Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2632/08.0TJVNF-A.P1
Nº Convencional: JTRP00043801
Relator: MARIA DO CARMO DOMINGUES
Descritores: ABUSO DE DIREITO
CONHECIMENTO OFICIOSO
FACTOS ALEGADOS
Nº do Documento: RP201004132632/08.0TJVNF-A.P1
Data do Acordão: 04/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 365 - FLS. 140.
Área Temática: .
Sumário: Não obstante o abuso de direito poder ser de conhecimento oficioso, os factos consubstanciadores do mesmo têm de ser alegados e provados pelas partes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2632/08.0TJVNF-A.P1

Espécie de Recurso: Apelação
Recorrente: B……………..
Recorrido: C…………..
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
O Requerente B………….. instaurou execução para pagamento de quantia certa contra D…………. e C…………, dando à execução cinco letras de que invocou ser portador por o sacador lhas ter endossado, e com vencimento em 15/03/1997, 28/8/1997, 29/05/1998, 15/01/1997 e 14/02/1997.
Os executados deduziram oposição à execução invocando em síntese:
As letras estão há muito prescritas, nos termos do art. 70 LULL e não são, por isso, título executivo.
Os executados pagaram ao sacador tudo o que lhe deviam e as letras não foram endossadas ao Exequente mas sim a instituições bancárias.
Contestou o Exequente invocando que estando o portador nas relações mediatas, nada tem que alegar ou saber sobre a relação causal, pelo que se limitou a alegar o endosso que o legitima como portador; daí que a obrigação não esteja prescrita.
Os executados devem ao exequente porque obrigados perante o endossante.
Foi dispensada a audiência preliminar.
Proferiu-se despacho saneador no âmbito do qual se proferiu a seguinte Decisão:
«Termos em que:
a) Julgo procedente a oposição e
b) Extinta a execução, devendo restituir-se aos executados as quantias descontadas nos respectivos vencimentos.
Custas pelo exequente/embargado, por vencido - art. 446º do C.P.C.
Registe e notifique»

Inconformado com esta sentença dela recorreu a exequente tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Os títulos dados à execução não estão prescritos;
2. A renúncia à prescrição é um facto notório, dado ter expirado o prazo da prescrição e só depois os executados terem alegado a prescrição;
3. O tempo decorrido entre as datas do vencimento dos títulos e a data da sua, douta oposição, provam-no claramente;
4. A sua grave negligência ou culpa em não recolherem ou exigirem devolução dos títulos, em tempo útil, demonstra-o;
5. Quem assim age, demonstra que deve ou renuncia a qualquer direito que pelos títulos pudesse ter;
6. Conduz a que terceiros confiem neles ou, pelo menos não duvidem de que, quem os possui, é o seu verdadeiro titular e sobre eles mantêm direito;
7. São levados a aceitar os mesmos sem reservas;
8. A renúncia, tanto pode ser expressa como tácita;
9. No caso dos autos foi, pelo menos tácita;
10. Esta aparência é objectiva e em face de terceiros e, como tal, deverá ser reconhecida, oficiosamente, em direito, sob pena de beneficiar o infractor;
11. A conduta dos executados configura um claro «venire contra factum proprium».
12. Constitui um clamoroso abuso de direito;
13. E excede, manifestamente, os limites que lhes são impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito;
14. No abuso de direito não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo;
15. Basta que, na realidade, exceda, objectivamente, os limites a que se alude na conclusão 13ª;
16. De uma forma clara e nítida;
17. Os autos provam este excesso;
18. E que o direito pelos executados invocado não é legítimo;
19. A posição jurídica que o exequente exerce nos presentes autos colide abertamente com a conduta que estes assumiram em relação aos títulos;
20. Esta sua posição enganou o exequente e levou-o a aceitar títulos que jamais pensou que pudessem ser impugnados;
21. A excepção do abuso de direito deveria ter sido conhecida, oficiosamente, pelo douto Tribunal. Isto sempre com o devido Respeito;
22. O douto despacho saneador – sentença, está com o devido respeito, deficientemente, mal elaborado, pese embora o mérito do, abundante e doutamente, debitado pela Meritíssima Senhora Juiz «a quo» que se reconhece;
23. E a oposição deveria ter improcedido.
Com a sua douta decisão violou, o douto Tribunal «a quo» com o devido Respeito, entre outras, as normas dos art. 301º «à contrario» 302º, nºs 1 e 2, 315º, 325º, n.º 2 e 334º do C.Civil e art. 659º do C.P.C.
E termina requerendo a revogação do Saneador – Sentença recorrido com as legais consequências.
Não se mostram juntas aos autos contra-alegações.
Ao presente recurso e face à data de entrada do processo de execução (24/07/2008) é aplicável o regime de recursos introduzido pelo Decreto-Lei nº 303/07 de 24 de Agosto.
Tendo presente que o objecto dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões – artigos 684º, n.º 3 e 685º-A, ambos do C.P.Civil – e que neles se apreciam questões e não visam criar decisões sobre matéria nova sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida é a seguinte a questão a apreciar:
Se a conduta dos executados configura um claro «venire contra factum proprium» e constitui abuso de direito?

