Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9016/20.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: ASSEMBLEIA GERAL DE SÓCIOS
ESTADO DE EMERGÊNCIA
DELIBERAÇÕES SOCIAIS ANULÁVEIS
REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO INÚTIL
Nº do Documento: RP202202079016/20.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 02/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A inserção, na matéria de facto, de conceitos que podem ser tidos como de direito ou conclusivos é irrelevante – e não determina que se tenham por não escritos – se os mesmos forem factualizados e usualmente utilizados na linguagem comum, possuindo um sentido apreensível.
II - Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual.
III - Os sócios - enquanto proprietários de uma participação social numa dada sociedade comercial - ficam investidos num conjunto unitário de direitos e obrigações (atuais e potenciais), sendo que entre os direitos que lhe competem conta-se o de “participar nas deliberações de sócios” (cfr. artigo 21º, nº 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais), já que é através do voto que manifesta a sua vontade, contribuindo, assim, para a formação da vontade social.
IV - A deslocação de um sócio (não gerente) a fim de participar numa assembleia geral de sócios a realizar em concelho diferente daquele onde tem a sua residência não pode ser considerada como deslocação “para desempenho de funções profissionais ou equiparadas”, para os efeitos do disposto no nº 2 do artigo 11º do Decreto nº 9/20, de 21.11 (que regulamentou a aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República).
V - A sanção aplicável à violação do direito de participação do sócio, impedido de participar na assembleia geral, é a anulabilidade (artigo 58º, nº1 alínea a), do Código das Sociedades Comerciais), porque tal circunstância não tem que ver com o conteúdo da deliberação tomada, mas com o processo deliberativo em si mesmo considerado.
VI - Em conformidade com o disposto no artigo 377º, nº 6, alínea b) do Código das Sociedades Comerciais (aplicável às sociedades por quotas por força do preceituado no nº 1 do artigo 248º do mesmo diploma legal), a possibilidade de realizar a assembleia por via telemática apenas estará afastada quando o contrato de sociedade o declare direta e expressamente.
VII - Inexistindo nesse pacto cláusula em contrário, competirá à gerência da sociedade a decisão de determinar que a assembleia de sócios se efetive por recurso a meios telemáticos.
VIII - O princípio do limiar de relevância (ou teoria da prova de resistência), contemplado na parte final da alínea b) do nº 1 do artigo 58º do Código das Sociedades Comerciais, somente tem aplicação quando se esteja em presença de deliberações sociais abusivas (tal como definidas nesse normativo), não se aplicando aos casos em que o sócio que peticiona a anulação da concreta deliberação nem sequer participou na respectiva assembleia, por não lhe ter sido permitida essa participação.
IX - O instituto da litigância de má-fé, tal como se mostra configurado na lei adjetiva, visa sancionar comportamentos contrários ao princípio da boa-fé processual, embora exija que tais comportamentos sejam acompanhados por um específico “animus” da parte do agente.
X - Para que se consubstancie litigância de má-fé, a conduta processual da parte terá de ser qualificável como grave em termos de censurabilidade, o que reclamará sempre uma objetivação ou tradução em factos que não uma simples convicção íntima do julgador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 9016/20.0T8VNG.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Vila Nova de Gaia – Juízo de Comércio, Juiz 2
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO

AA intentou a presente ação declarativa de anulação de deliberações sociais contra “C..., Lda.”, com sede na Rua ..., Porto, pedindo que sejam anuladas todas as deliberações aprovadas na reunião da assembleia geral da ré realizada no dia 30 de novembro de 2020.
Para tanto alegou que é sócia da ré e que, nessa qualidade, foi convocada para a mencionada reunião da assembleia geral ordinária, sendo que do respetivo aviso convocatório constava a seguinte ordem de trabalhos: “Ponto único: Aprovação de contas do exercício de 2019/2020 findo a 31/8 e deliberação sobre a aplicação de resultados.”
Acrescenta que, no âmbito da regulamentação da aplicação do estado de emergência, o Decreto n.º 9/2020, da Presidência do Conselho de Ministros, no seu artigo 11.º, n.º 1, determinou que «Os cidadãos não podem circular para fora do concelho do domicílio no período compreendido entre as 23:00 h do dia 27 de novembro de 2020 e as 5:00 h do dia 2 de dezembro de 2020 (…)».
Adianta que, por força dessa determinação legal e em virtude de residir no Concelho ..., de modo permanente, há mais de 10 anos (o que era do perfeito conhecimento da Ré e dos seus gerentes), ficou impedida de circular para fora do seu concelho de residência entre as 23:00 de 27/11 e as 5H00, de 02/12, e como tal, impossibilitada de tomar parte na referida assembleia geral da Ré convocada para o dia 30/11/2020.
Refere que não obstante a ré lhe ter remetido uma declaração para justificar a sua deslocação a essa assembleia, a autora entendeu que a mesma não lhe permitiria a circulação entre concelhos, tendo solicitado à ré o adiamento desse ato, o que esta recusou.
Adianta ainda que os dois únicos sócios presentes na reunião, sobre o referido ponto único da ordem de trabalhos, deliberaram, por unanimidade, aprovar o balanço e contas do exercício em apreciação, e que o resultado positivo apurado, no montante de €10.345,65, transitasse para a conta de “Resultados Transitados”, deliberação essa que é manifestamente contrária aos estatutos da sociedade ré, nos termos do qual “Os lucros líquidos apurados, depois de retirados 5% para o fundo de reserva legal e as percentagens que possam vir a ser votadas para fundos especiais, designadamente para fundos de reintegração, de provisão ou outros de interesse social, serão distribuídos pelos sócios na proporção das suas quotas”.
Devidamente citada a ré deduziu contestação, pugnando pela improcedência do pedido.
Alegou, em síntese, que a intervenção pessoal da autora na assembleia geral para que foi convocada não estava interdita, nem pelas circunstâncias de confinamento decorrentes de disposição legal, nem por falta de alternativa legal a uma intervenção não presencial nesse ato (mormente por via telemática), sendo certo que a mesma dispõe de residência habitacional na cidade do Porto.
Acrescenta inexistir a apontada invalidade das deliberações tomadas na assembleia realizada em 30 de novembro de 2020, dado que a lei societária permite que a regra da distribuição dos lucros do exercício possa ser alterada por maioria qualificada (como foi o caso), sendo que o tema da “aplicação de resultados” constava expressamente da convocatória para esse ato.
Respondeu a autora, concluindo como no articulado inicial.
Foi proferido despacho saneador em termos tabelares, fixou-se o objeto do litígio e definiram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência final com observância das legais formalidades, vindo a ser proferida sentença que julgou «a ação procedente, declarando-se, em consequência, anuladas as deliberações aprovadas na reunião da assembleia geral da ré de 30/11/2020».
Não se conformando com o assim decidido, veio a ré interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

