Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8362/23.5T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PINTO DOS SANTOS
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CASO JULGADO
INJUNÇÃO DE PAGAMENTO EUROPEIA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
NULIDADES DE SENTENÇA
Nº do Documento: RP202412118362/23.5T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 12/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não padece das nulidades previstas nas als. b) e/ou d) do nº 1 do art. 615º do CPC a decisão [constante do despacho saneador] em que o tribunal declarou não conhecer da exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses, arguida na contestação, por ter considerado, erradamente, que, com a prolação de despacho anterior, proferido na fase liminar da injunção de pagamento europeia que precedeu a ação, se havia esgotado o poder jurisdicional para a sua apreciação. Tal situação configura, antes, um «error in iudicando».
II - Não se forma caso julgado (formal) quanto à competência internacional dos tribunais portugueses a partir de (com base) (n)um despacho proferido na fase liminar da injunção de pagamento europeia, ao abrigo do art. 8º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012, no qual, reformando-se o despacho anterior (que havia, por lapso, recusado o requerimento de injunção por ter considerado que os tribunais portugueses não tinham competência internacional para o caso), se ordenou tão-só, em sua substituição, a emissão da injunção de pagamento europeia (art. 12º nº 1 do Regulamento (CE) nº 1896/2006, de 12.12) e se ordenou a citação da requerida para os termos da injunção, incluindo a possibilidade de deduzir oposição (prevista nos arts. 12º nº 4 als. b) e c) e 16º do Regulamento (CE) nº 1896/2006).
III - A análise liminar sobre a competência internacional feita, na dita injunção, ao abrigo do art. 8º do Regulamento (CE) nº 1896/2006, não constitui caso julgado para a ação subsequente (que se inicia quando e logo após a dedução da oposição prevista nos arts. 12º nº 4 als. b) e c) e 16º do Regulamento (CE) nº 1896/2006), não impedindo a parte requerida de arguir, na contestação da ação, a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para a preparação e julgamento dos autos.
IV - A competência internacional dos tribunais portugueses, como pressuposto processual que é, tem de ser aferida pela relação jurídica controvertida, tal como é apresentada pelo autor na petição inicial.
V - Resultando deste articulado que a autora se obrigou a fabricar determinado número de móveis que a ré lhe encomendou por diversas vezes e ao longo de determinado período de tempo (e depois, após o seu fabrico, a entregá-los à mesma mediante o recebimento do preço acordado), que os materiais para o fabrico dos móveis foram fornecidos pela autora e que esta os fabricou em conformidade com as encomendas e de acordo com as instruções que aquela nelas lhe forneceu, designadamente, quanto às respetivas características, especificidades, modelos, medidas e materiais, os contratos em questão são de empreitada (e não de compra e venda).
VI - Não constando daquele articulado (nem de qualquer documento com ele junto) que tivesse sido convencionado, pelas partes, qualquer pacto de atribuição de competência aos tribunais de algum dos Estados-Membros e estando-se, como se disse, perante contratos de empreitada (que são uma subespécie dos contratos de prestação de serviço), os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do art. 7º nº 1 al. b), 2ª parte, do Regulamento (UE) nº 1215/2012, para conhecerem e decidirem a ação (subsequente à dita injunção de pagamento europeia) em que a autora, alegando que a ré não pagou parte do(s) preço(s) dos móveis que fabricou e lhe entregou, pede a condenação desta a pagar-lhe o que está em dívida, com os acréscimos legais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação em Separado nº 8362/23.5T8PRT-A.P1 – 2ª Secção
Relator: Pinto dos Santos
Adjuntos: Des. Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira
Des. Lina Castro Baptista
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Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório:

1.1. O iter processual na 1ª instância [atos relevantes para o conhecimento deste recurso]:
Utilizando o formulário legalmente estabelecido, a requerente A..., LDA., com sede em ..., Paredes, apresentou, no Juízo Central Cível do Porto, o requerimento de injunção de pagamento europeia certificado nestes autos de recurso, demandando AA [mais corretamente B..., SARL (AA), com sede em ..., ..., França, no qual, no local próprio, refere, no essencial, que: “1- A requerente é uma sociedade comercial por quotas, que tem por objeto o fabrico de mobiliário de madeira. 2- Por sua vez, a requerida é uma sociedade comercial registada em França, que se dedica à comercialização de mobiliário de madeira. 3- No exercício da sua atividade comercial, entre janeiro de 2015 e novembro de 2022, a requerente celebrou com a requerida, por encomendas desta, vários contratos de empreitada de mobiliário de madeira. 4- No âmbito desses contratos de empreitada celebrados entre as partes, a requerente fabricou todo o mobiliário, em conformidade e de acordo com as prévias instruções que lhe foram fornecidas pela requerida, através das respetivas encomendas, 5- designadamente quanto às características e especificidades dos móveis, quantidades, medidas e materiais. 6- Consequentemente, tais contratos de empreitada celebrados entre as partes, deram assim origem à emissão das seguintes faturas (…) e notas de crédito (…): [segue-se, depois, uma extensa lista com indicação de faturas e notas de crédito, com especificação de datas de emissão e de vencimento e de valores]. 7- Com efeito, a requerente entregou à requerida, que recebeu e fez seu, todo o mobiliário que fabricou no âmbito dos referidos contratos de empreitada, e que se mostra devidamente descrito nas faturas supra identificadas, quanto às quantidades, designação e referência de artigos e respetivos preços. 8- Sucede que o preço a pagar pela requerida à requerente, (…), era, globalmente, de €1.230.611,50. 9- Ao qual, depois de deduzido o valor de todos os pagamentos que a requerida efetuou ao requerente até à presente data, no montante de €1.100.938,35, 10- bem como, deduzido também o valor total correspondente às notas de crédito emitidas, no montante de €54.675,65, 11- resulta que, encontra-se ainda em dívida pela requerida à requerente, a quantia de €74.997,50. 12- Ora, apesar das inúmeras interpelações efetuadas pela requerente à requerida, a fim desta proceder ao pagamento de tal quantia, a verdade é que, até à data, ainda não logrou êxito. 13- Assim, a requerida deve à requerente a quantia de €79.997,50, a título de capital, acrescida dos respetivos juros de mora vencidos, à taxa comercial (…). 14- Acrescem, ainda, juros vincendos, à taxa comercial, custas, procuradoria condigna e demais encargos”.

Em 11.05.2023, a Mma. Juíza do Juiz 3 do Juízo Central Cível do Porto [ao qual a injunção de pagamento europeia foi distribuída], proferiu o seguinte despacho: “Para efeitos da aplicação do Regulamento (CE) n.º 1896/2006, de 12 de dezembro, a competência judiciária é determinada em conformidade com as regras do direito comunitário aplicáveis na matéria, designadamente, o Regulamento (CE) n.º 1215/2012 (art. 6.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 1896/2006). Ou seja, as questões de competência (internacional) respeitantes à injunção de pagamento europeia são resolvidas nos mesmos termos previstos para qualquer outra demanda declarativa de cariz transfronteiriço. Compreende-se que assim seja. Além do mais, sendo oferecida oposição, o processo declarativo subsequente corre os seus termos no Estado-Membro onde foi apresentado o requerimento (art. 17.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 1896/2006). Sendo os tribunais portugueses internacionalmente competentes, na ordem interna caberá a competência material a este juízo (Juízo Central Cível do Porto).
O requerimento de injunção de pagamento europeia deve incluir o fundamento da competência judiciária internacional dos tribunais portugueses (para a declaração do direito) (art. 7.º, n.º 2, al. f), do Regulamento n.º 1896/2006 – quadro 3 do formulário).
No requerimento apresentado, é indicado que o(a) requerido(a) tem sede (ou domicílio) em França, ou seja, num Estado-Membro distinto de Portugal, e como fundamento para a competência internacional dos tribunais portugueses, 'Local da execução da obrigação em questão' – código ... do quadro 3 do formulário normalizado A.
De acordo com o Regulamento(UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, vigora o princípio de que, em geral, a competência tem por base o domicílio do requerido (art. 4.º, n.º 1). Nos termos do art. 5.º, n.º 1, do Regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do capítulo II – Competência.
O requerido tem o seu domicílio em França.
O art. 7.º, n.º 1, al. a) do Regulamento, prevê que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria contratual perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.
Nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 7.º, para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será, o caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.
Ora, de acordo com o alegado no requerimento de injunção a requerente, com sede em Portugal, vendeu à requerida, com sede em França, os bens constantes das faturas enumeradas, que a requerida recebeu.
Verifica-se, assim, que os tribunais portugueses não têm competência internacional, face ao referido Regulamento(UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro, para o presente procedimento intentado contra a requerida domiciliada noutro estado membro. Neste sentido, embora no âmbito de aplicação do anterior Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 16 de janeiro, revogado pelo Regulamento(UE) n.º 1215/2012, vd. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-12-2013, processo n.º 691/11.7TVPRT-A.G1, acessível na íntegra na base de dados do IGFEJ.
Em conformidade, ao abrigo do art. 11.º, n.º 1, al. a), do Regulamento (CE) n.º 1896/2006, de 12 de dezembro, recuso o requerimento de injunção de pagamento europeia apresentado.
Custas pelo(a) requerente.
Notifique.
Cumpra-se (formulário normalizado D, constante do Anexo IV).
Dê baixa.”

Notificada deste despacho, a requerente esclareceu que, como consta do requerimento inicial, os contratos que celebrou com a requerida não foram de compra e venda, como erradamente se considerou no despacho de 11.05.2023, mas sim contratos de empreitada, que se reconduzem a contratos de prestação de serviços, pelo que, face ao que consagram as als. a) e b), 2ª parte, do nº 1 do art. 7º do Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12.12, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para dirimirem o litígio em apreço. Requereu, em conformidade, a reforma da decisão proferida e que se procedesse à emissão de injunção europeia – Formulário E – a enviar à Requerida para, querendo, opor-se nos termos previstos no Reg. 1896/2006, de 12 de dezembro.

Por despacho de 02.06.2023, a Mma. Juíza dos autos decidiu: “Assiste razão ao requerente: por manifesto lapso, não se teve em consideração que a requerente indicou que o crédito invocado emerge de contrato de empreitada (e não compra e venda), sendo o local de fabrico do mobiliário fornecido Portugal.
Em conformidade, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 616.º, n.º 2, do CPC, reformo a decisão de 11-05-2023, a qual substituo pela seguinte:
Emita injunção de pagamento europeia (art. 12.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 1896/2006, de 12 de dezembro).
Se o requerido residir no estrangeiro (noutro Estado Membro), proceda-se à citação por via postal registada, nos termos previstos no Regulamento (CE) n.º 1393/2007, de 13 de novembro de 2007 – em especial, com respeito pelo disposto no n.º 4 do art. 8.º deste regulamento.
Cumpra-se (formulário normalizado E, constante do Anexo V).
Notifique.”

A requerida, notificada para os efeitos ordenados [a notificação incluiu cópia do formulário A apresentado pela demandante, o formulário E (…), o formulário F – para o caso da requerida pretender opor-se à injunção de pagamento europeia e o formulário L – cfr. cópia da notificação constante do processo principal com a referência 449132429, de 02.06.2023], veio declarar, através do formulário F, que se opunha à injunção.

