Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MARIA DO ROSÁRIO MARTINS | ||
| Descritores: | QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL DE ADVOGADO PONDERAÇÃO DOS VALORES EM CONFLITO | ||
| Nº do Documento: | RP20251212695/22.4KRPRT-P.P1 | ||
| Data do Acordão: | 12/12/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
| Decisão: | DEFERIDA A QUEBRA DE SIGILO | ||
| Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A quebra do sigilo profissional (no caso do advogado) impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, em ordem a determinar se a salvaguarda do sigilo profissional deve ou não ceder perante outros interesses preponderantes. II - Tal ponderação deve ter em conta a imprescindibilidade do meio de prova (testemunhal e/ou documental) para a descoberta da verdade material, a gravidade do crime e a protecção de bens jurídicos. (Sumário da responsabilidade da Relatora) | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo 695/22.4KRPRT-P.P1 Comarca do Porto Juízo de Instrução Criminal do Porto – ...
* I.2. No Tribunal da 1ª Instância foi proferido despacho a considerar legítima a invocação do sigilo profissional pelo arguido AA relativa a todo o conteúdo assinalado a vermelho ou azul, na pen 3. * I.3. Os autos foram remetidos para esta Instância devidamente instruídos. * I.4. Após exame preliminar foram colhidos os vistos e realizada a conferência. *** II. FUNDAMENTAÇÃO II.1. Factos Provados Com interesse para a decisão consideram-se provados os seguintes factos (com base nos documentos juntos aos autos): i) Em 28.10.2024 o JIC proferiu despacho com o seguinte teor (transcrição parcial): “1 – Determina-se que a abertura do suporte contendo os dados de correio eletrónico será realizada do modo seguinte: 1.1 Deverá estar presente assessorando tecnicamente a diligência uma entidade externa idónea com recursos técnicos adequados a indicar pela Seção que fica desde já designada; 1.2 Será aberto pelo JIC o suporte digital que contém os dados apreendidos, verificando se ali estão efetivamente armazenados dados de correio eletrónico, através da abertura, por amostragem de alguns dos ficheiros e lavrando-se o competente auto de abertura, após o que a referida entidade externa procederá à análise de todos os ficheiros em causa, enviando ao JIC em prazo a fixar relatório e suporte digital contendo os ficheiros de modo organizado indicando separadamente: a) ficheiros que não correspondam a correio eletrónico que tenham sido apreendidos; b) ficheiros com mensagens de correio eletrónico contendo ficheiros anexos indicando a respetiva natureza dos anexos (se ficheiros de texto ou de imagem ou vídeo); c) ficheiros de correio eletrónico sem aparente relevo para os autos; d) ficheiros de correio eletrónico com aparente relevo para os autos. 1.3 Com referência à decisão proferida pela OA o representante da Ordem deverá informar aquando do ato de abertura de correio eletrónico que a seguir se designa, se com a dispensa de sigilo decidida considera prejudicada a necessidade da sua intervenção nos autos. 2 – Para a abertura do correio eletrónico nos exatos termos fixados designa-se o dia 11-11-2024 às 10h30. * De modo a evitar-se novo adiamento por eventual impedimento do defensor deverá a Seção dar prévio cumprimento via telefone ao disposto no art. 151º do CPC. Nada sendo oposto, notifique (dando prioridade face ao motivo de adiamento da data anteriormente agendada) o MP, o arguido e o representante da OA bem como o técnico da entidade externa a indicar pela Seção nos termos expostos. D.n.”. ii) Deste despacho interpôs recurso o MP, tendo o Tribunal da Relação decidido, em 07.05.2025, conceder parcial provimento ao recurso interposto pela Procuradoria Europeia e, em consequência, revogar o despacho recorrido na parte em que no ponto 1.2. determinou a abertura do suporte digital que contém os dados apreendidos com vista à indicação, em separado, dos ficheiros de correio electrónico sem aparente relevo para os autos (al. c) e dos ficheiros electrónicos de correio electrónico com aparente relevo para os autos (al. d), pois que tal compete ao Ministério Público, atenta o desenho acusatório do processo penal, conquanto seja o JIC a levar a cabo a realização das operações materiais enunciadas nas als. a) e b) do ponto 1.2. do aludido despacho, nos moldes aí determinados no ponto 1.1. no mais se mantendo o despacho recorrido. iii) Notificado para se pronunciar se deve manter-se sob sigilo profissional o conteúdo contido no disco externo apreendido nos autos, em 05.06.2025, o arguido