Fundamentação:
II. De Facto:
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida e não impugnada:
1. Em 16/12/1996 E……….. sacou sobre D…………., que juntamente com C………… a assinou na frente, transversalmente, no lugar normalmente destinado ao aceite e após a palavra «Aceite» aí impressa, a letra junta a fls. 14, no valor de 430.000$00, com vencimento para 15/03/1997, valor Transacção Comercial – Renault Express.
2. No verso desta letra constam duas assinaturas, sendo uma a do sacador a seguir ao carimbo Sem Despesas e depois de um primeiro carimbo com os dizeres Pague-se à ordem do Banco F………… valor recebido.
3. Em 28/05/1997, E……….. sacou sobre D…………… – que juntamente com C……….. a assinou na frente, transversalmente, no lugar normalmente destinado ao aceite e após a palavra «Aceite» aí impressa, a letra junta a fls. 14, no valor de 420.000$00, com vencimento para 28/08/1997, valor Transacção Comercial.
4. No verso desta letra constam duas assinaturas, sendo uma de E………….
5. Em 28/02/1998 G…………. Lda. sacou sobre D………… – que a assinou na frente, transversalmente, no lugar normalmente destinado ao aceite e após a palavra «Aceite» aí impressa, a letra junta a fls. 14, no valor de 150.000$00, com vencimento para 29/05/1998.
6. No verso desta letra constam duas assinaturas sobre carimbo da sacadora.
7. Em 16/12/1996 E………… sacou sobre D………… – que juntamente com C…………… a assinou na frente, transversalmente, no lugar normalmente destinado ao aceite e após a palavra «Aceite» aí impressa, a letra junta a fls. 4, no valor de 290.000$00, com vencimento para 15/01/1997, valor Transacção Comercial – Renault Express.
8. No verso desta letra constam duas assinaturas, sendo uma a do sacador, apostas depois de um primeiro carimbo com os dizeres Pague-se à ordem do H………… valor recebido.
9. Em 16/12/1996 E………… sacou sobre D………….. – que juntamente com C………….. a assinou na frente, transversalmente, no lugar normalmente destinado ao aceite e após a palavra «Aceite» aí impressa, a letra junta a fls. 14, no valor de 290.000$00, com vencimento para 14/02/1997, valor Transacção Comercial – Renault Express.
10. No verso desta letra constam duas assinaturas, sendo uma a do sacador, apostas depois de um primeiro carimbo com os dizeres Pague-se à ordem do Banco H………….. valor recebido.