Em 14.09.2023, a Mma. Juíza do mesmo Juiz 3 do JCCível do Porto proferiu o seguinte despacho: “Pelo requerido foi apresentada, através do competente formulário (formulário normalizado F, constante do Anexo VI ao Regulamento (CE) n.º 1896/2006, de 12 de Dezembro), oposição à presente injunção de pagamento europeia.
Tal oposição, nos termos do disposto no art. 17º/1, desse mesmo Regulamento, coloca termo ao procedimento europeu de injunção para pagamento, prosseguindo a ação “nos tribunais competentes do Estado-Membro de origem, de acordo com as normas do processo civil comum, a menos que o requerente tenha expressamente solicitado que, nesse caso, se ponha termo ao processo”, o que não ocorre no caso dos autos.
Assim, não se mostrando este tribunal territorialmente competente para os ulteriores termos do processo, declaro essa mesma incompetência, determinando a remessa dos autos para distribuição nos Juízos Centrais Cíveis de Penafiel (art. 7º/1/b)/2§, do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro).
Notifique.
Oportunamente, dando baixa, remeta os autos para o tribunal supra julgado competente.”

Notificadas requerente e requerida, os autos foram, oportunamente, remetidos ao Juízo Central Cível de Penafiel e distribuídos ao respetivo Juiz 3, tendo aí sido proferido despacho a convidar a autora a apresentar uma petição inicial com observância das normas processuais do processo comum, corrigindo as insuficiências ou imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada, convite a que a mesma correspondeu, tendo apresentado, no prazo fixado, o respetivo articulado em que pugnou pela procedência da ação e, consequente, condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 123.138,70, acrescida dos respetivos juros de mora comerciais vincendos, até efetivo e integral pagamento, e ainda as custas de parte e demais encargos legais.

A , citada, contestou a ação, por exceção e por impugnação e deduziu reconvenção, tendo, no primeiro caso, além de outras que não estão aqui em causa, invocado a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses [arts. 6º a 53º de tal articulado], por entender que os contratos que celebrou com a autora foram de compra e venda [e não de empreitada], com entrega dos respetivos bens nas instalações da ré, em França, o que, segundo ela, enquadra a situação, em termos de competência internacional, no que dispõe o art. 7º nº 1 als. a) e b), 1ª parte, do Regulamento (UE) nº 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12. Concluiu, nesta parte, pela procedência de tal exceção, com a sua consequente absolvição da instância.

A autora, na resposta às exceções e réplica à reconvenção, sustentou, no que para aqui interessa, a improcedência da aludida exceção dilatória [arts. 1º a 44º deste articulado].

Realizou-se depois uma audiência prévia, na qual, por falta de conciliação entre as partes, foi proferido despacho saneador que conheceu, logo à cabeça [como não podia deixar de ser], da exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses, tendo-o feito nos seguintes termos: “A ré veio, na sua contestação, arguir a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses.
A autora já se pronunciou.
Esta questão já se mostra decidida pelo despacho datado de 2/06/2023, razão pela qual se mostra esgotado o nosso poder jurisdicional.
Assim, nada mais há a decidir sobre esta concreta exceção.”
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1.2. O recurso:
Inconformada com esta decisão, interpôs a o presente recurso de apelação [que foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo], cujas alegações culminou com as seguintes conclusões:
“1. O Tribunal a quo julgou, no despacho saneador, que “a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses (...) já se mostra decidida pelo despacho datado de 2/06/2023, razão pela qual se mostra esgotado o nosso poder jurisdicional”.
2. Sucede, porém, que a Recorrente está inconformada com tal decisão, pois é seu modesto entendimento que a invocada incompetência internacional do Juízo Central Cível de Penafiel devia ter sido conhecida e julgada procedente com as devidas e legais consequências.
3. A Recorrente entende que o referido segmento decisório padece do vício da nulidade, porque o Digníssimo Tribunal a quo não apreciou, como era sua obrigação e dever, a exceção da incompetência absoluta deduzida pela Recorrente, em sede de contestação, remetendo para um despacho proferido de 02.06.2023, do Juízo Central Cível do Porto, que não adquiriu força de caso julgado formal e não é sequer vinculativo para o Tribunal a quem legalmente compete conhecer do mérito.
4. Assim, o poder jurisdicional sobre a invocada exceção da incompetência internacional dos Tribunais Portugueses não se mostra esgotado pelo referido despacho de 02.06.2023, que se limitou a emitir injunção de pagamento europeia, apenas e só, de acordo com as alegações da Requerente constantes do formulário de injunção (Cfr. Art. 8.º e 12.º, do Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2006).
5. O referido despacho procedeu a uma análise liminar, sem contraditório da parte contrária, limitando-se a averiguar o preenchimento dos requisitos para a existência de injunção europeia e não para aferir de pressupostos processuais, assegurando apenas o prosseguimento do respetivo processo.
6. Tendo a Recorrente invocado, em sede de contestação, a incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses, não estava o Tribunal a quo impedido de se pronunciar, desde logo aquando da prolação do despacho saneador, acerca de tal questão.
7. A conclusão do Tribunal a quo não tem qualquer sustentação legal, tendo este Tribunal, de forma equívoca, se abstido infundadamente de decidir.
8. O Tribunal a quo estava legalmente obrigado a conhecer e a pronunciar-se sobre a invocada exceção da incompetência absoluta, não podendo nunca remeter para um despacho liminar/tabelar que não tem força de caso julgado quanto a esta matéria.
9. Acresce que o Tribunal a quo tinha a obrigação de conhecer e pronunciar-se sobre a referida exceção, por respeito ao n.º 1, do Art. 97.º, do C.P.C..
10. Sucede que, “não existindo ainda sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, a exceção de incompetência internacional pode ser conhecida no despacho saneador, tal como decorre do art. 97º, nº 1 do CPC” - Cfr. douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 2174/17.2T8PRT.L1-7, de 05.02.2019, disponível in www.dgsi.pt.
11. Ocorre nulidade de decisão por omissão de pronúncia quando o Tribunal não conheça de todas as exceções invocadas pelas partes e cujo conhecimento não tenha ficado prejudicado pelo conhecimento anterior de outra questão.
12. Verificada a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, cumpre ao Tribunal ad quem, no exercício dos seus poderes de substituição, sempre que disponha dos elementos necessários, suprir esse vício.
13. A Recorrente considera que o segmento decisório em crise padece de ausência de pronúncia e de fundamentação, o que, nos termos do disposto no Artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e d) do C.P.C., configura fundamento de nulidade, que aqui expressamente invoca e requer que seja declarada, para os devidos e legais efeitos.
Sem prescindir,
14. Na hipótese desta Veneranda Relação entender que o Tribunal a quo se pronunciou sobre a invocada incompetência absoluta decorrente da violação das regras de competência internacional, o que a Recorrente expressamente não concebe, jamais esta pronúncia poderia ter sido efetuada nos termos exarados no Despacho Saneador.
15. O Tribunal a quo estava obrigado a conhecer a exceção da incompetência absoluta decorrente da violação das regras de competência internacional, porque, ao invés do exarado no Despacho Saneador, o seu poder jurisdicional não se encontrava esgotado para apreciar esta exceção, devendo, por conseguinte, esta Veneranda Relação julgar procedente a incompetência internacional dos Tribunais portugueses para o julgamento da ação e, consequentemente, absolver a Recorrente da instância, nos termos dos Artigos 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2, e 577.º, a), do C.P.C.
16. O despacho de 02 de Junho de 2023, proferido pelo Juízo Central Cível do Porto, nunca adquiriu força de caso julgado, até por se tratar de um despacho que não foi objeto de discussão entre as partes, tendo o Juízo Central Cível do Porto se limitado a emitir injunção de pagamento europeia, apenas e só, de acordo com as alegações da Requerente, ora Recorrida, constantes do formulário de injunção europeia.
17. O Juízo Central Cível do Porto reconhece não ter procedido à notificação, à Recorrente, do despacho de 02.06.2023, o que por si só demonstra que se trata apenas de um despacho liminar.
18. O despacho liminar/tabelar, que se limita a ordenar a emissão de injunção de pagamento europeia, não constitui qualquer obstáculo para o Tribunal a quo decidir, não esgotando tampouco o seu poder jurisdicional quanto à matéria da incompetência absoluta.
19. Nos termos do disposto nos Artigos 152.º, n.º 4, 620.º e 630.º, do C.P.C., o despacho que ordena que se emitia injunção de pagamento europeia não é mais do que um despacho de mero expediente destinado a cumprir a ritologia processual sem qualquer alcance de caso julgado formal.
20. O Tribunal a quo ignorou que “Uma declaração de oposição apresentada no prazo fixado deverá pôr termo ao procedimento europeu de injunção de pagamento e implicar a passagem automática da ação para uma forma de processo civil comum” (Cfr. considerando 24 e n.º 1, do Art. 17.º, do Regulamento (CE) n.º 1896/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2006).
21. Olvidou igualmente que a análise liminar prevista no Art. 8.º, do referido Regulamento (CE), destinada a verificar, apenas em face dos elementos constantes do Formulário A, se estão preenchidos os requisitos do requerimento de injunção europeia, designadamente o de competência, é perfunctória, feita em termos genéricos, não constituindo tal análise caso julgado formal que impeça ou deva prevalecer sobre a apreciação concreta que posteriormente seja feita aquando da passagem da injunção para a forma de processo civil comum.
22. Acresce que, no procedimento europeu de injunção de pagamento, “A representação por um advogado ou outro profissional forense não é obrigatória (...) b) Para o requerido, no que diz respeito à declaração de oposição a uma injunção de pagamento europeia”, limitando-se o requerido a “apresentar uma declaração de oposição à injunção de pagamento europeia junto do tribunal de origem, utilizando o formulário normalizado F, constante do Anexo VI, que lhe é entregue juntamente com a injunção de pagamento europeia”, devendo “indicar na declaração de oposição que contesta o crédito em causa, não sendo obrigado a especificar os fundamentos da contestação” (nos termos, respetivamente, dos Artigos 24.º e 16.º, do Regulamento (CE) n.º 1896/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2006).
23. Cumpre referir que o Tribunal de Justiça da União Europeia já declarou, precisamente, quanto ao procedimento europeu de injunção de pagamento, que uma oposição à injunção de pagamento europeia que não contenha uma contestação quanto (à) competência do tribunal do Estado-Membro de origem não inviabiliza que a incompetência possa ser posteriormente invocada e apreciada, mesmo no caso de o requerido ter formulado, eventualmente e na oposição deduzida, alegações sobre o mérito da causa (Acórdão Goldbet Sportwetten, C-144/12, EU:C:2013:393, disponível in eur-lex.europa.eu).
24. Não olvidemos que, em respeito pelo princípio do primado (o qual impõe a prevalência do direito da União sobre o direito nacional e, estando o mesmo internamente plasmado na conjugação dos Artigos 7.º, n.º 6, e 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia constituem fonte de direito imediata, permitindo a uniformidade e a harmonização na aplicação do direito da União no território dos Estados-Membros.
25. Reconhecendo “a fórmula simplificada do requerimento de injunção”, o Tribunal a quo ordenou que se procedesse à notificação da Recorrente “para, em 30 dias, deduzir contestação com a observância das regras processuais da ação comum e com as devidas advertências (a notificação deve cumprir todas as exigências legais aplicáveis à citação” (sublinhado nosso) – Cfr. douto despacho, de 16.10.2023, com a Ref.ª 93237212.
26. Observando “as regras processuais comuns” e cumprindo o estatuído nos Artigos 572.º e 573.º, do C.P.C., a Recorrente deduziu contestação com reconvenção, onde, entre outras, invocou a exceção da incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses, tendo a Recorrida, notificada para o efeito, respondido, na sua réplica, a esta e às restantes exceções invocadas.
27. Resulta, assim, que o Tribunal a quo tramitou o processo como se não tivesse existido qualquer procedimento de injunção europeia de pagamento prévio, certamente por este se encontrar efetivamente findo e estarmos agora perante uma ação de processo comum, que se rege pelas “normas do processo civil comum” e onde as partes apresentaram petição inicial articulada, contestação com reconvenção e réplica.
28. No momento próprio e cumprindo o princípio da concentração da defesa (nos termos do qual o réu deve verter na contestação todos os argumentos defensionais de que disponha), a Recorrente invocou, em sede de contestação, a incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses, devendo, por seu turno, o Tribunal a quo conhecer e decidir a invocada exceção, desde logo aquando da prolação do despacho saneador, não se podendo refugiar num despacho tabelar que se limita a ordenar a emissão de injunção de pagamento europeia.
29. O que não pode agora a Recorrente, surpreendentemente confrontada com o um equivocado despacho saneador que se recusa conhecer a arguida exceção da incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses, ver coartado o direito ao contraditório, a apresentar a sua defesa e a recorrer.
30. Um tal procedimento, além de processualmente desleal, seria violador do princípio constitucional do acesso ao Direito e à Justiça, consagrado no Art. 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, na vertente do direito ao contraditório e ao recurso.
31. Face a tudo quanto supra se expôs, é manifesto que o Tribunal a quo estava obrigado a conhecer da exceção da competência internacional dos Tribunais Portugueses invocada pela Recorrente.
32. Sendo procedente a presente apelação, revogando o segmento decisório do despacho saneador, segundo o qual “a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses (...) já se mostra decidida pelo despacho datado de 2/06/2023, razão pela qual se mostra esgotado o nosso poder jurisdicional. Assim, nada mais há a decidir sobre esta concreta exceção”, estará, face às alegações e prova trazida aos autos pelas partes, esta Veneranda Relação em condição de conhecer a invocada exceção.
33. Resulta da matéria alegada pelas partes e dos documentos juntos com os respetivos articulados que as partes nunca celebraram entre elas contratos de empreitada, mas sim contratos de compra e venda, pelo que a Recorrida se equivocou quanto à qualificação jurídica.
34. Tanto quanto resulta da própria matéria alegada pela Recorrida e dos documentos que esta junta, as partes celebraram contratos mediante os quais a Recorrida transferiu para a Recorrente a propriedade de mercadorias por si fabricadas e comercializadas e, por seu turno, a Recorrente adquiriu esse direito sobre essas mercadorias para as afetar ao seu comércio.
35. Assim, jamais se poderá qualificar a relação jurídica entre as partes como um contrato de empreitada.
36. Nas alegações da Autora e dos documentos que esta junta, não existe qualquer facto que explicite a vontade das partes para além do fornecimento dos bens a troco de um preço e/ou que evidencie se e em que medida a Ré exerceu a orientação e fiscalização do processo de produção dos produtos que adquiriu, pelo que é forçoso concluir que nos encontramos perante um puro contrato de compra e venda, sendo certo que tal conclusão em nada é dificultada por ter sido a vendedora a produzir os bens que depois comercializou ou por se tratar de bens para uma finalidade específica que podem ter sido produzidos diretamente para venda a este cliente determinado na sequência de encomenda deste.
37. Alega a Autora que “tem por objeto o fabrico e comércio de mobiliário” (artigo 1.º, da petição inicial), que “fabricou todo o mobiliário, em conformidade e de acordo com as prévias instruções que lhe foram fornecidas pela Ré, através das respetivas encomendas, designadamente, quanto às características e especificidades dos móveis, quantidades, modelos, medidas e materiais” (artigos 4.º e 5.º, da petição inicial) e que “entregou à Ré, que recebeu e fez seu, todo o mobiliário que fabricou no âmbito dos referidos contratos de empreitada, e que se mostra devidamente descrito nas faturas supra identificadas (docs. nºs 1 a 207), quanto às quantidades, designação e referência de artigo e respetivos preços” (artigo 7.º, da petição inicial) (sublinhados nossos).
38. Quanto aos documentos juntos pela Autora, o documento 1, da petição inicial, esclarece qualquer dúvida que pudesse subsistir quanto ao tipo de contrato, fazendo esta fatura, como as restantes, a seguinte menção: “Vnd intracomunitária isenta iva alínea a do n°1 do art. 14 do RITI”.
39. A transmissão de bens é própria e exclusiva do contrato de compra e venda.
40. Assim e consistindo a empreitada numa prestação de um facto/serviço, a isenção de IVA não se enquadra na alínea a), do n.º 1, do Artigo 14.º, do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 290/92, de 28.12 (RITI), mas sim na alínea c), do n.º 1, do Art. 14.º, do Código do Imposto Sobre o Valor Acrescentado.
41. Ora, a faturação é uma operação unilateral efetuada pela Autora, sem a intervenção da Ré ou de qualquer outra pessoa.
42. Sucede que a força probatória plena da fatura, como documento particular, circunscreve-se aos factos “que forem contrários aos interesses do declarante” (Art. 376.º, n.º 2, do Código Civil), pelo que a Autora confessa expressamente nas faturas, que junta aos autos, que, fazendo menção expressa à alínea a), do n.º 1, do RITI, procedeu a transmissões de bens, logo a efetivos contratos de compra e venda com a Ré.
43. Vir a Autora, agora e porque lhe convém, dizer o contrário consubstancia inclusivamente um manifesto abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
44. Para além destas menções, as faturas referem repetidamente nome de coleções e referências de mobiliário que foram repetidamente fabricadas, não sendo tais coleções criações da Autora, pelo que não representam as peças de mobiliário nenhum quid novi.
45. Estamos efetivamente perante compras e vendas, tendo a Autora aceite a devolução de diversos artigos/móveis (Cfr. resulta, por exemplos, dos documentos 57 e 60; 78 e 84; 77 e 87 juntos com a petição inicial).
46. Veja-se que a própria Autora utiliza nas suas faturas os termos “mercadoria” (doc. 31 e 37) e aceita que o cliente desista “do artigo” (Cfr. doc. 36), nunca utilizando o termo obra.
47. Destes elementos podemos concluir que o mobiliário em causa se afasta “do conceito de obra-nova-para-alguém que caracteriza o objeto da empreitada, do domínio manufatureiro” (Cfr. Ac. do STJ supracitado), ainda que a tais artigos tivessem sido feitos ajustes, designadamente quanto aos materiais, medidas e acabamentos, nem por isso tais alterações consubstanciariam modificações substanciais suscetíveis de configurar um quid novi.
48. Acresce que a Autora não alega tampouco que a Ré tenha tido qualquer poder de fiscalização no processo de produção dos produtos que encomendou à Autora.
49. A Autora reconhece, no documento 1 junto com a Contestação, que a relação entre as partes se baseia no regime da compra e venda, fazendo expressamente referência a “mercadorias” e a “produtos que lhe foram fornecidos” (e nunca a obras ou a serviços prestados).
50. Como é sabido, o Tribunal não está vinculado à qualificação jurídica dos factos que a si cabe interpretar e aplicar, tal como resulta do previsto no n.º 3, do Artigo 5.º, do CPC, pelo que não está vinculado à qualificação da relação entre as partes como contrato de empreitada levado a cabo pela Autora.
51. Assim e face a todo o supra exposto, não subsistem dúvida(s) que estamos efetivamente perante contratos de compra e venda e não perante contratos de empreitada (prestações de facto).
52. Resulta dos presentes autos que, segundo a Autora, esta “entregou à Ré, que recebeu e fez seu, todo o mobiliário” (Cfr. artigo 7 da petição inicial), o que preenche a previsão da primeira parte da alínea b), do n.º 1, do Art. 7.º, do Regulamento (UE) n. 1215/2012, de 12 de Dezembro.
53. Para além desta alegação por parte da Autora, esta corrobora tal afirmação com as faturas que junta com a petição inicial: “Descarga: ...”; “Descarga: ...” – morada da Ré; Matrículas portuguesas: “..-..-VF” (docs. 5, 6, 7, 10, 11, a 13, 17, 24 e 53); “..-EH-..” (docs. 14, 15 e 25) e “..-BL-..” (doc. 106), sendo que a Ré não é proprietária de qualquer veículo com matrícula portuguesa; Praticamente todas as faturas fazem menção à existência de guia de transporte, o que comprova que as faturas não acompanharam o transporte, pelo que não terá sido a Ré a proceder ao transporte dos móveis.
54. A Autora não contesta que foi a responsável pelo transporte e que entregou os móveis à Ré, nas instalações desta em França, facto este que a Recorrida não impugnou.
55. Assim e sobre o local onde os bens vendidos foram entregues, logo sobre “o lugar de cumprimento da obrigação”, não existe qualquer discordância entre as partes, antes pelo contrário, ambos estão de acordo sobre o facto de a entrega dos bens ter ocorrido em França, resultando tal da própria petição inicial e das faturas juntas pela Autora.
56. Por conseguinte e nos termos dos Arts. 4.º, 5.º e 7.º, n.º 1 al. a) e b) 1.ª parte, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro, o Juízo Central Cível de Penafiel não é competente para julgar os presentes autos.
57. Sem prescindir e na hipótese desta Veneranda Relação considerar que as partes celebraram contratos de empreitada, o que a Recorrente expressamente não concebe, sempre será de chamar à colação o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.04.2016, Processo 27630/13.8YIPRT-A.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
58. A incompetência absoluta decorrente da violação das regras de competência internacional é, nos termos do Art. 96.º, al. a), do CPC), uma exceção dilatória que o Tribunal aprecia oficiosamente, devendo abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância, conforme o disposto no Art. 278.º 1, al. a), do CPC.
59. Assim e face a todo o supra exposto e considerando que Portugal é Estado-Membro para efeitos do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro, e que França também é Estado-Membro para efeitos do mesmo Regulamento, impõe-se concluir, no modesto entendimento da Recorrente, que os
tribunais internacionalmente competentes para a presente ação são apenas os tribunais franceses.
60. Nestes termos, deve esta Veneranda Relação julgar a presente apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e julgar procedente a incompetência internacional dos Tribunais portugueses para o julgamento da ação e, consequentemente, absolver a Recorrente da instância, nos termos dos Artigos 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2, e 577.º, a), do C.P.C.
61. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto no Artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, nos Artigos 8.º, 12.º, alínea a), 16.º, 17.º, 24.º, do Regulamento (CE) n.º 1896/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2006, e nos Artigos 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), Art. 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2, 577.º, a), 152.º, n.º 4, 620.º e 630.º, 595.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
62. Atento todo o supra exposto, o poder jurisdicional do Tribunal a quo não se esgotou com o despacho de 02.06.2023, porque este despacho é um despacho liminar/tabelar, que se limita a averiguar o preenchimento dos requisitos para a existência de injunção europeia e não para aferir de pressupostos processuais.
63. Esta averiguação baseia-se exclusivamente nas alegações da Requerente constantes do formulário de injunção, findando o procedimento de injunção de pagamento europeia com a oposição apresentada pela Requerida.
64. A declaração de oposição põe termo ao procedimento europeu de injunção de pagamento e implica a passagem automática da ação para uma forma de processo civil comum.
65. No momento próprio e cumprindo o princípio da concentração da defesa (nos termos do qual o réu deve verter na contestação todos os argumentos defensionais de que disponha), a Recorrente invocou, em sede de contestação, a incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses, devendo, por seu turno, o Tribunal a quo conhecer e decidir a invocada exceção, desde logo aquando da prolação do despacho saneador, não se podendo refugiar num despacho tabelar que se limita a ordenar a emissão de injunção de pagamento europeia.
66. O Tribunal a quo tinha a obrigação de conhecer a invocada exceção da incompetência, não podendo jamais deixar de decidir com fundamento num despacho tabelar/liminar que ordena, sem contraditório da Requerida, ora Recorrente, a emissão da injunção europeia e que não adquire força de caso julgado formal.
67. Uma vez que, como supra se procurou demonstrar, nada existe nos autos, tanto em termos de facto como de direito, que permita atribuir a competência para julgar a presente ação aos Tribunais Portugueses, a Recorrente entende que se impõe julgar procedente a presente apelação, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses, com as devidas e legais consequências.
Termos em que, atento todo o supra exposto, impõe-se que esta Veneranda Relação conheça e se pronuncie sobre a invocada nulidade, por ausência de pronúncia e de fundamentação, nos termos do disposto no Artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e d) do C.P.C., revogando o despacho proferido e ordenando que o Tribunal a quo se pronuncie sobre a invocada exceção de incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses.
Sem prescindir,
Deve esta Veneranda Relação julgar a presente apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e julgar procedente a incompetência internacional dos Tribunais portugueses para o julgamento da ação e, consequentemente, absolver a Recorrente da instância, nos termos dos Artigos 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2, e 577.º, a), do C.P.C.
ASSIM SE FAZENDO A INTEIRA E ACOSTUMADA JUSTIÇA!