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Notificada autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e requerendo a condenação da ré como litigante de má-fé.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:
- determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto;
- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da materialidade objeto de impugnação, mormente dilucidar se as deliberações tomadas na assembleia geral da ré realizada no dia 30 de novembro de 2020 enfermam de vício que importe a sua invalidade;
- do abuso de direito da autora;
- da (falta) de prova de resistência em relação às deliberações aprovadas;
- da litigância de má-fé da ré.
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2. Recurso da matéria de facto
2.1. Factualidade considerada provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. A Ré é uma sociedade por quotas, tendo por objeto o “Ensino de música e o comércio de artigos e instrumentos musicais”.
2. Tem o capital social de € 13.001,00, distribuído por três quotas, uma do valor nominal de €1.112,00, pertencente à autora e duas do valor nominal de € 5.944,50 cada, pertencentes, respetivamente, aos sócios BB e CC.
3. São gerentes da Ré os sócios BB e CC.
4. Por carta registada datada de 13/11/2020, rececionada em 16/11/2020, a autora foi convocada para uma reunião da assembleia geral ordinária da Ré, a ter lugar em 30/11/2020, na sede social, às 14h30.
5. De tal aviso convocatório constava a seguinte ordem de trabalhos: “Ponto único: Aprovação de contas do exercício de 2019/2020 findo e deliberação sobre a aplicação de resultados.”
6. Em 22/11/2020 a autora remeteu um e-mail para o endereço eletrónico “info.....com” com o seguinte conteúdo: “Como é do conhecimento público (…) os cidadãos não podem circular para fora do concelho de domicílio no período compreendido entre as 23:00h do dia 27 de novembro de 2020 e as 5:00h do dia 2 de dezembro de 2020.
Sendo eu residente no Concelho ..., estou legalmente impedida de me deslocar ao Porto para tomar parte na Assembleia Geral convocada para as 14H30, do próximo dia 30 de novembro de 2020.
Aguardei que me remetessem uma comunicação a dar sem efeito a assembleia geral agendada, mas como nada recebi até à data, venho solicitar-lhe a anulação da data e hora designadas e a remarcação da reunião de sócios, mediante nova convocatória, para data posterior”.
7. A autora, em resposta a esse e-mail, recebeu da ré, em 28/11/2020, um e-mail subscrito por DD com o seguinte teor: “Em resposta ao email que reencaminho, incumbiram-me os sócios e gerentes da C..., Lda. de lhe enviar uma Declaração para justificar a sua deslocação na próxima segunda-feira (ficheiro anexo), declaração esta semelhante às que foram emitidas para os outros sócios (…)”.
8. Em anexo a esse email foi remetida uma “Declaração” junta sob doc. n.º 4 à petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
9. Respondeu a autora por e-mail de 28/11/2020, com o seguinte conteúdo: “(…) Agradeço a declaração que me enviou, mas tenho a informação de que o motivo nela invocado não se enquadra em qualquer das alíneas do nº 2, do artº 11º do Decreto nº 9 / 2020, de 21 de Novembro, e, portanto, não me habilita a deslocar para fora do meu concelho de residência na próxima 2ª feira, dia 30. Peço-lhe, pois, o favor de informar a gerência de que mantenho e reitero o pedido que expressei no meu anterior e-mail.”
10. Em 29/11/2020, pelas 16:43, a Autora recebeu nova comunicação eletrónica da Dr. DD, que, em nome dos gerentes da Ré, informou do seguinte: “No seguimento do seu e-mail que reencaminho, incumbiram-me os gerente do C..., Lda. de lhe enviar a seguinte informação: “Tivemos o cuidado de nos informar a propósito da dúvida que nos suscita sendo que, ao contrário do que refere, além da declaração emitida pela gerência subsumível no ponto i), entendemos que há enquadramento também no ponto iii) do art. 11º nº 2 al. a) do Decreto 9/2020, uma vez que a sócia foi convocada para integrar a assembleia geral que, sem sócios, não pode funcionar: em suma, munida da convocatória e da declaração, não poderá ser restringida a circular entre concelhos…Por essa razão, não encontramos fundamento legal para qualquer adiamento.”
11. No dia 30/11/2020 foi realizada assembleia geral da ré na qual estiveram presentes os sócios BB e CC, não tendo estado presente a autora.
12. Nessa assembleia foi votado o ponto um da ordem de trabalhos referido em 5, tendo sido deliberado, com os votos a favor dos sócios presentes, aprovar o balanço e contas em apreciação e que o resultado positivo de dez mil e trezentos e quarenta e cinco euros e sessenta e cinco cêntimos transitasse para conta “Resultados Transitados”.
13. A autora reside no Concelho ..., de modo permanente, há cerca de 8 anos.
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2.2. Factualidade considerada não provada na sentença

O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
1. A autora dispõe de residência habitacional na cidade do Porto, na Rua ... Porto.
2. A ré e os seus gerentes têm conhecimento que a autora reside há cerca de 10 anos de modo permanente, no Concelho ....

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2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto

Nas conclusões recursivas veio a apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados provados e não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e a apelante impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar e decisão que sugere.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “ […] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil.
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4].
Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão à apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela preconizados.
Como emerge das respetivas conclusões recursivas, a apelante advoga que: (i) deve ser dada como não provada a afirmação de facto vertida no ponto nº 13 dos factos provados; (ii) deve ser dado como provado o enunciado fáctico constante do artigo 13º da sua contestação.
Vejamos.
No ponto nº 13 deu-se como provado que “A autora reside no Concelho ..., de modo permanente, há cerca de oito anos”.
Sustenta a apelante que a matéria inserta no transcrito ponto de facto não poderia ser dada como provada, por uma dupla ordem de razões: primeiramente porque se trata de matéria eminentemente conclusiva, sendo certo que no seu articulado inicial a autora não alegou qualquer facto concreto que habilitasse o Tribunal a poder concluir que era em ... que tinha a sua economia doméstica e familiar; depois porque resulta da prova pessoal produzida na audiência final (v.g. depoimentos prestados pelas testemunhas EE e DD) que a autora teria a sua residência na cidade do Porto (na Rua ...), sendo este o seu domicílio fiscal.
Começando pelo primeiro dos fundamentos apresentados, importa, desde logo, dilucidar se a materialidade em questão reveste natureza eminentemente conclusiva que, qua tale, não deva figurar no elenco dos factos provados.
Como é consabido, no anterior Código de Processo Civil, o n.º 4 do seu art. 646º - que estabelecia os limites da atendibilidade e validade das respostas do tribunal sobre a matéria de facto - determinava que se tivessem por não escritas as respostas sobre questões de direito.
Não era então pacífico[5] se a regra contida nesse preceito podia aplicar-se às respostas que encerrassem matéria conclusiva, sendo que, como se advertia no acórdão do STJ de 10.01.2012, é “praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis pelos sentidos e compreensíveis pelo intelecto do homem, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia e um exacerbado rigorismo na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena da resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger”, acrescentando que “se, quer os factos vertidos nos pontos controversos, quer as respostas que lhe forem dadas, reflectem realidades concretas, perfeitamente apreensíveis por qualquer pessoa, estando longe de encerrarem um juízo valorativo de uma certa factualidade, não há fundamento para considerar as referidas respostas como não escritas”.
Mantendo tal entendimento perfeita actualidade, não é, pois, de estranhar (maxime na nova legislação adjectiva que inflecte decididamente no sentido de os aspectos de ordem formal deverem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade) que venha constituindo posicionamento constante[6] que a inserção, na matéria de facto, de conceitos que podem ser tidos como sendo de direito ou conclusivos é irrelevante, se os mesmos forem factualizados e forem usualmente utilizados na linguagem comum, possuindo um sentido perfeitamente apreensível.
Tal é precisamente o que ocorre com o conceito de residência que é utilizado no ponto objecto de impugnação, que na linguagem corrente assume um sentido acessível ao cidadão comum representando o local onde determinada pessoa tem o seu centro de vida, tendo sido esse o significado que o decisor de 1ª instância lhe atribuiu na decisão sob censura, como, aliás, emerge da respectiva motivação da decisão de facto.
No concernente ao segundo dos mencionados fundamentos, ao invés do que sustenta a apelante, a prova produzida nos autos aponta razoavelmente no sentido de que a autora tem efectivamente a sua residência, de há vários anos a esta parte, no concelho ...[7].
De facto, depois de proceder à audição integral do registo fonético da prova pessoal produzida no decurso da audiência final, ficamos com a mesma convicção que o juiz a quo manifestou na motivação da decisão de facto, sendo que o depoimento prestado pela testemunha FF foi, neste particular, aquele que se revelou mais consistente, por conviver regularmente com a autora há já vários anos. Por seu turno, as testemunhas (concretamente EE e DD) que a apelante convoca em arrimo da preconizada alteração do sentido decisório referente à factualidade em crise, depuseram de forma pouco esclarecedora, limitando-se a primeira (que trabalhou como professora ao serviço da ré, tendo sido colega da demandante) a adiantar que terá almoçado em casa da autora, sita na Rua ..., na cidade do Porto, referindo, no entanto, que tal “terá acontecido há alguns anos”, não sabendo concretizar temporalmente quando; já a testemunha DD (que desempenha as funções de directora financeira da ré desde 2009) declarou que, ao longo do tempo, enviou para a autora diversas convocatórias para assembleias de sócios da sociedade ré, recordando-se que algumas foram inicialmente enviadas para a Rua ..., no Porto, sendo que mais tarde, a solicitação da própria autora, essas convocatórias passaram a ser remetidas para ....
Em conforto do juízo positivo emitido sobre tal ponto de facto apontam, outrossim, os suportes documentais juntos aos autos, designadamente diversas convocatórias expedidas (nos anos de 2017, 2018 e 2019) para a autora pelos serviços administrativos da ré indicando como domicílio daquela “Casa ..., ..., Concelho ...” e, sobretudo, o reconhecimento que a ré faz dessa realidade na declaração por si emitida em 28 de novembro de 2020 (junta com a petição inicial como documento nº 4), onde expressamente refere que “a sócia AA [a ora autora] reside em Casa ..., ..., Concelho ..., distrito de Braga. Por ser verdade e se revelar essencial se emite a presente declaração, que vai assinada pelos gerentes”.
Daí que, ponderando os enunciados meios probatórios, não se verifique razão bastante para divergir do sentido decisório que foi acolhido na sentença recorrida, já que a argumentação expendida pela apelante não tem, quanto a nós, o condão de desconstruir a motivação adrede tecida nesse ato decisório, afigurando-se-nos que a prova produzida não impõe (como é suposto pelo nº 1 do art. 662º) decisão diversa, porquanto a decisão de considerar provada a proposição factual plasmada no ponto nº 13 é, nos termos expostos, perfeitamente racional e lógica
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Preconiza ainda a apelante que deve ser levada à materialidade provada a factualidade vertida no artigo 14º da contestação que apresentou, onde alegou que “[o]s restantes sócios da Ré residem fora do concelho do Porto – o sócio BB em ..., e a sócia CC em Vila Nova de Gaia – também eles se muniram de credenciação semelhante à da Autora para o efeito de assegurarem a sua presença na assembleia geral ocorrida na sede da Ré, no Porto, naquele dia 30.11.2020, como efetivamente se deslocaram, sem o menor problema ou receio, demais porque de deslocação legítima e justificada se tratava”.
Questão que imediatamente se coloca é a de saber qual o efetivo relevo do aludido enunciado fático para a decisão do presente pleito.
Como é consabido, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, visa, em primeira linha, alterar o sentido decisório sobre determinada materialidade que se considera incorretamente julgada. Mas este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal recorrido considerou provada ou não provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que, afinal, existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. O seu efetivo objetivo é, portanto, conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.
Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer - conforme vem sendo entendido[8] -, que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.
Alinhando por igual visão das coisas, entendemos que a mencionada proposição factual é concretamente inócua, posto que da mesma não se extrai qualquer consequência jurídica com reflexo na decisão das concretas questões que delimitam objetivamente o âmbito do presente recurso.
Com efeito, a questão que, neste conspecto, se discute gira em torno de saber se, por ocasião da assembleia geral ordinária da ré agendada para o dia 30 de novembro de 2020, a autora estaria legalmente impedida de se deslocar à cidade do Porto em resultado das limitações à circulação entre concelhos imposta pelo art. 11º, nº 1 do Decreto nº 9/2020, de 21.11.
Assim sendo, não se vislumbra qual o efectivo relevo para a sorte da presente lide no preconizado aditamento à materialidade provada de uma afirmação de facto referente não à demandante mas aos demais (2) sócios da ré (que, note-se, desempenham as funções de gerentes deste ente societário – qualidade que a autora não detém), já que, para o presente processo, o que releva é apurar se existia (ou não) impedimento legal de a autora comparecer na dita assembleia geral e não se os demais sócios da ré, apesar desse impedimento, conseguiram deslocar-se à sede social e aí realizarem esse ato.
Consequentemente, não há, pois, que apreciar o referido segmento impugnatório, porquanto o seu conhecimento se revela espúrio e desnecessário para a decisão do presente recurso.

