Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
275/25.2PCMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MARTINS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
APLICAÇÃO DA PENA DE ADMOESTAÇÃO
Nº do Documento: RP20251029275/25.2PCMTS.P1
Data do Acordão: 10/29/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I- Em sede de impugnação ampla da matéria de facto apenas poderemos ter como ponto de referência os factos provados e não provados constantes da decisão recorrida.
II- A aplicação de penas de admoestação aos agentes de crimes de condução sem habilitação legal não é compatível com a satisfação dos imperativos de prevenção geral associados a estes crimes, a não ser perante excepcionais circunstâncias concretas que mostrem o contrário.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 275/25.2PCMTS.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 2

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
I.1. Por sentença proferida em 24.04.2025 o arguido AA (nascido a ../../1938 e melhor identificado nos autos) foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.º 1 do D.L. n.º 2/98, de 03.01, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo um total de € 200,00 (duzentos euros), substituída pela pena de admoestação nos termos do artigo 60º do Código Penal.
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I.2. Recurso da decisão
O Ministério Público interpôs recurso da decisão, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição integral):
“1- O recurso é interposto da decisão que condenou o arguido AA foi condenado, além do mais e no que ora interessa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. p. pelo artigo art. 3.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 2/98 de 03 de janeiro, na pena 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 euros (cinco euros), perfazendo um total de € 200,00 (duzentos euros), substituída, nos termos do disposto no art. 60.° do Código Penal, pela sanção de admoestação oral.
2- A sentença recorrida não merece aplauso, e daí a interposição do presente recurso, pelas seguintes ordens de razão:
3- Concorda-se com toda a factualidade dada como provada. Contudo, deveria ter sido aditado à matéria de fato dada como provada, para além da constante da acusação pública, feita por remissão para o auto de notícia, que o arguido é proprietário da ali identificada viatura desde 1990, de acordo com as suas próprias declarações, devidamente gravadas (10m00s a 10m08s).
4- Atendendo ao ilícito criminal em causa (condução em estado sem habilitação legal), nunca a admoestação poderia ter sido aplicada, por falta dos respetivos pressupostos, designadamente adequação e suficiência às finalidades da punição.
5- Na verdade, as necessidades de prevenção geral são elevadíssimas (sendo particularmente frequente na Instância Local Criminal de Matosinhos), pois que a condução sem habilitação legal é apontada como uma das causas de morte na sinistralidade rodoviária em Portugal.
6- No caso concreto, apesar do arguido ser primário (não obstante no NUIPC ... ter beneficiado da suspensão provisória do processo e do cancelamento da sua anterior condenação no processo sumário ... onde já lhe havia sido aplicada pena de 40 dias de multa, conforme nos permitiu alcançar a consulta eletrônica dos autos - cfr. menção feita no auto de notícia e resultado da consulta de processos pendentes junto aos autos a 24-04-2024) e ter confessado os fatos, a verdade é que esta última circunstância também não tem especial relevo nem pode ser sobrevalorizada diante da prova documental e testemunhal ínsita no auto de notícia (situação de flagrante delito).
7- Acresce que o arguido permanece sem carta de condução até à presente data e desconhecendo-se se ainda se encontra em condições de a obter, dada a sua idade (86 anos).
8- De igual modo consideramos que opção pela admoestação, sem qualquer tipo de sanção ao arguido, é um incentivo para que o arguido sempre que necessite volte a conduzir, sem carta de condução e sem seguro de responsabilidade civil obrigatório.
9- Pelo exposto, o tribunal ao substituir a pena aplicada por admoestação, violou o disposto no art. 60.° do Código Penal.
10- Deveria ter sido aplicada uma pena de multa mais próxima do meio legal, nunca inferior a 60 dias, a fim de lhe ser atribuída dignidade penal e constituir um sacrifício suficiente para o arguido, sob pena de não se conseguir o efeito pretendido com a aplicação da pena, antes se incentivando aquele a repetir a sua conduta, o que constitui violação do art. 71.° n° 1 do Código Penal.”
