ano desde a resolução do contrato de arrendamento, deve o Réu entregar à Autora os prédios.
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Citado, contestou o Réu, alegando em resumo, que:
. a sua mulher não foi notificada da resolução do contrato o qual engloba uma casa de habitação, existindo assim ilegitimidade passiva;
. aceita a existência de um contrato atípico, com exceção ao prédio Boucinha ... que lhe foi doado;
. não havia obrigação de pagamento de qualquer quantia;
. realizou obras no imóvel destinado a habitação, em partes de terreno e em caminhos dos prédios, no que despendeu 11 008 EUR;
. goza do direito de retenção na entrega dos imóveis até ser pago o valor das benfeitorias;
. adquiriu por usucapião o imóvel Boucinha ..., cuja referida doação terá ocorrido em 2000.
Pede:
. absolvição da instância por ilegitimidade;
. se assim não se entender, a sua absolvição.
Em sede de reconvenção, peticiona que se reconheça:
a) o seu crédito a título de benfeitorias, acrescido de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;
b) o direito de retenção dos prédios rústicos e da habitação até total e efetivo pagamento da indemnização identificada na al. a), suspendendo-se a obrigação de restituir enquanto não lhe for paga a indemnização;
c) a aquisição do terreno Boucinha ... por usucapião.
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A Autora apresentou réplica onde negou a versão factual apresentada pelo Réu e pugna pela improcedência da reconvenção.
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Realizou-se audiência prévia tendo o tribunal convidado a Autora a sanar a apontada ilegitimidade.
A Autora suscitou a intervenção principal provocada da mulher do Réu, o que foi deferido.
Foi, em sede de despacho, convidado o Réu/reconvinte a fazer intervir todos os herdeiros da Autora/reconvinda a fim de se assegurar a legitimidade passiva no pedido reconvencional.
A mesma reconvinte assim o fez, deduzindo pedido de intervenção dos herdeiros DD, EE, FF, GG e HH.
Tal pedido foi deferido.
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Após os mesmos declararem fazerem seus os articulados apresentados pela Autora/reconvinda herança, realizou-se audiência prévia onde, entre outras situações que ora não relevam, se fixou como
- Objeto do litígio - averiguação na natureza do acordado quanto à cedência dos prédios identificados nos autos, bem como da realização de benfeitorias pelo Réu (e respetivas circunstâncias) e, por fim, da aquisição, por parte do Réu, do prédio por si revindicado e identificado nos autos e
Temas da prova:
«1. Do acordado entre o falecido marido e pai dos Autores e Réu quanto à cedência dos prédios rústicos identificados nos autos, designadamente, período temporal, retribuição e realização de “benfeitorias”;
2. Da realização de “benfeitorias” no imóvel destinado a habitação designado por “Quinta ...”, sua identificação e respectivo valor;
3. Da doação verbal, por parte do falecido marido e pai dos Autores ao Réu do prédio rústico denominado “Boucinha ...” e respectivo circunstancialismo, designadamente temporal;
4. Da prática de actos materiais, por parte do Réu, relativamente ao prédio rústico denominado “Boucinha ...” e respectiva intenção/convicção, período temporal e forma dos mesmos.».
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Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou totalmente procedente a ação e, consequentemente, condenou o Réu a restituir aos Autores os prédios rústicos descritos em 1. dos factos provados, livre de pessoas e bens e julgou improcedente o pedido reconvencional deduzido pelo Réu, dele se absolvendo os Autores.
A Autora pediu, em 18/04/2023, a retificação da decisão no sentido de a condenação de restituição dos imóveis também abranger a Ré mulher.
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Inconformado, recorre o Réu, formulando as seguintes conclusões:
«1 – Atenta toda a prova produzida, quer pericial, quer documental, quer testemunhal em sede de audiência de julgamento, de forma totalmente incompreensível, foram dados como provados factos que, salvo o devido respeito por melhor opinião, deveriam ter merecido resposta negativa, e outros, ao invés, que foram julgados não provados quando deveriam ter sido julgado provados.
2 – Tendo a prova sido devidamente gravada, o presente recurso pode ser, e é, de facto e de direito.
DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE ARRENDAMENTO VS CEDÊNCIA DO USO/GOZO DOS PRÉDIOS
3 – É referido na sentença, em suma, que “tendo em consideração que, como resultou apurado, o aqui Réu passou a explorar as mesmas terras, tal como o seu falecido pai, e não tendo existido qualquer outro contrato, o mesmo assumiu a mesma posição que o seu falecido pai no contrato que celebrou com o falecido autor da herança qui A., com a correspetiva obrigação de pagamento da renda, à exceção do período de isenção que foi acordado”.
4 – Salvo o devido respeito, não entendeu o Tribunal da importância que é, do interesse que existe, do valor e até da obrigação que os proprietários têm em manter os seus terrenos limpos e tratados.
5 – Para além do imagem e aspecto que dão, pois não é indiferente apresentarem-se como velhos, degradados e abandonados, ao invés de limpos e tratados, para além de diminuírem os riscos de incêndio, aumentam consideravelmente o seu valor (isto é objetivo, de fácil entendimento).
6 – Ora, foi isto que o Réu CC se comprometeu com o senhor AA: manter os seus terrenos limpos. Era esta a sua contrapartida.
7 – O Réu CC não assumiu com o senhor AA uma obrigação ou compromisso igual àquele que havia sido assumido pelo pai nem assumiu a mesma posição que o seu falecido pai.
8 – Como resulta dos autos, acordo entre o Réu CC e o senhor AA foi celebrado em 1993.
9 – Também como resulta dos autos, o senhor AA faleceu no ano de 2007 e só no ano de 2015 é que a Autora e/ou intervenientes alegam ter contacto o Réu CC para reduzirem o contrato a escrito. 10 – SÓ 22 ANOS DEPOIS É QUE SE PREOCUPARAM COM O NÃO PAGAMENTO DA RENDA?
11 – DURANTE ESTES 22 ANOS, NEM O SENHOR AA E DEPOIS OS SEUS HERDEIROS, AUTORA E INTERVENIENTES NADA FIZERAM QUANTO AO ALEGADO NÃO PAGAMENTO DA RENDA?
12 – Por este singelo facto se verifica que efectivamente a obrigação de pagar qualquer renda nunca existiu.
13 – Tais factos foram confirmados pelo Réu CC e pelas testemunhas II e JJ conforme depoimentos supra transcritos.
14 – Devem pois dar-se como não provados ao factos elencados nos números 3, 6, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 17, 25, 27, 28 e 29 do elenco dos factos provados.
15 – Ao invés, deve dar-se como provado que:
a) No âmbito deste contrato não foi fixada, nem existe, qualquer renda ou contrapartida monetária pela cedência do uso/gozo dos prédios rústicos aqui em causa (Facto Não Provado em 2);
b) Nunca foi exigida ao Réu qualquer renda em dinheiro ou em dinheiro e géneros, pelo uso/gozo dos referidos prédios (Facto Não Provado em 3) Depoimento gravado em formato digital em uso no Tribunal, com início pelas 11:12 horas e termo pelas 12:29 horas. Depoimento gravado em formato digital em uso no Tribunal, com início pelas 14:20 horas e termo pelas 14:46 horas. Depoimento gravado em formato digital em uso no Tribunal, com início pelas 14:47 horas e termo pelas 15:11 horas.
16 – Assim sendo, como resultou provado, o acordo verbal celebrado entre o Réu CC e o senhor AA foi celebrado sem prazo (Facto Provado n.º 4).
17 – Nos termos do artigo 777º n.º2 do Código Civil “Se, porém, se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordarem na sua determinação, a fixação dele é deferida ao tribunal”.
18 – Assim, salvo o devido respeito por melhor, opinião, não poderiam a Autora e os intervenientes lançar mão de uma acção de reivindicação, sem primeiro lançar mão do necessário processo especial a fim, de através do mesmo, se fixar judicialmente prazo para os sobreditos efeitos.
DAS BENFEITORIAS
19 – Conforme resulta da matéria de facto provado em 22, 23 e 24, como supra se referiu, em suma, quando o Réu CC se mudou para a habitação a mesma encontrava-se degrada e inabitável, tendo lá realizado obras no valor de 12 659,83 €.