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3. FUNDAMENTOS DE DIREITO
3.1 Da invalidade das deliberações sociais aprovadas na assembleia geral de sócios da ré realizada no dia 30 de novembro de 2020

Como resulta da materialidade apurada (e ora estabilizada), a ré é uma sociedade por quotas cujo capital (de €13.001,00) se mostra distribuído por três quotas: uma no valor nominal de €1.112,00, pertencente à autora e duas do valor nominal de € 5.944,50 cada, pertencentes, respetivamente, aos sócios/gerentes BB e CC.
Em conformidade com o regime vertido no Código das Sociedades Comerciais (CSC), por força da assunção dessa qualidade, os sócios – enquanto proprietários de uma participação social - ficam investidos num conjunto unitário de direitos e obrigações (atuais e potenciais), contando-se entre aqueles, no que ao caso releva, o de “participar nas deliberações de sócios” (cfr. art. 21º, nº 1, al. b) do CSC), sendo que é através do voto que o sócio manifesta a sua vontade[9], contribuindo, assim, para a formação da vontade social.
De acordo com a sua configuração legal, o direito a participar nas deliberações sociais compreende, assim, o direito de estar presente nas assembleias, de nelas discutir os assuntos sobre os quais se deliberará e o direito de votar as propostas. Trata-se, aliás, de prerrogativas que, nos termos da lei (arts. 21º, nº 1 al. b) e 248º, nº 5, do CSC), não podem, por via de regra, ser suprimidas nas sociedades por quotas[10].
Postas estas considerações introdutórias, revertendo ao caso sub judicio, verifica-se que a autora foi convocada, em 16 de novembro de 2020, para uma reunião da assembleia geral ordinária da ré a realizar no dia 30 desse mês, cuja ordem de trabalhos, de acordo com o respectivo aviso convocatório, consistia “na aprovação das contas do exercício de 2019/2020 findo e deliberação sobre a aplicação de resultados”.
Na presença dessa convocatória, a autora manifestou à ré o propósito de participar nessa assembleia, tendo solicitado o seu adiamento para momento posterior em virtude de, naquela data, estar legalmente impedida - por mor do disposto no nº 1 do art. 11º[11] do Decreto nº 9/20, de 21.11 (que regulamentou a aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República) - de se deslocar à sede social (situada na cidade do Porto) por ter a sua residência num outro concelho (concretamente em ...).
Em resposta a essa solicitação, a ré enviou à autora uma declaração com o seguinte teor:

“C...
C......
DECLARAÇÃO

No âmbito das medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 e em cumprimento do Decreto n.º 9/2020 de 21 de novembro, e no respeitante á limitação de circulação de pessoas, se DECLARA que a portadora da presente declaração, AA, com o cartão de cidadão n.º .../7/ZZ1, válido até ../../2021, emitido por República Portuguesa, é sócia da sociedade C..., Lda, nas instalações sitas na Rua ..., União de freguesias .../..., concelho do Porto, distrito do Porto, tendo sido convocada para e Assembleia Geral que se realiza no dia 30/11/2020 pelas 14h30, razão pela terá que se deslocar, entre a sua residência e a Sede da declarante.
Mais se acrescenta que a referida sócia reside em Casa ..., ..., Concelho ..., distrito de Braga.
Por ser verdade e se revelar essencial se emite a presente declaração, que vai assinada pelos gerentes.
Porto, 28 de novembro de 2020

A Gerência
CC
BB

C..., LD.ª
Rua ..., ...
... Porto
Portugal
T. +351 22.......
info.....com
WWW.....com