III. De Direito:
Na decisão recorrida considerou-se que nos termos do art. 70º da LULL, estava prescrita a obrigação cartular constante das letras em que o exequente fundou a execução e tais títulos de crédito não podem continuar a valer como título executivo, agora enquanto escrito particular,
Consubstanciando a obrigação subjacente, porque nada foi pelo exequente alegado nesse sentido, no requerimento executivo.
E conclui-se que o exequente não dispõe de título executivo, pelo que, nos termos dos art. 45º e 814º, n.º1 alínea a), do C.P.C. a execução será julgada extinta.
O recorrente nada invocou relativamente a esta decisão apenas alegando que a conduta dos executados configura um claro «venire contra factum proprium» e constitui um clamoroso abuso de direito.
Como é sabido as razões justificativas dos institutos da prescrição e da caducidade radicam na protecção da certeza e segurança do tráfico jurídico, na conveniência de se evitarem os riscos e inconvenientes de uma apreciação judicial a longa distância – principalmente quando se requeira a prova testemunhal dos factos e ainda no fito da protecção do devedor evitando-se a onerosidade excessiva decorrente da exigência do pagamento a longo prazo, procurando-se assim obstar a situações de ruína económica – Baptista machado R. L. J. 117º, 205, Manuel de Andrade, Teoria Geral da relação Jurídica I, pag. 452 e Vaz Serra – Prescrição e caducidade B. M. J. 107º, pag. 285.
Numa outra visão, pode dizer-se que o decurso dos prazos da prescrição ou da caducidade apresenta-se como uma reacção ou sanção da ordem jurídica contra a inércia e o desinteresse do titular do direito, entendendo-se que ele já não pretende a sua tutela, considerando-se assim a ordem jurídica desobrigada de a prestar – cf. Pessoa Jorge, in Direito das Obrigações e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 1979, pag. 814 e seguintes.
Estatui o art. 334º, do C.C. sob a epígrafe, Abuso de Direito:
«É ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Em termos genéricos pode dizer-se que existe abuso de direito sempre que o exercício deste – conferido por uma determinada norma jurídica – se vem a revelar injusto num determinado caso concreto atentas as circunstâncias ou particularidades da actuação do seu titular ou do próprio caso.
O abuso de direito pressupõe excesso ou desrespeito dos limites axiológico – materiais de uma comunidade, o que exige que sejam excedidos os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Tal como o recorrente invoca nas alegações o abuso de direito tanto poderá ter na sua génese factores subjectivos, como meramente objectivos, ou factores de uma e outra ordem, sendo certo que o art. 334º, não exige que o agente tenha consciência de que o seu acto é contrário à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido, bastando que este seja objectivamente abusivo.
No caso vertente, o recorrente invocou o abuso de direito na modalidade de «venire contra factum proprium». Alegou para tanto que os executados tiveram uma conduta em relação ao portador dos títulos e aos títulos desde a data em que os emitiram até à data em que deduziram a sua oposição contraditória em relação a esta oposição.
Que a boa fé, os bons costumes e o fim social ou económico do direito, impunham-lhes uma conduta preventiva, diligente e correcta social e economicamente, pedindo e recolhendo os títulos dados à execução, antes que estes fossem utilizados para fins contrários àqueles para os quais foram emitidos.
Apesar de o abuso de direito ser de conhecimento oficioso (cf. v. g Acs. S.T.J. de 22/11/94 e 25/11/99, in CJ.STJ.II, III, pag. 157 e VII, III, 124, respectivamente); não se pode deixar de notar, que há muitos processos em que as partes, à míngua de outros argumentos invocam o abuso de direito.
O abuso de direito exige sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos, e, portanto, a correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita – cf. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, 2ª Edição, Almedina, 2000 pags247 e 248.
São reconduzidos ao abuso de direito, por exemplo o venire contra factum proprium, quer dizer, a proibição do comportamento contraditório. Trata-se de tutelar uma situação de confiança, enquanto factor material de boa fé. Deste modo, há venire contra factum proprium, por exemplo, quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifesta a intenção de não praticar determinado acto e, depois, pratica-o, violando a confiança da contraparte de que isso não ocorreria.
Assim, uma pessoa que manifeste a intenção de não exercer um direito protestativo ou um simples direito subjectivo, mas acaba por exercê-lo, actua contra facta própria. O exercício do direito, nestas condições, é inadmissível haveria abuso do direito (art. 344º, do C.C.)
Na jurisprudência, a proibição do venire é também reconduzida ao abuso de direito.
O venire contra factum proprium que constitui reflexo do afinamento ético do Direito moderno – é um tipo não compreensivo de exercício inadmissível de direitos e, como tal, tem uma grande extensão. Mas nem toda conduta contraditória do exercente lhe é redutível.
Exige-se, para que essa redução seja possível, um investimento de confiança realizado pela contraparte contra quem o direito é exercido, fundado na expectativa lícita ou legítima, de que tal exercício não ocorreria, uma qualquer situação de confiança que deva ser protegida contra o exercício do direito pela contraparte.
Assim, em primeiro lugar, reclama-se um comportamento anterior do exercente do direito que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança; exige-se, depois, a imputabilidade àquele quer do comportamento anterior quer do comportamento actual; de seguida há que verificar a necessidade e o merecimento do prejudicado com o comportamento contraditório; por último há que averiguar a existência do investimento de confiança ou baseado na confiança, causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada.
Revertendo ao caso dos autos, a simplicidade e a objectividade dos factos provados e contra os quais o recorrente nada disse, não permite a conclusão que o mesmo – e apenas neste Tribunal da Relação -reclama.
Com efeito, não obstante o abuso de direito poder ser de conhecimento oficioso, os factos consubstanciadores do mesmo têm de ser alegados e provados pelas partes.
Ora, como já se referiu e reitera-se aos factos dados como provados falta desde logo, qualidade e dignidade, para, a qualquer título e face ao enquadramento supra operado quanto a este instituto, se poder concluir pelo abuso de direito invocado.

IV. Decisão:
Por todo o exposto acordam os juízes que compõem este Tribunal em julgar improcedente a apelação e, consequentemente confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente – art.º 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Porto, 13 de Abril de 2010
Maria do Carmo Domingues
José Bernardino de Carvalho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires