Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1183/12.2TYVNG-J.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
REMOÇÃO DO CABEÇA DE CASAL
Nº do Documento: RP202401161183/12.2TYVNG-J.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A doutrina e a jurisprudência têm convergido na ideia de que, por serem graves as consequências da remoção e a afectação do prestígio e do bom nome daquele que é removido das funções de cabeça de casal, essa pena só terá aplicação quando a falta cometida revista gravidade e, raras vezes, resultará em consequência da involuntária omissão ou demora no cumprimento dos deveres.
II - O prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo são factores primaciais a atender na aplicação da referida pena.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1183/12.2TYVNG-J.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 4

Relatora: Juíza Desembargadora Ana Lucinda Cabral
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora Alexandra Pelayo
2º Adjunto: Juiz Desembargador Rui Moreira



Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I - Relatório
Em 16/10/2023 consignou-se o seguinte em despacho:
Refª 36732582 de 22/9/2023: vem o cabeça de casal AA alegar que na sequência de requerimento por si apresentado, foi proferido despacho a interromper o prazo que se encontrava em curso para apresentar relação de bens e compromisso de honra de cabeça de casal.
Contudo, não foi proferido despacho a declarar cessada a interrupção da instância, o que requer, começando a correr novo prazo de 10 dias.
Pronunciou-se a interessada BB, opondo-se.
*
Cumpre apreciar e decidir.
Efectivamente, na sequência de pedido de apoio judiciário apresentado pelo cabeça de casal com nomeação de patrono, foi proferido despacho a declarar interrompidos os prazos que se encontravam a correr.
Concretamente, tal despacho foi proferido a 30/1/2023 no processo executivo de que estes autos são apenso e tinha o seguinte teor:
“Refª 34560564 de 26/1/2023: atentos os documentos juntos, onde se comprova que o executado solicitou apoio judiciário junto da Segurança Social na modalidade de nomeação e pagamento de compensação a patrono, declaro interrompidos todos os prazos que corriam a favor de AA, o qual se reiniciará, conforme o caso, a partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação ou a partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono – cfr. art. 24º, nºs 4 e 5 da Lei nº 47/2007, de 28/08”.
Note-se que de tal despacho fizemos constar expressamente que os prazos se reiniciariam, conforme o caso, a partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação ou a partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono, portanto, sem necessidade de novo despacho a declarar cessada a interrupção dos prazos.
De resto, a formulação que seguimos no despacho é a que consta da lei, isto é, do art. 24º, nºs 4 e 5 da Lei nº 47/2007, de 28/08.
Não vemos como pode ter ficado a ideia para o cabeça de casal, de que iria ser proferido novo despacho de reinício da contagem do prazo, se no despacho de interrupção dissemos expressamente quando recomeçaria a contar esse prazo.
Por outras palavras, nenhuma dúvida pode ter ficado para as partes de que os prazos que se encontravam a correr reiniciariam a sua contagem, neste caso concreto, a partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono, porque foi isso mesmo que ficou a constar da decisão que lhes foi notificada e é o que consta da letra da lei.
Ainda para mais, sendo o cabeça de casal advogado de profissão.
O cabeça de casal recebeu essa notificação e apresentou recurso de impugnação da decisão da Segurança Social que indeferiu o seu pedido, recurso que correu os seus termos no apenso O.