A autora contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
“1 - A Recorrente veio interpor o presente recurso pugnando pela revogação da decisão proferida quanto à competência internacional dos Tribunais portugueses.
2 - Todavia, a douta decisão recorrida não se mostra afetada por qualquer dos vícios que a Recorrente almeja apontar-lhe, mormente, a sua nulidade por omissão de pronúncia, e, também, que a mesma constitua uma decisão-surpresa por não ter sido previamente observado o direito ao contraditório da Recorrente.
3 - A douta decisão recorrida integra uma correta interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso, com total respeito pelo direito ao contraditório da Recorrente, cujo exercício sempre foi, efetiva e oportunamente, facultado, não se afigurando, assim, merecedora de qualquer reparo ou censura.
4 - Já as alegações a que agora se responde, essas sim, assentam em considerações e parâmetros teóricos que são manifestamente inaplicáveis ao caso vertente.
5 - Em primeiro lugar, ao contrário do que pretende e alega a Recorrente, é irrecusável que o despacho de 02/06/2023 proferido pelo Juízo Central Cível do Porto - Juiz 3, não é um despacho liminar/tabelar.
6 - Cabe assim desde já à Recorrida, fornecer e levar ao conhecimento deste Venerando Tribunal ad quem, aquele que foi o rigoroso contexto e enquadramento - factual, jurídico e processual - em que surgiu e foi proferido o referido despacho.
7 - Assim, depois de apresentado o requerimento de injunção de pagamento europeia, pela aqui Recorrida contra a ora Recorrente,
8 - a Mma Juiz do Juízo Central Cível do Porto - Juiz 3, através do despacho com a Refª 448094950 datado de 11/05/2023, depois de analisar e suscitar, oficiosamente, a questão da incompetência internacional dos Tribunais portugueses para conhecer e julgar da presente demanda,
9 - veio a decidir que (sic) “Ora, de acordo com o alegado no requerimento de injunção a requerente, com sede em Portugal, vendeu à requerida, com sede em França, os bens constantes das faturas enumeradas, que a requerida recebeu. Verifica-se, assim, que os tribunais portugueses não têm competência internacional, face ao referido Regulamento(UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro, para o presente procedimento intentado contra a requerida domiciliada noutro estado membro.”
10 - Inconformada com tal decisão, a Recorrida pugnou pela competência internacional dos Tribunais portugueses, tendo, para tanto, invocado perante a Mma Juiz do Juízo Central Cível do Porto - Juiz 3, a pertinente fundamentação, factual e jurídica, que, para melhor e boa compreensão, mostra-se reproduzida na íntegra nas alegações supra, para as quais se remete por economia processual.
11 - Nessa sequência, sucedeu que, a Mma Juiz do Juízo Central Cível do Porto - Juiz 3, através do referido despacho com a Refª 448989630 datado de 02/06/2023, depois de se ter debruçado e analisado toda a supra exposta fundamentação, de facto e de Direito, aduzida pela Recorrida, a pugnar pela competência internacional dos Tribunais portugueses,
12 - emitiu, então, um juízo concreto sobre a questão,
13 - ou seja, decidiu, em concreto, pela afirmativa, a questão da competência internacional dos Tribunais portugueses, enquanto pressuposto processual, para conhecer e julgar da presente demanda.
14 - Ninguém poderá recusar, que, o aludido despacho não configura uma mera apreciação liminar.
15 - Não é, de todo, um despacho liminar/tabelar, que, em termos genéricos e perfunctórios, se tenha limitado a ordenar a emissão de injunção de pagamento europeia, como pretende a Recorrente, ainda que sem a menor consistência jurídica.
16 - Toda a qualificação, única que lhe convém, feita pela Recorrente do despacho de 02/06/2023 do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3, falece, por não reunir, tão pouco, a mínima consistência e sustentabilidade jurídica.
17 - Em sentido inverso, afirma a Recorrida uma vez mais, desta feita através da presente Resposta, que, o despacho de 02/06/2023 do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3, constituiu e formou, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 620º do CPC, caso julgado formal sobre a questão da competência internacional dos Tribunais portugueses.
18 - Em consequência do assim constituído e formado caso julgado formal, não podia nem devia ter sido outra a decisão do Tribunal a quo, relativamente à incompetência internacional dos Tribunais portugueses, arguida na contestação.
19 - Aliás, assim é, não só por uma, mas, por duas ordens de razões:
1- porque tal questão, já se mostrava decidida pelo despacho datado de 02/06/2023, encontrando-se, assim, esgotado o poder jurisdicional;
2- porque também, contrariamente ao que alega no presente recurso, a Recorrente, mesmo tendo sido, conforme foi, notificada pelo Tribunal a quo do despacho com a Refª 95635730 datado de 17/06/2024, para exercer o contraditório e pronunciar-se sobre as contra exceções invocadas no articulado de Réplica, onde aí avulta, desde logo, entre os artigos 1º e 8º, toda a matéria em que assenta a expressa e inegável contra exceção do caso julgado formal – repita-se, constituído e formado pelo despacho com a Refª 448989630 datado de 02/06/2023, que se debruçou, analisou, e, através do qual, foi decidida, em concreto, pela afirmativa, a questão da competência internacional dos Tribunais portugueses, suscitada oficiosamente pelo próprio Tribunal – oposta à exceção da incompetência internacional dos Tribunais portugueses arguida na contestação, certo é que, a Recorrente, a esse concreto respeito, optou por ficar em absoluto silêncio, nada tendo dito!
20 - Portanto, para que fique bem claro, é completamente falso que tenha ocorrido qualquer procedimento processualmente desleal e violador do direito ao contraditório da Recorrente.
21 - Com clareza cristalina, repita-se, a Recorrente foi notificada pelo Tribunal a quo do despacho com a Refª 95635730 datado de 17/06/2024, para exercer o contraditório e pronunciar-se sobre as contra exceções invocadas no articulado de Réplica, entre as quais figura, antes de qualquer outra, a do caso julgado formal.
22 - No entanto, a verdade é que, a Recorrente optou por ficar em absoluto silêncio, nada tendo dito quanto à contra exceção do caso julgado formal, que, havia sido oposta à exceção da incompetência internacional dos Tribunais portugueses, arguida na contestação.
23 - Portanto, como se deixa demonstrado, o despacho de 02/06/2023 do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3, em que se consubstancia o caso julgado formal, foi debatido nos autos entre as partes.
24 - Ou, no limite, se se vier a considerar que o mesmo não foi debatido entre as partes, então, tal ficou a dever-se, exclusivamente, à opção e escolha processual da Recorrente,
25 - que, ao contrário do que falsamente alega, tendo, pelo menos, em 17/06/2024, tomado efetivo conhecimento do mesmo e de toda a matéria, de facto e de Direito, que lhe subjaz,
26 - a Recorrente ficou em absoluto silêncio, nada tendo dito sobre o despacho de 02/06/2023 do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3!
27 - É certo que, nessa matéria, regem os princípios do dispositivo, da autorresponsabilidade das partes e da preclusão de direitos processuais.
28 - Agora, o que já não é aceitável e ultrapassa os limites da litigância em juízo, roçando mesmo a litigância de má-fé, é a Recorrente vir alegar em sede recursiva, que foi confrontada com uma decisão surpresa, que coartou o seu direito ao contraditório e defesa.
Seja como for, e noutra perspetiva!
29 - Sempre se dirá que, a Recorrente apercebeu-se ou pôde aperceber-se da alegada falta de notificação do despacho de 02/06/2023 do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3, pelo menos, quando foi notificada da Réplica, em 28/05/2024,
30 - onde tal despacho foi aí expressamente mencionado (cfr. arts 1º a 8º da Réplica) como constituindo e formando caso julgado formal sobre a questão da competência internacional dos Tribunais portugueses,
31 - bem como, também, quando foi notificada do despacho com a Refª 95635730 de 17/06/2024.
32 - Ora, depois de notificada nesses dois momentos (28/05/2024 e 17/06/2024), a verdade é que, a Recorrente nada arguiu ou requereu!!
33 - Em todo o caso, a eventual omissão (falta de notificação do despacho de 02/06/2023 do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3), só agora e pela primeira vez apontada pela Recorrente, poderá constituir uma nulidade processual, prevista no artigo 195º do CPC,
34 - sendo certo que, uma tal nulidade, nos termos dos artigos 197º, nº 1, 199º, nº 1 e 200º, nº 3 do CPC, deveria ter sido invocada pela aqui Recorrente no prazo de 10 dias após a intervenção em algum ato praticado no processo, mediante reclamação perante o Tribunal que a cometeu,
35 - e, caso a Recorrente não se conformasse com a decisão proferida sobre o requerimento de arguição de nulidade, desta caberia recurso, nos termos gerais (artigo 630º, nº 2 do CPC).
36 - Ora, é inexorável e cabe salientar, que, a Recorrente nunca apresentou qualquer reclamação ou recurso, por eventual nulidade processual decorrente da falta de notificação do despacho de 02/06/2023 do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3.
37 - Desta forma, tal eventual nulidade processual, está, há muito, definitivamente sanada.
38 - Caso julgado formal, é o caso resolvido por uma decisão judicial de forma, que já não admite recurso ordinário ou reclamação.
39 - É, pois, exatamente, o que se verifica ocorrer, com o despacho de 02/06/2023 do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3, que, depois de se ter debruçado e apreciado toda a supra exposta fundamentação de facto e de Direito aduzida pela Recorrida, a pugnar pela competência internacional dos Tribunais portugueses,
40 - emitiu um juízo concreto sobre a questão,
41 - que não, em termos genéricos, perfunctório, liminar ou tabelar,
42 - e decidiu, em concreto, pela afirmativa, a questão da competência internacional dos Tribunais portugueses, enquanto pressuposto processual, para conhecer e julgar da presente demanda.
43 - Como tal, constituiu e formou, para os efeitos do disposto no art. 620º do CPC, caso julgado formal, que, também aqui, uma vez mais, se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
Sem prescindir,
44 - A invocada incompetência internacional do Juízo Central Cível de Penafiel para conhecer e julgar os presentes autos, assenta, claramente, na estratégia de total tábua rasa, feita pela Recorrente, dos factos jurídicos devidamente alegados e oferecidos pela Recorrida que constituem a causa de pedir, e fundamentam o pedido deduzido.
45 - Só realmente assim, com um tal enquadramento e contexto, é que a Recorrente pôde fazer uma qualificação jurídica dos negócios celebrados entre as partes, como contratos de compra e venda,
46 - visando alcançar dessa forma, ilegítima e ilegal, benefícios e vantagens que não lhe são devidos.
47 - A Recorrida dedica-se ao fabrico de mobiliário, como tal, não vende móveis a retalho, pelo que, não celebrou com a Recorrente quaisquer contratos de compra e venda de mobiliário.
48 - Note-se que, todo o mobiliário fabricado pela Recorrida, não foi fabricado por sua própria iniciativa, mas, antes sim, porque lhe foi encomendado pela Recorrente.
49 - Os contratos celebrados entre a Recorrida e a Recorrente foram de uma verdadeira prestação de serviços, em que foram recebidas encomendas para fabrico de mobiliário de madeira na fábrica da Recorrida, que se situa em Portugal,
50 - ou seja, a Recorrida obrigou-se a realizar várias obras – consubstanciadas no fabrico de mobiliário de madeira – em conformidade e de acordo com as prévias instruções quanto às características, especificidades, quantidades, modelos, medidas e materiais de todo o mobiliário a fabricar, que lhe foram fornecidas pela Recorrente.
51 - Os contratos em causa nos presentes autos são contratos de empreitada, tal como previsto e regulado no artigo 1207º e seguintes do Código Civil, uma vez que, repete-se, no âmbito dos mesmos, a Recorrente incumbiu a Recorrida do fabrico de mobiliário de madeira, ou seja, incumbiu a Recorrida da realização de várias obras.
52 - Conforme estabelece o art. 1155º do Código Civil, o contrato de empreitada, assim como o contrato de mandato e de depósito, consubstancia uma das modalidades nominadas e tipificadas do contrato de prestação de serviços.
53 - No caso concreto, é inequívoco que estamos perante contratos de empreitada para fabrico de mobiliário de madeira, uma vez que, reitera-se, a Recorrida na relação que estabeleceu com a Recorrente, obrigou-se a fabricar mobiliário de madeira,
54 - conforme efetivamente fabricou, na sua fábrica sita em Paredes, Portugal,
55 - segundo as instruções fornecidas pela Recorrente, que, por sua vez, se obrigou a pagar-lhe uma retribuição pelo resultado do seu trabalho manual.
56 - Portanto, a rigorosa e correta qualificação jurídica dos negócios celebrados entre as partes, é, efetivamente, como contratos de empreitada,
57 - sendo certo que, a inerente factualidade jurídico-material em que se consubstanciam e integram esses contratos de empreitada, está devida e oportunamente alegada nos autos.
58 - Desde logo, no requerimento de injunção (cfr. artigos 1º a 8º), como também na petição inicial apresentada após convite do douto Tribunal a quo (cfr. artigos 1º a 11º)
59 - factualidade jurídico-material essa, que se encontra aí bem expressa e cuja reiteração aqui se revela despicienda, mas para cujo teor se remete e se considera reproduzida.
60 - Ademais, acresce que por configurar prova cristalina e esmagadora de que a Recorrente enviava à Recorrida as encomendas no âmbito dos contratos de empreitada de execução e fabrico de todo o mobiliário,
61 - em conformidade e de acordo com as prévias instruções fornecidas pela própria Recorrente à Recorrida,
62 - designadamente, quanto às características, especificidades, quantidades, modelos, medidas e materiais de todo o mobiliário a fabricar,
63 - foram, a título meramente exemplificativo, juntos com a Réplica os docs. nºs 1 a 15, considerando-se o seu conteúdo integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais.
64 - É em função do thema decidendum representado na ação pela Recorrida, que deve ser aferida a competência internacional do Juízo Central Cível de Penafiel.
65 - A competência internacional do Tribunal afere-se em função do objeto processual que foi configurado nos autos pela Recorrida na sua petição inicial,
66 - isto é, a competência deve analisar-se no confronto entre o respetivo pedido e a causa de pedir, tal como são representados pela Recorrida no articulado inicial.
67 - Daqui resulta, que a questão da competência internacional terá que ser apreciada de modo independente ao que vier a ser o mérito da ação.
68 - Assim, para conhecer e julgar o litígio dos autos, emergente dos contratos de empreitada celebrados entre Recorrida e Recorrente, é internacionalmente competente o Juízo Central Cível de Penafiel, porquanto, é o Tribunal do Estado onde se situa o local em que o serviço foi prestado, ou seja, o local do fabrico do mobiliário, que foi Portugal.
69 - Em caso de dúvida sobre o âmbito dessa prestação deve atender-se à versão da realidade alegada pelo autor, porque estamos perante um pressuposto processual.
Nestes termos:
Deve ser negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente, mantendo-se inalterada a Douta Decisão aqui em crise, fazendo-se, assim, inteira JUSTIÇA!”
* * *
2. Questões a apreciar e decidir:

Em atenção à delimitação constante das conclusões das alegações da recorrente – que fixam o thema decidendum deste recurso [arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 als. a) a c) do CPC] –, as questões a apreciar e decidir consistem em saber:
- Se a decisão recorrida padece da nulidade prevista nas als. b) e d) do nº 1 do art. 615º do CPC;
- Se o despacho datado de 02.06.2023, proferido no JCCível do Porto, adquiriu força de caso julgado impeditivo da apreciação e decisão, no despacho saneador, da exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses, arguida pela ora recorrente na contestação da ação;
- Se os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecerem e decidirem a presente ação.
* * *
3. Apreciação jurídica:

3.1. A decisão recorrida padece da nulidade prevista nas als. b) e d) do nº 1 do art. 615º do CPC?
A recorrente começa por arguir a nulidade do despacho recorrido, por entender que o mesmo padece de falta de fundamentação de direito e, bem assim, de omissão de pronúncia quanto à exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses, que havia invocado na contestação-reconvenção.
Dispõe o art. 615º do CPC que:
“1 - É nula a sentença quando:
a) (…);
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) (…);
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) (…)” .
Sem curar de saber [por ser questão meramente académica, sem relevância para a solução do recurso] se nos casos das als. b) a e) estamos perante verdadeiras nulidades de sentença ou se apenas face a situações geradoras de anulabilidade [no caso da al. a), que aqui não está em questão, há unanimidade de que se trata de verdadeira nulidade], importa começar por dizer que a deficiência da al. b) diz respeito à estrutura da sentença, ao passo que a da al. d) se reporta aos limites da sentença, por omissão ou excesso de pronúncia.
Estas nulidades são extensivas aos despachos [que não sejam de mero expediente] ex vi do estabelecido no nº 3 do art. 613º do mesmo corpo de normas, segundo o qual “O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações, aos despachos”.
Antes de mais, importa referir que as nulidades de decisão não se confundem com os erros de julgamento. As primeiras [errores in procedendo] são vícios de formação ou atividade, referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, ou seja, são vícios que afetam a regularidade do silogismo judiciário nela plasmado. Já os segundos [errores in iudicando] ocorrem quando existe errada valoração da prova produzida, errada qualificação jurídica da factualidade provada ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis seja em matéria de facto seja em matéria de direito.
Quanto à nulidade prevista na al. b), vem de longe o entendimento – que perfilhamos – de que só existe nulidade de decisão quando nesta falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito [falta absoluta de fundamentação] e não já quando uns e/ou os outros sejam meramente deficientes [cfr., Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimb. Edit., 1984, pg. 140, segundo o qual “O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade”; Antunes Varela, José Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, Coimb. Edit., 1985, pg. 687, referem que “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito” e Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimb. Edit., 2001, pg. 669, para os quais “Há nulidade (no sentido lato de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão”], embora recentemente venha tentando fazer caminho uma outra tese, mais ampla [mas, claramente, muito minoritária], que equipara à falta absoluta de fundamentação a mera fundamentação insuficiente, com o argumento de que “no atual quadro constitucional (art. 205, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, (…), de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das (respetivas) razões de facto e de direito (…), deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do ato decisório” [neste sentido mais amplo, Acórdão da Relação do Porto de 08.09.2020 (proc. 15756/17.5T8PRT-A.P1) e Acórdão do STJ de 02.03.2011 (proc. 161/05.2TBPRD.P1.S1), disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp e jstj, respetivamente].
No caso do despacho recorrido, não se vislumbra falta de fundamentação. Embora com fundamentação [muito] sintética, dele consta o motivo da decisão: assentando – bem ou mal, veremos adiante – que o despacho datado de 02.06.2023 havia formado caso julgado nos autos, a decisão recorrida recusou o conhecimento da apontada exceção dilatória de incompetência absoluta, por considerar “esgotado o nosso poder jurisdicional”. Significa isto que tal decisão, embora de forma sintética, está fundamentada.
Pode é o raciocínio inicial – existência de caso julgado relativamente à dita exceção – estar errado, por o Julgador a quo ter feito uma incorreta interpretação do alcance do despacho de 02.06.2023 e das normas que definem a figura do caso julgado e os respetivos pressupostos.
Mas aí já não estamos perante o invocado vício de nulidade por falta de fundamentação, mas sim face a um erro de julgamento.
Tanto basta para afastar a existência da nulidade prevista na al. b) do nº 1 do referido art. 615º.
Na al. d) exige-se que o juiz tenha deixado de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar [omissão de pronúncia] ou tenha conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento [excesso de pronúncia].
O juiz, na sentença, deve “conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer”, pois, não o fazendo e não estando o conhecimento de algum deles prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, incorre na nulidade prevista na aludida alínea; e, como contraponto, não pode “conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções na exclusiva disponibilidade das partes (…)”, sendo, em ambas as situações, “nula a sentença em que o faça” [assim, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pg. 670, anotação ao antigo art. 668º do CPC, cuja al. d) do nº 1 era, em tudo, igual à al. d) do nº 1 do atual art. 615º].
Na 1ª parte desta alínea, a omissão de pronúncia tem de ser total/absoluta, pois se a questão é conhecida/apreciada pelo juiz, ainda que incorretamente, não haverá omissão, mas sim um conhecimento deficiente/errado da questão, que se situa já fora da problemática das nulidades de decisão.
Ora, in casu não houve omissão total de conhecimento da mencionada exceção dilatória, pois o tribunal a quo a ela se referiu expressamente no despacho recorrido. O que aconteceu, repete-se, foi que, por ter entendido que tal questão já havia sido decidida no despacho de 02.06.2023 e que este tinha transitado em julgado, considerou esgotado o poder de se pronunciar, novamente, sobre a mesma, por força do caso julgado formado no processo [embora sem indicar expressamente esta figura jurídica, foi a ela que, necessariamente, se reportou].
Se «andou» bem ou mal ao assim ter decidido é questão que não diz já respeito às nulidades de decisão do art. 615º do CPC, mas antes a eventual erro de julgamento que, a proceder, ditará a revogação/alteração do despacho recorrido. Mas esta é discussão para o ponto seguinte.
Improcede, assim, o recurso, no segmento a que se reportam as conclusões 1. a 13. das alegações da apelante.
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3.2. O despacho de 02.06.2023, proferido no JCCível do Porto, adquiriu força de caso julgado impeditivo da apreciação e decisão, no despacho saneador, da exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses, arguida pela recorrente na contestação da ação?
Comecemos por enquadrar o contexto em que o despacho ora em apreço foi proferido.
Estava em causa uma injunção de pagamento europeia que se rege pelas disposições do Regulamento (CE) nº 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12.12.2006 e do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12.12.2012 [aquele Regulamento remete, em vários preceitos, nomeadamente, no que concerne à competência judiciária, no seu art. 6º nºs 1 e 2, para o Regulamento (CE) nº 44/2001, Regulamento que, contudo, se mostra revogado pelo art. 80º do Regulamento (UE) nº 1215/2012, que estatui que “O presente regulamento revoga o Regulamento (CE) n.º 44/2001. As referências ao regulamento revogado devem entender-se como sendo feitas para o presente regulamento, e devem ser lidas de acordo com o quadro de correspondência constante do Anexo III”].
Quanto aos objetivos e à tramitação de tal injunção, podemos, resumidamente, apresentá-los nos seguintes termos:
- “O Regulamento (CE) n.º 1896/2006 teve por objetivo simplificar, acelerar e reduzir os custos dos processos judiciais em casos transfronteiriços de créditos pecuniários não contestados, através da criação de um procedimento europeu de injunção de pagamento, e permitir a livre circulação das injunções de pagamento europeias em todos os Estados-Membros, sendo aplicável em matéria civil e comercial [ponto 9 do respetivo preâmbulo].
- A injunção de pagamento europeia assume uma forma processual com especificidades próprias, que a diferenciam do procedimento português de injunção e da ação declarativa subsequente”.
- O requerimento da injunção deve ser apresentado no formulário normalizado A, constante do Anexo I e deve incluir: a) Os nomes e endereços das partes e, se for caso disso, dos seus representantes, bem como do tribunal a que é apresentado; b) O montante do crédito, incluindo o crédito principal e, se for caso disso, os juros, as sanções contratuais e os custos; c) Se forem reclamados juros sobre o crédito, a taxa de juro e o período em relação ao qual os juros são reclamados, salvo se o capital for automaticamente acrescido de juros legais por força da legislação do Estado-Membro de origem; d) A causa de pedir, incluindo uma descrição das circunstâncias invocadas como fundamento do crédito e, se necessário, dos juros reclamados; e) Uma descrição das provas que sustentam o pedido; f) O fundamento da competência judiciária; e g) O carácter transfronteiriço do caso, na aceção do artigo 3.º - art. 7º nºs 1 e 2 do Regulamento (CE) 1897/2006.
- Segue-se a análise do requerimento, devendo o tribunal analisar sumariamente, com base no mesmo, se estão preenchidos os requisitos estabelecidos nos arts. 2º, 3º, 4º, 6º e 7º [ou seja, se está em causa matéria de natureza civil ou comercial, se se trata de caso transfronteiriço entre dois Estados membros da UE, se estão em questão créditos pecuniários líquidos exigíveis na data em que o requerimento foi apresentado, se o tribunal é internacionalmente competente e se o requerimento obedece às exigências de forma e de conteúdo fixadas] e se o pedido parece fundamentado – art. 8º –, podendo o requerente ser convidado a completá-lo ou retifica-lo – art. 9º, ambos do mesmo Regulamento.
- O requerimento pode ser recusado se: a) Não estiverem preenchidos os requisitos estabelecidos nos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 6.º e 7.º; b) O pedido for manifestamente infundado; c) O requerente não enviar a sua resposta no prazo fixado pelo tribunal nos termos do n.º 2 do artigo 9.º; ou d) O requerente não enviar a sua resposta no prazo fixado pelo tribunal ou recusar a proposta deste, nos termos do artigo 10.º, não sendo tal recusa passível de recurso - art. 11º nºs 1 als. a) a d) e 2 do referido Regulamento.
- Sendo o requerimento recebido, “De acordo com o art. 12.º, n.º 3, do Regulamento n.º 1896/2006, o requerido é avisado de que pode optar entre pagar ao requerente o montante indicado na injunção ou deduzir oposição à injunção de pagamento mediante a apresentação de uma declaração de oposição.
- Se não for oferecida oposição, a injunção de pagamento europeia adquire força executiva no Estado-Membro de origem e é reconhecida e executada nos outros Estados-Membros sem que seja necessária uma declaração de executoriedade e sem que seja possível contestar o seu reconhecimento (arts. 18.º, n.º 1, e 19.º do Regulamento n.º 1896/2006).
- Se, ao invés, o requerido deduzir oposição, os únicos efeitos que desse facto advêm traduzem-se no termo dessa injunção de pagamento e na passagem automática do litígio para processo civil comum, a menos que o requerente tenha expressamente solicitado que se ponha termo ao processo (cf. art. 17.º, n.º 1, do Regulamento e considerando 24 do mesmo).
- Resulta do art. 16.º, n.º 3, do Regulamento, que o requerido, devendo indicar, na declaração de oposição, que contesta o crédito em causa, porém, não é obrigado a especificar os fundamentos da contestação.
- A oposição à injunção de pagamento europeia não ocorre no quadro do processo civil comum, não corporiza uma oposição fundamentada, mas tão só uma oposição formal, uma mera negação do direito invocado pelo requerente no seu formulário inicial, de modo que não se destina a servir de enquadramento a uma defesa de mérito, mas apenas a permitir ao requerido contestar o crédito desse modo obviando à imediata obtenção de título executivo pelo requerente, relegando a apreciação do mérito para a ação comum que se seguirá” [consigna-se que os segmentos em itálico foram extraídos do Acórdão do STJ de 14.10.2014, proc. 147/13.3TVPRT-A.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, que, pela sua clarividência, aqui transcrevemos].
O despacho de 02.06.2023, para que remete o despacho recorrido, foi proferido ao abrigo do art. 8º do Regulamento (CE) nº 1896/2006, que prevê apenas uma apreciação prima facie do mérito do pedido e da competência internacional do tribunal – cfr. ponto 16 do respetivo preâmbulo.
Ora, lendo esse despacho, o que temos é que o tribunal [então o Juiz 3 do JCCível do Porto], reconsiderando entendimento perfilhado anteriormente [no despacho de 11.05.2023], reconhece o “manifesto lapso” em que incorrera, por não ter tido “em consideração que a requerente indicou que o crédito invocado emerge de contrato de empreitada (e não compra e venda), sendo o local de fabrico do mobiliário fornecido Portugal” e reforma a decisão de 11.05.2023, substituindo-a por outra [o despacho de 02.06.2023] em que determinou que se emitisse “injunção de pagamento europeia (…)” e que se procedesse à citação da requerida “nos termos previstos no Regulamento (CE) nº 1393/2007 (…)”.
Em parte alguma do mesmo se declara expressamente [nem mesmo em termos genéricos ou conclusivos] que os tribunais portugueses – e concretamente aquele Juízo Central Cível do Porto, onde a injunção foi proposta – são internacionalmente competentes para conhecerem e decidirem aquele procedimento. Limitou-se tão-só a apreciar [melhor, a reapreciar, face ao anterior despacho] prima facie [perfunctoriamente] se o pedido era viável/fundado e se nada obstava à citação da requerida para os efeitos previstos do citado Regulamento.
Só chamando à colação o despacho de 11.05.2023, que havia recusado o requerimento de injunção de pagamento europeia por ter entendido que nele estavam em causa dívidas decorrentes de contratos de compra e venda com entrega em França, situação que implicava que “os tribunais portugueses não têm competência internacional, face ao referido Regulamento(UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro, para o presente procedimento intentado contra a requerida domiciliada noutro estado membro”, é que se vislumbra que, subjacente ao despacho de 02.06.2023, esteve também a aceitação da competência internacional dos tribunais portugueses [que antes tinha sido rejeitada].
O despacho de 11.05.2023, que conheceu, direta e expressamente, da questão [exceção dilatória] da competência internacional dos tribunais portugueses, poderia, em princípio, se não tivesse sido dado sem efeito e substituído pelo de 02.06.2023, ter formado caso julgado formal [não já caso julgado material, por recair unicamente sobre questão/relação processual – nº 1 do art. 620º do CPC], mas, necessariamente, limitado ao procedimento de injunção e não já quanto à ação subsequente [decorrente da oposição ali deduzida pela requerida]… mas, ainda assim, no sentido da incompetência internacional, que foi o que nele se decidiu.
Mas quanto ao despacho de 02.06.2023, que não contém, como se disse, nenhuma referência [expressa] à questão da competência internacional [nem mesmo em termos genéricos, sendo certo que as proclamações genéricas sobre pressupostos processuais não dão azo à formação de caso julgado, como unanimemente sustentam doutrina e jurisprudência] e se limitou a dar sem efeito o anterior despacho e a mandar citar a ré, é que não pode entender-se, contrariamente ao que fez o despacho recorrido, que tenha decidido definitivamente [quer para o procedimento de injunção, quer para esta ação, resultante da oposição da requerida ali apresentada] tal exceção dilatória e que esteja vedado às partes [mais concretamente à ré] discuti-la na ação, por força da existência de caso julgado decorrente daquele despacho.
Mal andaria a lei [no caso, o indicado Regulamento], por se tratar de inadmissível cerceamento de direitos processuais, se permitisse que, em consequência de uma análise liminar, perfunctória, de um determinado pressuposto processual, levada a cabo no âmbito do procedimento de injunção de pagamento europeia [por natureza simples, célere e sem grandes formalismos processuais], para mais, como no caso, sem intervenção de uma das partes e sem discussão sobre o mesmo [a requerida ainda não tinha sido citada para o procedimento de injunção, estando-se, ainda, então, na fase liminar], ficassem estas, mais concretamente a que teria legitimidade para a arguir [no caso, a requerida], impedidas de, na ação subsequente [após o «terminus» do procedimento de injunção por oposição do/a requerido/a], invocarem a respetiva exceção dilatória e a verem devidamente/fundamentadamente apreciada pelo tribunal.
Por ser assim é que no Acórdão da Relação do Porto [e desta Secção] de 08.10.2019 [proc. 8992/19.0T8PRT.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp] – que apreciou recurso interposto de despacho que ordenou o arquivamento do procedimento de injunção de pagamento europeia depois de o tribunal ter declarado expressamente, por despacho, que os tribunais portugueses eram, no caso, internacionalmente incompetentes para a tramitação daquele – se decidiu que “resulta para nós evidente que a análise liminar que a lei manda fazer do formulário do requerimento do procedimento de injunção europeia é fundada nas indicações aí colocadas pelo requerente, não envolvendo qualquer decisão e, muito menos concreta, sobre a competência ou outros pressupostos processuais, podendo tudo vir a ser posto em causa e posteriormente objecto de apuramento e decisão pela via da dedução de oposição do requerido. (…) entendemos que no momento de análise de formulário do requerimento do procedimento de injunção europeia é absolutamente extemporânea qualquer decisão concreta sobre os pressupostos processuais de uma futura ação, caso ela venha a existir, sendo que relativamente ao requerimento a lei basta-se com o que é no formulário declarado pelo requerente”.
Temos, por conseguinte, como evidente que o despacho de 02.06.2023 não formou caso julgado relativamente à competência internacional dos tribunais portugueses, pelo que não se “mostra(va) esgotado” o poder jurisdicional do tribunal a quo para apreciar a inerente exceção invocada pela ré na contestação.