AA apresentou requerimento dirigido ao Sr. Juiz de Instrução Criminal, com o seguinte teor (transcrição parcial): “…relativamente à questão do sigilo profissional incidente sobre o conteúdo do material informático e correio electrónico contido em disco copiado do seu escritório de advogados e computador portátil, vem comunicar o envio por correio da “pen” contendo a categorização dos ficheiros informáticos: “1. Todos os e-mails foram indexados por palavras-chave; 2. Todos os e-mails foram categorizados da seguinte forma: a. Vermelho: sigilo profissional; b. Azul: sigilo profissional duplo por correspondência entre advogados; c. Amarelo: Pessoal d. Verdes: Irrelevantes (newsletters, etc) e. Sem cor atribuída: restantes e-mails.” iv) Em 23.06.2025 o JIC proferiu despacho com o seguinte teor (transcrição parcial): “(…) A função do JIC é, como referido pelo Tribunal da Relação, preparar a decisão referente a um eventual levantamento do sigilo, uma vez identificados pelo Ministério Público os dados que considera relevantes (o que já está feito) e indicado pelo arguido os dados selecionados que, a seu ver, comportam ainda reserva de sigilo profissional, (o que agora se visou com o suporte entregue pelo arguido). Incumbiria agora ao JIC (quanto à suscitada matéria de sigilo profissional invocado) decidir se a invocação do sigilo é legítima, suscitando nesse caso o pertinente incidente de levantamento/quebra de sigilo junto do Tribunal da Relação e, quanto aos demais dados, decidir quanto à junção aos autos de outros dados ou comunicações íntimas. (…) Aberto o suporte – entretanto junto - consigno que após várias tentativas não foi possível aceder aos dados (supostamente) constantes do mesmo, havendo, por isso, necessidade de recorrer a entidade com meios técnicos adequados que possa auxiliar o JIC no sentido de verificar o que efetivamente consta do suporte entregue pelo arguido. Como já se decidiu (decisão nessa parte confirmada pelo Tribunal da Relação no âmbito do atrás referido recurso) essa entidade deverá ser uma entidade externa. Assim, determina-se: Com vista a nova tentativa pelo JIC (coadjuvado por entidade externa) de abertura e análise do suporte entregue pelo arguido deverá a Secção indicar e contactar entidade idónea (de entre as que já prestaram serviços análogos noutros processos) solicitando a presença de técnico habilitado neste JIC.” v) A 18.07.2025 foi lavrado auto de abertura de ficheiros (“continuação”), onde consta o seguinte: “Iniciado o presente ato quando eram 15:15 horas, e não antes por se aguardar a chegada do Sr. BB, perito da sociedade "A..., Lda.”, deu-se início à presente diligência, diligenciando-se no sentido de se proceder à abertura, por amostragem, do conteúdo da pen 4 (cfr. auto de 07-07-2025). (…) após abertura do conteúdo da pen 4, pelo Mm.º Juiz de Direito foi proferido o seguinte: DESPACHO “Remeta a pen 3, em envelope lacrado, ao Tribunal da Relação, devendo para o efeito instruir apenso de incidente de levantamento do sigilo, com cópia deste auto, do despacho anterior e do requerimento do arguido. Tendo-se procedido à abertura da pen 4, constata-se que as pastas têm comunicações potencialmente relevantes e outras aparentemente irrelevantes. Assim, deverá o MP indicar aquelas cuja junção pretende após o que se decidirá. Devolva os autos.” vi) Na sequência do despacho aludido em v) foi remetido para o Tribunal da Relação o incidente de levantamento do sigilo profissional, tendo sido proferida, em 09.09.2025, a seguinte decisão sumária (transcrição parcial): “Do regime acabado de enunciar resulta que a violação do sigilo profissional está previsto como causa legítima da recusa do dever de cooperação para a descoberta da verdade no âmbito de processos judiciais de natureza criminal, no que ao caso releva. Mais uma vez se repete que sobre a verificação da sua legitimidade e dispensa do respectivo dever, a legislação processual penal prevê, que, invocada a escusa, compete ao tribunal apreciar e verificar se ela é ilegítima ou se é legítima, sendo que no primeiro caso, ordena a prestação da informação e, no segundo, desencadeia junto do tribunal superior o incidente de quebra do sigilo profissional. Certo é que o segredo profissional não é um direito absoluto, mas a lei processual penal, prevê, precisamente para esses casos, formas e incidentes próprios para a sua derrogação, os quais devem ser oportunamente suscitados. A legitimidade da escusa resulta necessariamente, como vimos, de o facto estar abrangido pelo segredo profissional. Nesta situação, a obtenção