Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1668/20.7T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: PRESCRIÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
SUB-ROGAÇÃO
Nº do Documento: RP202103221668/20.7T8VLG.P1
Data do Acordão: 03/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O exercício do direito de reembolso da seguradora contra o responsável civil pela quantia paga ao seu segurado ao abrigo de contrato de seguro de roubo/furto, independentemente da sua qualificação como “direito de regresso” ou “sub-rogação”, está sujeito ao prazo de prescrição de três anos, previsto no artigo 498º, n.º 2, do Código Civil.
II - O prolongamento do prazo de prescrição previsto no n.º 3 do artigo 498º, do Cód. Civil é aplicável apenas à hipótese do n.º 1 do mesmo normativo, ou seja à acção de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos deduzida pelo lesado, atento o princípio da adesão do pedido de indemnização civil ao processo criminal.
III - Destarte, aquele prolongamento do prazo de prescrição não é aplicável à acção em que a seguradora exerce o direito de reembolso da quantia por si paga ao lesado (segurado) contra o responsável civil e em que não se discute, em termos de relevância jurídico-penal, o facto ilícito subjacente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1668/20.7T8VLG.P1
Origem: Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Valongo - Juiz 1
Relator: Jorge Seabra
1º Adjunto: Des. Pedro Damião e Cunha
2º Adjunto: Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. “B… – Companhia de Seguros, SA” intentou a presente acção de condenação sob a forma de processo comum contra “C…, Lda.”, peticionando, a final, a sua condenação no pagamento da quantia de € 23. 759, 33, acrescida de juros de mora, à taxa legal, e até integral e efectivo pagamento.
Para tanto, alegou, em termos essenciais, a Autora ter celebrado com a sociedade “D…, Lda.” um contrato de seguro do ramo automóvel (apólice n.º …………) que cobria, além dos danos causados a terceiros em razão da sua circulação rodoviária, os danos próprios e, ainda, o furto ou roubo do veículo da marca “BMW”, modelo …, matrícula ..-JT-.., propriedade daquela sociedade.
Mais, ainda, invocou que, tendo sido participado pela sua segurada o roubo do referido veículo por desconhecidos quando o mesmo se encontrava ao cuidado e à guarda da Ré e não tendo sido possível obter a recuperação do mesmo (apesar do inquérito criminal que correu termos na sequência daquela participação criminal e das várias diligências que nele foram efectuadas), veio a proceder, ao abrigo do mencionado contrato de seguro e face às suas coberturas, ao ressarcimento dos danos sofridos pela sua segurada, mediante o pagamento da quantia de € 23. 759, 33, correspondente ao valor comercial do veículo, deduzido da franquia comercial acordada.
Todavia, apesar de ter exigido extrajudicialmente da ora Ré o reembolso daquela quantia, a mesma declinou essa sua responsabilidade.
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2. A Ré contestou, impugnando parcialmente a factualidade alegada pela Autora e deduziu a excepção de prescrição do direito de crédito invocado nos autos à luz do preceituado no artigo 498º, n.º 2, do Cód. Civil, sendo certo que entre a data do pagamento (27.11.2015) e a data da sua citação (22.06.2020) decorreram mais de três anos.
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3. A Autora respondeu à dita excepção, invocando, no essencial, que o prazo prescricional aplicável no caso dos autos é o prazo ordinário que se mostra previsto no artigo 309º, do Cód. Civil (20 anos) ou, mesmo a entender-se, por analogia, que o prazo de prescrição é o que decorre do preceituado no n.º 2 do artigo 498º (3 anos), então, na sua perspectiva, também se justificaria, por analogia, o prolongamento daquele prazo de prescrição, nos termos do n.º 3 do mesmo normativo, pois que o facto ilícito gerador da responsabilidade constitui crime para o qual a lei estabelece, neste caso, um prazo mais longo (10 anos).
Concluiu, assim, pela improcedência da excepção de prescrição.
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4. Findos os articulados e mostrando-se cumprido o contraditório, foi proferido despacho saneador-sentença que julgou aplicável ao caso dos autos o prazo de prescrição previsto no artigo 498º, n.º 2, do Cód. Civil (três anos) e nessa conformidade, considerando que entre a data do pagamento e a data de propositura da presente acção já tinha decorrido aquele período temporal, julgou procedente a excepção de prescrição, absolvendo a Ré do pedido contra ela formulado.