Nesse apenso O foi proferida decisão final a 14/7/2023 mantendo a decisão da Segurança Social e indeferindo o recurso, a qual transitou em julgado, reiniciando a contagem do prazo que se encontrava interrompido.
Por tudo o exposto, cremos não ter razão o cabeça de casal, não podendo ser deferida a sua pretensão.
Termos em que indefiro a pretensão do cabeça de casal de ser proferido despacho a declarar cessada a interrupção da instância.
Notifique.
*
Refª 36695680 de 20/9/2023: veio a interessada BB requerer a remoção de cabeça de casal, nos termos e para os efeitos previstos no art. 2086º, nº 1, al. c) do Código Civil.
O cabeça de casal apresentou compromisso de honra e requereu prazo não inferior a 30 dias para apresentar relação de bens – refª 36866187 de 6/10/2023.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o art. 2086º, nº 1 do Código Civil que o cabeça-de-casal pode ser removido, sem prejuízo das demais sanções que no caso couberem:
a) se dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança ou de doações feitas pelo falecido, ou se, também dolosamente, denunciou doações ou encargos inexistentes;
b) Se não administrar o património hereditário com prudência e zelo;
c) Se não cumpriu no inventário os deveres que a lei lhe impuser;
d) Se revelar incompetência para o exercício do cargo.
A primeira função de um cabeça de casal é a de apresentar compromisso de honra do fiel exercício das suas funções (nos termos da alínea e) do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 1097º do Código de Processo Civil) e de apresentar a relação de bens (nos termos da alínea c) do n.º 2 artigo 1097.º e do artigo 1098.º do mesmo diploma).
Foi o cabeça de casal notificado neste processo para esse efeito a 23/11/2022 e 20/1/2023, neste último caso com cominação de ser removido do cargo em caso de não cumprimento do aqui determinado.
Contudo, não o fez no prazo legal.
É certo que, por despacho proferido a 30/1/2023, foi declarado interrompido o prazo concedido ao cabeça de casal, como vimos supra.
Mas é também certo que a decisão que definitivamente indeferiu o apoio judiciário requerido pelo cabeça de casal foi proferida a 14/7/2023 e notificada a 18 do mesmo mês.
Desde essa data decorreram mais de 2 meses sem que o cabeça de casal tenha cumprido a sua obrigação.
E mesmo agora, tanto tempo depois decorrido desde a primeira notificação que lhe foi efectuada a 23/11/2022, o cabeça de casal apenas apresenta compromisso de honra, requerendo ainda mais trinta dias para apresentação da relação de bens.
Este é um processo de natureza urgente, sendo que o processo principal de insolvência se encontra a aguardar pelo término deste.
O processo não se compadece com a demora que o actual cabeça de casal lhe imprime.
É, pois, de concluir que o cabeça de casal não cumpriu de forma grave no inventário os deveres que a lei lhe impõe.
Mostram-se preenchidos os pressupostos previstos no art. 2086º, nº 1, al. c) do Código Civil, que impõem a remoção do cabeça de casal.
Termos em que determino a remoção de AA das funções de cabeça de casal.
Custas do incidente a cargo de AA, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.
Notifique.
*
Em consequência do despacho que antecede, nomeio cabeça de casal BB.
Notifique, sendo a nova cabeça de casal a fim de apresentar o compromisso de honra do fiel exercício das suas funções nos termos da alínea e) do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 1097º do Código de Processo Civil e apresentar a relação de bens nos termos da alínea c) do n.º 2 artigo 1097.º e do artigo 1098.º do mesmo diploma.
Prazo: 15 dias.”