20 – Entendeu a Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” na sentença que “Igualmente não foi feita prova de qual a valorização que as obras que o Réu realizou trouxeram aos prédios, apenas tendo resultado provado, com base na perícia realizada e conforme consta do respetivo relatório, qual o valor das obras realizadas.”
21 – E justifica dizendo que “Veja-se que do relatório consta precisamente que: «O Perito entende que a valorização das construções dependo do uso que o beneficiário está a dar aos bens. Assim, para um determinado beneficiário as construções podem ser entendidas como uma mais valia, e para outro um ónus. O Perito apenas pode afirmar que a execução das construções teve um custo, assim como a remoção/demolição das mesmas terá um encargo»”.
22 – A afirmação do senhor Perito não é errada, errada é a conclusão tirada pelo Tribunal de que com essa afirmação se permita concluir que não existiu valorização das construções: O relatório pericial não diz isso, não diz que não existiu valorização.
23 – É que estamos a entrar no lado subjectivo da coisa, quando deveremos ver pelo lado objectivo.
24 – O Réu CC até poderia ter lá construído o Palácio de Versalhes que não retiraria legitimidade aos proprietários de dizerem, qualquer coisa do género, “esse Palácio (construção) não me beneficia: ou porque não gosto; ou porque vou ter que o deitar abaixo porque no terreno quero é plantar batatas ou pinheiros”, enfim…
25 – O que é certo, como ficou provado, é que antes a habitação estava degradada, e agora, não só a habitação como os prédios têm as obras/benfeitorias supra referidas, cujo valor é no mínimo de 12 659,83 €.
26 – Dúvidas pois não restam que essas obras, supra discriminadas, são todas elas úteis ou necessárias e aumentaram objectivamente o valor dos prédios, pelo que, ao abrigo dos artigos 1138º e 1273º do Código Civil, tem o Réu CC direito a ser indemnizado pelo valor das mesmas, pelo menos no montante de 11 008,00 € tal como se peticionou em sede de Reconvenção,
27 – Como direito tem, a que lhe seja conferido o direito de retenção, nos termos do artigo 755º n.º1 alínea e) do Código Civil, dos prédios rústicos e da habitação até ao pagamento total dessa indemnização decorrente das benfeitorias.
28 – Devendo por isso dar-se como não provado o facto n.º 26 do elenco dos factos provados, dando-se, ao invés, como provado o facto que “as obras realizadas pelo Réu valorizaram a propriedade, casa e os terrenos e permitiram assegurar essa mesma valorização” – Facto n.º 4 do elenco dos factos não provados.
DA AQUISIÇÃO DO PRÉDIO Boucinha ... POR USUCAPIÃO
29 – É referido na sentença, quanto à aquisição do prédio Boucinha ... por usucapião pelo Réu CC que “nenhuma foi feita quanto aos mesmos, sendo que em relação à matéria da reconvenção, não foi feita qualquer prova quer quanto à existência de uma “doação verbal” ao Réu do prédio rústico denominado “Boucinha ...”, nem que o mesmo tenha exercido quanto aos mesmos quaisquer atos como seu proprietário, sendo certo que todas as testemunhas afirmaram que o mesmo sempre se apresentou como caseiro dos terrenos e não como proprietário de qualquer um deles, sendo ceto que as testemunhas arroladas pelo Réu apenas afirmaram, de forma vaga e pouco precisa que ouviam dizer que tinha existido tal doação, mas nenhuma delas concretizou a quem, quando, ou como ouviu tal afirmação, nem nenhuma afirmou fatos concretos de onde resultasse que o réu tratava tal terreno como proprietário, sendo que o fato de lá plantar oliveiras é insuficiente para daí retirar tal conclusão.”
30 – Salvo o devido respeito por melhor opinião, não podemos perfilhar de tal entendimento, pois tais factos foram confirmados pelo próprio Réu CC e pelas testemunhas II e JJ, conforme depoimentos supra transcritos.
31 – Contudo, o mais incompreensível, é o referido na sentença relativamente à testemunha KK quando diz que “no essencial afirmou que na qualidade de Presidente da Junta sempre contatou com os Autores, na maior parte das vezes com o EE, quendo era necessário tratar de assuntos relacionados com as terras dos mesmos, nomeadamente assuntos relacionados com a limpeza do mato, sendo que também referiu que sempre que necessitava de falar com o Réu este se intitulava como o caseiro”.
32 – Ora, tal testemunha foi arrolada pela própria Autora e intervenientes e, aos costumes, referiu conhecer os Réus por serem da sua freguesia uma vez que foi Presidente da Junta de Freguesia .... Depoimento gravado em formato digital em uso no Tribunal, com início pelas 11:12 horas e termo pelas 12:29 horas.
Depoimento gravado em formato digital em uso no Tribunal, com início pelas 14:20 horas e termo pelas 14:46 horas. Depoimento gravado em formato digital em uso no Tribunal, com início pelas 14:47 horas e termo pelas 15:11 horas.
33 – Trata-se pois de uma testemunha totalmente imparcial e, na realidade, referiu mais do que aquilo que é referido na sentença.
34 – Portanto, melhor que esta testemunha ninguém, pela sua isenção, imparcialidade e razão de ciência, confirma a convicção existente lá na terra entre a povoação, que em relação ao prédio Boucinha ..., o Réu CC, não se intitulava como mero caseiro, mas sim como verdadeiro proprietário, conforme depoimento supra transcrito.
35 – Devendo pois ser dado como não provado que a herança indivisa, da qual a Autora é cabeça de casal, é dona e legítima proprietária do terreno denominado “Boucinha ...”,
36 – Dando-se, ao invés como provado que “o prédio rústico denominado “Boucinha ...”, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...95 da Freguesia ..., foi doado, verbalmente, pelo falecido Sr. AA ao aqui réu”.
37 – Atento ao supra exposto, como supra se referiu,
38 – Os factos referidos em 1 (na parte em que se refere ao prédio “Boucinha ...), 3, 6, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 17, 25, 26, 27, 28 e 29 do elenco dos factos provados devem pois ser dados como não provados.
39 – Ao invés, os factos referidos em 1, 2, 3 e 4 do elenco dos factos não provados devem pois merecer resposta positiva, devendo ser considerados como provados.
40 – Ao decidir da forma como decidiu, violou a sentença recorrida, entre outros, os artigos 755º n.º1 alínea e), 777 n.º2, 1138º, 1273º e 1287º e seguintes do Código Civil e 413º e 607º do Código de Processo Civil,
41 – Pelo que deve ser revogada e substituída por uma outra que julgue improcedente a presente acção, por não provada, absolvendo-se o Réu do pedido.
42– Mais deve a Reconvenção ser julgada provada e procedente e em consequência:
a) Reconhecer o crédito do Réu CC a título de benfeitorias executadas nos prédios em causa nos autos;
b) Reconhecer ao Réu CC o direito de retenção dos prédios rústicos e da habitação até total e efectivo pagamento da indemnização a título de benfeitorias;
c) Reconhecer a aquisição pelo réu do terreno “Boucinha ...” por usucapião.».
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A Autora/recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
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As questões a decidir são:
. apreciação da matéria de facto impugnada pelo recorrente que visa a não prova de que houvesse a celebração de um contrato de arrendamento, com a consequente necessidade de pagamento de renda e a prova de que lhe foi doado um dos terrenos e ainda que adquiriu esse terreno por usucapião;
. em termos jurídicos, importa determinar:
. a natureza do acordo celebrado entre as partes;
. o regime legal aplicável;
. modo e tempo de cessação do mesmo acordo;
. a eventual aquisição de propriedade de um dos imóveis por doação e/ou usucapião;
. classificação das obras (benfeitorias) realizadas pelo Réu e seu eventual ressarcimento.
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2). Fundamentação.

2.1). De facto.