Aliás, mesmo que o entendimento que se deixa expresso não pudesse ser acolhido, ainda assim não poderia sustentar-se que o despacho de 02.06.2023 tenha transitado em julgado relativamente à recorrente e constitua caso julgado impeditivo do conhecimento da exceção de incompetência internacional arguida na contestação-reconvenção.
Isto porque a recorrente nunca foi notificada de tal despacho.
Não o foi quando foi citada para os termos da injunção e para, querendo, deduzir oposição – arts. 12º e 16º do Regulamento (CE) nº 1896/2006 [cfr. certificado Citius de 02.06.2023, referência 449132429].
Não o foi quando foi notificada do despacho de 14.09.2023, que pôs termo ao procedimento de injunção de pagamento europeia e mandou prosseguir os autos como ação declarativa com processo comum, tendo-se, ainda aí, ordenado a remessa dos autos ao Juízo Central Cível de Penafiel, por ser o competente em razão do território para a ação [cfr. certificados Citius de 15.09.2023 e 11.10.2023, referências 451738129 e 452631044].
Como, igualmente, não o foi quando foi citada para contestar a ação [cfr. certificados de 14 e 19.12.2023, com as referências 93876043 e 93919316].
Nem o foi, ainda, em qualquer outro momento posterior, incluindo antes ou no início da audiência prévia, em que foi proferido o despacho recorrido [cfr. demais certificados Citius relativos às notificações feitas à ré, constantes do histórico dos atos processuais].
Não tendo a ré-recorrente sido notificada em momento algum do referido despacho, nunca ele poderia, quanto a si, ter transitado em julgado.
E sem trânsito em julgado desse despacho, não havia caso julgado que impedisse o tribunal a quo de conhecer, na ação, na fase do saneamento/condensação, a referida exceção dilatória da incompetência internacional.
Diga-se, ainda, que não colhe a argumentação que a recorrida apresenta, designadamente, nas conclusões 19 e 21 a 32 das suas contra-alegações, na medida em que a invocação, na réplica [arts. 1º a 8º], da contra exceção do caso julgado [formado no despacho de 02.06.2023] não substitui, nem supre, a ausência de notificação do indicado despacho, assim como não obrigava ré a pedir para ser notificada do mesmo ou a ter a iniciativa de consultar o processo para dele tomar conhecimento.
Mal andou, por isso, o tribunal a quo ao ter declarado que a competência internacional dos tribunais portugueses já estava “decidida pelo despacho datado de 2/06/2023” e que, por isso, “se mostra(va) esgotado o nosso poder jurisdicional”.
Daqui resulta que o recurso deve proceder, no segmento a que se reportam as conclusões 14 a 32 das alegações, com a consequente revogação/alteração do despacho recorrido.
Resta, então, em substituição do tribunal a quo, conhecer da aludida exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses, o que faremos no ponto seguinte.
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3.3. Os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecerem/decidirem a ação de que este apenso/recurso é dependência?
A incompetência internacional é um dos casos de incompetência absoluta – art. 96º do CPC.
Pode ser arguida pelas partes ou suscitada oficiosamente pelo tribunal – art. 97º nº 1 do mesmo Código.
Sendo arguida pelas partes antes da fase do saneamento/condensação, pode conhecer-se dela imediatamente ou no despacho saneador – art. 98º.
Quando suscitada oficiosamente pelo tribunal, a incompetência internacional pode ser decidida enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa – art. 97º nº 1, in fine.
A incompetência absoluta é uma exceção dilatória [obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância] – arts. 576º nºs 1 e 2 e 577º al. a) do CPC.
Como ensina J. P. Remédio Marques [in Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª ed., Coimbra Editora, pgs. 268-269], “A competência internacional (dos tribunais portugueses) é a fração do poder jurisdicional atribuída a estes tribunais portugueses, no seu conjunto, relativamente à fração de poder jurisdicional atribuída, por leis nacionais estrangeiras ou tratados ou convenções internacionais, a tribunais estrangeiros sempre que o litígio seja transfronteiriço, isto é, quando apresente elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras (v. g., o contrato foi celebrado nos EUA, mas o réu reside em Portugal). (…) entre nós (…) a competência internacional é determinada independentemente da lei material aplicável à apreciação do objeto do litígio ou mérito da causa. Assim, os tribunais portugueses podem ser internacionalmente competentes ainda quando a causa deva ser apreciada à luz de uma lei estrangeira (lex causae). (…)
Coexistem na nossa ordem jurídica regras de competência internacional direta impostas por fontes normativas supranacionais, de direito comunitário da União Europeia – os regulamentos comunitários –, que determinam a competência internacional direta dos diferentes tribunais nacionais dos Estados-membros.
As regras da competência internacional (direta), que constam desses regulamentos comunitários, valem tanto para os tribunais do foro (isto é, para os tribunais de um Estado-membro onde, em concreto, a ação foi proposta) como para os tribunais de qualquer outro Estado-membro. É o caso do Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22-12-2000 [substituído, como já atrás dissemos, pelo Regulamento (UE) 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012], relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (…).
Diferentemente, as regras que determinam a competência internacional do tribunais portugueses previstas nos artigos 65º e 65º-A do CPC são regras unilaterais, pois só fixam a competência (internacional) dos tribunais portugueses; um tribunal estrangeiro nunca se pode sentir condicionado no exercício da sua jurisdição pela existência e validade daquelas regras.
Temos, assim, que conciliar, perante cada caso concreto, o âmbito de aplicação das normas de competência internacional reguladas no CPC português com o âmbito de aplicação das normas de competência internacional direta disciplinadas em qualquer um daqueles regulamentos comunitários”.
A aplicação direta na nossa ordem jurídica das normas dos Regulamentos Comunitários radica no primado do direito da União Europeia sobre as normas de direito interno, tal como o consagra o art. 8º nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.
A competência internacional – tal como a competência em razão da matéria e da hierarquia – é um pressuposto processual e, como tal, tem de ser aferida pela relação jurídica controvertida, tal como é apresentada pelo autor na petição inicial. Trata-se de questão que recolhe unanimidade na doutrina e jurisprudência [por ex., Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pg. 90] defende que para decidir a competência de um tribunal “deve olhar-se aos termos em que foi posta a ação – seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes). A competência do tribunal (…) afere-se pelo «quid disputatum» («quid decidendum», em antítese com aquilo que será mais tarde o «quid decisum»): é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor”; Acórdão do STJ de 06.07.2022 (proc. 24974/19.9T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj) que decidiu que “A competência internacional dos Tribunais Portugueses afere-se pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida”; idem Acórdão do STJ de 08.06.2021 (proc. 20526/18.9T8LSB.L1.S1, mesmo sítio do IGFEJ) e Acórdão da Relação de Guimarães de 20.02.2020 (proc. 76266/17.1YIPRT.G1, in www.dgsi.pt/jtre) que decidiu que “A exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica controvertida que lhes é submetida pelo Autor a julgamento, tem de ser aferida pela relação jurídica delineada subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) pelo Autor na petição inicial”.
Não há, por conseguinte, dúvidas de que in casu – em que está em questão o Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012 – a exceção dilatória da incompetência internacional arguida pela ré na contestação-reconvenção tem de ser aferida com base na relação jurídica relatada pela autora na petição inicial da ação, quer por referência aos respetivos sujeitos e seus domicílios, quer tendo em conta a causa de pedir e o pedido ali formulados.
Tal Regulamento regula a competência judiciária, o reconhecimento e a execução de decisões em matéria civil e comercial relativa a litígios em que sejam partes pessoas ou sociedades dos Estados-membros da União Europeia – art. 1º.
De acordo com o seu art. 4º nº 1, que define a regra geral em matéria de competência judiciária, “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro”, acrescentando o art. 5º nº 1 que “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo”.
A propósito desta regra e das exceções admitidas nas secções 2 a 7 do mesmo capítulo II, diz-se nos pontos 15 e 16 do preâmbulo daquele Regulamento que “As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. (…)” e que “O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. (…)”.
Sendo, portanto, a regra a do domicílio do requerido, o Regulamento prevê, no entanto, nas Secções 2 a 7 do mesmo capítulo, exceções a essa regra.
Interessa, para aqui, o que dispõe o art. 7º nº 1, segundo o qual “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:
a)Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b)Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
- no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,
- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;
c)Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)”.
Este preceito diz respeito às relações contratuais e, particularmente, aos contratos de compra e venda e aos contratos de prestação de serviços, sendo certo que o contrato de empreitada é uma subespécie destes últimos.
Em ambos os casos, o artigo começa por fixar como competente “o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”.
Depois, nos dois segmentos da al. b), esclarece que:
- para os litígios relativos a contratos de compra e venda é considerado como lugar do cumprimento da obrigação o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues;
- e para os relativos a contratos de prestação de serviços, entre eles os de empreitada, é considerado como lugar do cumprimento da obrigação o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.
No primeiro caso, são competentes os tribunais do Estado-Membro onde os bens foram ou deviam ser entregues; no segundo, são competentes os tribunais do Estado-Membro onde os serviços foram ou deviam ser prestados.
Isto, claro está, se outra coisa não tiver sido convencionada entre as partes quanto à competência judiciária para a resolução de litígios emergentes dos contratos entre elas celebrados ou a celebrar [pactos atributivos de jurisdição], tal como prevê o art. 25º do Regulamento.
Estamos, assim, chegados ao ponto da discórdia entre as partes:
- a recorrente entende que os contratos em questão, que celebrou com a recorrida, são de compra e venda e que, por isso, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para dirimirem o litígio [sendo, outrossim, na sua ótica, internacionalmente competentes os tribunais franceses];
- a recorrida, pelo contrário, sustenta que os contratos em apreço são de empreitada e que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a resolução do diferendo contratual entre elas.
Antes de atentarmos no que, a tal respeito, consta da petição inicial [já vimos que é em função do que nesta foi alegado e pedido que temos que aferir a competência internacional dos tribunais portugueses], importa por começar por definir e distinguir o contrato de compra e venda do contrato de empreitada, tarefa que não é fácil.
Segundo o Código Civil, a compra e venda “é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço” – 874º -, enquanto a empreitada “é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço” – art. 1207º.
Mais do que procedermos à indicação, ainda que sintética, das características de cada um destes contratos, importa – porque é o que aqui releva – atentar no que os distingue.
É o que passamos a fazer, com recurso ao ensinamento de vários Autores.
Pires de Lima e Antunes Varela [in Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed. rev. e atual., Coimbra Editora, pgs. 788-790] ensinam que “Não é muito fácil distinguir, por vezes, entre a empreitada e a compra e venda, embora sejam contratos com objetos diferentes. Daquela nasce uma obrigação de prestação de facto – a realização da obra –; desta resulta a transferência da propriedade de uma coisa ou de outro direito. A questão levanta-se apenas nos casos em que os materiais são fornecidos pelo empreiteiro, e põe-se, sobretudo, quando o valor dos materiais suplanta o valor do trabalho. (…) Em princípio, no nosso direito, o fornecimento dos materiais necessários à execução da obra não altera a natureza do contrato, como resulta claramente dos artigos 1210º e 1212º, o primeiro dos quais põe mesmo normalmente a cargo do empreiteiro o fornecimento dos materiais e utensílios necessários à execução da obra. O próprio regime destes artigos defere do regime da compra e venda. Assim é que a transferência da propriedade dos materiais dá-se só no momento da entrega da obra ou da incorporação no solo, e não por efeito do contrato, como aconteceria se se tratasse duma compra e venda”. Não obstante, não deixam de alertar que “embora seja este o princípio, não deixam de se levantar problemas em relação a certos negócios que se situam na periferia dos dois contratos, e a solução de tais problemas tem o maior interesse prático, pois são diferentes os dois regimes”.
Pedro Romano Martinez [in Contrato de Empreitada, 1994, Almedina, pgs. 33-38], depois de dar nota de que “À primeira vista os dois contratos apresentam-se como distintos, pois o empreiteiro está adstrito a uma prestação de facto (de facere), enquanto que sobre o vendedor impende uma prestação de coisa (de dare). Por outro lado, a compra e venda é um contrato real «quoad effectum», porque os efeitos reais, translativos da propriedade, se produzem por mero efeito do contrato (artº 408º), ao passo que a empreitada constitui um negócio consensual do qual emergem efeitos obrigacionais”, logo acrescenta que “Mesmo quando o cumprimento de um contrato de empreitada acarreta a transferência da propriedade sobre uma coisa, esta transferência segue regras diferentes das da compra e venda (artºs 1212º e 408º). (…) na compra e venda, a iniciativa e o plano do objeto a executar cabem ao que constrói ou fabrica a coisa, ao passo que o empreiteiro realiza uma obra que lhe é encomendada, devendo executá-la segundo as diretrizes e fiscalização daquele que lha encomendou”. Mas, a dado passo, alerta que “torna-se difícil distinguir a empreitada da compra e venda, principalmente no caso de alguém se obrigar a construir uma coisa com a obrigação de fornecer os materiais necessários à realização dessa obra. O facto de a obrigação de fornecer os materiais impender sobre o empreiteiro não é, só por si, decisiva para caracterizar o contrato como sendo de compra e venda de bens futuros, e perante casos concretos, podem levantar-se dificuldades de qualificação. (…) no direito continental (…) Começou por defender-se a regra «accessorium sequitur principale», nos termos da qual se considerava que o contrato seria de empreitada ou de compra e venda, consoante o elemento predominante”, embora logo adiantasse que nem sempre é fácil determinar o que é predominante e o que é acessório.
E depois de dar conta do modo como a distinção entre os dois tipos contratuais é feita na doutrina italiana e na doutrina germânica [considerando a primeira que existe empreitada, mesmo quando os materiais tenham sido fornecidos pelo empreiteiro, se as partes tiveram predominantemente em conta o trabalho incorporado na obra e que existe compra e venda quando o trabalho assume papel acessório; e defendendo a segunda que, nos casos em que os materiais são fornecidos pelo empreiteiro, há que distinguir se a coisa é fungível ou não fungível, aplicando-se, no primeiro caso, as regras da compra e venda e, no segundo, as da empreitada (ou de ambas), esclarecendo que, “quando alguém se obriga a fornecer um produto que fabrica em série, mesmo que ainda tenha de o contruir, o contrato é de compra e venda”, ao passo que “se (…) uma parte se obriga a fornecer um fato por medida, um móvel conforme desenho e medidas, uma dentadura postiça, o contrato será de fornecimento de obra”, equivalente ao nosso contrato de empreitada], conclui que “no direito português, o contrato pelo qual alguém se obriga a realizar certa obra é, em princípio, uma empreitada, e o fornecimento pelo empreiteiro das matérias necessárias à sua execução não vai, por via de regra, alterar a natureza do contrato. Deve, então, qualificar-se como de empreitada o contrato em que o subministro de material constitui um meio para a realização da obra. Em contrapartida, enquadra-se na noção de compra e venda o contrato mediante o qual alguém se obriga a fornecer um bem fabricado em série ou por encomenda com base em amostra ou catálogo, desde que não haja que proceder a adaptações consideráveis. Mas será, por último, a vontade real dos contraentes que, sobrepondo-se a todos os critérios de distinção, vão determinar o tipo de contrato e o seu regime”.
António Pereira de Almeida [in Direito Privado II (Contrato de Empreitada), 1983, AAFDL, pgs. 14-17] refere “Nem sempre é fácil distinguir estes dois contratos. O problema põe-se sobretudo quando o trabalho tem por objetivo uma coisa nova e os materiais são fornecidos pelo empreiteiro – construção de um navio, feitura de um móvel ou de um fato”. E logo equaciona se “Não estaremos nesses casos perante a venda de um bem futuro?”, respondendo que “O Código Civil Italiano, no art. 2223º, considera que existe «contrato d’oppera», mesmo quando os materiais são fornecidos pelo empreiteiro, desde que as partes não tenham tido predominantemente em consideração a matéria, caso em que se aplicam as normas da venda. Trata-se de um critério demasiado subjetivo, que tem justificação no contrato «d’oppera», em que o trabalho próprio é preponderante, o que o distingue do contrato «d’appalto» (empreitada)”. Por isso, conclui que “O critério do fornecimento dos materiais também não é decisivo, pois estes devem, em princípio, ser fornecidos pelo empreiteiro – art. 1210º. Como critério geral, poderíamos dizer que nos encontramos perante uma compra e venda quando o fabricante trabalha de acordo com os seus próprios planos e por sua iniciativa; na empreitada, ao contrário, o empreiteiro realiza a obra tal e qual lhe é encomendada – a encomenda de um navio a construir segundo planos do fabricante é uma compra e venda, mas se os planos forem do comitente é uma empreitada”.
Armando Braga [in Contrato de Compra e Venda (Estudo Prático – Doutrina e Jurisprudência), 3ª ed., Porto Editora, pgs. 15-16] diz que “Enquanto que o contrato de compra e venda tem por objeto a transmissão do direito de propriedade de uma coisa, ou outro direito, em troca de um preço, a empreitada tem por objeto a prestação de um serviço materializado na realização de uma obra, mediante um preço. A obrigação principal do vendedor reside num «dare», enquanto que a prestação principal do empreiteiro consiste num «facere». A compra e venda é confundível com a empreitada, sobretudo quando for convencionada a obrigação de o empreiteiro fornecer, para além dos seus serviços, o material necessário à execução da obra. Fundamentalmente, dois tipos de critérios poderão auxiliar a distinção entre estes dois contratos: a) o critério objetivo, consistindo na contraposição do preço dos materiais com o valor do trabalho a prestar. A prevalência de um destes elementos poderá indicar a existência de um contrato de compra e venda ou de empreitada se, efetivamente, o preço dos materiais for superior ou for inferior ao valor do trabalho a prestar; b) o critério subjetivo, consistindo na interpretação da vontade das partes manifestada na intenção empírica típica que as move. Se a casa é pretendida independentemente da atividade que a produziu, haverá compra e venda; se é desejada como resultado dessa atividade, estaremos face a uma empreitada”.
João Cura Mariano [in Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 2011, Almedina, 4ª ed. rev. e atual., pgs. 39-40] escreve que o contrato de empreitada, “Ao assumir-se, em regra, como uma relação na qual o realizador da obra fornece os materiais necessários para a sua conclusão, não se afigura acertado considerá-lo nestes casos um contrato em que se misturam prestações de diferentes tipos contratuais, uma vez que essa relação é exatamente a relação típica do contrato de empreitada, tal como este foi delineado na legislação portuguesa. Esse modelo pode ter sido historicamente subtraído à área de aplicação do contrato de compra e venda, mas não passou, por isso, a situar-se numa posição intermédia entre dois tipos contratuais diferentes, assumindo-se antes como um novo tipo completamente independente”. E conclui que “(…) o contrato pelo qual se acorda a realização duma obra, fornecendo o realizador desta os materiais necessários para a sua efetivação, é um contrato de empreitada, regulando o art. 1212º, do CC, o modo como se opera, nestes casos, a transferência da propriedade sobre a obra. Mas é evidente que já estaremos perante a venda de bens futuros e não perante um contrato de empreitada, nos casos em que quem encomenda a coisa ainda por fabricar não determina em nada a sua composição, não interferindo minimamente na sua vontade negocial no seu processo criativo, como sucede quando se encomendam bens fabricados em série ou com base em amostra ou catálogo”.