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5. Inconformada, veio a Autora interpor recurso de apelação, que foi admitido, oferecendo alegações e formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
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6. A Ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
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7. Foram observados os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
Como é consabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, nºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
No seguimento desta orientação, em função das conclusões do recurso, a questão a dirimir consiste em saber se o direito de crédito exercido pela Autora se encontra prescrito à luz do preceituado no artigo 498º, n.º 2, do Cód. Civil, o que, supõe, ainda, a resposta à questão de saber, por um lado, se ao caso é aplicável o prazo de prescrição ordinária (20 anos), previsto no artigo 309º, do Cód. Civil e, por outro, respondendo negativamente à anterior questão, se, em qualquer caso, sendo aplicável o prazo de prescrição do n.º 2 do citado artigo 498º é também aplicável a extensão desse prazo, em conformidade com o disposto no artigo 498º, n.º 3, do mesmo Código.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
Para efeitos decisórios, o Tribunal de 1ª instância considerou os seguintes factos:
a)- A presente acção deu entrada em juízo em 19/06/2020;
b)- A ré foi citada em 22/06/2020;
c)- A autora convencionou com a sociedade comercial denominada “D…, Lda., um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º …………, cobrindo danos próprios e furto ou roubo do veículo automóvel de marca BMW, modelo …, com a matrícula ..-JT-.., de que aquela sociedade é proprietária e legítima possuidora, cobrindo ainda danos causados a terceiros em consequência da sua circulação rodoviária;
d)- Em 02/11/2015, o referido veículo automóvel, que se encontrava depositado, com sua chave, desde o dia anterior, ao cuidado do sócio gerente da aqui ré, com quem tinha sido deixado para, a solicitação da segurada, ser objecto de reparações de pintura nas instalações da oficina da ré, despareceu do local em que se encontrava estacionado, tendo daí sido retirado por pessoas não identificadas;
e)- O veículo não foi recuperado até à data;
f)- A autora, no dia 27/11/2015, entregou à segurada o montante de € 23.759,33, que corresponde ao valor comercial do veículo, deduzido da franquia acordada;
g)- A autora interpelou a ré, por carta de 16/10/2019, para proceder ao reembolso do valor referido, conforme consta do documento n.º 9 junto com a petição, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
h)- A ré respondeu, por carta de 20/11/2019, afirmando que o direito invocado está prescrito, como resulta do teor do documento n.º 10, junto com a petição inicial, que se dá aqui por integrado.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
A primeira questão que se mostra colocada pela apelante em ordem à afastar a aplicação ao caso do prazo de prescrição previsto no artigo 498º, n.º 2, do Cód. Civil, conforme decidido pelo Tribunal de 1ª instância, refere-se à alegada aplicação do prazo ordinário de prescrição de 20 anos previsto no artigo 309º, do Código Civil.
Nesta matéria, em termos essenciais, sustenta a apelante que o direito que pretende exercer nos presentes autos decorre da declaração de sub-rogação do credor (lesado), segurada no âmbito do contrato de seguro celebrado entre ambos (e que abrangia a cobertura de furto ou roubo), declaração essa efectuada nos termos e para os efeitos do preceituado nos artigos 589º e 593º, ambos do Cód. Civil – cfr. documento n.º 6 junto com a petição inicial (acta de liquidação de indemnização).
Como assim, segundo advoga, não prevendo o próprio regime atinente à sub-rogação (artigos 589º a 594º), nem, ainda, os artigos 582º a 584º, do mesmo Código (para os quais remete o citado artigo 594º), qualquer prazo de prescrição, não colhe sentido a aplicação por analogia do prazo especial de prescrição previsto no artigo 498º, n.º 2, do Cód. Civil, mas antes o prazo geral de prescrição (de 20 anos) que decorre do citado artigo 309º, do Cód. Civil, pois que não existe, em seu ver, uma lacuna que, nos termos do artigo 10º, do mesmo Código, cumpra preencher.
Com o devido respeito por opinião em contrário, não colhe qualquer fundamento a tese defendida pela apelante quanto à aplicação ao caso dos autos do prazo de prescrição ordinária do citado artigo 309º, do Cód. Civil, tendo em vista o afastamento da regra específica de prescrição consignada no citado artigo 498º, n.º 2.
Vejamos.
