Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2399/09.4TBOAZ-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PROENÇA
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
REPRESENTANTE DE PESSOA COLECTIVA OU SOCIEDADE
INABILIDADE PARA DEPOR
Nº do Documento: RP201311122399/09.4TBOAZ-C.P1
Data do Acordão: 11/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O elemento que estabelece a distinção entre a testemunha e o representante da parte encontra-se na capacidade para vincular por confissão judicial a pessoa colectiva ou sociedade, a avaliar no momento da inquirição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Processo n.º - 2399/09.4TBOAZ-C– Apelação

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

B….., C….. e D….., habilitadas nos autos por óbito de sua mãe E……, vieram opor-se à execução intentada por F….., S.A., alegando, em súmula, que a sua mãe, quando subscreveu o documento que serve de título executivo à execução, não estava em uso das suas plenas faculdades mentais uma vez que havia conhecido, há pouco tempo, estar a padecer de doença do foro oncológico, o que a deixou transtornada e incapaz para a gestão da sociedade G….., Ld.a. Concluem pelo pedido de declaração da confissão de dívida constante do referido documento como nula.
Notificada a sociedade exequente, esta veio contestar alegando que inexiste o fundamento invocado pelas oponentes já que desde há muitos anos a executada E…. era quem estava à frente do destino e da gestão diária da sociedade G....., Ld.a, assim se comportou à data da assinatura do documento que serviu de base à execução e do mesmo modo se manteve até algum tempo antes de falecer. Alegou ainda factos atinentes à relação comercial com a sociedade G....., Ld.a, nomeadamente aqueles que se referem ao movimento de transacções entre as empresas e que deram origem à confissão de dívida em causa nos autos executivos. Concluiu pelo pedido de improcedência da oposição deduzida e o prosseguimento dos autos de execução para cobrança coerciva dos valores ali exigidos.
Prosseguiram os autos com a selecção dos factos assentes e organização da base instrutória e, realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando a oposição improcedente, por não provada, devendo os trâmites da acção executiva prosseguir.
Inconformadas com a decisão, dela apelaram as oponentes, pedindo a revogação da sentença e sua substituição por outra que considere procedente a oposição à execução e consequente extinção do processo executivo ou, se assim se não entender, ordene o reenvio do processo à primeira instância a fim de ser realizado novo julgamento e proferida nova decisão, formulando as seguintes conclusões:
1- Nos presentes autos, a discordâncias das executadas da sentença proferida pela Mma Juiz a quo prende-se com duas questões, a saber:
- inadmissibilidade do depoimento prestado pela testemunha H….., com base no qual o Tribunal a quo fundamentou a sua convicção; e
- contradição entre os factos considerados provados e constantes dos n.°s 16 e 17 dos factos provados e n.°s 4 e 5 dos factos não provados, com a consequente contradição entre a fundamentação e a decisão.
2- Relativamente à primeira questão, e como decorre da ata de resposta à matéria de facto, o Tribunal num juízo crítico de apreciação da prova produzida, formulou a sua convicção quanto aos factos dados como provados e não provados, essencialmente com base no depoimento da referida testemunha H…..
3- Sucede porém que, compulsados os autos constata-se que a referida testemunha era parte nos mesmos, tendo outorgado a procuração forense junta aos autos executivos e subscrito a confissão de dívida que constitui o título executivo dos mesmos, na qualidade de legal representante da exequente.
4- Era por isso parte na causa, pelo que não deveria ter sido ouvida como testemunha, nem o seu depoimento considerado para fundamentar a convicção do Tribunal, em obediência ao disposto no art.617.° do Código de Processo Civil.
5- Acresce que fruto das relações familiares com a atual representante legal da empresa (pai/filha) e as funções que na mesma exerce, a referida testemunha tinha e tem interesse direto na causa.
6- Pelo que, sempre o seu depoimento teria de ser considerado parcial, tendencioso e não isento, pelo que não poderia com base nele ter o Tribunal a quo fundamentado a sua convicção, da forma como o fez.
7- Não podendo ser considerado o depoimento da referida testemunha, tal circunstância fere de nulidade toda a prova produzida, implicando tal facto a repetição do julgamento.
8- Por outro lado, verifica-se in casu, contradição insanável entre os factos dados como provados sob os n.°s 16 e 17 e os factos dados como não provados e constantes dos n.°s 4 e 5, com a consequente contradição entre a fundamentação e a decisão.
9- E isto porque, não se vislumbra como possa uma pessoa debilitada e transtornada e com apenas a 4.a classe ter a capacidade de querer e discernir a natureza do documento que estava a assinar e as consequências jurídicas do mesmo.
10 -E muito menos que tivesse formação e capacidade para dar instruções para a elaboração do referido documento de confissão de dívida dos autos, nos termos em que o mesmo se encontra redigido, pelo que nunca poderia ter sido dado como provado o facto constante do ponto 29 dos factos provados.
11- Há por isso manifesta contradição entre os referidos factos provados e não provados e contradição entre a fundamentação e a decisão, pelo que a referida sentença está ferida de nulidade.
12- Face ao exposto, violou, a Mma Juiz a quo o disposto nos arts. 617.° e 668.°, n.° 1, al. c), ambos do Código de Processo Civil.
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A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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A 1.a instância recortou do seguinte modo a factualidade a atender:
A: Factos Provados:
1) Na execução apensa aos presentes autos de Oposição à Execução Comum, a Exequente deu à execução um documento particular denominado de "Confissão de Dívida" com data de 18 de Junho de 2008, com o seguinte teor: "E….., viúva (...) declara para os devidos efeitos, que se confessa, nesta data, devedora F…., Lda. (...) da quantia de 27.554 Euros (vinte e sete mil, quinhentos e cinquenta e quatro euros) proveniente de diversos fornecimentos de lingote de alumínio até 31 de Maio de 2008 que a credora fez à declarante, à qual acrescem os juros de mora à taxa legal para as transacções comerciais, contados desde a data dos fornecimentos até efectivo e integral pagamento. Que se obriga a pagar à credora a referida quantia e os juros respectivos em vinte e quatro prestações mensais e sucessivas no montante de 1.500 euros (mil e quinhentos, euros) cada e uma última e 25a na qual pagará os juros que entretanto se vencerem, devendo a primeira ser paga até ao dia 31 de Julho de 2008 e as seguintes vencendo-se no mesmo dia dos meses subsequentes. Que o pagamento será efectuado na sede da credora ou noutro local a indicar por esta. Que caso a declarante não pague a referida quantia no prazo acordado, vencer-se-ão de imediato todas as prestações acordadas, bem como serão devidos juros à taxa acima referida. Que conferem à presente declaração a força de título executivo. (...) ".
2) No documento referido no número anterior, segunda página, encontram-se apostas duas assinaturas. Uma da exequente, por baixo da indicação de "A Credora" e outra, por baixo da indicação de "A Declarante " com o nome de E…..
3) A assinatura de E…. foi reconhecida presencialmente por Advogado, ao abrigo do DL n.° 76-A/2006, de 29 de Março, no dia 18 de Junho de 2008.
4) A executada, E…. faleceu no dia 18 de Fevereiro de 2010, tendo sido habilitados para intervirem em sua substituição, D…., C…. e B…..
5) Sob o n.° 500750785 encontra-se matriculada na Conservatória de Registo Comercial a sociedade "G....., Lda.".
6) Pela inscrição 1, Ap. 07/19780419 foi registado contrato de sociedade e designação de membros.
7) A sociedade indica como sede, …., Amarante e objecto social, a actividade de serralharia mecânica, podendo dedicar-se a qualquer outro ramo de comércio ou indústria em que os sócios acordem.