Partindo destes ensinamentos que fornecem vários indicadores distintivos dos dois tipos contratuais, vejamos então o caso dos autos, tendo em conta, repete-se, o que a autora, ora recorrida, alegou na petição inicial.
Nesta [reproduzindo o que havia alegado no requerimento que deu origem ao procedimento de injunção de pagamento europeia], aquela alegou, basicamente, que:
- autora e ré são sociedades comerciais, aquela sediada/registada em Portugal e esta sediada/registada em França, que se dedicam, respetivamente, ao fabrico e comércio de mobiliário e à comercialização de mobiliário (arts. 1º e 2º da p. i.);
- no exercício da sua atividade comercial, entre janeiro de 2015 e novembro de 2022, a autora celebrou com a ré, por encomendas desta, vários contratos de empreitada de mobiliário de madeira (art. 3º);
- no âmbito desses contratos, a autora fabricou todo o mobiliário, em conformidade e de acordo com as prévias instruções que lhe foram fornecidas pela ré, através das respetivas encomendas, designadamente, quanto às características e especificidades dos móveis, quantidades, modelos, medidas e materiais (arts. 4º, 5º e 6º);
- tais contratos deram origem à emissão das faturas e notas de crédito cujas cópias constituem docs. nºs 1 a 207 (art. 6º);
- a autora entregou à ré, que recebeu e fez seu, todo o mobiliário que fabricou no âmbito dos referidos contratos de empreitada, estando a sua descrição, quantidades, designação, referência e preços indicados nas referidas faturas (art. 7º);
- o preço a pagar pela ré, relativo a tais contratos, era de 1.230.611,50€, tendo a mesma pago à autora a quantia de 1.100.938,35€ e havendo, ainda, que deduzir o valor total correspondente às notas de crédito emitidas, no montante de 54.675,65€ (arts. 8º, 9º e 10º);
- encontra-se em dívida a quantia de 74.997,50€, a que acrescem juros de mora, à taxa comercial, em virtude de a ré, apesar das interpelações efetuadas pela autora, não ter procedido ao pagamento do valor em dívida (arts. 11º, 12º e 13º).
Que dizer perante estes factos?
Em primeiro lugar, importa dizer que a qualificação que a autora apresenta na p. i., onde classifica os contratos que celebrou com a ré como de empreitada, é para aqui indiferente, já que o tribunal, na qualificação dos contratos, não está sujeito ao nomen iuris que as partes alegam.
Em segundo lugar, porque não foi alegado [nem consta de qualquer documento junto com a p. i. e assinado pelas partes], pode-se concluir que não foi convencionado qualquer pacto de atribuição de competência aos tribunais de algum dos Estados-Membros.
E, em terceiro lugar, que, tendo-se a autora obrigado a fabricar determinado número de móveis que a ré lhe encomendou e, após o fabrico, a entregá-los a esta mediante o recebimento preço acordado, estamos, em princípio, perante contratos de empreitada e não face a contratos de compra e venda, tanto mais que a tal qualificação não obsta o facto de os materiais para o fabrico do mobiliário terem sido fornecidos pela autora, uma vez que esse fornecimento é, também ele, típico daquele contrato e das relações dele decorrentes.
Acrescendo a tais elementos que a ré não encomendou móveis que já se encontrassem fabricados, nem móveis que a autora fabricasse em série e que a autora fabricou os móveis encomendados em conformidade e de acordo com as instruções prévias que a ré lhe forneceu, através das respetivas encomendas, designadamente, quanto às características, especificidades, modelos, medidas e materiais dos mesmos, não sobram então dúvidas quanto à natureza dos contratos em questão, ante o que consta da petição inicial: trata-se de contratos de empreitada [e não de contratos de compra e venda].
Aqui chegados, estamos então em condições de concluir que, tendo a ação [e, antes dela, a injunção de pagamento europeia que a precedeu] sido instaurada[s] num tribunal do Estado-Membro onde os serviços compreendidos nos contratos de empreitada foram prestados – Portugal –, mostra-se observada a regra da competência fixada na 2ª parte da al. b) do nº 1 do art. 7º do aludido Regulamento (UE) nº 1215/2012, soçobrando, consequentemente, o recurso no seu segmento principal, constante das conclusões 33 a 67 das alegações.
Como tal, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a tramitação e julgamento/decisão da ação.

Tendo em conta que o recurso acaba por ser parcialmente procedente [procedente, na parte em que a apelante pedia a revogação do despacho recorrido por ter considerado que a questão da incompetência internacional, arguida na contestação, já tinha sido anteriormente decidia e que, quanto a ela, o poder jurisdicional se havia esgotado; improcedente, na parte em que a mesma pugnava pela declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses], a responsabilidade pelas custas desta fase recursória tem de ficar a cargo de ambas as partes, embora predominantemente a cargo da recorrente, já que o segmento principal da sua pretensão naufragou – arts. 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC.
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Síntese conclusiva:
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4. Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em:
1º. Julgar parcialmente procedente o recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido na parte em que considerou precludida a possibilidade de conhecimento da exceção dilatória da incompetência internacional deduzida na contestação, mas declarando-se, contrariamente ao que era pugnado pela apelante no recurso, que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a preparação e julgamento da ação.
2º. Condenar ambas as partes nas custas deste recurso, na proporção de 2/3 para a recorrente e 1/3 para a recorrida.

Porto, 11/12/2025
Pinto dos Santos
Artur Dionísio Oliveira
Lina Baptista