Foram julgados provados os seguintes factos:
«1 – A herança indivisa, da qual a Autora é cabeça de casal, é a dona e legítima proprietária dos seguintes prédios rústicos:
- terreno denominado “Campo ...”, com a área de 0,060000 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...74 da Freguesia ..., com o valor patrimonial de 13,83€;
- terreno denominado “Leiras ...”, composto por cultura e videiras em cordão, com a área de 0,150000 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...72 da Freguesia ..., com o valor patrimonial de 34,46€;
- terreno denominado “Campo e Bouça ...”, composto por cultura, videiras em cordão, pinhal e mato, com a área de 0,80000 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...70 da Freguesia ..., com o valor patrimonial de 60,79€;
- terreno denominado “Leira ... e ...”, composto por cultura e videiras em cordão, com a área de 0,210000 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...68 da Freguesia ..., com o valor patrimonial de 33,36€;
- terreno denominado “...”, composto por cultura e videiras de cordão, com a área de 0,105000 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...66 da Freguesia ..., com o valor patrimonial de 30,51€;
- terreno denominado “Quinta ...”, composto por cultura, pastagem, ramada, fruteiros, videiras em cordão, castanheiro, pinhal e mato, com a área de 3,130000 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...63 da Freguesia ..., com o valor patrimonial de 788,78€;
- terreno denominado “Bouça ... ou ...”, composto por cultura, oliveiras, ramada, videiras em cordão, mato, sobreiros e pastagem, com a área de 0,930000 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...34 da Freguesia ..., com o valor patrimonial de 151,65€;
- terreno denominado “Leira do...”, composto por pastagem, oliveiras e videiras em cordão, com a área de 0,10000 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...31 da Freguesia ..., com o valor patrimonial de 23,48€;
- terreno denominado “Leiras ... e do ...”, composto por pastagem, oliveiras, videiras em cordão e ramada, com a área de 0,105000 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...29 da Freguesia ..., com o valor patrimonial de 26,56€;
- terreno denominado “Bouça ...” composto por pinhal e mato, com a área de 0,720000 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...12 da Freguesia ..., com o valor patrimonial de 28,97€; e
- terreno denominado “Boucinha ...” composto por pinhal, mato e eucaliptal, com a área de 2,280000 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...95 da Freguesia ..., com o valor patrimonial de 84,39€.
2 – Por acordo verbal celebrado em data não concretamente apurada, mas no ano de 1993, o falecido marido da Autora e autor da herança, cedeu ao Réu o uso e exploração dos prédios rústicos identificados em 1.
3 - Mediante a entrega em dinheiro do resultado da venda de metade da produção agrícola e vitivinícola que fosse produzida, como contrapartida do gozo dos terrenos acima identificados.
4 - Esse contrato verbal foi celebrado sem prazo.
5 – O falecido marido da Autora assegurou ao Réu o gozo dos prédios rústicos, sem que o tenha perturbado.
6 - Sucede que o aqui Réu nunca pagou ao marido da Autora a renda referida em 3., correspondente à contrapartida do gozo dos terrenos acima identificados.
7 – Dos prédios rústicos objeto do alegado contrato faz parte integrante um imóvel destinado a habitação, designado por “Quinta ...”.
8 – Tal habitação foi cedida ao Réu, pelo falecido autor da herança indivisa, enquanto aquele trabalhasse as terras e cumprisse o estipulado no contrato, à semelhança do que já tinha sido acordado com o seu pai, anterior caseiro dos terrenos em causa.
9 - No referido contrato verbal ficou acordado que durante os primeiros 5 anos, o Réu estava dispensado do pagamento da renda por conta de ele próprio proceder à limpeza, preparação dos campos e realização de obras de recuperação da habitação em questão para a poder habitar.
10 - Passado esse período o Réu pediu um prolongamento pelo período de mais 2 anos, alegando ter realizado melhorias na habitação, o que lhe foi concedido.
11 - O Réu, quando jovem, já tinha habitado a referida habitação, no período em que o seu pai foi o “caseiro” dos terrenos em causa.
12 – O período de carência referido em 9. teve também por objectivo permitir que o Réu procedesse à limpeza dos terrenos para cultivo devido ao estado de abandono em que estes estavam há já alguns anos e após o falecimento do seu pai.
13 - Foi o Réu que procurou o falecido AA a manifestar o seu interesse no cultivo da “quinta” nas mesmas condições contratuais do seu pai, anterior “caseiro”.
14 - Entretanto, o proprietário dos imóveis em questão adoeceu e foi permitindo que o Réu se mantivesse nas terras, até ao falecimento daquele.
15 - Após o falecimento do autor da herança indivisa, a Cabeça-de-Casal, através do seu filho FF, propôs ao Réu que o referido arrendamento rural fosse reduzido a escrito.
16. No entanto, o mesmo não foi reduzido a escrito porque o Réu se recusou a fazê-lo.
17 - Por consideração ao facto do Réu, nesse momento, ter filhos de tenra idade, a Cabeça de Casal foi permitindo que este continuasse a cultivar os terrenos na esperança que este começasse a cumprir com o acordado.
18 - A Autora, através de contacto pessoal por intermédio de Agente de Execução, ocorrido em 18 de Outubro de 2017, comunicou ao Réu a sua intenção de resolver o referido contrato de arrendamento celebrado pelo falecido marido da Autora com o Réu, pretendendo a restituição da posse dos prédios rústicos acima identificados, com efeitos a contar da data da notificação pessoal dessa intenção.
19 - Em tal comunicação exigiu a Autora do Réu a entrega do locado livre de pessoas e bens, no prazo de um ano, contado da referida notificação, o que até à presente data não sucedeu.
20 – Enquanto os mencionados terrenos foram explorados e cultivados pelo Pai do Réu aquele pagava ao falecido marido da Autora uma renda que consistia em entregar a este uma parte da produção de vinho e cereais que aí cultivava.
21 - O Réu, por sua vez, nunca entregou qualquer quantia monetária, ou em géneros, como renda pelo uso/gozo dos prédios rústicos.
22 - Quando o Réu se mudou para a habitação referida supra em 7. e 8. a mesma encontrava-se degradada e inabitável.
23 – As obras que o Réu realizou na habitação por forma a poder lá habitar, mencionadas em 9., foram:
- Colocação de duas portas de ferro, cinco janelas;
- Construção de uma placa (laje aligeirada) na zona da sala com aplicação de tijoleira;
- Construção de placa (laje aligeirada) no chão e teto de dois quartos e numa casa-de-banho, com a aplicação de tijoleira no chão destas divisões, azulejos nas paredes da casa de banho e a rede de abastecimento de água e de drenagem das águas residuais;
- Construção de mais duas placas de dois quartos com aplicação de tijoleira;
- Construção da estrutura da corte dos animais com vigas, chapas e placa;
- Trocou telhas do telhado da habitação;
- o Réu fez ainda um poço com 9,20 metros de profundidade e 1,35 m de diâmetro exterior;
- Construiu um tanque em betão com 5,80 m de comprimento, 3,45 m de largura e 1,45 m de profundidade;
- reabilitou os caminhos ao longo dos prédios rústicos por onde passam os tratores, facilitando a circulação dos mesmos pelos campos.
24 - Nos termos da perícia efetuada nos autos, o valor de tais obras ascende ao montante de €12.659,83.
25 - Quando o seu pai faleceu, o Réu procurou o falecido AA, autor da herança, a manifestar o seu interesse no cultivo da “quinta” nas mesmas condições contratuais do seu pai, anterior “caseiro”.
26 - Todas as obras realizadas nos terrenos foram da iniciativa e interesse do Réu e como tal da sua inteira responsabilidade.
27 - O imóvel destinado a habitação foi cedida ao Réu, pelo falecido autor da herança indivisa, enquanto este trabalhasse as terras e cumprisse o estipulado no contrato, à semelhança do que já tinha sido acordado com o seu pai, anterior inquilino rural dos terrenos em causa.
28 - Os cinco anos de carência de pagamento de renda foram acordados devido a às obras efetuadas pelo Réu na habitação a fim de a poder habitar condignamente.
29 - Esse período de carência teve também por objetivo permitir que o Réu procedesse à limpeza dos terrenos para cultivo devido ao estado de abandono em que estes estavam há já alguns anos.».