Pugna pela revogação da sentença recorrida e substituição por outra que aplique uma pena de pelo menos 60 (sessenta) dias de multa, sem que mesma seja substituída por admoestação.
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I.3. O Ministério Publico consignou ter visto o recurso.
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I.4. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do CPP (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no acórdão nº 7/95, do STJ, de 19.10, in DR n.º 298/95, I Série-A, de 28.12.1995).
Assim, face às conclusões apresentadas no presente recurso as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
1ª Saber se deve ser aditado aos factos assentes um outro facto: o arguido é proprietário da identificada viatura desde 1990;
2ª Saber se a pena de multa deve ser alterada para 60 dias;
3ª Saber se a pena de multa não deve ser substituída pela pena de admoestação.
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II.2. Sentença recorrida (que se transcreve parcialmente nas partes relevantes após audição do respectivo ficheiro áudio)
O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
“Toda a factualidade descrita atinente à conduta do arguido no dia 23 de Abril de 2025, pelas 11 horas, ou seja, a condução do ciclomotor com a matrícula ..-FB-.., na Rua ..., ..., na via pública, sem estar devidamente habilitado para o efeito, através de título de condução válido, emitido por autoridade competente, que o autorizasse a conduzir o referido ciclomotor na via pública.
O arguido sabia que nas condições descritas não podia conduzir o aludido ciclomotor na via pública e também que, apesar desse conhecimento, não se absteve de encetar a condução na via pública com o referido ciclomotor, o que representa conforme descrito, o que representou e o que quis.
O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a conduta era proibida e punida por lei.
Não lhe são conhecidos quaisquer antecedentes criminais.
Vive em casa arrendada, pela qual suporta o encargo mensal de 60 ; reside com a sua esposa, os quais são ambos reformados e que auferem um total de 840 , 480 € por parte do arguido e 360 € por parte da sua esposa; não tem qualquer outro veículo, à excepção do ciclomotor constante dos autos em seu nome, nem qualquer bem imóvel.
O arguido confessou integral e sem reservas a prática dos factos e verbalizou arrependimento.”
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O Tribunal recorrido considerou:
“Não resultaram factos não provados.”
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A apreciação efectuada pelo Tribunal recorrido quanto à escolha da pena foi a seguinte:
“No caso concreto, tendo em consideração o tipo de crime em causa que efectivamente temos de ter em consideração que conduzir na via pública tem riscos, já tem riscos associados a quem tem o título de habilitação legal e, muito mais, para quem não o tem porque se desconhece se a pessoa estará ou não nas suas plenas capacidades para o fazer.
Como tal, o tribunal entende que no caso concreto são elevadas as necessidades de prevenção geral negativa, ou seja, quer de intimidação do agente, quer de outros potenciais criminosos e também igualmente elevadas a prevenção geral positiva, ou seja, a necessidade de promover a reafirmação deste tipo de norma de proibição de condução sem habilitação, na sociedade … é aprofundar a consciência dos valores atinentes ao bem jurídico protegido atendendo à habitualidade e também á frequência da prática de crimes de natureza rodoviária a nível nacional, especialmente aqui nesta comarca que não é excepção.
Portanto as necessidades de prevenção geral são elevadas.
Em contraponto, o tribunal entende que as necessidades de prevenção especial são no caso reduzidas, ou seja, dissuasão do próprio delinquente potencial e reintegração do agente em virtude quer da postura manifestada pelo arguido na presente audiência, quer sobretudo pela ausência de antecedentes criminais. Pelo que, nesse sentido, conjugando esses elementos, o tribunal entende aqui que a pena de multa se afigura ainda adequada e suficiente para acautelar as exigências de prevenção que se fazem sentir, desde que devidamente doseada, razão pela qual se opta pela aplicação de uma pena de multa.”
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A apreciação efectuada pelo Tribunal recorrido quanto à medida concreta da pena de multa foi a seguinte:
“Ao caso concreto, aplicável uma pena de multa entre 10 dias a 120 dias e o tribunal tem de fazer uma ponderação atendendo às várias circunstâncias previstas no artigo 71º do Código Penal que pesem a favor e a desfavor do arguido.
E como tal, o tribunal entende que milita contra o arguido:
- as exigências de prevenção geral que são acentuadas atendendo às elevadas preocupações da sociedade com crimes rodoviários e com o cometimento deste tipo de infracção penal em concreto;
- a intensidade do dolo que é elevada, dado que o arguido agiu com dolo directo, com plena consciência do que estava a fazer;
- a culpa que é elevada uma vez que denota aqui uma atitude reprovável, considerando que podia e devia ter agido de modo diverso.
Por outra perspectiva, a favor do arguido milita:
- a moderada ilicitude dos factos, tendo em consideração que não resultou qualquer tipo de incidente, nomeadamente acidente de viação, ou seja, que a ilicitude dos factos não é tão elevada;
- a ausência de consequências, nenhum dano associado à sua conduta;
- a ausência de antecedentes criminais;
- a circunstância de estar socialmente inserido e familiarmente;
- a sua idade;
- a circunstância de ter verbalizado arrependimento e também manifestado vontade de pretender proceder à venda do veículo;
- o facto de ter confessado desde início de forma integral e sem reservas, o que denota uma capacidade e um juízo crítico acerca da sua conduta que o tribunal não pode desvalorizar, embora neste caso não seja o mais relevante visto que basta uma simples consulta para o tribunal perceber que não tem habilitação legal.
Assim, considerando todos estes elementos e tudo o que denota a seu favor e a desfavor, o tribunal entende como justa, adequada e proporcional a aplicação de uma pena de 40 dias de multa.
Já no que concerne ao quantitativo diário, tendo em consideração a sua situação socioeconómica o tribunal tem de fixar isto no mínimo legal que é de 5 €. Portanto, o quantitativo diário o tribunal fixa em 5 €.
Como tal, o senhor vai condenado aqui na prática deste crime, numa pena de multa de 40 dias, à taxa diária de 5 €, que perfaz um valor de 200 €.”
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A apreciação efectuada pelo Tribunal recorrido quanto à aplicação de pena de substituição foi a seguinte:
“Uma vez que ao senhor foi aplicada uma pena de multa inferior a 240 dias, o tribunal tem aqui um poder dever do mesmo de ponderar aqui a substituição da mesma por outros outras penas substitutivas e a única pena substitutiva aplicável no caso seria a admoestação que é uma solene advertência e que pressupõe a verificação de dois pressupostos que são a prévia reparação do dano e a realização de forma adequada e suficiente das finalidades da punição.
No caso vertente, o tribunal tendo em consideração tudo o que já expôs e essencialmente a circunstância do senhor ter o aqui arguido ter confessado integralmente e sem reservas e ter demonstrado arrependimento que aos olhos deste tribunal se afigurou sincero e não se olvidando aqui sobretudo a idade do arguido e também a circunstância de no caso concreto não existir um efectivo dano para que seja necessária uma reparação, o tribunal entende que se encontram preenchidos os pressupostos para esse efeito e, como tal, conclui que bastará aqui para, satisfaz aqui as necessidades do caso concreto e da punição do agente aqui uma solene advertência oral ao agente e, em consequência, o tribunal decide substituir a pena de multa em que o arguido iria condenado por uma admoestação oral nos termos do artigo 60º do Código Penal.”
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II.3. Apreciação do recurso
II.3.1. Do aditamento ao acervo factual provado na decisão recorrida
§1. O recorrente entende que deveria ter sido aditado à matéria de facto dada como provada o seguinte facto: o arguido é proprietário da identificada viatura desde 1990, de acordo com as declarações do arguido prestadas e gravadas em audiência.
Não assiste razão ao recorrente.
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§2. Da leitura da motivação e das conclusões depreende-se que, apesar de o recorrente não indicar a norma jurídica em que assenta a sua pretensão recursória, a mesma poderia eventualmente consistir numa impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto prevista no artigo 412º, n.º 3 do CPP.