8) O capital social era de € 5.000,00, distribuído por duas quotas, uma de € 3.750,00, pertencente a I…. e outra de € 1.250,00, pertencente à mulher, E…., cabendo a gerência a ambos e obrigando-se a sociedade com a assinatura de qualquer um dos gerentes.
9) Por óbito cessaram as funções de sócio e de gerente de I…..
10) Pela insc. 3 Ap 12/20050812 foi registada a transmissão da quota no valor de 1.250,00 euros em favor de E….. por adjudicação em partilha extra-judicial, por óbito.
11) Pela insc. 4 Ap 13/20050812 foi registada a transmissão da quota no valor de 1.299,00 euros, resultante da divisão da quota de 3.750,00 em favor de E…. por adjudicação em partilha extra-judicial, por óbito.
12. Pela insc. 5 Ap 14/20050812 foi registada a transmissão da quota no valor de 816,67 euros, resultante da divisão da quota de 3.750,00 em favor de B…., por adjudicação em partilha extra-judicial, por óbito.
13) Pela insc. 6 Ap 15/20050812 foi registada a transmissão da quota no valor de 816,67 euros, resultante da divisão da quota de 3.750,00 em favor de D…., por adjudicação em partilha extra-judicial, por óbito.
14) Pela insc. 7 Ap 16/20050812 foi registada a transmissão da quota no valor de 816,67 euros, resultante da divisão da quota de 3.750,00 em favor de C…., por adjudicação em partilha extra-judicial, por óbito.
15) Pela insc. 8, Ap. 1/20060331 foi registada a designação de B…. como gerente.
16) A executada descobriu que padecia de cancro no fígado, o que a deixou muito debilitada e transtornada, vindo a ser hospitalizada no Hospital de Santo António no dia 21 de Junho de 2008.
17) A executada tinha a 4a classe.
18) No exercício da sua actividade, a exequente a pedido de E…., forneceu à sociedade G....., Lda. diverso lingote de alumínio que esta sociedade integrou no exercício da sua actividade.
19) Das transacções comerciais travadas entre as duas sociedades resultou, em 11 de Junho de 2008, um saldo em favor da exequente de € 30.048,94, titulado pelas facturas a seguir indicadas:
a) Factura n.° 20080038 no montante de € 171,00 de 30-03-3008;
b) Factura n.° 20080122 no montante de € 8.500,00 de 27-05-2008;
c) Factura n.° 20080132 no montante de € 17.000,00 de 04.05-2008.
20) Para pagamento de alguns dos bens vendidos pela exequente à empresa G....., Lda. esta última subscreveu e entregou à exequente títulos de crédito, alguns dos quais não foram pagos.
21) E que implicaram despesas e encargos bancários, acordando as duas empresas que seriam pagos pela G....., Lda., estando parte das despesas tituladas pelas notas de débito a saber:
a) Nota de débito n.° 20070074 de 30-11-2007, no montante de € 14,50;
b) Nota de débito n.° 20080039 de 16-04-2008, no montante de € 2.268,50;
c) Nota de débito n.° 20080048 de 30-04-2008, no montante de € 14,50;
d) Nota de débito n.° 20080049 de 30-04-2008, no montante de € 14,50;
e) Nota de débito n.° 20080056 de 30-05-2008, no montante de € 51,44;
f) Nota de débito n.° 20080062 de 11-06-2008, no montante de € 2.104,50.
22) Para pagamento parcial da quantia de € 27.554,00, a executada E…. subscreveu e entregou à empresa inicialmente exequente quatro cheques, sacados do Millenium BCP de Amarante, a saber:
a) Cheque n.° 43 46189550 datado de 10-03-2008, no montante de € 2.254,00;
b) Cheque n.° 43 46189850 datado de 28-03-2008, no montante de € 2.000,00;
c) Cheque n.° 43 46190141 datado de 29-04-2008, no montante de € 17.000,00;
d) Cheque n.° 43 46189947 datado de 20-04-2008, no montante de € 2.000.