E resultaram não provados:
«1 - O prédio rústico denominado “Boucinha ...”, inscrito na matriz predial rústica sob o número ...95 da Freguesia ..., foi doado, verbalmente, pelo falecido Sr. AA ao aqui réu.
2 - No âmbito deste contrato não foi fixada, nem existe, qualquer renda ou contrapartida monetária pela cedência do uso/gozo dos prédios rústicos aqui em causa.
3 - Nunca foi exigida ao Réu qualquer renda em dinheiro ou em dinheiro e géneros, pelo uso/gozo dos referidos prédios.
4 - As obras realizadas pelo Réu valorizaram a propriedade, casa e os terrenos, e permitiram assegurar essa mesma valorização.».
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2.2). Do recurso.

A). Impugnação da matéria de facto.
O recorrente pretende que os factos provados 3, 6, 9, 10, 13 a 15, 17, 25, 27 a 29 sejam dados como não provados.
O recorrente questiona a decisão do tribunal recorrido porque atendeu, na sua maior extensão, ao que foi declarado pelos representantes da Autora; e, em defesa da sua versão, apresenta como maior suporte o declarado pelo próprio Réu e seus familiares, o que então mostra que o problema não seria ter-se ponderado depoimentos de pessoas com interesse no desfecho da ação, mas sim ter-se ponderado o teor de depoimentos contrários à versão do recorrente.
Numa ação como a presente, em que as pessoas que terão tido intervenção direta (AA) ou poderiam ter conhecimento direto (pai do Réu) no tipo de acordo celebrado já faleceram, é natural que sejam os próprios intervenientes (Réu) ou familiares (de ambas as partes) que possam ser quem mais dominem o conhecimento dos factos.
Depois, se a situação for relativamente pública, podem colher-se depoimentos que demonstrem algum tipo de conhecimento direto sobre o acordo (por exemplo, não tendo o contrato de arrendamento ou a doação que são alegados nos autos, sido reduzidos a escrito, alguém que tenha sido contactado e tenha aconselhado a não o fazer ou a reduzir a escrito, não tendo as partes seguido esse conselho) ou que transmitam indícios sobre qual poderá ter sido o conteúdo do acordado (por exemplo, a topógrafa LL referiu que efetuou um levantamento topográfico por contacto do Réu, que se apresentou como caseiro da Senhora BB, o que indicia que o mesmo seria alguém que estava a tomar conta dos terrenos em causa).
Ora, ouvida toda a produção de prova, desde logo pensamos que a qualidade dos depoimentos das testemunhas do Réu foi insuficiente para se dar como provada a sua versão. Na verdade, todos os seus depoimentos (II e JJ, irmãos do Réu, MM, sobrinha do Réu, filha de II) ou nada sabiam em concreto (a última) ou produziram depoimentos vagos ou ainda no sentido de que o trabalho do Réu já era suficiente para pagar renda e que tinha efetuado obras mas nada de concreto sobre o tipo de contrato que o ligava ao cuidar dos terrenos.
Quanto à doação, ainda mais patente se tornou a falta de conhecimento, surgindo meras afirmações conclusivas – achou estranho o Réu andar a plantar no meio do monte e o Réu respondeu que lhe tinham dado aquele bocado de terreno (II) ou que o Réu disse que patrão lhe tinha dado o terreno há 15 ou 20 anos (JJ).
Não há qualquer elemento objetivo que demonstre a referida doação da «Boucinha ...» e os depoimentos das testemunhas não permitem essa conclusão.
No que se reporta às declarações do Réu, o que ressalta é que admite que ficou na Quinta em questão após a morte do seu pai e que realizou obra de melhoramento da casa, em parte com material (madeira e louças sanitárias) fornecidas pela Autora e que quando lhe foi proposto pagar uma renda pelo uso da quinta, recusou alegando que não queria pagar dinheiro, tendo investimentos com subsídios (do que percebemos, ao fazer referência ao IFADAP).
Mas, estando aceite entre as partes que o pai do Réu era caseiro da quinta em causa, pagando uma renda em géneros, falecendo o mesmo e continuando o seu filho a tratar dos terrenos, não assume, para nós, lógica que houvesse uma cedência gratuita do uso do imóvel (ao que acresce a também falta de razoabilidade de uma doação verbal de um imóvel quando uma anterior doação ao pai do Réu teria sido efetuada de modo formal).
Avançando para a análise da prova da Autora, também aqui a maioria dos depoimentos teve como origem o afirmado pelos filhos do falecido AA e viúva.
E concordamos que a prova em causa não foi exímia no sentido de que não restarão dúvidas sobre o tipo de contrato celebrado com o Réu, o modo da sua execução ou o motivo de ter decorrido bastante tempo entre o falecimento de AA e a tentativa de fixação de o Réu ter direito ou não a ocupar o terreno.
Mas, tal como referido pelo tribunal recorrido, também pensamos que o que terá sido acordado com o Réu e o de cuius seria a continuação do arrendamento da quinta em moldes semelhantes aos que iam vigorando com o pai deste – pagamento com base nos rendimentos do prédio -.
Assim o referiram os herdeiros HH, AA, FF, GG. O contrato seria nos mesmos moldes daquele que já existia com o pai do Réu e ainda foi referido que este ia sempre mencionando que não tinha que entregar por a quinta não dar nada.
Esta uniformidade de depoimentos, revelando sinceramente que não sabiam determinados pormenores ou que o conhecimento advinha do que iam ouvindo em conversas de família, aliada com ser verosímil que assim suceda (conferem-se condições, à partida, iguais às que o pai tinha para ambos – senhorio e arrendatário - poderem usufruir da produção), fez-nos crer que efetivamente foi celebrado um contrato nos referidos termos, ou seja: cedência ao Réu do uso e exploração dos prédios rústicos identificados em 1, dos factos provados, mediante o pagamento; este, como mencionado corresponderia a metade da produção agrícola e vitivinícola (1/2 de cereais e vinho, como até foi referido pelo Réu mas em relação ao contrato que havia em relação a seu pai). Não se afigurando que estivesse em causa fazer renascer a abolida parceria agrícola com o pagamento de renda em géneros, pensamos que efetivamente as partes terão acordado no pagamento da quantia correspondente àquelas quantidades vendidas de cereais e vinho,
No entanto, como também referido pelos herdeiros, durante cinco anos tal valor não seria exigível atenta atuação do Réu no sentido de cuidar das terras que estavam sem tratamento há uns anos e para o arranjo da habitação.
O Réu admitiu que nunca pagou qualquer quantia, ainda que mencionasse que não o fez porque não o tinha de fazer.
Assim, os factos provados 3, 6 e 9 mantêm a sua redação.
Também foi referido, pelos mesmos herdeiros, que àqueles cinco anos, foi pedido pelo Réu mais dois anos de acréscimo de não pagamento da renda, o que também se afigura coerente pois não vemos motivo para a herança se querer prejudicar referindo um maior período de tempo sem receber proventos do uso do terreno pelo Réu.
Assim, também o facto provado 10 mantém a sua redação.
O facto de o contrato ter sido a pedido do Réu é algo que é irrelevante; o que tem importância in casu é saber que contrato foi celebrado e não de quem partiu a iniciativa.
Assim, elimina-se este facto 13 por não ser facto essencial para a decisão.
A permissão de permanência do Réu nos terrenos, por inércia do autor da herança que adoeceu (e inércia dos herdeiros) foi algo que foi referido em julgamento pelos mesmos, fosse por problemas particulares fosse por algum tipo de simpatia com o Réu e a sua situação pessoal. Essa situação de inércia foi igualmente referida como sucedendo após a proposta, recusada pelo Réu, de redução a escrito de um contrato (ainda que em outros moldes).
Mas que a inércia tenha sido por consideração ao Réu ou por falta de vontade em agir ou outro tipo de sentimento ou que tivesse esperança de começar a pagar é algo que a prova não foi minimamente suficiente.
Assim, a redação do facto 17 passa a ser a seguinte:
17 -A cabeça de casal da Autora foi permitindo que este continuasse a cultivar os terrenos.
A restante parte é eliminada, não passando para os factos não provados por não ter relevo.
O facto 14 mantém-se inalterado.
O facto 25 é algo semelhante ao eliminado 13 – iniciativa do Réu em celebrar contrato -, acrescentando, no fundo, o que já consta do facto provado 3 (pagamento da renda e valor) - pelo que também se elimina esta factualidade inserta no indicado n.º 25.
Quanto ao facto 26, o mesmo tem o seguinte teor:
Todas as obras realizadas nos terrenos foram da iniciativa e interesse do Réu e como tal da sua inteira responsabilidade.
Não vislumbramos qual o motivo que o recorrente alega para não se dar como provado que as obras que realizou foram da sua iniciativa não só porque em julgamento o que referiu foi que decidiu fazer obras e mencionou quais as que realizou, nunca expressando que alguém lhe impôs a sua realização.
Por outro lado, a redação alternativa que propõe (as obras realizadas por si valorizaram a propriedade, casa e os terrenos e permitiram assegurar essa mesma valorização) que é o atual facto não provado não faz sentido pois são realidades diferentes: iniciativa e interesse nas obras e valorização dos prédios, respetivamente.
A parte final do facto – da sua responsabilidade – é inócua e nem se percebe, em termos factuais, o que pretende significar; e se está em causa algum tipo de apreciação jurídica (responsabilidade no sentido de assumir o seu custo, então só em sede de apreciação jurídica se atenderá a esse aspeto; poderia ter interesse saber se foram consentidas mas o ser da sua responsabilidade não permite que se conclua, com clareza, que é essa eventual falta de consentimento que está em causa).
Assim, por ser matéria jurídica, elimina-se a parte final do facto 24 (e como tal da sua inteira responsabilidade) e mantém-se a redação da parte restante.
Os factos 27 a 29 mantêm igualmente a sua redação pelo que já referimos (motivação do acordo celebrado com o Réu e seus termos, incluindo período de carência de cinco anos).
Quanto aos factos não provados nºs.1 a 3, sendo o reverso do que resultou provado (falta de prova de doação de imóvel, de cedência gratuita de terreno para exploração), nada mais temos a acrescentar ao já referido, mantendo-se assim esta não prova.
O facto 4 refere-se à não valorização do imóvel com as benfeitorias, matéria que, atendendo a que existem outros factos (realização das obras e seu valor) que poderão permitir aferir, se necessário, se ocorre essa valorização ou não, acaba por ser desnecessária: se os factos que relevam estão elencados, então em sede de apreciação jurídica ir-se-á apreciar se houve ou não valorização do imóvel, se tal se revelar importante.
O tribunal antecipou essa análise jurídica em sede factual, motivo pelo qual se elimina este facto não provado 4.
*
B). Da análise jurídica.
A). Do contrato.
O tribunal recorrido entendeu que o Réu celebrou um contrato de arrendamento rural com o autor da herança aqui recorrida, em 1993, contrato esse que se veio prolongando no tempo até outubro de 2018 (factos 18 e 19).
Em 1993 estava em vigor o Decreto-Lei n.º 385/88, de 25/10, redação original.
Entretanto, em 13/01/2010 entrou em vigor uma nova lei de arrendamento rural (Decreto-Lei n.º 294/2000, de 13/10/2009) – artigo 44.º, n.º 1, do mesmo diploma -.
Neste também se menciona, no artigo 39.º, quanto à aplicação no tempo e no que aqui releva, que:
1). Aos contratos de arrendamento rural, celebrados a partir da data de entrada em vigor do presente decreto-lei, aplica-se, obrigatoriamente e na íntegra, o regime nele previsto.
2). Aos contratos de arrendamento, existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, aplica-se o regime nele prescrito, de acordo com os seguintes princípios:
a) O novo regime apenas se aplica aos contratos existentes a partir do fim do prazo do contrato, ou da sua renovação, em curso;
Atendendo aos factos, pensamos ser correta a integração do acordo celebrado entre aquelas pessoas num contrato de arrendamento rural que é definido como sendo:
. a locação de prédios rústicos para fins de exploração agrícola ou pecuária, nas condições de uma regular utilização, presumindo-se rural esse arrendamento que recai sobre prédios rústicos quando do contrato e respetivas circunstâncias não resulte destino diferente – artigo 1.º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25/10;
. a locação, total ou parcial, de prédios rústicos para fins agrícolas, florestais, ou outras atividades de produção de bens ou serviços associados à agricultura, à pecuária ou à floresta – artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13/10, existindo igual presunção de celebração desse tipo contratual (n.º 2, do mesmo artigo).
Estando provado que ocorreu aquele acordo verbal celebrado, em 1993, de se ceder ao Réu o uso e exploração dos prédios rústicos acima identificados em 1), mediante o pagamento de dinheiro como contrapartida do gozo dos terrenos acima identificados, pensamos que efetivamente foi celebrado este tipo de contrato, sendo o Réu o arrendatário e a atual herança, aberta por óbito de AA, a senhoria.
Naqueles prédios inclui-se uma casa que também é abrangido pelo arrendamento rural – artigo 2.º, n.º 1, parte final, do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25/10.
Tal contrato foi celebrado sem prazo pelo que, à data em que foi outorgado, tem que se presumir entender que o foi pelo período mínimo que a lei estabelecia[1], atento o disposto no artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25/10, a saber:
1). Os arrendamentos rurais não podem ser celebrados por prazo inferior a dez anos, a contar da data em que tiverem início, valendo aquele se houver sido estipulado prazo mais curto.
2). Nos arrendamentos ao agricultor autónomo o prazo referido no número anterior é de sete anos.
Tendo o contrato tido como arrendatário unicamente o Réu, pensamos que há que aferir se o mesmo se pode classificar como um agricultor autónomo.
O regime do contrato de arrendamento rural em causa adotou a noção de agricultor autónomo, a qual constava da Lei de Bases da Reforma Agrária (Lei n.º 109/88, de 26/09, aplicável conforme artigo 39.º, do mesmo regime de arrendamento rural), no seu artigo 3.º, ponto 4, como sendo o titular de uma exploração do tipo familiar, quando esta empresa agrícola é constituída por uma pessoa singular que, permanente e predominantemente, utiliza a atividade própria ou de pessoas do seu agregado doméstico, sem recurso ou com recurso excecional ao trabalho assalariado), No atual regime do contrato de arrendamento rural não existe esta noção nem a distinção entre tipos de exploração para se definir o prazo – todos os contratos têm o prazo mínimo de duração de sete anos – artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13/10 -.
Entretanto, aquela Lei de Bases da Reforma Agrária foi revogada pela Lei n.º 86/95, de 01/09 (Lei de Bases do Desenvolvimento Agrário), não contendo também esta definição, sendo que no seu artigo 21.º, n.º 1, a), se menciona que se integram no conceito de empresa agrícola a empresa agrícola de tipo familiar, suportada pela exploração agrícola cujas necessidades de trabalho são asseguradas predominantemente pelo agregado familiar do respetivo titular, e não pela utilização de assalariados permanentes.
São noções semelhantes em que a tónica assenta em estar em causa uma empresa familiar, com recurso excecional (a existir) a assalariados.
Tendo em atenção a data de celebração do contrato (1993), estando ainda em vigor a Lei de Bases da Reforma Agrária, importa então aferir se se pode classificar o Réu como um agricultor autónomo.
Pensamos que se deve reconhecer que não há abundância de factos sobre esta questão, sendo que apenas se pode referir o facto provado 9 onde se menciona que no contrato ficou acordado que durante os primeiros 5 anos, o Réu estava dispensado do pagamento da renda por conta de ele próprio proceder à limpeza, preparação dos campos e realização de obras de recuperação da habitação em questão para a poder habitar.
Mas estes trabalhos não são aqueles que visam explorar terrenos, mas antes limpá-los e prepará-los para que ocorra a exploração, além de se referirem a obras numa casa desabitada e não num terreno.
Nem sequer sabemos como o pai do Réu explorava os terrenos para eventualmente se poder obter uma equivalência de tipo de atuação nem, em concreto, que tipo de exploração era efetuada (que tipo de produção havia e em que quantidade).
Por isso, não se conseguindo classificar o Réu como um agricultor autónomo, há que seguir a regra geral de que o contrato foi celebrado por 10 anos o qual seria renovado por períodos sucessivos de três anos, enquanto não fosse denunciado – n.º 3, do citado artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25/10 -.
Temos assim que o Réu arrendou aqueles prédios rústicos, onde se inclui uma habitação (designada por Quinta ... – facto provado 7 -), em 1993, pelo prazo de dez anos, pagando a renda, em dinheiro, equivalente ao resultado da venda de metade da produção agrícola e vitivinícola que fosse produzida.
Durante sete anos ficou dispensado de pagar renda, ou seja, até ao último dia do ano 2000 (uma vez que se desconhece a data concreta de celebração do contrato).
A seguir, sabemos que até 18/10/2017 (facto 18), o falecido senhorio e a Autora foram permitindo que o Réu explorasse os terrenos (factos 14 e 17) até que naquela data lhe comunicou a sua intenção de resolver o contrato de arrendamento.
Nessa tal comunicação exigiu-se que o Réu entregasse o locado livre de pessoas e bens no prazo de um ano a contado da referida comunicação, o que ainda não sucedeu (factos 18 e 19).
Aí se refere, conforme consta do documento n.º 2, junto com a petição inicial, que o fundamento para tal pedido era o de nunca ter sido paga a respetiva renda que, já vimos, só teria que começar a ser paga a partir de janeiro de 2001 (sete anos de carência, a contar de 31/12/1993).
Está provado que a renda nunca foi paga (facto 21).
Conforme já indicamos, o novo regime legal do contrato de arrendamento rural que emerge do Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13/10, estatui que o seu regime se aplica, aos contratos pré-existentes, após o fim do prazo ou da sua renovação, em curso; porém, também este diploma dispõe que:
Artigo 41.º - Alteração dos contratos existentes – os contratos de arrendamento rural existentes à data de entrada em vigor do presente decreto-lei devem, no momento da sua renovação, ser alterados em conformidade com o mesmo; e
Artigo 44.º - Entrada em vigor e produção de efeitos - sem prejuízo do disposto no artigo 39.º, o presente decreto-lei apenas produz efeitos relativamente aos contratos de arrendamento existentes na data da sua entrada em vigor, após os mesmos serem alterados nos termos estabelecidos no artigo 41.º
Deste modo, se o novo regime se aplica a contratos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor, aquela norma de aplicação da lei no tempo só é aplicável (assim produzindo efeitos) após os antigos contratos serem alterados em conformidade com o novo regime legal.
Este, no artigo 7.º, impõe várias formalidades ao contrato, desde logo o ser celebrado na forma escrita (n.º 1), além de outras - identificação completa das partes, do bem objeto de arrendamento, do fim a que se destina, valor da renda, data de celebração -.
No caso concreto, o contrato nem sequer foi reduzido à forma escrita[2], pelo que não se pode aplicar aquele novo regime.
Por isso, nos termos do artigo 21.º, a), do indicado Decreto-Lei n.º 385/88, de 25/10, está preenchido o fundamento de resolução contrato de arrendamento – falta de pagamento de renda no tempo próprio -.
Naturalmente, como alega o recorrente, imediatamente pode surgir a questão de que só passados dezasseis anos é que a atual senhoria decide agir, não tendo durante aquele período intentado a ação de despejo nem, pelo menos por escrito, solicitado o pagamento da renda.
Apesar de não qualificar juridicamente a possibilidade que se aventa no seu recurso, poderia estar em causa de que Autora estava a atuar em abuso de direito por, decorrido tão longo período temporal, nunca tendo acionado o Réu, vir então pedir a resolução do contrato – artigo 334.º, do C. C. -.
O certo é que, desde logo, o recorrente/Réu não alega que estava convencido que já não iria ser pedido qualquer pagamento de renda ou que já lhe tinha sido transmitido que tal pagamento não tinha de ocorrer.
A primeira situação, enquadrável numa supressio, poderia ocorrer se houvesse:
. um não-exercício prolongado;
. uma situação de confiança, daí derivada;
. uma justificação para essa confiança;
. um investimento de confiança;
a imputação da confiança ao não-exercente – Menezes Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspetivas, R. O. A., setembro 2005, II, (in portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/) -.
No caso, a único pressuposto que se preenche é o não exercício do direito de resolução do contrato prolongado; mas não se consegue retirar que dessa inércia possa ter nascido uma eventual confiança de que não lhe iria ser exigido o pagamento da renda ou a resolução do contrato por falta do pagamento da renda. Sabe-se que esta é paga anualmente (artigo 7.º, n.º 4, Decreto-Lei n.º 385/88, de 25/10) pelo que se pode admitir que durante dezasseis anos havia tempo suficiente para se procurar ou obter o pagamento de renda ou sancionar o arrendatário pela sua falta.
Mas, o que se sabe é que passou esse tempo e que houve inércia em se atuar mas nada mais do que isso, ou seja, desconhecemos (em termos de factos provados) se a Autora pediu o pagamento nalgum ano e qual teria sido a resposta do Réu (por exemplo, como foi mencionado em julgamento que sucedeu, que não havia nada para pagar por a produção não o ter permitido), o que poderia levar a concluir que a senhoria tinha criado a confiança no arrendatário que não haveria consequências para o não pagamento. Note-se que o recorrente o que alega é que nunca teria de pagar qualquer renda pois teria sido esse o teor do acordado.
Acresce que se está perante uma atividade agrícola que, ao longo de cerca de década e meia pode ter períodos de baixa rentabilidade mas outros de maior, o que sempre implicaria uma análise mais detalhada sobre o que sucedia em cada ano para se poder concluir que haveria abuso de direito.
A segunda situação recairia num venire contra factum proprium mas de todo tal se apura: o senhorio tenha de adotado um conduta de que não iria retirar consequências pelo não pagamento da renda e depois as venha a retirar.
Prosseguindo, não tendo pago qualquer renda, não havendo consequência para a dilação temporal em causa que obste o exercício do direito da Autora, podia o contrato ser resolvido.
No caso, a resolução terá sido operada extrajudicialmente, com a notificação mencionada no facto 18 pois comunica-se a intenção de resolução, com efeitos a partir do seu recebimento e confere-se o prazo de um ano para a desocupação.
A notificação efetivou-se no dia 18/10/2017; quando foi publicado o regime do arrendamento rural que está a ser aplicado, um contrato de locação, tal como definido e regulado no Código Civil, tinha de ser resolvido judicialmente, nos termos do artigo 1047.º, do C. C. (A resolução do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do locatário tem de ser decretada pelo tribunal).
Com a nova redação desse artigo, advinda do Decreto-Lei n.º 6/2006, de 27/02, com entrada em vigor em 27/07/20026, temos que a resolução do contrato de locação pode ser feita judicial ou extrajudicialmente.
O regime do contrato de arrendamento rural (nem o aqui aplicável, nem o novo) não estatui qual o modo de operar a resolução (judicial ou extrajudicialmente).
Importa então aferir se em 18/10/2017, podia a Autora resolver o contrato mediante a indicada notificação judicial onde transmitia que, por força da falta de pagamento de rendas, o contrato se considerava resolvido.
A expressão «o senhorio só pode pedir a resolução…» que consta do citado artigo 21.º, n.º 1, tem um significado potencial que o senhorio só o pode fazer judicialmente pois é necessário ser formulado um pedido[3]; acresce que, como dissemos, quando foi publicada a indicada lei, a locação, mesmo a urbana, só podia ser cessada por resolução judicial.
Sucede que, quando ocorre aquela comunicação efetuada pela Autora, o Código Civil já permitia que a resolução de um contrato de locação urbana pudesse ser efetuada extrajudicialmente quando estivesse em causa a falta de pagamento de rendas (artigo 1084.º, n.º 2 – a resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista nos nº. 3 e 4 do artigo anterior bem como a resolução pelo arrendatário operam por comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida – redação de .).[4]
Esta possibilidade já também existia com a redação conferida pela Lei n.º 6/2006, de 27/06 (A resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista no n.º 3 do artigo anterioroperam por comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida.