do depoimento ou da informação escrita já não pode ser ordenada sem a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto – por um lado, os interesses protegidos pelo segredo profissional e, por outro, os interesses na prossecução da descoberta da verdade material no processo judicial. É este juízo que deve ser assumido no incidente específico de quebra de segredo profissional – a ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido. Sendo válida e legítima, porquanto fundada na invocação do segredo profissional a escusa, não cabe ao Tribunal onde é a mesma invocada decidir a “dispensa de confidencialidade” mas sim enveredar pelo incidente de levantamento do sigilo, a solicitar ao tribunal superior. E, então, nessa sede, pode decidir-se pela prestação da informação, com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a necessidade de protecção de bens jurídicos – cf. artigo 135.º/3 CPP. Deve, pois, ser desencadeado no tribunal onde a questão se suscitou o incidente para quebra do dever de guarda do segredo profissional invocado, legitimamente, intervenção que é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. Como parece medianamente claro e evidente dos autos não se vislumbra nem o objecto da investigação, os factos que podem ser objecto de prova, de forma a que se possa aferir, como é suposto, o que, de relevante, de útil, de necessário, de pertinente, pode ser acrescentado aos autos pelo conteúdo da pen junta ao processo. Ou dito de outra forma, saber desde logo, se a sua consulta tem virtualidade, o efeito, a eficácia probatória, de os afirmar ou, ao invés, se é absolutamente irrelevante para o objecto do processo. Em face do que se impõe, desde já, decidir, do mérito, pela afirmação de que não está delineada qualquer justificação para o levantamento do segredo. Isto porque se desconhece a natureza, os contornos, as características e o objectivo do processo, por um lado e, por outro, do estado em que o mesmo se encontra e da potencialidade da consulta da pen para descoberta da verdade e da respectiva imprescindibilidade para a investigação. Deve, por isso, a 1.ª instância, avaliando os contornos do que aqui está en causa, aferir da legitimidade da escusa e ponderar, e em face desses elementos, o recurso ao incidente de levantamento ou quebra do segredo profissional, nos termos acima descritos, incidente que deve ser instruído com todos os elementos necessários à sua apreciação por este Tribunal da Relação (instrução completamente deficiente no caso concreto, do mesmo não constando sequer a recusa de fornecimento de informações ou elementos, a decisão sobre a legitimidade da recusa – sendo que, aparentemente, os elementos em causa até foram fornecidos – e o pedido de quebra de sigilo dirigido a este Tribunal). Donde, não se pode afirmar, por ora, que a consulta da pena se revele imprescindível (ou, sequer, necessária e útil) para o apuramento da verdade material e tão pouco, para a realização da justiça do caso concreto. Logo, e por isso, carece de justificação a quebra do segredo profissional com os dados que nos foram disponibilizados. Donde, por, assaz, manifesta falta, do essencial, da necessidade – o que prejudica o conhecimento da indispensabilidade – está o incidente votado ao insucesso. C. Decisão Nos termos e com os fundamentos expostos, decido rejeitar sumariamente, por manifestamente improcedente, o presente incidente de quebra de sigilo profissional.” vii) Na sequência da decisão sumária aludida em vi), em 15.09.2025, o MºPº determinou a remessa dos autos ao JIC com a seguinte promoção (transcrição parcial): “O artigo 135º-1 do CPP dispõe o seguinte: “1-Os (…) advogados (…) e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 2-Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento”. DA LEGITIMIDADE DA ESCUSA: DO LEVANTAMENTO DO SIGILO PROFISSIONAL: DOS FACTOS: Os factos imputados ao arguido/advogado AA, respetiva incriminação e prova constam do despacho de fls. 606 a 642 que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais. Dessa factualidade resulta que o ora arguido AA fazia parte de uma organização criminosa que lesou a Fazenda Nacional em pelo menos €26.364.611,12, montante devido a título de Imposto sobre o Valor Acrescentado não liquidado nem pago, pela importação de mais de 700 milhões de litros de combustível em Portugal, entre 1.01.2020 e 31.12.2021. Em síntese, está em causa a introdução de combustível no mercado nacional, via Espanha. Em Portugal o combustível em causa era adquirido pela sociedade B... SARL, com o NIPC ...07, detentora de