23) Cheques que não foram pagos por falta de provisão e, num dos cheques, por revogação do seu pagamento junto do banco com a alegação de "falta ou vícios na formação da vontade".
24) Após sucessivas conversas entre a anterior exequente e a executada chegaram a um acordo de pagamento da quantia referida em 22) e que deu origem à elaboração do documento referido em A).
25) Na sequência da assinatura da elaboração do documento referido na alínea A) foram entregues à executada os cheques referidos em 22).
26) Tendo a executada efectuado a declaração constante de fls. 31 com o seguinte teor: "Recebi os originais destes cheques em 18-06-2008 mas as quantias das mesmas ainda não estão pagas".
27) Declaração seguida da colocação pela mesma do local, data e assinatura.
28) A executada em cumprimento parcial do documento referido em A) pagou à anterior exequente a 1a e 2a prestações, num total de € 3.000,00.
29) O documento referido em A) foi elaborado de acordo com as instruções e acordo da executada.
30) Era a executada quem habitualmente fazia negócios em nome da sociedade G....., Lda., assinava documentos e títulos de pagamento necessários ao giro comercial.
B: Factos Não Provados:
1) A assinatura aposta no documento referido em 1) dos Factos Provados não foi feita pela executada E… .
2) Uns dias antes da data aposta no documento referido em 1) dos Factos Provados a executada descobriu que padecia de cancro no fígado.
3) A executada tinha alturas em que não reconhecia os empregados, nem as suas filhas.
4) A executada não tinha capacidade para assinar fosse que documento fosse.
5) Se assinou o documento a executada não se apercebeu de que estava a vincular-se em termos pessoais a uma dívida que seria da sua empresa.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, excepto quanto a questões do conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1 e 2, do C.P. Civil de 1961. Assim, atenta a estrutura das conclusões das recorrentes, e como muito bem sumariam, as questões a solucionar no presente recurso são duas:
- saber se era inábil para depor nessa qualidade a testemunha H…., inquinando de nulidade todas as respostas à base instrutória que a Mma Juíza “a quo” fundamentou com base no respectivo depoimento, implicando a repetição do julgamento; e
- saber se ocorre contradição lógica entre a resposta parcialmente afirmativa aos factos considerados provados e constantes dos n.°s 16 e 17 (quesitos 2.º e 4.º da base instrutória) e a resposta negativa quanto aos factos considerados não provados com os n.°s 4 e 5 (quesitos 4.º, na parte considerada não provada, e 5.º da base instrutória) enunciados na decisão recorrida.
Quanto à primeira questão, dispõe o artº 617º do CP. Civil que estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes. O artº 553º, nº 2, por sua vez, vem clarificar que pode ser requerido o depoimento de representante de pessoas colectivas ou sociedades, mas que o depoimento só tem valor de confissão nos precisos termos em que ele possa obrigar o seu representado. O elemento que estabelece a distinção entre a testemunha e o representante da parte encontra-se, assim, na capacidade para vincular por confissão judicial a pessoa colectivas ou sociedade. Escreve, a tal respeito, o Prof. Alberto dos Reis, CPC Anotado, IV Vol., pág. 348, que “o princípio geral deve ser o de que todas as pessoas devem ser admitidas a depor a fim de, com o seu depoimento, auxiliarem a descoberta da verdade. Se têm a posição de partes, é nessa qualidade que pode ser exigido o seu depoimento; se não têm essa posição, então hão-de depor como testemunhas”.
No tocante ao momento relevante para aferir da inabilidade ou não para se depor como testemunha, a jurisprudência é unânime no sentido de que o impedimento previsto no art. 617º do CPC se reporta ao momento da inquirição, irrelevando a qualidade de parte detida, anteriormente, por quem vai depor (cfr. Acórdão desta Relação do Porto de 20/04/2006, Processo 0630190, de 28/09/2006, Processo 0634627, de 12/07/2007, Processo 0733620, de 25/10/2010, Processo 4041/07.9TBPRD-C.P1, e de 10/02/2003, Processo 0252781, todos acessíveis em www.dgsi.pt). No caso vertente, no momento em que começou a depor como testemunha, no decurso da sessão da audiência de julgamento de realizada a 31/10/2012, H…. identificou-se e respondeu ao interrogatório preliminar, dizendo “trabalhar para a exequente desde 2011 e que foi sócio-gerente da F1…. Lda.”. Conforme se alcança da respectiva acta, de fls. 111/114 dos autos, nada foi requerido face às respostas do depoente, nenhum fundamento tendo sido aduzido pelo qual a Mma. Juíza devesse obstar ao depoimento, sendo certo que era esse o momento próprio para a dedução do competente incidente de impugnação – art.º 637.º, n.º 1, do CPCiv.. Consequentemente, a situação que o depoente mencionou é a que o tribunal devia ter como verdadeira relativamente à parte que o arrolou, dela não resultando impedimento algum que obstasse a que depusesse como testemunha.
Tão pouco a circunstância, relatada pelas recorrentes, de a referida testemunha ter sido quem outorgou a procuração forense junta aos autos de execução e ter subscrito o documento de confissão de dívida que constitui o título executivo, impediria que, na referida sessão de julgamento, fosse ouvida como testemunha. Quer a procuração forense, quer o documento de confissão de dívida, foram assinados em datas anteriores, e os poderes de gerência em que o depoente porventura se encontrasse investido poderiam não subsistir no momento do depoimento. Logo, nenhuma irregularidade processual foi cometida susceptível de viciar formalmente o julgamento fundado em tal meio de prova e de conduzir à sua repetição.
Questão diferente é a da consideração do posicionamento da testemunha quanto ao objecto da causa e das suas relações com a sociedade exequente, que as recorrentes reputam como tendo interesse direto na causa, por continuar a trabalhar na mesma empresa, que se dedica à mesma atividade, no mesmo estabelecimento, tendo havido apenas alterações de natureza formal, sendo que a F1…, Lda, sociedade por quotas deu origem à F2…, S.A, - a exequente -, tendo esta como legal representante a Exma. Sra. J…., filha da referida testemunha. Sustentando que o depoimento daquele teria de ser considerado parcial, tendencioso e não isento. Neste particular já não nos encontramos no âmbito dos impedimentos para depor como testemunha, mas antes no da valoração da força probatória dos depoimentos das testemunhas, cuja regra é a da livre apreciação pelo tribunal, conforme o disposto nos artigos 396º do C. Civil e 655º, do C. P. Civil, mas podendo e devendo ser sindicada pela Relação, no uso dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto conferidos pelo art. 712º, n.º 1 do C. P. Civil, na redacção introduzida pelo DL n.º 39/95, de 15/12, em caso de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 19.9.2000 (CJ, Tomo IV, pág. 186).
Ora, sucede que as respostas aos pontos 6.º a 18.º da base instrutória, de que as recorrentes, implicitamente, discordam, não foram sequer baseadas exclusivamente no depoimento da testemunha em crise. Conforme a fundamenteação que a Mma. Juíza verteu a fls. 123/124, foram aí igualmente relevados os depoimentos das testemunhas K…. e L…., relativa aos quais nenhum motivo de divergência as recorrentes aduzem. Não obstante, no caso vertente, existir a gravação dos depoimentos prestados, qualquer pretensão recursória visando a reapreciação da prova testemunhal gravada teria que observar o ónus imposto pelo art.º 690.º-A, n.º 1, do CPCiv., que dispõe que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente indicar, sob pena de rejeição: a) quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo de gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. E as recorrentes apenas se reportam, genericamente, a um único depoimento, sem transcrever passagens ou remeter para o tempo de gravação, sem o criticar analiticamente no seu conteúdo e sem o contrapor a outros meios de prova que entendessem determinar decisão diversa. Não cumpriram as recorrentes, se era essa a sua intenção, o ónus que lhes era imposto pelo artigo 690º-A do Código de Processo Civil, pelo que sempre estaria este Tribunal da Relação impedido de reapreciar a prova e alterar a decisão quanto à matéria de facto em questão, nos termos do art. 712º, nº 1 alínea a) e nº 2 do mesmo diploma.