O novo regime do arrendamento rural (também permite que a resolução opere por comunicação à contraparte – artigo 26.º, n.º 1 e 4, afigurando-se-nos que a ação de despejo, prevista no artigo 32.º, se apresenta como uma possibilidade e não como uma imposição pois com o contrato de arrendamento e a efetivação da notificação judicial avulsa, o senhorio obtém título executivo – artigo 33.º, n.º 1, todos do Decreto-Lei n.º 294/2000, de 13/10 -.
Temos então que, não constando do regime específico do arrendamento rural uma norma que, de modo claro (pelo menos para nós) determine como se pode efetivar a resolução, há que recorrer à aplicação de direito subsidiário de modo a procurar, no Direito existente, ainda que com recurso ao regime geral, para encontrar a resposta. E, na nossa opinião, com recurso ao regime geral do contrato de locação, com aplicação da norma constante do citado artigo 1047.º, do C. C., permite-se que o contrato de arrendamento possa ser cessado extrajudicialmente ou por via judicial.
Não encontramos qualquer óbice a que tal possa suceder no regime do contrato de arrendamento rural pois, se o senhorio entende que se mostra preenchido o requisito que fundamenta o despejo, comunica-o extrajudicialmente e o arrendatário, se não concordar, além de poder desde logo comunicar ao senhorio alguma oposição, pode manter-se no arrendado, aguardando pela propositura da ação em que o senhorio procura efetivar a resolução do contrato para contestar a cessação do contrato ou pode ainda intentar ação a negar os efeitos da resolução (como sucedeu na situação analisada no Ac. do S. T. J. de 22/06/2023, rel. Catarina Serra, www.dgsi.pt).
Por isso, entendemos que o contrato podia ter sido resolvido extrajudicialmente como foi, tendo sido igualmente preenchido o requisito substantivo para que se considere o mesmo efetivado – falta de pagamento de rendas -, tendo assim a Autora direito a ser-lhe entregue o imóvel.
*
A outra questão que se suscita no recurso é a aquisição de um terreno denominado Boucinha ... por usucapião.
No entanto, não há prova de que o recorrente cultivasse e/ou tratasse do terreno em causa imbuído de uma vontade de agir como dono, mas somente como arrendatário também desse imóvel, qualidade que impede que se possa concluir que praticou tais atos como possuidor, tal como exige o artigo 1287.º, do C. C..
Não consta dos factos qualquer situação de onde se possa retirar que o recorrente, ainda que arrendatário dos restantes imóveis, quanto a este tenha passado a atuar como dono, assim o demonstrando quer expressamente (comunicando-o ao senhorio) ou tacitamente – deixando de pagar parte da renda por entender que a exploração de tal terreno não estava abrangido no contrato de arrendamento -.[5] Assim, o recorrente era um detentor do imóvel, não sendo assim possuidor e não podendo adquiri-lo por usucapião.
Improcede esta argumentação.
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A última questão que é suscitada no recurso é a absolvição da recorrida/senhoria no que respeita ao pedido reconvencional de pagamento de benfeitorias efetuada pelo recorrente/arrendatário e possibilidade de reter a entrega do imóvel até que as mesmas sejam pagas.
Nos termos do artigo 15.º, n.º 3, do regime de arrendamento rural aqui aplicável, se houver resolução do contrato invocada pelo senhorio, ou quando o arrendatário ficar impossibilitado de prosseguir a exploração por razões de força maior, tem o arrendatário direito a exigir do senhorio indemnização pelas benfeitorias necessárias e pelas úteis consentidas pelo senhorio, calculadas estas segundo as regras do enriquecimento sem causa.
Na sequência de ser obrigação do arrendatário zelar pela boa conservação dos bens – veja-se artigo 21.º, d) que determina a possibilidade de resolução do contrato se tal não suceder -, as obras que tenham sido efetuadas no prédio pelo arrendatário podem ser-lhe indemnizadas.
No caso, tendo havido resolução do contrato pelo senhorio, o arrendatário pode pedir o valor das benfeitorias necessárias, e das úteis, estas desde que consentidas pelo senhorio.
Sobre a noção destes dois tipos de benfeitorias, concordamos com a reprodução efetuada na decisão recorrida, do artigo 216.º, nºs. 1 a 3, do C. C., como sendo a noção a atender, devidamente aplicada à situação, a saber: nas despesas efetuadas para conservar ou melhorar a coisa, são benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentem, todavia, o valor.
O novo regime do arrendamento rural tem uma noção mais concreta no seu artigo 5.º, alíneas j) e l):
j) «Benfeitorias necessárias» as despesas realizadas com o objetivo de evitar a perda, destruição ou deterioração do prédio rústico, ou do urbano, caso esteja incluído no contrato, e, consequentemente, salvaguardar as suas características produtivas fundamentais, sendo as ações de conservação e de recuperação consideradas para os efeitos previstos no presente decreto-lei como benfeitorias necessárias;
l) «Benfeitorias úteis» as despesas que, tendo em consideração o objeto do contrato de arrendamento, determinam o desenvolvimento e melhoria da capacidade produtiva do prédio, e, consequentemente, o seu valor.».
Mas, recorrendo à noção geral do C. C., pensamos que se obtém o mesmo resultado, pelo que importa então aferir quais as obras em causa. As mesmas são divisíveis em dois grupos, umas referentes à casa que se situa nos terrenos dados de arrendamento (e que está englobado no mesmo contrato) e outras reportadas aos terrenos propriamente ditos.
No primeiro grupo temos: - colocação de duas portas de ferro, cinco janelas, construção de:
. uma placa (laje aligeirada) na zona da sala com aplicação de tijoleira;
. placa (laje aligeirada) no chão e teto de dois quartos e numa casa-de-banho, com a aplicação de tijoleira no chão destas divisões, azulejos nas paredes da casa de banho e a rede de abastecimento de água e de drenagem das águas residuais;
. duas placas de dois quartos com aplicação de tijoleira;
. estrutura da corte dos animais com vigas, chapas e placa; troca de telhas do telhado da habitação.
Para nós, as obras realizadas pelo arrendatário na casa, incluída no contrato, foram obras necessárias para evitar a deterioração dessa casa e assim permitirem a residência na mesma. A colocação de janelas, portas, lajes, substituição de telhas e aplicação de material para permitir o uso de casa de banho, são obras mínimas que visam que a casa possa cumprir a sua função primordial: aí poder habitar-se.
No que respeita ao segundo grupo, temos: -construção de um poço com 9,20 metros de profundidade e 1,35 m de diâmetro exterior e de um tanque em betão com 5,80 m de comprimento, 3,45 m de largura e 1,45 m de profundidade, reabilitação de caminhos ao longo dos prédios rústicos por onde passam os tratores, facilitando a circulação dos mesmos pelos campos.
Esta última situação, quanto ao melhoramento de caminhos, também entendemos que se trata de uma benfeitoria necessária pois para se cultivar, tratar, colher em terrenos, é necessário que haja passagens para permitir a circulação de pessoas e carros (no caso, tratores). Ora, reabilitar caminhos significará que os caminhos já existiam e foram colocados em situação de permitirem a circulação de tratores que irão desenvolver um trabalho mecânico, absolutamente essencial em tempos já modernos na agricultura (mesmo no início do contrato, datado de 1993). O trabalho agrícola, em caminhos intransitáveis ou de difícil trânsito, certamente impedem a capacidade produtiva dos terrenos e contribuirão para a sua degradação.
Temos assim este conjunto de benfeitorias necessárias.
As restantes serão úteis – construção de estrutura da corte dos animais com vigas, chapas e placa, construção de um poço com 9,20 metros de profundidade e 1,35 m de diâmetro exterior e de um tanque em betão com 5,80 m de comprimento, 3,45 m de largura e 1,45 m de profundidade -.
Na verdade, desconhece-se se era necessária a construção de um poço e um tanque para a exploração do terreno, pois não sabemos quais as reservas de água do terreno que já vinha sendo trabalhado pelo pai do recorrente (que certamente teria recurso ao uso de água).