estatuto aduaneiro de destinatário registado temporário que, após o pagamento do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (ISP), os revendia à sociedade arguida R C..., Lda., gerida pelo arguido CC, sem, contudo, liquidar e pagar o IVA devido. R. C..., Lda. financiava antecipadamente as aquisições dos combustíveis adquiridos aos fornecedores espanhóis, transferindo para as contas bancárias da sociedade B..., SARL-Sucursal em Portugal as quantias necessárias para o efeito. Parte desse valor foi posteriormente devolvido à R C..., Lda. em virtude de o devido IVA não ter sido liquidado, nem pago ao Estado. O arguido AA e os demais arguidos que faziam parte da associação criminosa transferiram das contas bancárias da B..., SARL-Sucursal em Portugal os fundos obtidos pelo não pagamento do IVA devido pela introdução no consumo de produtos petrolíferos, no valor de €20.706.577,27 (já que cerca de 6 milhões foram logo deduzidos nos pagamentos efetuados pela R. C..., Lda.) para sociedades por eles geridas. Estes arguidos converteram os fundos gerados por essa liquidez na aquisição de bens móveis, imóveis, serviços, aquisição de outras sociedades comerciais para fazer circular tais vantagens, dissimulando a sua proveniência e integrando-as no comércio. AA desempenhou um papel fundamental neste esquema, uma vez que era o único que conhecia todos os arguidos envolvidos, sendo advogado do arguido CC há mais de 10 anos, amigo do arguido DD e de EE. Acresce que foi o arguido AA quem, na prática, “contratou” a arguida FF (contabilista certificada) e foi o seu escritório de advogados, sociedade arguida “D...-Sociedade de Advogados, SP, SR”, quem tratou do processo de constituição de praticamente todas as sociedades envolvidas nesta rede criminosa (cfr. fls. 1120 a 1128). Os factos imputados ao arguido AA configuram a prática do crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 89º-1-3 do RGIT (em concurso aparente com o crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299º-1-3-5 do CP), de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º-1-a)-b)-c) e 104º-1-d)-e)-3 do RGIT e do crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368º-A-1-d)-j)-8 do CP, com referência ao art. 4.º-1-f) da Lei n.º 83/2017, de 18.08, alterada pela Lei n.º 99-A/2021, de 31.12. No dia 7.12.2022 foram realizadas buscas ao escritório de advogados do arguido AA, da sua residência e da sua sócia e colega Dra.ª GG, tendo sido recolhida prova documental e digital (cfr. fls. 1011 a 1019). No decurso das buscas apurou-se que não só o arguido AA teve participação ativa na rede criminosa, como colocou à disposição de tal rede a própria sociedade arguida de que é sócio. Das buscas resultou que foi a sócia do arguido AA, GG, quem procedeu à inscrição no registo comercial da sociedade arguida E..., do mandato conferido ao arguido AA, como resulta da certidão constante do Anexo B. A diligência de busca confirmou também que em todos os gabinetes da sociedade de advogados estava documentação diretamente relacionada com os crimes sob investigação, conforme resulta do respetivo Auto. No dia 18.01.2024 foi realizada diligência de abertura da prova digital recolhida, tendo nesta diligência o arguido/advogado AA referido que o conteúdo do disco que lhe foi enviado contendo a prova digita recolhida está relacionada com a sua atividade profissional e sujeita a sigilo profissional (cfr. fls. 2792 e 2793). No dia 27.06.2024 essa diligência continuou tendo o MP junto aos autos palavras chave para fazer pesquisa cega, tendo a Mm.ª JIC dado um prazo de 3 semanas ao perito da AT para proceder à pesquisa pelas palavras chave entregues (cfr. fls. 3253 e 3254). No dia 11.11.2024 o Mmº JIC proferiu despacho a notificar o arguido para no prazo de 60 dias indicar expressamente a matéria que no seu entendimento deverá manter-se sob sigilo profissional (cfr. fls. 3688 a 3693) E apenas no dia 5.06.2025 o arguido enviou pen contendo o material informático e correio eletrónico contido em disco copiado do seu escritório de advogados e computador portátil, tendo o mesmo referido que os itens assinalados a vermelho e azul estão sujeitos a sigilo profissional (cfr. fls. 4314). O Mm.