Sucede que, em sede de impugnação da matéria de facto apenas poderemos ter como ponto de referência os factos que foram dados como provados e não provados que constam da sentença recorrida (cfr., entre muitos outros, o acórdão do STJ de 21.03.2012, relatado por Armindo Monteiro, o acórdão do TRG de 07.05.2018, relatado por Jorge Bispo, o acórdão do TRE de 26.04.2016, relatado por Fernando Ribeiro Cardoso e o acórdão do TRL de 10.10.2024, relatado por Paula Cristina Bizarro, todos acessíveis em www.dgsi.pt e o acórdão do TC nº 312/2012, de 20.06.2012, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).
No caso vertente, o facto que o recorrente pretende ver aditado aos factos provados (a data a partir da qual o arguido é proprietário da viatura) não consta dos factos não provados da decisão recorrida, que nesta sede nem sequer elencou quaisquer factos.
Tal factualidade terá resultado, na perspectiva do recorrente, da discussão da causa, designadamente das declarações do arguido, mas que foi desconsiderada pelo tribunal de primeira instância.
Donde, a pretensão do recorrente não é susceptível de ser alcançada através da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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§3. O mecanismo processual adequado a alcançar tal desiderato seria a invocação da nulidade da sentença, prevista no artigo 379º, n.º 1, al. a), do CPP traduzida na omissão das menções referidas no n.º 2 do artigo 374º do CPP, ou seja, in casu, de determinado facto como provado com relevo para a decisão da causa e resultante da discussão da mesma (cfr. artigos 368º e 369º, ambos do CPP).
Sendo tal patologia de conhecimento oficioso, importa referir que, por um lado, a factualidade em causa não integra o objecto do processo tal como delineado na acusação pública (que remete para o auto de notícia) e, por outro lado, não se nos afigura que essa factualidade assuma relevância jurídica bastante para a decisão da causa.
Donde, também não ocorre a nulidade a que alude o citado artigo 379º, n.º1, al. a) do CPP, na medida em que só se justifica que o tribunal se pronuncie, dando-os como provados ou como não provados, sobre factos que sejam relevantes para a decisão da causa.
O que realmente não é o caso aqui em apreço.
Pelas razões expostas, improcede, nesta parte, o recurso, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto vertida na decisão recorrida.
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II.3.2. Da medida concreta da pena de multa
§1. O recorrente discorda da pena de 40 (quarenta) dias de multa aplicada ao arguido por considerar benévola.
Nesta parte, argumenta que deveria ter sido aplicada uma pena de multa mais próxima do meio legal “a fim de lhe ser atribuída dignidade penal e constituir um sacrifício suficiente para o arguido, sob pena de não se conseguir o efeito pretendido com a aplicação da pena, antes se incentivando aquele a repetir a sua conduta”.
Entende que a pena de multa devia ser fixada em 60 dias.
O recorrente não tem razão.
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§2. No que concerne aos critérios gerais de determinação da pena a sua aplicação visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, nºs 1 e 2, do Código Penal), sendo determinada em função da culpa e das exigências de prevenção (artigo 71º, nº 1, do Código Penal).
Entre aquele limite mínimo de garantia da prevenção e máximo da culpa do agente, a pena é determinada em concreto por todos os factores do caso, previstos nomeadamente no nº 2 do referido artigo 71º, que relevem para a adequar tanto quanto possível à ilicitude da acção e culpa do agente.
Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio ético-retributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha da pena.
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§3. Importa lembrar que o recurso dirigido à concretização da medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso. Deste modo, a intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada, só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada.
Neste sentido, o acórdão do TRP de 02.10.2013, relatado por Joaquim Gomes (acessível em www.dgsi.pt/jtrp) escreveu que “o recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso” e o acórdão do STJ de 18.05.2022, relatado por Helena Fazenda (acessível em www.dgsi.pt/jstj) consignou que “A sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (Figueiredo Dias, DPP, As consequências Jurídicas do Crime, 1993, §254, p. 197)”.
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§4. O arguido AA foi condenado pelo tribunal recorrido na pena de 40 (quarenta) dias de multa.
Tendo em consideração que a moldura penal aplicável é de 10 (dez) a 240 (duzentos e quarenta) dias de multa para o crime pelo qual o arguido foi condenado e que nos termos do artigo 40º, nºs 1 e 2 do CP a aplicação de uma pena visa a “protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente da sociedade” e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” e tendo ainda em vista que nos termos do artigo 71º do mesmo diploma legal a pena concreta é encontrada em função da culpa e das exigências de prevenção e atendendo também a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido/recorrente, cremos que o conjunto dos factores com relevo na determinação da medida concreta da pena fixada na decisão recorrida nos termos acima transcritos e que aqui se dão por inteiramente reproduzidos foram objecto de ponderada valoração pelo tribunal a quo.
Assim sendo, consideramos adequada, proporcional e ajustada a pena de 40 (quarenta) dias de multa, não merecendo reparo algum a operação efectuada pelo tribunal recorrido.
Improcede também, neste segmento, o recurso.
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II.3.3. Da substituição da pena de multa por pena de admoestação
§1. O recorrente insurge-se contra a substituição da pena de multa pela pena de admoestação por entender que não se verificam os respectivos pressupostos, designadamente a adequação e suficiência às finalidades da punição.
O recorrente, nesta parte, tem razão.
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§2. Dispõe o artigo 60º do Código Penal que:
“1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação.
2 - A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
3 - Em regra, a admoestação não é aplicada se o agente, nos três anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluída a de admoestação.
4 - A admoestação consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal.”
Como decorre do citado artigo 60º, a pena de admoestação não se basta com a verificação do requisito formal previsto no n.º 1, pressupondo também a emissão de um juízo de prognose positiva sobre a sua adequação e eficácia à ressocialização do agente de facto criminoso e ainda de que “não porá em causa os limiares mínimos das expectativas comunitárias ou de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico” – Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas-1993, pág. 387, §605, parte final.
Como se refere no acórdão do TRG de 13.01.2020, relatado por Cândida Martinho (acessível em www.dgsi.pt) “… a pena de admoestação, como pena de substituição, está prevista essencialmente para os casos em que se mostra desnecessária a aplicação de uma pena ao arguido condenado tratando-se primordialmente das situações denominadas de bagatelas penais em que a ilicitude e ou a culpa são reduzidas, quer pelo facto em si quer pelo comportamento posterior (reparação do dano).
Na verdade, a admoestação é a pena mais leve que o nosso ordenamento jurídico-criminal comporta, subsistindo como pena de substituição de multas de pequena gravidade, tal como já preconizava Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas-1993, pág. 385, §602.
Mas para que tenha lugar a aplicação da pena de admoestação, verdadeira pena de substituição, necessário se mostra que o tribunal se convença, através da emissão de um juízo de prognose favorável, que tal pena se revela um meio adequado e suficiente de realização das finalidades da punição.”
Em idêntico sentido, no acórdão do TRC de 11.05.2005, relatado por Oliveira Mendes (acessível em www.dgsi.pt) escreveu-se que "A pena de admoestação, a mais leve do nosso ordenamento jurídico, só pode ser cominada se o tribunal se convencer, através da emissão de um juízo de prognose favorável, que o delinquente alcançará por tal via a sua (re) socialização e que a sua aplicação não porá em causa os limiares mínimos das expectativas comunitárias ou de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico, sem esquecer que a mesma só deve ser cominada para censura de factos de escassa gravidade, gravidade que deve ser aferida em função do bem ou do interesse jurídico tutelado e o grau e a intensidade da violação ou lesão nele produzida."
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§3.Transpondo estas breves considerações para o caso em apreço, mostra-se incontroverso que se verificam os três requisitos formais: i) a concreta pena de multa aplicada ao arguido é inferior 240 dias, tendo sido fixada em 40 dias; ii) o arguido não foi condenado em qualquer pena nos três anos anteriores à prática do crime em apreço dada a ausência de antecedentes criminais; e iii) não há lugar a reparação dada a inexistência de dano.
Resta saber se também se mostra preenchido o requisito material, ou seja, a realização de forma adequada e suficiente das finalidades da punição.