Nem se apura que no terreno existissem animais ou se houve uma opção do recorrente de começar a fazer a sua criação; daí que não temos elementos para concluir que tal tipo de obras seriam melhoramentos indispensáveis.
São obras que podem aumentar a capacidade de produção dos terrenos e podem, por isso, aumentar o valor do terreno.
Sucede que tal tipo de obras – benfeitorias úteis – têm de ser consentidas, por escrito pelo senhorio – artigo 14.º, n.º 1, do regime de arrendamento aqui aplicável (o arrendatário pode fazer no prédio ou prédios arrendados benfeitorias úteis com o consentimento escrito do senhorio ou, na falta deste, mediante um plano de exploração a aprovar pelos serviços regionais do Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação …) -.
Por isso, a indemnização prevista no artigo 15.º, n.º 3, do mesmo regime, exige que as benfeitorias úteis tenham sido consentidas pelo senhorio, acrescentando-se que tal consentimento tem de ser escrito como decorre do anterior artigo); tal consentimento não está demonstrado nem de qualquer modo admitido pela Autora/reconvinda, pelo que não pode o Réu/reconvinte, ora recorrente, obter qualquer pagamento pela realização de tais obras (neste sentido, veja-se Ac. R. C. de 10/02/2015, rel. Sílvia Pires, www.dgsi.pt).
Estando determinado que o recorrente/arrendatário efetuou aquelas obras que se classificam como benfeitorias necessárias, importa aferir se tem direito a ser indemnizado e, na afirmativa, em que termos.
O artigo 1273.º, n.º 1, 1.ª parte, do C. C., estatui que tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, pelo que, não dispondo o regime do contrato de arrendamento rural outra regra, é esta a que se aplica em termos subsidiários.
O valor a indemnizar é aquele que as obras tiverem no momento em que a coisa é entregue ao proprietário, ou seja, é um valor atualizado de modo a que o seu autor não seja prejudicado (seguimos, nesta questão, o vertido no Ac. do S. T. J. de 19/12/2018, rel. Tomé Gomes, no mesmo sítio, bem como no acordo compensatório infra referido).
No caso, temos provados (em parte por remissão para o relatório pericial) os valores de cada uma das obras, os quais não estão questionados neste recurso (e que incluem o custo de mão-de-obra).
Surge, entretanto, uma questão.
Foi efetuado um acordo entre as partes no sentido de que durante sete anos (cinco anos acrescidos de um prazo suplementar de dois) o arrendatário não pagaria renda precisamente para efetuar reparações e melhorias quer na casa quer nos terrenos – factos provados 8, 10, 28 e 29 -.
Não será, na nossa perspetiva, pela falta de prova de que tipo de benfeitorias estão em causa nem pela falta de prova de valorização do imóvel (desde logo porque as benfeitorias úteis não são ressarcíveis no caso concreto) nem por as obras serem indispensáveis a assegurar o uso do locado pelo próprio Réu e à manutenção e cultivo dos terrenos pelo mesmo nem por tais obras serem uma condição da própria existência do contrato como é mencionado na decisão recorrida que a questão deverá ser analisada.
Na nossa opinião, tendo havido aquele acordo de sete anos em que o arrendatário não pagaria renda para poder realizar as obras com maior folga orçamental, sendo parte da negociação prévia à celebração do negócio e contemporâneo à sua execução (prazo suplementar), aquele reveste a natureza de uma compensação no sentido de, sendo certo que o arrendatário tem direito a ser indemnizado das benfeitorias que realizou, também é certo de que se deve considerar pago pelo valor que não teve de despender com a renda.
Esse acordo compensatório (celebrado ao abrigo do princípio da liberdade contratual, previsto no artigo 405.º, do C. C.) determina que as partes aceitaram que, pela realização de obras, o senhorio não receberia renda e o arrendatário que as obras já estavam pagas/compensadas pelo senhorio ao não ter de pagar renda.
Não se podendo excluir desse acordo qualquer das benfeitorias necessárias realizadas pelo arrendatário/recorrente, o que se obtém é que todas essas obras já foram pagas/indemnizadas pelos senhorios (autor da sucessão e respetiva herança).
Para que assim não se considerasse, ou seja, para considerar que ainda existiriam valores a pagar, o Réu teria que alegar que, apesar de ter existido aquele acordo como alegado pela Autora, o mesmo não estava totalmente ressarcido desse valor – teria que referir qual o valor da renda que teria de pagar e então contabilizar-se se aquela cobria o valor das obras -.
Note-se que o acordo é abrangente no sentido de que não se paga renda para o arrendatário realizar obras pelo que à Autora basta alegar o indicado acordo para se ter de assentar que as obras fora ressarcidas ao arrendatário; se este entende que afinal o acordo não cobriu todas as despesas, terá que alegar alguma exceção ao mesmo que o possa demonstrar – erro na perceção das obras necessárias, obras que surgiram e que não eram previsíveis, aumento exponencial de custo de material, intempérie que danificou o bem a reparar, … -, o que não foi alegado.
Assim, as benfeitorias necessárias realizadas pelo arrendatário já lhe foram ressarcidas pelo que não tem direito a receber o seu valor nem, naturalmente, pode exercer qualquer direito de retenção na obrigação de restituição do imóvel ao proprietário (para tal, teria de ser credor da Autora/reconvinda, conforme artigo 754.º, do C. C).
Conclui-se assim pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Esta, como foi pedido em retificação de 18/04/2023, ao determinar a entrega do imóvel, tem de abranger a Ré mulher que também tem intervenção principal passiva nos autos.
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3). Decisão.

Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida, retificando-se a mesma no sentido de condenar ambos os Réus a restituir aos Autores os prédios rústicos descritos em 1). dos factos provados, livre de pessoas e bens.

Sem custas do recurso por o recorrente estar isento.

Registe e notifique.


Porto, 2023/10/12.
João Venade.
Ana Luísa Loureiro.
Manuela Machado.
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[1] No caso de terem sido estipulados prazos mais curtos que os mencionados neste artigo, valem os prazos de duração mínima, que também se presumem convencionados, embora seja admissível prova em contrário, no caso de não terem sido fixados no contrato quaisquer prazos – Aragão Seia, Manuel Calvão, Cristina Seia, «Arrendamento Rural…», 2.ª, página 24 -. E não seria caso de recurso ao artigo 777.º, do C. C., como alega o recorrente, que se reporta à fixação de prazo para pagamento de uma prestação e não de estabelecer o prazo por que vigora um contrato.
[2] Inobservância que não é de conhecimento oficioso e não foi alegado pelo Réu – corretamente pois está provado que se recusou a reduzir a escrito o contrato –nem pela Autora – artigo 3.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25/10 -; veja-se Ac. R. C. de 04/05/2020, rel. António Barateiro Martins, www.dgsi.pt: …não acarretando a não redução do arrendamento rural a escrito a automática nulidade do contrato, uma vez que se está perante uma nulidade atípica, que, para além de não poder ser de conhecimento oficioso, só pode ser invocada pela parte contratante a quem não seja imputável a sua não redução a escrito, o que – não imputabilidade – só acontece quando tal parte contratante haja tomado a iniciativa de sanar o vício da não redução a escrito e a outra parte, injustificadamente, se haja recusado a reduzi-lo a escrito.
[3] A resolução do arrendamento rural, como a do arrendamento urbano (art. 1047.º CC), reveste carácter judicial. É o que se depreende do art. 21.º LARur, segundo o qual o senhorio só pode “pedir a resolução” do contrato quando se verifiquem as circunstâncias aí previstas – Pereira Coelho, Lições a 5.º ano da F: D. C., ano 1988-89, página 211, https://cij.up.pt/client/files/0000000001/pereira-coelho-arrendamento_545.pdf.
[4] -o n.º 3, do artigo 1083.º, do C. C. determina que é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário.
[5] O que, em conjunto com outros factos, poderia levar à análise de uma eventual inversão do título da posse, nos termos do artigo 1290.º, do C. C.: Usucapião em caso de detenção - Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, exceto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título.