º JIC no dia 18.07.2025 procedeu à abertura da pen 3, a qual continha o material informático e correio eletrónico assinalado pelo arguido como sujeito a sigilo profissional e remeteu-a ao Tribunal da Relação para levantamento do sigilo profissional (cfr. fls. 4333). Resumindo, relativamente à abertura da prova digital apreendida o arguido invocou o sigilo profissional como causa legítima da recusa do dever de cooperação para a descoberta da verdade. A Procuradoria Europeia promove que o Mmº JIC profira decisão a determinar que a escusa é válida e legítima, porquanto fundada na invocação do segredo profissional (cfr. artigos 92º-1 do EOA). Mais promove que o apenso de incidente de levantamento do sigilo seja instruído com os documentos de fls. 606 a 642, 1120 a 1128, 1011 a 1019, 2792, 2793, 3253, 3254, 3688 a 3693, 4314, 4333, com a pen 3, o presente despacho, bem como a decisão a proferir sobre a legitimidade da recusa e o pedido de quebra de sigilo dirigido ao Tribunal da Relação do Porto. A quebra do sigilo profissional impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, em ordem a determinar se a salvaguarda do sigilo profissional deve ou não ceder perante outros interesses, designadamente o da colaboração com a realização da justiça penal. Tal ponderação deve partir do circunstancialismo em causa, designadamente dos factos concretos cuja revelação se pretende, de modo a garantir que, o quadro de uma crise de valores conflituantes, prevaleçam aqueles a que a Constituição e a Lei reconheçam prioridade. Neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 132/08.7JAGRD-C.C1, reatora Brízida Martins in “www. dgsi.pt”. E conforme resulta do disposto no art. 135º-3 do CPP o princípio da prevalência do interesse preponderante, tem em conta a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. No caso “sub judice” o interesse público da descoberta da verdade prevalece sobre o sigilo profissional, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, pelos seguintes motivos: a)A revelação do conteúdo da pen é essencial para a prova e descoberta da verdade material pelo facto da prova digital aí armazenada ter sido recolhida no âmbito das buscas realizadas em 7.12.2022 no escritório de advogados do arguido, da sua residência e da sua sócia e colega Dra.ª GG. Importa referir que nesse dia e nestes locais para além da prova digital foi apreendida no âmbito das buscas realizadas prova documental da qual resultou que não só o arguido AA teve participação ativa na rede criminosa, como colocou à disposição de tal rede a própria sociedade arguida de que é sócio. Das buscas resultou que foi a sócia do arguido AA, GG, quem procedeu à inscrição no registo comercial da sociedade arguida E..., do mandato conferido ao arguido AA, como resulta da certidão constante do Anexo B. A diligência de busca confirmou também que em todos os gabinetes da sociedade de advogados estava documentação diretamente relacionada com os crimes sob investigação, conforme resulta do respetivo Auto. Assim sendo, dúvidas não temos que o conteúdo da prova digital recolhida no âmbito das buscas aludidas é essencial para a prova e descoberta da verdade material e irá certamente comprovar e reforçar o envolvimento do arguido AA na rede criminosa. b)Os crimes indiciados são muito graves e inserem-se na definição de criminalidade altamente organizada prevista no art. 1º-m) do CPP). c)Os bens jurídicos que importa proteger são a ofensa contra o Estado que inclui as receitas fiscais destinadas à realização de fins públicos de natureza financeira, económica ou social, bem como a pretensão do Estado de contar com uma colaboração leal dos cidadãos na determinação dos factos tributáveis, e a paz pública. Estes bens jurídicos prevalecem sobre o sigilo profissional. Face ao exposto, promovo que seja proferida decisão a considerar injustificada a escusa e a determinar a quebra do sigilo profissional.” viii) Na sequência da promoção aludida em vii), em 22.09.2024, o JIC proferiu o seguinte despacho: “Está em causa, em suma, a apreensão de disco externo que poderá conter matéria abrangida por sigilo profissional. Na sequência de diversas notificações que foram dirigidas ao arguido AA (advogado), veio este juntar pen na qual diz identificar a vermelho os e-mails abrangidos por sigilo; a azul os que dizem respeito a correspondência entre advogados; a amarelo o que configura matéria pessoal; a verde o que entende irrelevante e sem cor os restantes e-mails. Os ficheiros identificados como “vermelho” e “azul” foram copiados para pen própria (com o n.º 3), que foi remetida ao Tribunal da Relação para instruir apenso de levantamento de sigilo. Pelo Tribunal da Relação foi proferida a decisão que se mostra junta a fls. 4364 e ss., na qual, essencialmente, se entendeu que deveria ter sido o Tribunal de 1ª instância a reconhecer a legitimidade da recusa, em conformidade com o artigo 135.º, n.º 3, do CPP (ex vi artigo 182.