AA veio interpor recurso, concluindo:
1.ª – O ora recorrente foi notificado da decisão do Tribunal a quo, na qual é decidido, em síntese, que na sequência do seu pedido de apoio judiciário apresentado nos autos de execução, a que o presente inventário se encontra apenso, havia sido declarada a interrupção da instância e que, o prazo se reiniciaria “a partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação ou a partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono”.
2.ª – Pelo que não existiria necessidade de novo Despacho a declarar cessada a interrupção dos prazos.
3.ª – Entende o recorrente que no âmbito dos presentes autos de inventário foi declarada, pelo Tribunal a quo e de forma expressa, a interrupção do prazo em curso, por mais do que uma vez, pelo que, naturalmente, também o Tribunal a quo teria de declarar que tal interrupção se encontrava finda, reiniciando-se, com tal notificação a nova contagem do prazo que nessa data viesse a ser concedido ao recorrente para o efeito.
4.ª – Sendo que a declaração do Tribunal a quo de que o prazo se reiniciaria após decisão sobre o pedido de apoio judiciário não consubstancia uma declaração expressa de que se encontrava declarada cessada a interrupção dos prazos em curso, o que só poderia ocorrer após trânsito em julgado da decisão proferida quanto ao requerido apoio jurídico.
5.ª – Pelo que sempre teria que, após tal decisão, ser proferido Despacho a declarar cessada tal interrupção e, consequentemente, ser concedido o prazo que se entendesse ao ora recorrente para os efeitos de prestar compromisso de honra e de apresentar a relação de bens.
6.ª – Tal omissão consubstancia uma violação do dever de gestão processual, previsto no artigo 6.º do CPCivil, impondo-se a prolação de Despacho que, expressamente declare cessada a interrupção do prazo em curso e conceda prazo ao recorrente para apresentar a relação de bens no âmbito deste inventário.
Sem prescindir,
7.ª – Entendeu ainda o Tribunal a quo que, alegadamente, se encontrariam preenchidos os requisitos que imporiam a sua remoção como cabeça de casal, nos termos do disposto no art. 2086.º, n.º 1, al. c) do Código Civil, na medida em que já havia sido notificado para apresentar compromisso de honra e para apresentar relação de bens em23/11/2022 e em 20/01/2023.
8.ª – É do conhecimento do Tribunal a quo, que já em 21 de novembro de 2022 o recorrente tinha junto aos autos de execução, a que este inventário se encontra apenso, comprovativo de pedido de apoio judiciário, realizado junto dos serviços da Segurança Social de Aveiro, nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento de compensação de patrono, o que nos termos do disposto no artigo 24.º do Lei do Acesso ao Direito, implica, desde a sua comunicação aos autos, a interrupção dos prazos em curso.
9.ª - Assim, pelo menos desde essa data, o recorrente encontrava-se a aguardar a nomeação de patrono para o âmbito destes autos, não podendo, por isso, responder, de forma cabal às notificações que eram realizadas, sendo que as mesmas, legalmente, não deveriam estar a ser realizadas.
10.ª - Ainda assim, e apesar de ter junto tal comprovativo aos autos, e de ter requerido a interrupção dos prazos em curso, o ora recorrente respondeu à notificação de 20 de janeiro de 2023, facto esse que o Tribunal a quo omite ou, pelo menos, não considera no Despacho em crise.
11.ª – E a declaração de interrupção dos prazos em curso, apesar de requerida pelo ora recorrente, só foi declarada em 30 de janeiro de 2023, o que não lhe pode ser imputável.
12.ª – A decisão definitiva quanto ao pedido de apoio do recorrente, só foi proferida em 14 de julho de 2023.
13.ª – Ainda que se considerasse não ser necessária prolação de Despacho a declarar cessada a interrupção dos prazos em curso, o que não se concede nem concebe, não se pode afirmar que, nesse curto prazo de menos de 3 meses, dois dos quais os meses típicos de gozo de férias, o ora recorrente tenha violado de forma grave, as obrigações que lhe são impostas pela Lei do Inventário.
14.ª – O recorrente respondeu de forma atempada aos Despachos que lhe foram notificados após a data de 14 de julho de 2023, e, não aguardando pela decisão a proferir quanto à sua remoção, prestou compromisso de honra do fiel exercício das suas funções como cabeça de casal.
15.ª - Requereu a concessão de mais prazo para a apresentação da relação dos bens, o que é prática comum em processos de inventário, devido à dificuldade inerente à função em causa e à reunião de todos os elementos necessários à elaboração de tal relação de bens.
16.ª – Pelo que dificilmente se percebe como se poderá julgar que o ora recorrente esteja a fazer demorar, de forma injustificada, os presentes autos de inventário, até porque tal não aconteceu.
17.ª – Como já foi decidido anteriormente pelos nossos tribunais, havendo o cabeça de casal correspondido, em tempo útil, às solicitações do Tribunal, como é o caso dos autos, não se vê motivo sério e fundado para a sua remoção do cargo.
18.ª – Como se vê na factualidade descrita, os presentes autos estiveram a aguardar decisão quanto ao apoio jurídico requerido de novembro de 2022 a julho de 2023, sendo que o ora recorrente só teve conhecimento efetivo de tal decisão em 19-09-2023 e após tal data, respondeu prontamente às notificações remetidas pelo Tribunal a quo, e apesar de entender ser necessária a prolação de Despacho a declarar cessada a interrupção do prazo, juntou aos autos declaração de compromisso de honra e requereu prazo para apresentar relação de bens.
19:ª – De onde resulta que exerceu as suas funções com diligência e zelo, não violando qualquer as leis e regras impostas pelo processo de inventário.
20.ª – Com o despacho proferido, o Tribunal a quo violou o dever de obediência à lei previsto no art.º 3.º do EMJ; os princípios e os inerentes direitos fundamentais da aquisição processual, do contraditório, da proibição da prolação de decisões surpresa, da cooperação, de fundamentação do processo leal e justo e o seu dever de gestão processual, consagrado nos artigos 6.º, 7.º, 154.º e 615.º, n.º 1 al. b) e c) do C.P.Civil, dos artigos 1.º 2.º, 3.º, n.º 3, 12.º, 13.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, n.º 1 a contrario; 20.º, 26.º, 202.º, n.º 2 e 205.º, n.º 1 da CRP, o artigo 6.º e 17.º da CEDH.
TERMOS EM QUE, nos melhores de Direito e sempre com o Mui Douto Suprimento de V.ªs Ex.ªs se requerer que no total provimento do presente recurso, e com fundamento na verificação das normas vindas de invocar, seja o Despacho em crise revogado e substituído por Douto Acórdão proferido nos termos supra requeridos, por assim ser de lei e de inteira JUSTIÇA!