A tese invocada pela apelante estriba-se na distinção entre o direito de regresso previsto no aludido artigo 498º, n.º 2, do Cód. Civil que prevê “ Prescreve igualmente no prazo de três anos, o direito de regresso entre os responsáveis. “, e a sub-rogação prevista, em termos gerais, no artigo 589º, do mesmo Código.
Estas duas figuras constituem, no sistema legal português, realidades jurídicas distintas, ao contrário do que sucede em outras ordens jurídicas, nomeadamente no direito italiano e no direito francês, em que são tratadas como figuras compatíveis entre si e, em alguns casos, sobrepostas uma à outra.
Como assim, no nosso ordenamento jurídico, a sub-rogação constitui uma forma de transmissão das obrigações, mediante a qual o sub-rogado passa a ser titular do mesmo direito de crédito (conquanto limitado pelos termos do cumprimento) que pertencia ao credor primitivo – cfr. artigos 589º e 593º, n.º 1., do Cód. Civil.
Por seu turno, o direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta.
A sub-rogação traduz-se num benefício concedido (umas vezes, por uma ou outra das partes, outras, pela própria lei) a quem, sendo terceiro, cumpre por ter interesse directo na satisfação do direito do credor. O direito de regresso, no caso da solidariedade passiva, é uma espécie de direito de reintegração (ou de direito à restituição) concedido por lei a quem, sendo devedor, a par com outros, perante o accipiens da prestação, cumpre, todavia, para além da quota-parte que lhe competiria no plano das relações internas. [1]
Esta diversa configuração dos dois institutos justifica uma diferença de regimes. Assim, salvo convenção em contrário, não se transmitem, no caso do direito de regresso, as garantias e demais acessórios da dívida extinta, ao passo que, no caso da sub-rogação, salvo convenção em contrário, a par com o crédito são transferidas também as garantias e os demais acessórios do crédito transmitido que não sejam inseparáveis do transmitente (artigo 582º ex vi do artigo 594º, ambos do Cód. Civil).
Dito isto, à partida cumpre dizer que, em nosso julgamento, o direito de crédito que a apelante invoca e exerce nos presentes autos não é coincidente ou igual ao direito de que era titular a sociedade proprietária do veículo, ou seja igual ao direito da lesada, sua segurada.
De facto, no caso dos autos, o direito da sociedade lesada corresponderia sempre a uma pretensão indemnizatória dirigida contra os alegados responsáveis pelo furto/roubo do veículo em causa e para ressarcimento dos danos que lhe foram causados (pelo garagista ou empresa de reparação automóvel que, de forma negligente, violou os deveres de guarda do veículo que lhe foi entregue para pintura e/ou os autores do furto do veículo) danos estes que não teriam que se restringir apenas ao valor comercial do veículo em causa, ao passo que o direito que a apelante ora exerce não assume essa natureza indemnizatória, antes se traduzo em um outro direito de crédito de natureza restituitória.
De facto, em nosso ver, através da pretensão deduzida nos presentes autos, a apelante não pretende exercer aquele direito indemnizatório de que era titular a sociedade lesada (proprietária do veículo e segurada), mas antes obter a estrita restituição/reembolso do que, por força do âmbito de cobertura do contrato de seguro celebrado com a aludida sociedade e no seu cumprimento, pagou à sua segurada.
Como assim, segundo julgamos, e salvo o devido respeito por opinião em contrário, o fundamento da pretensão restituitória deduzida pela apelante – abstraindo do seu mérito substantivo - não decorre da transmissão do direito de crédito (indemnizatório) de que era titular a sociedade lesada, efectuada através da citada declaração de sub-rogação, mas antes, de facto, do direito de regresso ou de reembolso que se lhe mostra atribuído por lei, através do regime consagrado no artigo 27º, n.º 1, alínea g), do DL n.º 291/2007, de 21.08, como, aliás, a própria apelante não deixa também de invocar na sua petição inicial - vide artigo 24º desta peça.