º, n.º 2, do CPP) e que o incidente não estava, sequer, instruído com os elementos necessários à sua apreciação pelo Tribunal da Relação. Cumpre apreciar. Dispõe o artigo 135.º do CPP (para cujos n.ºs 2 e 3 remete o artigo 182.º, n.º 2) que: “1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. 4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável. 5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.” O dever de segredo que é imposto pelo n.º 1 é concretizado pelo artigo 92.º do EOA (Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro), do qual resulta que “1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, coréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. 2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. 3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo. (…)” Sucede que, antes da “autoridade judiciária ou tribunal” perante o qual a questão é suscitada tomarem uma decisão quanto à legitimidade da escusa, o artigo 135.º, n.º 4, do CPP obriga (nos casos dos n.ºs 2 e 3) à prévia audição “do organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.” Assim, nestes termos, com uma cópia do conteúdo da PEN 3 e das fls. dos autos mencionadas na douta promoção que antecede, bem como da promoção em si, oficie à OA para que se pronuncie, nos termos previstos no artigo 135.º, n.º 4, do CPP. Solicite urgência na resposta. Notifique e d.n.” ix) Em 09.11.2025 a OA apresentou o seu parecer, concluindo: “Em face de todo o exposto e para o qual remetemos: a) Tal como nos foi dado a conhecer, as mensagens constantes do disco externo do escritório do Sr. Dr. AA, e que por este foram assinaladas a cores vermelho e azul, pelo seu teor e pelos intervenientes, concluímos tratar-se de factualidade sujeita a segredo profissional porquanto a matéria ali vertida adveio ao conhecimento do advogado pelo exercício das suas funções de advogado e por causa delas. Quanto a tais mensagens a Ordem dos Advogados considera que a escusa é legítima já que o advogado não promoveu qualquer pedido de levantamento do segredo profissional ao Presidente do Conselho Regional respetivo (o que constitui, ademais, uma prerrogativa do advogado). b) Quanto à factualidade cuja escusa é considerada legítima há que acrescentar que, em face dos bens jurídicos em confronto, entendemos que se justifica a quebra do segredo profissional devendo prevalecer o princípio da descoberta da verdade em detrimento do segredo profissional, porque este não é um fim em si mesmo e porque da ponderação da prevalência do interesse preponderante determina que deverá prevalecer o interesse do Estado na realização da justiça penal.” x) Em 13.11.2025 o JIC proferiu o seguinte despacho: “Está em causa a eventual prática por AA, advogado, de crimes de associação criminosa, fraude fiscal qualificada e branqueamento. O dever de segredo que obriga os advogados é concretizado pelo artigo 92.º do EOA (Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro), do qual resulta que “1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. 2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. 3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo. (…)” Emitiu a OA parecer no sentido de que deve ser considerada legítima a escusa, relativamente a todo o conteúdo assinalado pelo arguido a cor vermelha e azul na “Pen 3”; entendendo, todavia, que se justifica a quebra do segredo profissional. Como bem refere o parecer da OA, “Estamos perante um advogado que é, ele próprio, suspeito da prática de crimes e que no processo aparece com várias vertentes: a de advogado dos demais arguidos, a de amigo dos demais arguidos, a de sócio e gerente de sociedades comerciais arguidas, a de arguido. Esta pluralidade de faces exige, à primeira vista, que na classificação das mensagens eletrónicas se distinga aquelas em que o advogado atua no exercício das suas funções de advogado e aquelas em que atua exclusivamente como sócio gerente de sociedades comerciais ou, mesmo, como amigo. É que, se naquelas pode estar em causa o dever de guardar segredo profissional, nestas últimas não há dever de guardar segredo profissional, pois não foi o advogado quem interveio, mas antes o sócio gerente de uma sociedade comercial ou o amigo.” Sucede que é difícil efectuar a destrinça, posto que, nas mensagens que o próprio assinalou com as cores vermelha “os temas sobre que versam as mensagens eletrónicas enquadram-se, teoricamente, em assuntos suscetíveis de se incluirem na prestação de serviços próprios da advocacia independentemente de se reportarem a negócios próprios ou de clientes (a título de exemplo, atos preparatórios para a constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos; negociação tendente à cobrança de créditos; elaboração de contratos, entre outros”, o que levou a ordem a OA a pronunciar-se pela legitimidade da escusa, quanto à totalidade dos conteúdos. Quanto às mensagens assinalas a cor azul, entendeu a OA – e nós concordamos – que “as comunicações que nos são dadas a conhecer, apenas na medida em que respeitam a aspetos da vida dos clientes e da dinâmica de um escritório de advogados, deverão ser consideradas matéria sujeita a segredo profissional.” Concordando-se no essencial com o parecer da OA, é de entender, portanto, como legítima a invocação do sigilo profissional pelo arguido, relativa a todo o conteúdo assinalado a vermelho ou azul, na pen 3. Assim, decide suscitar-se incidente de dispensa de sigilo junto do Tribunal da Relação. Extraia certidão dos elementos referidos a fls. 4373 e, com a cópia da pen 3, remeta a este Venerando Tribunal para apreciação. Notifique.” D.N.” ** II.2. Apreciação do pedido §1. A questão que está aqui em causa é a de saber se se mostram verificados os pressupostos de quebra do sigilo profissional relativa a todo o conteúdo assinalado a vermelho ou azul, na pen 3 apreendido ao arguido AA, advogado. * §2. No capítulo III do Código de Processo Penal (doravante CPP) relativo às apreensões, o seu artigo 182º, com a epígrafe “Segredo profissional ou de funcionário e segredo de Estado”, preceitua que (na parte que aqui importa):“1- As pessoas indicadas nos artigos 135º a 137º apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado. 2- Se a recusa se fundar em segredo profissional ou de funcionário, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 135º e no n.º 2 do artigo 136º.” O incidente processual da quebra do segredo profissional encontra-se regulado no artigo 135.º do CPP, no qual se estabelece que (na parte que aqui interessa atenta a remissão do artigo 182º): “1. Os (…) advogados (…) podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3. O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. 4. Nos casos previstos nos nºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.” Conforme se evidencia deste preceito legal transcrito o incidente de quebra de sigilo profissional está dividido em duas fases: - A primeira traduz-se na verificação da legitimidade da escusa, cuja tramitação e decisão compete o Tribunal de 1ª Instância; - A segunda consiste na apreciação da justificação, ou não, da quebra do sigilo profissional, que compete ao tribunal superior. A quebra do sigilo profissional impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, em ordem a determinar se a salvaguarda do sigilo profissional deve ou não ceder perante outros interesses, designadamente o da colaboração com a realização da justiça penal. Como se refere no acórdão do TRC de 16.12.2009, relatado por Brízida Martins (acessível em www.dgsi.pt) “Tal ponderação deve partir do circunstancialismo em causa, designadamente dos factos concretos cuja revelação se pretende, de modo a garantir que, no quadro de uma crise de valores conflituantes, prevaleçam aqueles a que Constituição e a Lei reconheçam prioridade.” Para o efeito e como se aludiu no acórdão do STJ de 21.04.2005, relatado por Pereira Madeira (disponível em CJSTS Ano XIII, Tomo II, pág. 186) a resolução de tal conflito passa “pela avaliação da diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados por aqueles deveres, segundo um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como impõe o n.º 2 do art. 18.º, da Constituição, e tendo em consideração do caso concreto.” A lei processual penal (artigo 135.º, n.º 3 do CPP para qual remete o n.º 2 do artigo 182º do CPP) estabelece como critério de ponderação casuística o da “prevalência do interesse preponderante”, tendo em conta, nomeadamente (no que aqui importa): - A imprescindibilidade dos documentos (no caso, mensagens electrónicas), ou seja, a divulgação do conteúdo dos documentos deve ser indispensável para a descoberta da verdade material, sem eles não deve ser possível, ou ficará seriamente comprometida, tal descoberta; - A gravidade do crime, aferida desde logo, pela respectiva moldura abstracta da pena, mas não se dispensando a avaliação do contexto concreto do ilícito; - A protecção de bens jurídicos, o que remete para a avaliação do valor social do bem jurídico em causa, se o mesmo justifica a intrusão no sigilo. * §4. Revertendo para o caso concreto, importa aquilatar se ocorre fundamento que justifique