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, as questões a resolver consistem em saber se:
- o Tribunal a quo teria de declarar que a interrupção do prazo por efeito de pedido de apoio judiciário se encontrava finda, reiniciando-se, com tal notificação a nova contagem do prazo;
- se encontram preenchidos os requisitos que impõem a remoção do recorrente como cabeça de casal, nos termos do disposto no artigo 2086.º, n.º 1, al. c) do Código Civil

II – Fundamentação de facto
Para a decisão do recurso releva a factualidade que se extrai do relatório supra.

III – Fundamentação de direito
Em primeiro lugar, defende o recorrente que, tendo sido declarada, de forma expressa, no âmbito dos presentes autos de inventário, pelo Tribunal a quo, a interrupção do prazo em curso, naturalmente, também esse Tribunal teria de declarar que tal interrupção se encontrava finda, reiniciando-se, com tal notificação, a nova contagem do prazo que nessa data viesse a ser concedido ao recorrente para o efeito.
Atentemos.
Estatui o nº 4 do artigo 24º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho (Acesso ao Direito e aos Tribunais) que:” Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo.”
E o nº 5 que: ”O prazo interrompido por aplicação do disposto no número anterior inicia-se, conforme os casos:
a) A partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação;
b) A partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono.”
É inquestionável, na doutrina e na jurisprudência, que a decisão a que se reporta esta al. b) é a decisão final do procedimento de concessão de apoio judiciário, ou seja, decorrido que se mostre o prazo de impugnação judicial sem que esta seja apresentada, ou havendo-a, a decisão proferida no recurso judicial.
Com efeito, a decisão da Segurança Social pode não ser definitiva, pois que, ainda que não admita reclamação nem recurso hierárquico, é susceptível de impugnação judicial, nos termos dos artigos 27º e 28º da referida Lei de Apoio Judiciário.
Logo, enquanto estiver pendente a impugnação judicial da decisão de indeferimento pelos serviços de Segurança Social do pedido de apoio judiciário que envolva a nomeação de patrono, o prazo judicial em curso mantém-se interrompido até notificação da decisão dessa impugnação. (V. g. Acórdão da Relação de Coimbra de 26-09-2023, proc. nº 1320/22.9T8CLC.C1, in www.dgsi.pt
No caso em análise, considerou-se precisamente que que o prazo em curso se manteve interrompido até à notificação da decisão da impugnação judicial ao recorrente.
Tudo ocorreu na conformidade legal que não consente que a interrupção do prazo se imponha até que haja qualquer despacho judicial a declarar cessada a interrupção.
Depois vem o recorrente invocar não haver justificação para a sua remoção como cabeça de casal.
No processo de inventário ao cabeça-de-casal incumbe praticar diversos actos necessários ao seguimento do processo, desde logo, a apresentação do requerimento inicial do processo e da relação de bens (artigos1097º e 1098º do Código de Processo Civil).
O cargo de cabeça-de-casal, previsto no 2079º do C. Civil, confere ao instituído competência para administrar a herança até à sua liquidação e partilha, enunciando o artigo 2080º a ordem pela qual deve ser deferida.
O incumprimento dos seus deveres funcionais pode levar à destituição do cargo, dispondo o artigo 2086, epigrafado “Remoção do cabeça-de-casal” que:
1 - O cabeça-de-casal pode ser removido, sem prejuízo das demais sanções que no caso couberem:
a) Se dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança ou de doações feitas pelo falecido, ou se, também dolosamente, denunciou doações ou encargos inexistentes;
b) Se não administrar o património hereditário com prudência e zelo;
c) Se não cumpriu no inventário os deveres que a lei lhe impuser;
d) Se revelar incompetência para o exercício do cargo.
2 - Tem legitimidade para pedir a remoção qualquer interessado.”
Estas causas de remoção podem ser divididas em seis categorias: “sonegação e declarações dolosamente inexactas”; “má administração do património hereditário”; “falta de cumprimento dos deveres processuais”; “revelação de incompetência para o exercício do cargo”; “falta de idoneidade física ou moral”; “falta de distribuição dos rendimentos pelos interessados” (neste sentido cf. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. III, 4ª ed.).