Ainda em conformidade com o substrato factual apurado, após a receção da transcrita declaração, a autora transmitiu à ré que o documento que lhe foi remetido, na sua opinião, não lhe permitiria (licitamente) deslocar-se ao Porto para a reunião da assembleia geral de sócios.
Certo é que a referida assembleia acabou por ser realizada na mencionada data sem a presença da autora, tendo estado presentes os sócios (que igualmente desempenham as funções de gerentes da ré) BB e CC, que deliberaram, com os votos a favor de ambos, aprovar o balanço e contas em apreciação e que o resultado positivo de dez mil e trezentos e quarenta e cinco euros e sessenta e cinco cêntimos transitasse para conta “Resultados Transitados”.
Não se conformando com tais deliberações, veio a autora veio, através da presente ação declaratória, impugná-las por reputar que as mesmas são inválidas por não ter sido respeitado o seu direito de nelas participar.
Tomando posição sobre tal matéria, na decisão recorrida o juiz a quo considerou que a autora, por residir em concelho diverso daquele onde se situa a sede social da ré, estaria legalmente impedida de comparecer na assembleia geral de sócios que havia sido convocada para o dia 30 de novembro de 2020, razão pela qual tal ato não deveria – como foi requerido por aquela ao solicitar o seu adiamento para outra data – ter sido realizado, tendo ficado impossibilitada de nele participar, como era seu direito (arts. 21º, nº 1, al. b) e 379º, nº 1, este aplicável às sociedades por quotas por força do disposto no nº 1 do art. 248º, todos do CSC), o que, por consubstanciar vício (procedimental) relevante, implica a anulabilidade das deliberações aí tomadas, nos termos do art. 58º, nº 1, al. a), do CSC.
A apelante rebela-se contra esse segmento decisório, argumentando que, ao invés do que aí se afirma, a autora – dada a sua qualidade de sócia e, portanto, como titular de órgão estatutário da ré – não estaria legalmente impossibilitada de comparecer na agendada reunião da assembleia de sócios, acrescentando que se aquela não se deslocou ao Porto para participar nesse ato “foi apenas porque não o quis fazer – ao contrário dos outros sócios na mesmíssima posição de pertencerem a concelho diferente do da sede social (…), o que constitui um abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, matéria que é de conhecimento oficioso”.
Tal como a questão se mostra equacionada importa, pois, dilucidar se a autora estaria, ou não, legalmente impedida de se deslocar à sede social da ré para aí participar na mencionada reunião da assembleia geral.
Não resta dúvida – à luz do regime vertido no nº 1 do já citado art. 11º do Decreto nº 9/20, de 21.11 – que a regra geral que nesse normativo se estabeleceu para a circulação entre concelhos foi uma regra limitativa, não se permitindo que os cidadãos circulassem para fora do concelho do domicílio no período compreendido entre as 23:00 h do dia 27 de novembro de 2020 e as 5:00 do dia 2 de dezembro desse mesmo ano. Nele se decretou, pois, uma medida de isolamento social cujo escopo primordial se destinou a conter o rápido avanço da COVID-19, integrando-se no conjunto (mais alargado) de medidas de contenção aprovadas pela Assembleia da República no sentido de reduzir ao mínimo indispensável as concentrações de pessoas.
E precisamente nesse contexto que devem ser “lidas” as exceções que a essa regra se mostram estabelecidas no nº 2 desse artigo, entre as quais se conta aquela em que a apelante funda a sua discordância, concretamente a situação prevista no ponto iii) da sua alínea a), já que, na sua perspectiva, o sócio aquando da sua participação numa assembleia geral é membro de órgão estatutário.
Dispõe, com efeito, o referido preceito que “[O] disposto no número anterior não se aplica:
a) Às deslocações para desempenho de funções profissionais ou equiparadas, conforme atestado por:
i) Declaração emitida pela entidade empregadora ou equiparada;
ii) De compromisso de honra, se a deslocação se realizar entre concelhos limítrofes ao do domicílio ou na mesma área metropolitana, bem como no caso de se tratar de trabalhadores do setor agrícola, pecuário e das pescas;
iii) Declaração emitida pelo próprio, no caso dos trabalhadores independentes, empresários em nome individual ou membros de órgão estatutário”.
Portanto, como emerge da exegese do transcrito inciso normativo, a exceção nele contemplada somente poderia operar in casu se estivesse em causa a deslocação da autora para “desempenho de funções profissionais ou equiparadas”, sendo que somente nessa hipótese faria sentido munir-se de declaração emitida nas condições definidas nos pontos i), ii) ou iii).
Ora, não se nos afigura que a deslocação da autora ao Porto[12] para participar numa assembleia geral possa ser considerada como deslocação para desempenho de funções profissionais ou equiparadas, posto que, na economia do preceito, são visadas as situações em que a pessoa tenha efectiva necessidade de se deslocar para fora do concelho do seu domicílio para exercer a sua actividade profissional, seja como trabalhador subordinado, seja como trabalhador independente, isto é, visa legitimar-se a deslocação, tão-somente, quando esteja em causa salvaguardar o exercício de actividade remunerada.
Facto é que a autora não comunga dessa qualidade, sendo certo outrossim que, não sendo gerente da sociedade, não pode ser considerada como membro de órgão estatutário da mesma, não se mostrando despiciendo, neste particular, o recurso – enquanto elemento sistemático da interpretação – ao regime vertido nos arts. 62º e 63º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16.09), que, no que ao caso interessa, apenas cataloga como membros dos órgãos estatutários os gerentes (de facto e de direito) das sociedades, afastando dessa qualificação os sócios e inclusive os gerentes (meramente de direito) que “não exerçam de facto essa actividade, nem aufiram a correspondente remuneração”.
Entendemos, assim, que a deslocação para comparecer em assembleias gerais de sócios não encontra previsão expressa no rol de exceções ao dever geral de limitação à circulação entre concelhos, pelo que a mesma só poderia ser atendível se enquadrável na previsão residual de “outras actividades de natureza análoga ou por outros motivos de força maior ou necessidade impreterível, desde que devidamente justificados”.
Como quer que seja, ainda que houvesse razões objectivas e justificadas (razões essas que não foram sequer alegadas) para a ré não desconvocar a assembleia geral, deveriam ter sido privilegiadas formas alternativas de realização da mesma, mormente através do recurso a meios telemáticos de comunicação ou tomada de deliberação por escrito.
Isso mesmo foi então recomendado por diversas entidades[13] - incentivando o uso de formas alternativas de realização de assembleias gerais de molde a permitir compatibilizar o exercício do direito dos sócios/accionistas com elevados padrões de segurança, saúde e bem-estar de todos os envolvidos - tendo, inclusive, o legislador prorrogado o prazo[14] para a realização das assembleias gerais anuais de aprovação de contas (cfr. art. 18º do DL nº 10-A/2020, de 29.05 e art. 18º do DL nº 22-A/2021, de 17.03), vindo, outrossim, a estabelecer a possibilidade de as reuniões dos órgãos colegiais de quaisquer entidades públicas ou privadas poderem ser realizadas com recurso a meios telemáticos (cfr. art. 5º, nº 1, da Lei nº 1-A/2020, de 19.03).
Registe-se, aliás, que sendo a ré uma sociedade por quotas nada obstaculizaria (antes pelo contrário, como avisadamente sublinha TARSO DOMINGUES[15], face à situação epidemiológica em que vivemos desde o início do ano de 2020) que pudesse recorrer a outras formas possíveis de deliberação dos sócios[16], seja através de deliberações unânimes por escrito (cfr. arts. 54º e 247º, nº 1, do CSC), deliberações por voto escrito (cfr. arts. 56º e 247º do CSC) ou por intermédio do recurso a meios telemáticos (art. 377º, nº 6, al. b), aplicável às sociedades por quotas por força do disposto no nº 1 do art. 248º, do CSC), sendo que neste caso as assembleias se podem concretizar online (ou assembleia mista) ou em assembleia virtual.
Nessas circunstâncias, face ao afirmado impedimento de comparência da autora na convocada assembleia geral de sócios deveria a ré/apelante proceder ao adiamento da mesma para uma outra data ou então diligenciar pela realização desse ato por alguma das formas alternativas acima descritas, sendo que, neste conspecto, ao invés do que sustenta, competir-lhe-ia (e não à autora) - de acordo com o descrito regime normativo e bem assim no nº 3 do art. 248º do CSC - encetar as démarches necessárias para esse efeito[17], a ela incumbindo, em exclusivo, a decisão de a assembleia poder ser realizada por via telemática[18].
Não o tendo feito, não colocou, pois, a autora em condições de exercer o seu direito de participação na assembleia geral de sócios, privando-a, desse modo, de defender plenamente os seus direitos sociais, comportamento esse que não pode deixar de reputar-se como ilícito e censurável, maxime depois de aquela ter manifestado expressamente a intenção de participar nessa assembleia.
Resta, assim, averiguar qual a sanção decorrente desta violação.
Já se deu nota que o citado art. 21º, nº 1, al. b) do CSC é explícito em afirmar que todo o sócio “tem direito” a participar nas deliberações de sócios, o que é reiterado no n.º 1 do seu artigo 379.º. Trata-se, pois, de um direito que assiste a todo e qualquer sócio de uma sociedade, que os demais não podem derrogar, o que, primo conspectu, poderia apontar no sentido de as deliberações tomadas enfermarem de vício de nulidade por força do disposto no art. 56º, nº 1, al. d) do mesmo diploma legal, no qual se preceitua que “[S]ão nulas as deliberações dos sócios cujo conteúdo, directamente ou por atos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios”.
A propósito da interpretação do normativo transcrito, COUTINHO DE ABREU[19] considera que «os preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios, a que a al. d) do n.º 1 do art. 56.º faz referência mais não são do que “preceitos legais imperativos”. Preceitos legais (…), societários (os que primordialmente interessam aqui) ou não (…) de regime infrangível, que não pode ser afastado ou derrogado, nem pela colectividade dos sócios (ou o sócio único), nem por outros órgãos sociais», acrescentando que a «tarefa de aquilatar da imperatividade de certa norma é tarefa interpretativa, face aos interesses protegidos pelas normas e cotejo com signos linguísticos que denotem estar absolutamente vedada a derrogação da disciplina respectiva, em que relevam, entre outros, os interesses indisponíveis dos sócios ou a garantia de certo esquema organizativo-funcional».
Em análogo sentido milita PINTO FURTADO[20], argumentando que, nos casos em que o CSC não declare expressamente quando estamos perante conteúdo de deliberações que não possam ser derrogados pela vontade unânime dos sócios, assim se deve entender quando esteja em causa um interesse primacialmente público, «consoante o juízo que tenha formulado, ou uma norma imperativa ou meramente dispositiva e cuja violação acarrete a nulidade da deliberação e não a sua mera anulabilidade», especificando que os critérios a usar para tal indagação, são de índole «formal, a beber na linguagem expressa ou enfática do preceito concretamente infringido, exprimindo a impossibilidade da sua negação deliberativa; outro substancial, definido pela natureza do interesse tutelado pela norma legal que o conteúdo da deliberação afecta.»
Acontece que, no caso vertente, o facto de a autora ter sido impedida de participar na assembleia, não tem que ver com o conteúdo das deliberações aí tomadas, mas sim com o processo deliberativo em si mesmo considerado, pelo que a sanção aplicável é a da anulabilidade, tal como previsto no artigo 58.º, n.º 1, al. a), do CSC e foi, aliás, decretado pelo decisor de 1ª instância.
Improcedem, assim, as conclusões L) a EE).
*
3.2. Da actuação da autora em abuso de direito

Como se viu, nas suas alegações recursivas, a ré advoga que a conduta da autora ao intentar a presente ação configurará abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, sendo certo que, na sua perspectiva, a autora só não se deslocou ao Porto para participar na ajuizada assembleia geral “porque não o quis fazer”.
De acordo com a regra que no nosso ordenamento jurídico consagra a aludida figura (cfr. art. 334º do Cód. Civil) “[É] ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como escreve MENEZES CORDEIRO[21], o abuso do direito constitui uma forma tradicional para exprimir a ideia do exercício disfuncional de posições jurídicas, isto é, do exercício concreto de posições jurídicas que, embora correcto em si, acabe por contundir com o sistema jurídico na sua globalidade, ou seja, como um princípio que entende deter uma actuação que, em primeira linha, se apresentaria legítima.
Tanto a nível doutrinário como jurisprudencial o abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, tem vindo a ser encarado à luz da tutela das doutrinas da confiança ou das doutrinas negociais, consoante a situação em apreço, surgindo o princípio da confiança - como ressalta o mencionado autor[22] - “como uma mediação entre a boa-fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas.”
No entanto, como não podia deixar de ser, a tutela da confiança, apoiada na boa-fé, somente pode ser tutelada desde que se verifiquem determinadas condições que o referido autor, em outra obra[23], considera serem as seguintes:
1.ª Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
2.ª Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível;
3.ª Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
4.ª A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante; tal pessoa por acto ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.
Em idêntico sentido se expressou BATISTA MACHADO[24], sustentando que a proibição do “venire” se caracteriza pela conformidade à ideia de justiça distributiva que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devam ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida de relação acreditou na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta do mesmo agente e que, por outro lado, seja possível alcançar esse resultado sem sujeitar tal agente a uma obrigação, sem lhe impor a constituição de um vínculo, mas pelo simples de desencadear um efeito inibitório ou inabilitante, que carece de fundamento bem mais ténue que aquele que exigiria a constituição de uma obrigação.
De igual forma, entende o referido Autor que se deve verificar uma situação objectiva de confiança, no sentido de que a confiança digna de tutela tem de radicar numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura e que, directa ou indirectamente, revele a intenção do agente de se considerar vinculado a uma determinada atitude no futuro.
Em segundo lugar, que o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica apenas surjam quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada e que tal dano não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma situação satisfatória, no sentido de que o recurso a esta proibição é sempre um último recurso e, por último, que exista boa-fé da contraparte que confiou e tenha agido com o cuidado e as precauções usuais no tráfico jurídico.
Ainda em idêntico sentido milita ALMEIDA COSTA[25], que considera que a proibição do venire exige, para além da situação objectiva de confiança e a boa-fé do sujeito que confiou, o investimento na confiança que corresponde às mudanças na vida do destinatário do factum proprium que evidenciam tanto a expectativa nele criada como revelam os danos que resultarão da falta de tutela eficaz para aquele, bem como que, subjectivamente, se encontre numa posição de boa-fé, no sentido de que tenha agido na suposição de que o autor do factum proprium estava vinculado a adoptar a conduta prevista e que, ao formar tal convicção tenha tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico, os quais deverão ser tanto maiores quanto mais vultuosos forem os investimentos inspirados na confiança.
Analisados os pressupostos de que se deve fazer depender a aplicação de tal princípio vejamos, agora, por cotejo com a realidade que pode ser colhida nos autos, se os mesmos se verificam, isto é, se é de imputar à autora, uma conduta enformadora de abuso do direito, sendo que este, de acordo com a formulação que do mesmo se colhe no citado art. 334.º, tem de ser manifesto.
Ora, não se antolha em que medida a atuação da demandante possa configurar um “venire”, não se vislumbrando em que medida a sua atuação em toda a situação que esteve na base da propositura da presente ação declaratória permita afirmar estar a exercer o seu direito de anulação das deliberações tomadas na mencionada assembleia geral em contradição com a sua conduta anterior; pelo contrário, já que, como oportunamente se referiu, sempre manifestou à ré ser seu propósito participar nessa assembleia o que, apesar disso, essa não permitiu nem facultou àquela forma alternativa de exercer esse seu direito social.
Pelo que, quanto a esta questão, também improcede o recurso.
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3.3. Da prova de resistência
Uma outra questão que a apelante traz à apreciação deste tribunal de recurso é a de que, no caso sub judicio, não poderá operar a invalidade das deliberações sociais, porquanto a autora não fez, como se impunha, prova de resistência.
Também neste ponto não lhe assiste razão.
Com efeito, a figura da prova de resistência (ou do princípio do limiar de relevância) encontra-se prevista na lei societária a propósito das denominadas deliberações abusivas que são sancionadas com o vício da sua anulabilidade (cfr. art. 58º, nº 1, al. b) do CSC), permitindo-se que essas deliberações, apesar de abusivas[26], mantenham a sua validade pelo simples facto de se provar que seriam igualmente tomadas sem os votos abusivos (cfr. parte final do preceito citado).
Trata-se de uma solução legal que tem merecido severas críticas por parte substancial da doutrina pátria[27], por se considerar que, por essa via, se conseguem resultados que se podem revelar “francamente irrazoáveis” (na expressão de COUTINHO DE ABREU).
Ora, basta atentar na fattispecie normativa do citado art. 58º, nº 1, al. b) para concluir que a mesma não tem qualquer aplicação na espécie, por não se estar em presença de deliberações “abusivas” no sentido legalmente definido, já que a autora sequer exerceu o seu direito de voto.
Improcedem, por isso, as conclusões GG) a II).
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3.4. Da inexistência de invalidade por a deliberação ter sido aprovada pelos votos de sócios que representam mais de ¾ do capital social
A apelante esgrime ainda o argumento de que a deliberação tomada na ajuizada assembleia geral de sócios - que aprovou “que o resultado positivo de dez mil e trezentos e quarenta e cinco euros e sessenta e cinco cêntimos transitasse para a conta Resultados Transitados” - não enferma de invalidade, já que foi votada por sócios que representam mais de ¾ do capital social e o tema da “aplicação de resultados” constava expressamente da convocatória.
Procedendo à exegese da sentença recorrida verifica-se que a enunciada questão não foi alvo de apreciação e consequentemente sobre ela não recaiu qualquer pronunciamento jurisdicional.
Ora, como é sabido, o recurso consiste no pedido de reponderação sobre certa decisão judicial, apresentada a um órgão judiciariamente superior ou por razões especiais que a lei permite fazer valer. O recurso ordinário (que nos importa analisar para a situação presente) não é uma nova instância, mas uma mera fase (eventualmente) daquela em que a decisão foi proferida.
O recurso é uma mera fase do mesmo processo e reporta-se à mesma relação jurídica processual ou instância[28]. Dentro desta orientação tem a nossa jurisprudência[29] repetidamente afirmado que os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova.
O tribunal de recurso vai reponderar a decisão tal como foi proferida, isto é, os recursos destinam-se a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, apenas se exceptuando a existência de questão de conhecimento oficioso.
Assim sendo, não se estando em presença de matéria do conhecimento oficioso, não pode este tribunal ad quem - por o presente recurso assumir, como se assinalou, natureza de recurso de reponderação – tomar posição sobre questão que não foi decidida em 1ª instância, por tal exceder o âmbito dos seus poderes de cognição.
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3.5. Da litigância de má-fé da ré

Como se deu nota, nas suas contra-alegações veio a autora requerer que a ré seja condenada como litigante de má-fé, fazendo ancorar essa pretensão essencialmente no facto de esta ter impugnado a materialidade atinente à localização da sua (dela, autora) residência (que se situa em ...), insistindo que esse domicílio é na cidade do Porto, malgrado existam nos autos elementos probatórios, mormente de natureza documental, que atestam, de forma evidente, ter efectivamente o seu domicílio no referido concelho ....
Quid juris?
Como é consabido, o instituto da litigância de má-fé, tal como se mostra configurado no art. 542º, visa sancionar comportamentos contrários ao princípio da boa-fé processual, embora exija que tais comportamentos sejam acompanhados por um específico animus da parte do agente.
Na verdade, se atentarmos ao teor literal das diversas alíneas do nº 2 do citado normativo – que comportam ou descrevem o elemento objetivo da litigância de má-fé – verificamos que estas se tratam de verdadeiras concretizações do princípio da boa-fé. As mesmas, procurando traduzir o sentido negativo da boa-fé processual, elencam os comportamentos que as partes se devem abster de praticar de molde a não prejudicarem o decurso da relação jurídica processual, que deve ser pautado por um espírito de cooperação intersubjetiva e consentâneo com o dever de verdade, tendo em vista a justa resolução do litígio. Contudo, a lei não se basta com o mero preenchimento do elemento objetivo tal como se mostra descrito nas referidas alíneas, impondo outrossim que na inobservância desses deveres a parte aja com dolo ou negligência grave.
Assim, como refere PAULA COSTA E SILVA[30], a ilicitude pressuposta pela litigância de má-fé distancia-se da ilicitude civil (art. 483º Cód. Civil), não apenas porque se apresenta como um ilícito típico (descrevendo analiticamente as condutas que o integram), mas também porque, ao contrário do que sucede com o ilícito civil, se encontra dependente da verificação de um elemento subjetivo, sem o qual o comportamento da parte não pode ser tido como típico e, consequentemente, como ilícito, aproximando-se nesta medida muito mais do ilícito penal.
Efetivamente, quando no proémio do nº 2 do art. 542º, o legislador refere “quem, com dolo ou negligência grave” praticar o comportamento prescrito em qualquer das suas alíneas, parece pressupor que, para que se verifique o comportamento típico descrito em cada uma delas, o sujeito atue já imbuído de dolo ou culpa grave. Tal como sucede no âmbito penal, o tipo de ilícito do art. 542º será constituído não apenas por um elemento de natureza objetiva (que serve para dar a conhecer ao sujeito processual que aquele comportamento é proibido pelo ordenamento jurídico), mas também por um elemento de natureza subjetiva (no âmbito processual: o dolo ou a negligência grave), sendo que apenas quando ambos se verifiquem a conduta poderá ser considerada típica e, por conseguinte, ilícita.
Quanto a este elemento subjetivo a lei adjectiva[31] acolhe, assim, a máxima culpa lata dolo aequiparatur, considerando litigância de má-fé não apenas a lide dolosa, mas também a lide temerária, consagrando, deste modo, uma noção ética de boa-fé subjectiva[32], considerando de má-fé não apenas aquele que conhece o erro em que incorre, mas também aquele que o desconhece por não ter cumprido com os deveres de cuidado que lhe eram impostos. Todavia, esta eticização da má-fé processual não se afigura total, na medida em que se não compadece com qualquer desrespeito por esses deveres de cuidado, independentemente do grau de culpa. Pelo contrário, apenas estaremos perante má-fé processual quando se tenham desrespeitado os mais elementares deveres de cuidado e de prudência, atuando de forma gravemente negligente, isto é, com culpa grave.
Por conseguinte, apenas na presença de má-fé (subjetiva), isto é, da consciência de que lhe não assiste razão, ou quando – face às dificuldades em apurar a verdadeira intenção do litigante – tal consciência apenas se ausente por inobservância das mais elementares regras de prudência, o comportamento processual será reconduzido ao ilícito típico do art. 542º, nº 2, sendo sancionado como litigância de má-fé.
Ora, apesar de existirem, de facto, nos autos subsídios probatórios que apontam no sentido de que a autora tem, de há vários anos a esta parte, a sua residência no Concelho ... (como, aliás, acima se decidiu aquando da apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto), certo é que o posicionamento que a ré assumiu quanto a tal materialidade não reveste a censurabilidade legalmente suposta, na medida em que foram igualmente aportados aos autos elementos de prova (seja pessoal, seja documental) que, em alguma medida, legitimam o comportamento processual da ré em impugnar a factualidade referente ao local da efectiva residência da demandante.
Como assim, inexistem nos autos elementos que, de forma consistente e inequívoca, permitam afirmar que a apelante tenha litigado com má-fé substancial ou instrumental, já que, como vem sendo salientado[33], para que se consubstancie litigância de má-fé, a conduta processual da parte terá de ser qualificável como grave em termos de censurabilidade, o que reclamará sempre uma objetivação ou tradução em factos que não uma simples convicção íntima do julgador.
Não há, pois, que a condenar como litigante de má-fé.
***
III - DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante (art. 527º, nºs 1 e 2).

