Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0544322
Nº Convencional: JTRP00038590
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
DISPENSA DE PENA
Nº do Documento: RP200512140544322
Data do Acordão: 12/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Área Temática: .
Sumário: O arquivamento do inquérito em caso de dispensa de pena não pode ser sindicado através da instrução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

No termo do inquérito o Ministério Público proferiu despacho onde, entre o mais, referiu:
Quanto às ofensas corporais levadas a cabo pelos arguidos B.........., C.......... e D.........., promove-se que o inquérito seja arquivado, em virtude de se tratar de um caso em que a lei prevê a possibilidade de dispensa [de pena] art.º 280º n.º 1 do Código Processo Penal conjugado com o art.º 143º, n.º 3 al. a) do Código Penal uma vez que estão verificados os seus pressupostos.
Pelo exposto, conclua os autos à Mmª juiz, com vista a obter a sua concordância com o arquivamento – art.º 280º, n.º 1 do Código Processo Penal.

Na oportunidade a Ex.ma JIC proferiu o seguinte despacho:
Ponderando, em conjunto, todos os elementos probatórios carreados aos autos, mostra-se suficientemente indiciada a prática por cada um dos arguidos D.......... e C.........., um contra o outro, de um crime de ofensa à integridade física simples, e por cada um dos arguidos B.......... e D.........., também reciprocamente, de outro crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º n.º 1 do Código Penal, para todos esses comportamentos, tendo resultado lesões.
Em todo o caso, considerando que, como muito bem refere o Ministério Público, tais agressões ocorreram nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e umas por causa das outras – ponto em relação ao qual todos os arguidos/ofendidos estão de acordo – e que não existem elementos seguros que permitam aquilatar qual dos contendores agrediu em primeiro lugar, em conjugação com o preceituado no art.º 143º, n.º3 do Código Penal, sempre poderia haver lugar a dispensa da pena que a cada um dos identificados arguidos a final viesse a ser cominada por causa das suas apontadas actuações.
Porque assim é, concordo inteiramente com o arquivamento dos autos nesta parte, como pugnado pelo Ministério Público.

Inconformados com a decisão de arquivamento os também arguidos B.......... e marido C.........., na veste de ofendidos/assistentes, requereram a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia do co-arguido D.........., como autor de dois crimes de ofensa á integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º do Código Penal.
Declarada a abertura de instrução de forma tabelar, veio no seu decurso sintomaticamente a Ex.ma JIC o proferir despacho onde, entre o mais, exarou:
«...pese embora nos termos do disposto no art.º 280º n.º 3 do Código Processo Penal, a decisão de arquivamento não ser susceptível de impugnação, sufragamos o entendimento que tal impugnação é admissível pelos assistentes com o fundamento de não verificação dos pressupostos a que aludem os números anteriores...»

Finda a instrução foi proferido decisão instrutória que manteve o despacho de arquivamento nos termos produzidos a fls. 64 (Ministério Público) e com a concordância de despacho de fls. 91 (JIC).

Inconformados com a decisão instrutória os assistentes recorreram rematando a pertinente motivação com as seguintes conclusões:
a) Os recorrentes não podem concordar com a decisão proferida, desde logo porque entendem que a Mmª juiz não valorou convenientemente os indícios probatórios constantes dos autos e por via disso concluiu pelo arquivamento dos autos.
b) Na hipótese vertente está em causa saber se a testemunha E.......... contribuiu ou não para o esclarecimento de quem iniciou a agressão, e no nosso modesto entendimento, o seu depoimento esclarece convenientemente que foi o arguido D.......... que iniciou a agressão.
c) Foi este que se dirigiu juntamente com a sua mulher à recorrente B.........., que estava junto do seu portão munido de uma mangueira, estes factos indiciam suficientemente a intenção do arguido em agredir e clarifica quem iniciou a agressão.
d) Nesta conformidade estão sobejamente descritos nos autos indícios para que fosse proferido despacho de pronúncia.
e) Perfilha-se aqui a opinião do Prof. Castanheira Neves sobre o assunto in Sumários de Processo Criminal, pág. 38 e 39, em que este ilustre Professor refere que o que seria insuficiente para a condenação pode ser bastante para a acusação ou pronúncia.
f) Os indícios são mais que suficientes para sustentar em julgamento o despacho de pronúncia.
g) Ressalvando sempre o devido respeito, a Mmª juiz não valorou convenientemente o depoimento desta testemunha. E por via disso proferiu o arquivamento dos autos, quando deveria ter pronunciado os arguidos.
h) Nesta conformidade foram violadas, nomeadamente, as disposições legais constantes dos artºs 143º do Código Penal, 280º e 283º n.º 2 do Código Processo Penal, art.º 25º n.º 1 da Constituição.

Admitido o recurso o Ministério Público respondeu concluindo pela manutenção da decisão recorrida.
Já neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto pronunciou-se, com a proficiência habitual, pela rejeição do recurso uma vez que é manifesta a sua improcedência.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2 do Código Processo Penal e após os vistos realizou-se audiência, não tendo sido suscitadas nas respectivas alegações novas questões.