Na circunstância está em causa a situação da aludida alínea c): incumprimento no inventário dos deveres que a lei lhe impõe, mais concretamente, a falta de apresentação da relação de bens.
Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, Almedina, 4ª edição, 1991, vol. III, explica que “(…) Na alínea b), prevê-se o caso de, sendo embora competente profissionalmente, o cabeça-de-casal se meta em aventuras perigosas ou se desleixe no cumprimento dos deveres que lhe incumbem. (…).”
A doutrina e a jurisprudência têm convergido na ideia de que, por serem graves as consequências da remoção e a afectação do prestígio e do bom nome daquele que é removido das funções de cabeça de casal, essa pena só terá aplicação quando a falta cometida revista gravidade e, raras vezes, resultará em consequência da involuntária omissão ou demora no cumprimento dos deveres. O prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo são factores primaciais a atender na aplicação da referida pena.
A remoção do cabeça de casal é um incidente no processo de inventário, sendo-lhe aplicável o conjunto de normas dos artigos 292º e ss. do Código de Processo Civil ex vi artigo 1103º, nº 2, do CPC, sendo o ónus da prova do requerente da remoção.
Como decorre de toda a explanação do caso, o cabeça de casal foi notificado para apresentar a relação de bens em 23/11/2022 e em 20/1/2023, neste último caso, com a cominação de ser removido do cargo em caso de não cumprimento do determinado.
Em 30/1/2023 o prazo interrompeu-se por via da apresentação de pedido de apoio judiciário, tendo sido retomado em 18/7/2023, data da notificação da decisão definitiva de indeferimento do pedido.
É certo que desde a primeira notificação até a interrupção do prazo decorreram cerca de dois meses e desde o fim da interrupção até à data do despacho recorrido decorreram cerca de três meses.
Contudo, o recorrente nunca deixou de responder às notificações e a verdade é que no despacho não se mostra elencada factualidade da qual se possa concluir resultar da sua conduta prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo, factores que, como se viu, são norteadores das causas de remoção do cabeça de casal.
O comportamento aqui delineado poderá considerar-se descuidado ou pouco diligente mas não deixa de ser apenas uma demora no cumprimento dos deveres que não é suficiente, como também já se disse, para provocar este sancionamento.
Além disso, não podemos esquecer que a colaboração entre as partes e entre estas e o tribunal está hoje alicerçada na concepção, surgida na Alemanha, de que o processo constitui uma “comunidade de trabalho” (Arbeitsgemeinschaft), onde todos devem cooperar com o objectivo de obter a melhor solução para o litígio no menor espaço de tempo.
Todo o possível sancionamento de condutas processuais por violação do dever de colaboração, deve ser avaliada pelo tribunal no pressuposto de que a aplicação de qualquer sanção tem de estar estruturada numa violação relevante dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, porquanto a mesma não tem características de automaticidade.
Como refere Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil. Coimbra: Almedina, 2004, a cooperação impõe deveres para todos os intervenientes processuais, a fim de que se produza, no âmbito do processo civil, uma “eticização” semelhante à que já se obteve no direito material, com a consagração de cláusulas gerais como as da boa-fé e do abuso de direito.
Visto assim, o despacho recorrido não apresenta suficiente justificação facto e de direito para aplicação da sansão da remoção do cabeça de casal.

Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente procedente a apelação, revogando-se o despacho que determinou a remoção do recorrente do cargo de cabeça de casal.

Sem custas.



Porto, 16 de Janeiro de 2023
Ana Lucinda Cabral
Alexandra Pelayo
Rui Moreira


(A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.)