No tocante à invocada contradição entre os factos considerados provados e constantes dos n.°s 16 e 17 dos factos provados e n.°s 4 e 5 dos factos não provados, deve desde logo notar-se que, tratando-se da oposição entre, por um lado juízos afirmativos de facto, e juízos de “non liquet”, por outro, o vício lógico arguido só ocorrerá caso entre os primeiros e os segundos existir uma relação de implicação necessária tal que, demonstrada a realidade dos primeiros, a dos segundos não possa, em caso algum, excluir-se. Concretamente, demonstrado que a executada descobriu que padecia de cancro no fígado, o que a deixou muito debilitada e transtornada, vindo a ser internada no Hospital de Santo António no dia 21/06/2008 (3 dias após a assinatura), e de ter como habilitações literárias a antiga 4.a classe, no momento em que assinou o documento necessariamente não tinha capacidade para o fazer e não se apercebeu de que estava a vincular-se em termos pessoais a uma dívida que seria da sua empresa. Mas tais ilações estão longe de ser verdadeiras, sequer em termos de experiência comum. É fora de qualquer discussão que a descoberta de uma doença do foro oncológico é factor que debilita e desencadeia os maiores transtornos psicológicos. Desconhece-se, contudo, quanto tempo medeou entre o momento da descoberta e o da assinatura, o que não exclui que nesse intervalo não possa ter existido uma reflexão serena sobre o rumo a dar aos seus negócios, de tal sorte que a decisão de assinar um documento de dívida naqueles termos pudesse ter já anteriormente amadurecido, dependendo das consequências de uma recusa. Quanto às habilitações literárias, existe nos autos informação a fls. 58 de que a executada terá nascido no ano de 1943, pelo que terá começado a frequentar o ensino então denominado “primário” em inícios da década de 50 do século XX. À época, possuir-se um diploma de aproveitamento - exame - de 4.a classe correspondia, grosso modo, à média da população portuguesa, não sendo encarado como uma qualquer limitação intelectual. Não era, de modo nenhum, um estigma de pessoa intelectualmente apoucada, e os programas de escolarização já então apetrechavam os alunos desse grau de ensino com competências, sobretudo nos domínios da Álgebra, da Geografia e da Gramática, que actualmente não adquirem mesmo em graus mais avançados, frequentemente traduzido pela expressão “o tempo em que a 4.a classe valia alguma coisa”. São inúmeros os exemplos de pessoas contemporâneas da executada que, com o mesmo grau de ensino, se notabilizaram e alcançaram sucesso no mundo dos negócios. Diz-se, e com propriedade, que para se ser trabalhador dependente é necessário ter a escolaridade obrigatória; para se ser patrão, nem isso é exigido.
A contradição pretendida pelas recorrentes não ocorre, nada justificando a inversão ou anulação das respostas negativas impugnadas. Sendo, em conformidade, de manter inalterada a matéria de facto fixada pela 1.a instância.
Em sede de enquadramento jurídico dos factos provados, nenhum reparo merece nem é feito à a douta decisão recorrida, face à indemonstração dos requisitos de que depende, nos termos do art.° 257.° do Código Civil, a anulabilidade da declaração negocial por incapacidade acidental, cujo ónus da prova estava a cargo das recorrentes, nos termos do n.º 1 do art.° 342.° do Código Civil. Merece, pois, inteira confirmação a douta sentença recorrida, pelos fundamentos dela constantes.

DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação interposta e, consequentemente, confirmam a sentença recorrida.
Custas pelas apelantes.

Porto, 2013/11/12
João Carlos Proença
Maria da Graça Mira
Anabela Dias da Silva