Porto, 7.02.2022
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
______________________________________
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência.
[3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[4] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., sobre a questão, acórdãos do STJ de 10.01.2012 (processo nº 197/04.0TCGMR.S1) e de 22.05.2012 (processo nº 5504/09.7TVLSB.L1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] Cfr., por todos, na doutrina, HELENA CABRITA, A fundamentação de facto e de direito da decisão cível, Coimbra Editora, 2015, págs. 106 e seguintes e ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 2ª edição, Almedina, pág. 147; na jurisprudência, acórdãos do STJ de 28.05.2015 (processo nº 460/11.4TVLSB.L1.S1) e de 1.10.2019 (processo nº 109/17.1T8ACB.C1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt
[7] Sendo de sublinhar que a circunstância de a autora ter mantido, durante algum tempo, o seu domicílio fiscal na Rua ..., no Porto, não assume, quanto a nós, especial relevância, na justa medida em que, de acordo com a legislação fiscal (cfr., v.g. art. 19º da Lei Geral Tributária), essa indicação vale, tão-somente, no relacionamento entre o contribuinte e a Administração Tributária, visando definir territorialmente os serviços (locais e regionais) da administração tributária competentes para lidar com o contribuinte no que se refere à sua situação tributária.
[8] Cfr., inter alia, acórdãos da Relação de Coimbra de 27.05.2014 (processo nº 1024/12) e de 24.04.2012 (processo nº 219/10), acórdão da Relação de Lisboa de 14.03.2013 (processo nº 933/11.9TVLSB-A.L1-2), acórdãos da Relação de Guimarães de 15.12.2016 (processo nº 86/14.0T8AMR.G1) e de 13.02.2014 (processo nº 3949/12.4TBGMR.G1) e acórdão desta Relação de 17.03.2014 (processo nº 7037/11.2TBMTS-A.P1), todos acessíveis em www.dgsi.pt. No mesmo sentido se pronuncia ABRANTES GERALDES, Recursos, pág. 297, onde escreve que “de acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objeto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
[9] O voto é, pois, uma declaração de vontade, sendo que a doutrina pátria vem discutindo a finalidade do direito de voto, advogando uns que ele serve os interesses do sócio, enquanto outros consideram que ele é antes instrumento de defesa do interesse social – cfr. sobre a questão, entre outros, PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades Comerciais, 4ª edição, Coimbra Editora, págs. 151 e seguintes.
[10] Com ressalva das restrições (de cariz excepcional) legalmente previstas – cfr., sobre a questão, COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, vol. II, 3ª edição, Almedina, págs. 241 e seguintes.
[11] No qual se dispõe que [O]s cidadãos não podem circular para fora do concelho do domicílio no período compreendido entre as 23:00 h do dia 27 de novembro de 2020 e as 05:00 h do dia 2 de dezembro de 2020 e entre as 23:00 h do dia 4 de dezembro de 2020 e as 23:59 h do dia 8 de dezembro de 2020, salvo por motivos de saúde ou por outros motivos de urgência imperiosa”.
[12] Sendo que, de acordo com o anexo IV do referido Decreto nº 9/2020, o Porto estava então classificado como um concelho de risco extremo.
[13] Cfr., v.g., as recomendações emitidas pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, em cooperação com o Instituto Português de Corporate Governance e com a Associação de Empresas Emitentes de Valores Cotados em Mercado, no âmbito da declaração do estado de emergência, acessíveis em https://www.cmvm.pt/pt/Comunicados/comunicados_mercado/Pages/20201903a.aspx.
[14] Sendo que, por via de regra, as contas das sociedades devem, nos termos do nº 5 do art. 65º do CSC, ser aprovadas pelos sócios até ao final do mês de março.
[15] A COVID-19 e a (re)descoberta do regime relativo ao uso de meios telemáticos no funcionamento dos órgãos sociais, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 80 – vol. I/II (janeiro/junho de 2020), págs. 275 e seguintes; em análogo sentido, COUTINHO DE ABREU, COVID-19 e o (ir)regular funcionamento das sociedades, in O COVID-19 e o Direito, Edições Universitárias Lusófonas, págs. 91 e seguintes, onde enfatiza ser “aconselhável que os que têm legitimidade para convocar as assembleias gerais tenham em devida conta as virtualidades das diferentes formas de deliberação nos tempos que correm (…) especialmente nas sociedades por quotas”.
[16] Para maior desenvolvimento sobre essas formas (alternativas) de deliberação dos sócios, vide, entre outros, OLAVO CUNHA, in Impugnação de deliberações sociais, Almedina, 2015, págs. 89 e seguintes, o qual sublinha que algumas dessas modalidades apenas têm aplicação, precisamente, nas sociedades por quotas.
[17] Sobre esta questão, cfr., com interesse, ARTUR FILIPE SILVA, As assembleias gerais das sociedades comerciais em tempo de pandemia, acessível em https://adcecija.pt/as-assembleias-gerais-das-sociedades-comerciais-em-tempo-de-pandemia/.
[18] Sendo que, em conformidade com o disposto no art. 377º, nº 6, al. b) (aplicável, como se referiu, às sociedades por quotas, por força do preceituado no nº 1 do art. 248º, do CSC), a possibilidade de realizar a assembleia por via telemática apenas estará afastada quando o contrato de sociedade o declare de direta e expressa, o que não é o caso, por inexistir no pacto social da ré qualquer disposição com esse conteúdo.
[19] In Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 663.
[20] in Deliberações dos Sócios, Almedina, 1993, págs. 293 e 344 a 346.
[21] In Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in agendo, Almedina, 2006, págs. 33 e seguintes.
[22] Ob. citada, pág. 51.
[23] Tratado de Direito Civil Português, Tomo IV, págs. 299 e seguintes.
[24] Tutela da confiança e venire contra factum proprium, in Obra Dispersa, vol. I, Scientia Iuridica, 1991, págs. 407 e seguintes.
[25] In Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 129, pág. 62.
[26] Sendo que, em conformidade com a citada al. b), esse abuso ocorre quando as deliberações “[s]ejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes (…)”.
[27] Cfr., sobre a questão, PEDRO MAIA, Deliberações dos sócios, in Estudos de Direito das Sociedades, Almedina, 2015, págs. 251 e seguintes e COUTINHO DE ABREU, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. I, págs. 712 e seguintes.
[28] Sobre a questão, por todos, RUI PINTO, O recurso civil – uma teoria geral, Almedina, 2017, págs. 69 e seguintes, onde sublinha que os nossos recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas, vigorando, assim, um “modelo do recurso de reponderação”.
[29] Cfr., inter alia, acórdão do STJ de 15.09.2010 (processo nº 322/05.4TAEVR.E1.S1), acórdão desta Relação de 20.10.2005 (processo nº 0534077) e acórdão da Relação de Lisboa de 14.05.2009 (processo nº 795/05.1TBALM.L1-6), acessíveis em www.dgsi.pt.
[30] A litigância de má-fé, Coimbra Editora, especialmente págs. 379 e seguintes. Em análogo sentido militam ainda JÚLIO CUNHA, A propósito da responsabilidade processual, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Motta Veiga, págs. 696 e seguintes e PEDRO DE ALBUQUERQUE, Responsabilidade processual por litigância de má-fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de atos praticados no processo, pág. 92, enfatizando este último que o elemento subjetivo é pressuposto constitutivo da figura da litigância de má-fé.
[31] Que, como é sabido, sofreu uma relativa ampliação a partir do DL nº 329-A/95, de 12.12, posto que, para além do dolo, passou a ser considerado de má-fé também aquele que apenas desconhece a sua falta de razão porque grosseiramente não observou os mais elementares deveres de cuidado.
[32] Sobre o conceito de boa-fé subjetiva no sentido ético cfr., por todos, MENEZES CORDEIRO, Da boa-fé no Direito Civil, págs. 516 e seguintes, onde preconiza que para que o sujeito seja considerado de boa-fé, não basta o simples desconhecimento sendo necessário um desconhecimento desculpável, ou seja um desconhecimento que permaneça mesmo havendo sido cumpridos os deveres de diligência e cuidado.
[33] Cfr., por todos, LOPES DO REGO, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, págs. 389 e seguintes e ABRANTES GERALDES, in Temas Judiciários, pág. 320 e seguintes.