Com efeito, preceitua este último normativo o seguinte:
“1- Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
g) Contra o responsável civil pelos danos causados nos termos do n.º 1 do artigo 7º [danos causados pela utilização do veículo fora do âmbito da actividade profissional do garagista, pessoa ou empresa que se dedica habitualmente à actividade de montagem, transformação ou reparação de veículos] e, subsidiariamente à responsabilidade prevista na alínea b) [autores e cúmplices do roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente], (contra) a pessoa responsável pela guarda do veículo, cuja negligência tenha ocasionado o crime previsto na primeira parte do n.º 2 do mesmo artigo [artigo 7º].” (sublinhado e negrito nosso)
Por conseguinte, se, como cremos, o fundamento da pretensão restituitória deduzida pela apelante decorre do seu “direito de regresso” consignado no citado artigo 27º, n.º 1, al. g), do DL n.º 291/2007 é, salvo o devido respeito, evidente que ao caso é directamente aplicável a previsão do n.º 2 do artigo 498º, pois que se verifica a hipótese especificamente prevista nesta última norma, qual seja o exercício do “direito de regresso”, isto é, de reembolso entre os vários “responsáveis” perante o lesado e, ainda, que, no caso, a fonte dessa responsabilidade não seja exactamente a mesma, derivando de responsabilidade contratual, no caso da apelante, enquanto seguradora que assumiu esse risco perante o seu segurado mediante o pagamento de certa contrapartida (prémio), no caso da sociedade Ré, enquanto parte no contrato de prestação de serviços celebrado com a sociedade proprietária do veículo para a respectiva pintura e a quem estava, nesse âmbito e para esse fim, atribuída a guarda do veículo em apreço ou, ainda, de responsabilidade extracontratual, no caso dos autores do furto ou roubo do veículo em causa.
Como assim, ocorrendo a hipótese específica prevista na norma especial do artigo 498º, n.º 2, do Cód. Civil, não se vislumbra fundamento para aplicar a regra geral prevista no artigo 309º, do Cód. Civil, sendo certo que, como é consabido, a regra geral só é aplicável quando a hipótese em consideração não caiba no âmbito de previsão da regra especial.
Todavia, mesmo a sufragar-se a posição da apelante no sentido de que o direito de crédito que invoca nos autos radica na declaração de sub-rogação emitida pela sociedade lesada, que assim lhe transmitiu o direito indemnizatório que lhe assistia perante os demais responsáveis, ainda assim, por analogia, sempre se justificaria, em nosso ver, e em sentido oposto ao defendido pela apelante, a aplicação do prazo de prescrição previsto no citado artigo 498º, n.º 2.
De facto, não obstante as diferenças antes assinaladas, a doutrina não tem também deixado de sublinhar a «afinidade substancial» ou «evidente» [2] que existe entre o direito de regresso e a sub-rogação (seja de fonte contratual ou legal), pois que ambos os institutos desempenham, do ponto de vista prático ou económico, funções recuperatórias ou de reintegração [3], ou seja, em termos gerais, o reembolso das quantias pagas pelo credor sub-rogado ou o reembolso das quantias pagas pelo devedor, que, pagando para além da sua quota ou pagando a título provisório e como garante, se converte, por força desse pagamento efectuado, em credor perante os demais obrigados.
Nesta perspectiva, como realça a doutrina, ambas as figuras, ainda que tendo subjacentes circunstâncias distintas, estão subordinadas ao elemento comum de prévio pagamento da obrigação – sendo que o prazo de prescrição, em ambos os casos, se inicia, por isso e em conformidade com a regra que decorre do preceituado na 1ª parte do n.º 1 do artigo 306º, do Cód. Civil, com esse pagamento, sem o qual não existe sequer direito susceptível de ser exercido - e destinam-se ambas ao seu reembolso total ou parcial.
De facto, como se refere no AC STJ de 25.03.2010, “Não pode, porém, olvidar-se que tal diferenciação de regimes entre a sub-rogação e o direito de regresso, assente na respectiva fisionomia dogmática ou conceitual, e não na ponderação dos interesses que lhe estão subjacentes, acaba por conduzir a um tratamento injustificadamente diferenciado de situações que, de um ponto de vista material, não merecem a aplicação de regimes radicalmente divergentes.” [4]
Neste preciso sentido, sublinha também J. BRANDÃO PROENÇA que “… o direito de regresso e o direito de sub-rogação mais não são do que, em circunstâncias diferentes, idênticos direitos de reembolso (ou de regresso lato sensu) das quantias pagas, ex vi legis, a título provisório e por obrigados (não responsáveis) secundários, direitos esses a “construir” substancialmente de forma semelhante, com uma natureza que não é, nem deve ser a do direito do lesado ressarcido e com um conteúdo delimitado essencialmente pelo crédito satisfeito…”. [5]
E esta leitura ou interpretação comum dos dois institutos tem também colhido apoio unânime da jurisprudência, seja das Relações, seja do Supremo, a qual sempre defendeu, seja no âmbito do direito de regresso, seja no âmbito do direito de sub-rogação, a aplicação analógica do preceituado no artigo 498º, n.º 2, do Cód. Civil, no que diz respeito ao direito de reembolso do credor sub-rogado ou do credor de regresso, apenas discutindo do eventual prolongamento do prazo de prescrição, nos termos do n.º 3, do mesmo normativo.
Neste mesmo sentido e dando conta da aplicação analógica do artigo 498º, n.º 2 do Cód. Civil, previsto directamente para o direito de regresso, a várias hipóteses de sub-rogação, refere GABRIELA PÁRIS FERNANDES: “O regime do n.º 2 do artigo 498º, directamente aplicável ao direito de regresso dos sujeitos solidariamente responsáveis, tem sido aplicado, por analogia, ao direito de reembolso atribuído por lei a outras entidades que satisfizeram indemnização do lesado, ainda que o direito de reembolso não corresponda, na sua natureza, a um verdadeiro «direito de regresso», no sentido próprio do conceito, e se possa discutir, quanto a cada caso, se esse direito ao reembolso, em sentido amplo, se encontra, independentemente da concreta designação legal, mais próximo da figura do direito de regresso ou da figura da sub-rogação.” [6]
Ainda neste mesmo sentido refere-se no AC STJ de 25.03.2010, antes citado, que existe uma “firme corrente jurisprudencial” no sentido de que deve aplicar-se analogicamente o referido preceito legal, constante do n.º 2 do artigo 498º, aos casos em que o reembolso, invocado pelo Autor, se funda na sub-rogação legal (ou, como sucede no caso, se funda na sub-rogação voluntária e em função do contrato de seguro celebrado com a lesada, ao abrigo do qual foi efectuado o pagamento pela seguradora), e não na atribuição de um inovatório direito de regresso no plano das relações internas entre os vários devedores solidários, vinculados no confronto do credor.
De facto, como emerge da posição que vem sendo adoptada de forma recorrente pela jurisprudência, em particular pelo Supremo Tribunal de Justiça, sempre nela se tem excluído, nas hipóteses de exercício do direito de reembolso pela seguradora da quantia por si paga/adiantada ao lesado, como ora sucede, seja a coberto do instituto do “direito de regresso”, seja da sub-rogação, a aplicação do prazo ordinário de prescrição previsto no artigo 309º, antes se defendendo a aplicação (directa ou por analogia) do prazo de prescrição especial previsto no artigo 498º, n.º 2, do Cód. Civil. [7]

O que se discute, no âmbito desta temática, como já antes se frisou, partindo do pressuposto indiscutido da aplicação do prazo de prescrição previsto no citado n.º 2 do artigo 498º, é saber se é de aplicar também à seguradora e no âmbito da acção de reembolso a extensão do prolongamento do prazo de prescrição prevista no n.º 3 do mesmo normativo, questão que também se mostra suscitada nestes autos pela apelante e de que oportunamente se conhecerá.
Destarte, e em síntese, quer se classifique o direito da Autora/apelante como “direito de regresso”, à luz do preceituado no artigo 27º, n.º 1 al. g), do DL n.º 291/2007, quer se classifique como “sub-rogação” legal (artigo 136º, n.º 1, da LCS), quer se classifique, como sustenta a Autora/apelante, como “sub-rogação” voluntária, sempre tem o prazo de prescrição, estando em causa uma acção de reembolso entre os vários “responsáveis”, de ser, por princípio, o prazo previsto no artigo 498º, n.º 2, do Cód. Civil, ou seja, três anos e a contar da data em que ocorreu o cumprimento.
Dirimida esta primeira questão, a questão subsequente consiste em saber se é de aplicar, no caso dos autos, como também defende, a título subsidiário, a apelante, a extensão ou o prolongamento do prazo de prescrição nos termos consignados no n.º 3 do artigo 498º, do Cód. Civil.
Esta matéria não tem merecido resposta unânime na jurisprudência, sendo possível descortinar, quanto à mesma, duas correntes.
Uma das correntes, baseada na interpretação literal e na inserção sistemática do artigo 498º, n.º 3, defende que o prolongamento do prazo de prescrição em função do prazo para o procedimento criminal previsto para o facto ilícito que está na base do pagamento pela seguradora e subsequente reembolso (no caso, o roubo ou o furto do veículo) é aplicável quer à hipótese do n.º 1 quer à hipótese do n.º 2 do artigo 498º.
Portanto, segundo esta corrente o prazo de prescrição do procedimento criminal é também aplicável à acção de regresso prevista no n.º 2 do artigo 498º, o que, no caso dos autos, conduziria à aplicação do prazo de prescrição de dez anos – artigo 118º, n.º 1, alínea b), do Código Penal -, ao invés do prazo de prescrição de três anos.
É esta a posição defendida pela apelante e que colhe, de facto, apoio em alguma da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações. [8]
Segundo outra corrente, partindo já de uma interpretação que atende à ratio legis subjacente ao citado artigo 498º, n.º 3, do Cód. Civil, o aludido prolongamento do prazo de prescrição só colhe sentido e tem aplicação na hipótese prevista no n.º 1 do mesmo normativo, ou seja quando a acção de responsabilidade civil (por facto ilícito extra contratual) indemnizatória é deduzida pelo lesado, não sendo, pois, de admitir esse prolongamento do prazo prescricional no caso, como o dos presentes autos, de acção de reembolso/regresso instaurada pela seguradora e pela quantia que pagou previamente ao lesado.
Neste sentido escreve-se, em termos esclarecedores, no AC STJ de 5.06.2012 [9] o seguinte: “À primeira vista e utilizando o elemento literal de interpretação, podia-se dizer que a extensão do prazo prevista no citado nº 3 tanto se aplica ao prazo do nº 1 – de prescrição do direito do lesado – como ao prazo previsto no nº 2 – do direito de regresso, embora a interpretação contrária também seja admissível com aquela redacção da lei.
Porém, pensamos que pela utilização do elemento lógico de interpretação teremos de chegar a entendimento contrário, nomeadamente pela utilização do elemento racional.
A razão de ser da introdução do preceito do n.º 3 em causa visou alargar o prazo de prescrição do lesado quando o facto lesante constituía crime de gravidade acentuada que leve a que o prazo de prescrição do crime seja superior aos três anos fixados no n.º 1.
É que se não pode esquecer a existência do princípio da adesão da dedução da indemnização civil no processo criminal e se o prazo de prescrição criminal ainda não decorreu, não se compreenderia que se extinguisse o direito à indemnização civil – conexa com o crime - e ainda estivesse a decorrer o prazo para a prescrição penal operar, onde o legislador entendeu dever ser deduzido o pedido de indemnização civil – dentro de certas limitações constantes das normas penais.
Daqui parece apontar para que a extensão do prazo de prescrição do n.º 3 referido apenas se justifica no prazo de prescrição do direito do lesado e não do direito de regresso.”
E, ainda, acrescenta-se no mesmo aresto (…) “Finalmente diremos que a prescrição é um instituto jurídico pelo qual a contraparte pode opor-se ao exercício de um direito, quando este exercício não se verifique durante certo tempo indicado na lei e que varia consoante os casos – art. 304º do Cód. Civil – e este instituto tem como fundamento a reacção da lei contra a inércia ou o desinteresse do titular do direito que o torna indigno de protecção jurídica – cfr. Prof. Almeida Costa, in “Direitos das Obrigações”, 10ª ed. pág. 1123.
Ora no caso do direito de regresso, este nada tem a ver com a fonte da obrigação extinta pela seguradora, cuja satisfação pela seguradora o fez nascer, direito de regresso este que a mesma veio exercer, sendo este direito de regresso independentemente da fonte do daquela obrigação extinta que pode ter origem em mera responsabilidade civil – nomeadamente pelo risco – ou pode resultar da prática de um crime grave com prazo alongado de prescrição penal.
Esta autonomia justifica que o interesse da lei em sancionar o credor pouco diligente – no interesse da clarificação, estabilização e segurança das relações jurídicas que está subjacente à adopção daquele instituto – leva a que a extensão do prazo de prescrição do n.º 3 mencionado se não justifique aplicar-se ao caso do direito de regresso em face da sua natureza diversa do direito do lesado em relação ao direito de regresso e da autonomia deste em relação à causa ou fonte daquele direito do lesado.
Desta forma se nos afigura que a melhor interpretação dos números 1, 2 e 3 do artigo 498º citado aponta para que o prazo de prescrição do direito do lesado é o previsto no nº 1 e pode ser alongado nos termos do seu nº 3, mas que o prazo de prescrição do direito de regresso é sempre o previsto no seu nº 2, mas não se lhe aplica a extensão prevista no nº 3.” (sublinhados e negritos nossos)
E em idêntico sentido também se salienta no AC STJ de 17.11.2011 “Pode suceder que o facto ilícito gerador de responsabilidade civil extra contratual constitua crime, e que a lei criminal defina prazos de prescrição diferentes do prazo de 3 anos fixado no n.º 1 do artigo 498º; agora releva apenas a hipótese de esse prazo ser mais longo.
Nessa eventualidade, e porque, como escreveu Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Coimbra, 2000, pág. 628),“desde que se admite a possibilidade de o facto, para efeito de responsabilidade penal, ser apreciado em juízo para além dos três anos transcorridos sobre a data da sua verificação, nada justifica que análoga possibilidade se não ofereça à apreciação da responsabilidade civil”, vale para o exercício do direito à indemnização o prazo mais longo, determinado pela lei penal (acórdão deste Supremo Tribunal de 25 de Março de 2009, www.dgsi.pt, 08B2415).
Recorde-se, aliás, que, conforme se observou no citado acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Novembro de 2010, “não se pode esquecer a existência do princípio da adesão da dedução da indemnização civil no processo criminal e se o prazo de prescrição criminal ainda não decorreu, se não compreenderia que se extinguisse o direito à indemnização civil – conexa com o crime – e ainda estivesse a decorrer o prazo para a prescrição penal operar, onde o legislador entendeu dever ser deduzido o pedido de indemnização civil – dentro de certas limitações constantes das normas penais.
É pois clara a razão de ser do alongamento do prazo, operado pelo n.º 3 do artigo 498º do Código Civil, para a prescrição do direito de indemnização.” [10] (sublinhados e negritos nossos)
Destarte, e como se acentua neste último aresto, ainda que se entenda, segundo aquela outra corrente jurisprudencial, retirar da localização ou inserção sistemática do n.º 3 do artigo 498º, do Cód. Civil, um significado substancial quanto à aplicação do prolongamento do prazo de prescrição à hipótese do n.º 2 do mesmo normativo “essa interpretação esbarra com a falta de fundamento material do alargamento do prazo.” (negrito nosso)
Na verdade, em nosso ver, secundando esta outra posição maioritária da jurisprudência, a única razão de ser do prolongamento do prazo de prescrição previsto no n.º 3 do artigo 498º é permitir ao lesado e apenas a este a dedução do pedido de indemnização civil naquele prazo mais dilatado, sendo certo que, como é consabido, apesar de decorrido o prazo de prescrição do n.º 2, do artigo 498º, sempre ainda o poderia fazer no âmbito do processo criminal (dado o prazo mais extenso de prescrição do procedimento criminal) e em razão do já referido princípio da adesão do pedido de indemnização civil a este último processo.
Ora, como bem se compreende, esta razão material que subjaz ao n.º 3 do artigo 498º não é, de todo, transponível para o exercício pela seguradora do direito de reembolso das quantias por si pagas ao lesado contra os demais responsáveis civis, uma vez que já não está em equação nesta outra acção, e em termos de relevância jurídico-penal, o facto ilícito (extracontratual) subjacente a esse pagamento, não colhendo, pois, de um ponto de vista racional ou lógico, admitir a extensão do prazo de prescrição nestes outros casos.
Esta última corrente, a que também aderimos em função da razão material que lhe subjaz, é, aliás, a que colhe actualmente apoio praticamente unânime na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça [11] e também na doutrina [12] que se tem pronunciado sobre este tema.
Por conseguinte, sendo também nosso entendimento que o prolongamento do prazo de prescrição do n.º 3 do artigo 498º, do Cód. Civil, não é aplicável à acção de regresso ou reembolso instaurada pela seguradora contra os alegados responsáveis civis, nenhuma divergência nos merece a sentença proferida e, consequentemente, a apelação terá que improceder.
De facto, e como já se assinalou na sentença recorrida, tendo o pagamento efectuado pela Autora ocorrido a 27.11.2015 e tendo a presente acção sido instaurada apenas a 19.06.2020, nesta última data já tinha decorrido o prazo de prescrição de três (3) anos previsto no n.º 2 do artigo 498º, do Cód. Civil, com a inevitável procedência da excepção peremptória de prescrição invocada pela Ré na sua contestação e sua consequente absolvição do pedido.