A jurisprudência tem vindo a denegar, salvo circunstâncias excepcionais, a aplicação da pena de admoestação aos agentes de certos tipos de crime, relativamente pouco graves em termos de moldura penal abstracta, mas que, pela sua particular danosidade, no actual contexto social, colocam imperativos acrescidos de prevenção geral, como sejam os crimes de condução de veículo sem habilitação legal e de condução de veículo em estado de embriaguez (neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do TRE de 29.05.2012, relatado por Martinho Cardoso e de 22.10.2019, relatado por Sérgio Corvalho, os acórdãos do TRG de Guimarães de 20.04.2009, relatado por Filipe Melo, de 11.01.2010, relatado por Cruz Bucho e 13.01.2020, relatado por Cândida Martinho e acórdão do TRP de 19.04.2023, relatado por Paulo Costa, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
No caso dos autos, não podemos esquecer as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo de crime, não só pela frequência com que ocorre, mas sobretudo porque ainda se mostra deficientemente interiorizada pelos membros da nossa sociedade a ideia de que a exigência da carta de condução, para poder conduzir determinadas categorias de veículos, não é um mero formalismo burocrático, complicado e dispendioso, mas antes constitui um instrumento indispensável a garantir, na medida do possível, que uma actividade, que é, por natureza, geradora de perigo, só é exercida por quem reúne efectivamente as condições necessárias para o efeito.
Acresce que num país, como é o nosso, com os tristes números de sinistralidade nas estradas, é muito elevada a necessidade de tutela quer do bem jurídico imediatamente protegido pelo crime cometido pelo arguido e que é a segurança de circulação rodoviária, quer dos bens jurídicos que se prendem com essa segurança, como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais de todos quantos utilizam as vias de circulação públicas.
Neste conspecto, há assim que ter em conta as finalidades da prevenção de incentivar nos cidadãos a convicção que comportamentos deste jaez são punidos, assim como há que dissuadir o arguido para que não volte a prevaricar nos moldes acima transcritos (ainda mais que tendo 87 anos de idade, certamente que já não conseguirá obter a carta de condução que o habilite a conduzir o seu veículo).
Neste sentido, concordamos com a orientação jurisprudencial, a que já fizemos referência, segundo a qual a aplicação de penas de admoestação aos agentes de crimes de condução sem habilitação legal não é compatível com a satisfação dos imperativos de prevenção geral associados a estes crimes, a não ser perante circunstâncias concretas que mostrem o contrário.
O que não acontece no caso dos autos.
Na verdade, é certo que o arguido não tem antecedentes criminais e que confessou os factos, declarando-se arrependido.
Mas a confissão dos factos pelo arguido nada tem de extraordinário, sendo mesmo vulgar em processos desta natureza, na medida em que o arguido foi detido em flagrante delito. Ou seja, a admissão dos factos nada adiantou ao apuramento dos mesmos.
E o arrependimento, ainda que dado como apurado pelo tribunal a quo, traduziu-se numa mera verbalização por parte do arguido em audiência de julgamento.
Acresce que, o demais quadro factual apurado – idade, inserção social e familiar – ainda que releve como factor atenuante na determinação da medida da pena, não assume dignidade bastante para esbater as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir conforme acima exposto.
Neste conspecto, a pena de admoestação não protege cabalmente o bem jurídico segurança rodoviária, nem acautela suficientemente as necessidades preventivas gerais que se fazem sentir neste tipo de crime, quer na vertente de garantia da manutenção da confiança da comunidade na validade da norma, quer na vertente da dissuasão do arguido à prática de ilícitos rodoviários.
Perante o que se deixa descrito, não se verificam, pois, os pressupostos de aplicação da substituição da pena de multa pela admoestação, pelo que, terá o arguido de cumprir a pena de multa em que foi condenado.
Procede o recurso nesta parte.
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III- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar a decisão recorrida, na parte em que determinou a substituição por uma admoestação da pena de 40 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, em que o arguido foi condenado.
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Sem tributação.
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Porto, 29.10.2025
Maria do Rosário Martins
Pedro M. Menezes
Pedro Afonso Lucas