Questão prévia da admissibilidade do recurso:
Findo o inquérito o Ministério Público, não obstante ter recolhido indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, art.º 283º do Código Processo Penal, não deduziu acusação em ordem a submeter os arguidos a julgamento antes optou por uma solução divertida [Faria Costa, Diversão (desjudiciarização) e mediação: que rumos?, BFD, 1985, pág. 93 e segts] decidindo-se, com a concordância do JIC, pelo arquivamento do processo verificados que se mostravam na sua óptica os pressupostos daquela dispensa, art.º 280º do Código Processo Penal.
Reagiram os assistentes requerendo instrução. Nesse requerimento pugnaram tão só pela pronúncia do co-arguido D.........., como autor de dois crimes de ofensa á integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º do Código Penal, tendo em vista a sua submissão a julgamento.
Ora resulta com meridiana clareza do art.º 280º n.º 3 do Código Processo Penal, que a decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação. E percebe-se porquê: o art.º 280º do Código Processo Penal, deve ser entendido como uma limitação ao princípio da legalidade e uma concessão ao princípio da oportunidade, uma via per mezzo, uma autêntica «terceira via» entre a acusação, art.º 283º do Código Processo Penal, e o arquivamento puro e simples, art.º 277º do Código Processo Penal.
Assim, no caso de arquivamento ao abrigo do disposto no art.º 280º n.º1 do Código Processo Penal, não é admissível a instrução com vista à alteração/revogação da decisão de arquivamento e ao prosseguimento do processo com dedução de despacho de pronúncia.
A razão de tal solução legislativa ancora, como muito bem salienta o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, em razões de política criminal: de economia processual, mas também decorrentes do postulado da mínima intervenção, que reduz a legitimidade da intervenção penal, apenas àquelas situações em que a mesma se revele necessária e eficaz no combate ao crime, de consenso, da não estigmatização do agente que, de outra forma teria que ser sujeito a um julgamento, e da sua melhor reinserção social [Germano M Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 103 e 104, Pedro Caeiro, Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da «justiça absoluta» e o fetiche da «gestão eficiente» do sistema, RMP, ano 21º, Out./ Dez., n.º 84, pág. 31].
Acresce que, se a decisão pressupõe a concordância do JIC, não se perceberia que depois em sede de instrução outro juiz da mesma instância alterasse a decisão do primeiro [Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 27.1.99 e de 3.7.2003, Colectânea de Jurisprudência Ano XXVIII, Tomo IV, pág. 204].
A decisão de arquivamento com dispensa de pena também não é susceptível de controlo por intervenção do superior hierárquico do Ministério Público, por uma dupla ordem de razões: a intervenção hierárquica do art.º 278º é apenas possível relativamente aos arquivamentos do art.º 277º do Código Processo Penal, resultando isso claro do argumento sistemático da colocação da intervenção hierárquica no art.º 278º do Código Processo Penal, antes do arquivamento com a concordância do JIC; depois, a hierarquia do Ministério Público não pode, na economia do nosso Código Processo Penal e respectivos princípios, apreciar despachos judiciais.
Questão diversa, mas de que aqui não curamos, é a de saber se o arquivamento ao abrigo do art.º 280º do Código Processo Penal, mas em desconformidade com o aí disposto, é ou não susceptível de recurso [No sentido afirmativo como refere o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, Acórdão desta Relação de 31.3.04]. Refira-se que a sindicância dos assistentes ao questionado arquivamento não assentou nessa desconformidade.
Temos, assim, que perante o despacho de arquivamento não podiam os assistentes reagir com o requerimento de instrução tendo como finalidade obter a pronúncia do arguido. Nem essa singular finalidade possibilitava aos assistentes a interposição de recurso do despacho de arquivamento, ante o disposto no art.º 280º do Código Processo Penal [Célia Reis, Os efeitos do arquivamento em caso de dispensa de pena, in Questões avulsas de processo penal, AAFDL, 2000, pág. 41-2].
Ora se, originariamente, o fundamento então esgrimido não possibilitava aos assistentes o direito de recorrerem, não é a circunstância de o JIC, num entendimento do regime legal que não é o mais adequado, ter apreciado e indeferido a sua pretensão, que os assistentes a pretexto de impugnarem esta decisão do JIC, ganham, por portas travessas, esse direito de recorrer que a lei inequívoca e expressamente não lhes concede, solução conforme a Constituição como repetidamente tem dito o Tribunal Constitucional [Acórdão 397/04, DR, II Série, 8.7.04, pág. 10 284].
Ao mesmo resultado se chega pelo caminho indicado pelo o Ex.mo Procurador Geral Adjunto: a decisão de arquivamento do JIC como não foi atacada pelo meio próprio, que era o recurso, transitou em julgado, sendo agora inatacável, art.º 671º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi, art.º 4º do Código Processo Penal [Neste sentido Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 3.7.2003, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, Tomo IV, pág. 203, e Souto Moura, RMP, ano 12, n.º 48, pág. 43 a 45]. De qualquer forma, importa deixar expresso, a eventual sindicância recursória dos assistentes com a fundamentação expendida no requerimento de abertura de instrução, porque não se fundava em violação de lei, cfr. art.º 280º n.º3 do Código Processo Penal, a contrario, não admitia recurso.
Ocorre, assim, causa de rejeição do recurso: o recurso nem sequer devia ter sido admitido, pois a decisão não é recorrível, art.º 280º n.º 3 do Código Processo Penal. A circunstância de ter sido indevidamente recebido não vincula, obviamente, este tribunal, art.º 414º n.º 3 do Código Processo Penal.

Decisão:
Rejeita-se o recurso porque se verifica causa que devia ter determinado a sua não admissão: a decisão não é recorrível, art.º 280º n.º3 do Código Processo Penal.
Custas pelos recorrentes fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
Visto o disposto no art.º 420º n.º 4 do Código Processo Penal vão os recorrentes condenados no pagamento de 4 UC.

Porto 14 de Dezembro de 2005
António Gama Ferreira Ramos
Luís Eduardo Branco de Almeida Gominho
Joaquim Rodrigues Dias Cabral