Julga-se, assim, improcedente a apelação.
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V. DECISÃO:
Pelos fundamentos antes expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho saneador-sentença que decretou a procedência da excepção (peremptória) de prescrição e absolveu a Ré do pedido contra ela formulado.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 22.03.2021
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(A redacção do presente acórdão não segue as regras do novo acordo ortográfico.)
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[1] Vide, neste sentido, por todos, A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, II volume, 4ª edição, pág. 334-335, PAULO OLAVO da CUNHA, in “Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral”, UCE, 2018, Coord. J. BRANDÃO PROENÇA, pág. 628 e, ainda, ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, 11ª edição, Revista e Actualizada, pág. 826-827.
[2] Vide, neste sentido, A. VARELA, op. cit., pág. 334 e PAULO OLAVO CUNHA, op. cit., pág. 628.
[3] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 18.01.2018, relatora Sr.ª Juíza Conselheira Maria do Rosário Morgado ou, ainda, AC STJ de 3.07.2018, relator Sr. Juiz Conselheiro Pinto de Almeida, ambos in www.dgsi.pt.
[4] AC STJ de 25.03.2010, relator Sr. Juiz Conselheiro Lopes do Rego, disponível in www.dgsi.pt.
[5] J. CARLOS BRANDÃO PROENÇA, “Natureza e Prazo de Prescrição do Direito de Regresso …”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 41 (2013), pág. 12-13.
[6] GABRIELA PÁRIS FERNANDES, anotação ao artigo 498º, do Cód. Civil, in “Comentário ao Código Civil …”, cit., pág. 378, com indicação das várias hipóteses em que tem sido acolhida a aplicação analógica do artigo 498º, n.º 2 e indicação dos vários arestos do Supremo Tribunal de Justiça onde tal aplicação analógica tem sido sufragada.
[7] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 27.10.2009, relator Sr. Juiz Conselheiro Paulo Sá, com indicação, no mesmo sentido, do AC STJ de 18.12.2003, relator Sr. Juiz Conselheiro Araújo de Barros e AC STJ de 4.11.2008, relator Sr. Juiz Conselheiro João Camilo, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 26.06.2007, relator Sr. Juiz Conselheiro Faria Antunes, AC STJ de 7.07.2010, relator Sr. Juiz Conselheiro Silva Salazar, AC STJ de 9.03.2010, relator Sr. Juiz Conselheiro Azevedo Ramos, AC RP 8.05.2008, relator Sr. Juiz Desembargador Fernando Baptista, AC RC de 17.03.2009, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Isabel Fonseca e AC RP de 23.02.2012, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Deolinda Varão, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[9] AC STJ de 5.06.2012, relator Sr. Juiz Conselheiro João Camilo, disponível in www.dgsi.pt.
[10] AC STJ de 17.11.2011, relatora Sr.ª Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, disponível no mesmo sítio oficial.
[11] Vide, além dos Acórdãos do STJ antes citados de 5.06.2012 e 17.11.2011, ainda, AC STJ de 27.10.2009, relator Sr. Juiz Conselheiro Paulo Sá, AC STJ de 4.11.2010, relator Sr. Juiz Conselheiro João Bernardo, AC STJ de 16.11.2010, relator Sr. Juiz Conselheiro João Camilo, AC STJ de 18.10.2012, relator Sr. Juiz Conselheiro Tavares de Paiva, AC STJ de 3.07.2018, relator Sr. Juiz Conselheiro Pinto de Almeida, AC STJ de 18.01.2018, relatora Sr.ª Juíza Conselheira Maria do Rosário Morgado e, ainda, AC RC de 17.04.2012, relator Sr. Juiz Desembargador Arlindo de Oliveira, AC RL de 26.05.2009, relator Sr. Juiz Desembargador Abrantes Geraldes, AC RP de 21.05.2012, relator Abílio Costa, AC RC de 24.01.2012, relator Sr. Juiz Desembargador Henrique Antunes, todos disponíveis no mesmo sítio oficial.
[12] J. BRANDÃO PROENÇA, op. cit., pág. 1-4 e ANA PRATA, in “Código Civil Anotado”, I volume, 2017, pág. 653.