a quebra do dever de sigilo profissional invocado. Nos autos estão em causa factos susceptíveis de preencherem os tipos legais de crime de associação criminosa, crime de fraude fiscal e crime de branqueamento. Das várias pessoas que foram constituídas arguidas consta AA, advogado, que usa profissionalmente o nome AA. Sucede que, no âmbito das buscas feitas ao escritório do arguido AA foi apreendido um disco externo de computador, que contém matéria abrangida por sigilo profissional (designadamente, os emails assinalados a vermelho e a azul pelo próprio arguido) nos termos do disposto no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados. No que concerne à imprescindibilidade da divulgação do conteúdo do disco externo aqui em causa, consideramos ser essencial para a descoberta da verdade a revelação das mensagens electrónicas existentes na dita pen assinaladas a vermelho e a azul. Por um lado, no que concerne às mensagens assinaladas a vermelho, como consignou a AO no seu douto parecer “os temas sobre que versam as mensagens eletrónicas enquadram-se, teoricamente, em assuntos suscetíveis de se incluirem na prestação de serviços próprios da advocacia independentemente de se reportarem a negócios próprios ou de clientes (a título de exemplo, atos preparatórios para a constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos; negociação tendente à cobrança de créditos; elaboração de contratos, entre outros)”. Por outro lado, quanto às mensagens assinaladas a azul, voltamos a reiterar o que consta no referido parecer da AO “as comunicações (…) respeitam a aspetos da vida dos clientes e da dinâmica de um escritório de advogados…”. Acresce que estamos perante um arguido, que para além de ser advogado, é suspeito da prática de crimes, agindo ao longo da sua indiciada actuação em diferentes posições: de advogado dos demais arguidos, de amigo dos demais arguidos, de sócio e gerente de sociedades comerciais arguidas e de arguido. Donde, as mensagens electrónicas apreendidas e contidas na referida pen assinaladas a vermelho e a azul são, pois, imprescindíveis para a descoberta da verdade e para a protecção de todos os bens jurídicos aqui em causa. Relativamente à gravidade dos crimes imputados ao arguido os mesmos são graves. No caso dos autos, o crime de associação criminosa deve ser considerado grave por representar uma ameaça à segurança pública e à paz social, podendo afectar uma colectividade indeterminada de pessoas. Por seu turno, o crime de branqueamento também deve ser considerado como um crime grave, especialmente devido à sua conexão com outras actividades criminosas e ao impacto que causa na economia e na sociedade. A gravidade dos crimes de associação criminosa e de branqueamento é reforçada pelo facto de legalmente serem classificados como "criminalidade altamente organizada" (cfr. artigo 1º, m) do Código de Processo Penal). Por sua vez, também não se poderá deixar de atribuir gravidade ao crime de fraude fiscal, uma vez que visa proteger o património do Estado, nomeadamente as receitas fiscais, impedindo assim que o Estado possa arrecadar essas receitas devidas e utilizar esses recursos para financiar serviços públicos e outras actividades essenciais em prol da sociedade. Daqui decorre que, confrontando os interesses ou valores que conflituam entre si – de um lado, temos o sigilo profissional do advogado que visa proteger a relação fiduciária que, necessariamente, se estabelece com o cliente, salvaguardando a reserva e intimidade dos clientes e, do outro lado, temos o interesse do Estado na realização da justiça penal e na tutela dos valores jurídico-penalmente protegidos – consideramos que legalmente se justifica a quebra do sigilo profissional solicitada atenta a gravidade e dimensão dos crimes imputados ao arguido, os inerentes bens jurídicos a carecer de protecção e a circunstância do arguido ter prestado serviços de advogado no âmbito da sua indiciada actuação criminosa e, por força dessa sua actuação, as mensagens electrónicas constantes na dita pen conterem informações relevantes para a descoberta da verdade. Procede, pois, o incidente por se mostrar verificados os pressupostos de quebra do sigilo profissional. *** III- DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o presente incidente de quebra de sigilo profissional no que concerne a todo o conteúdo assinalado a vermelho e a azul, na pen 3. Sem tributação. Notifique e dê conhecimento aos autos principais. * Porto, 12.12.2025 Maria do Rosário Martins (Relatora) Raul Esteves (1º Adjunto) Castela Rio (2º Adjunto) |