Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | FILIPE CAROÇO | ||
Descritores: | PROCESSO DE INSOLVÊNCIA APENSOS RECURSO INADMISSIBILIDADE EXTEMPORANEIDADE PROCESSO URGENTE | ||
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Nº do Documento: | RP20220421941/13.5TYVNG-O.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/21/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO SINGULAR DO RELATOR | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – O carácter urgente do processo de Insolvência estende-se a todos os seus apensos, assim se potenciando a celeridade de todos esses processos, cfr. art.º 9.º do CIRE. II – Tal é aplicável às acções que venham a ser apensas ao processo de insolvência, mesmo que até essa apensação seguissem uma tramitação normal (não urgente) . II – Os eventuais atrasos da secretaria na conclusão do processo não justifica qualquer nascimento de qualquer expectativa nas partes de que o processo iria continuar a seguir uma tramitação normal (não urgente) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 941/13.5TYVNG-O.P1 – Conferência (art.º 643º, nº 4, do CPC) Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – J 3 Relator Filipe Caroço Adj. Desemb. Judite Pires Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida Acordam, em conferência, na Relação do Porto I. AA, insolvente, por apenso ao processo de insolvência, deduziu reclamação ao abrigo do art.º 643º, nº 1, do Código de Processo Civil, ex vi art.º 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1], relativamente à decisão judicial datada de 2.12.2021, proferida no apenso N, pela qual foi rejeitado, por extemporaneidade, o recurso interposto do despacho de indeferimento liminar da petição inicial da ação interposta pela reclamante que deu início àquele apenso da insolvência. No despacho sob reclamação, o tribunal a quo relevou essencialmente os seguintes factos processuais: - A decisão de indeferimento liminar da petição inicial foi proferida no dia 25.10.2021; - Tal decisão foi notificada à recorrente por envio de 26.10.2021; e - O recurso dessa decisão deu entrada em Juízo no dia 24.11.2021. Com base nestes elementos, o tribunal recorrido indeferiu o recurso por extemporaneidade, considerando que o processo tem natureza urgente, por força do art.º 9º do CIRE, sendo de 15 dias o respetivo prazo, por conjugação daquela disposição legal com a do art.º 638º, nº 1, do Código de Processo Civil. A reclamante não põe em causa os referidos factos processuais, mas fundamenta assim a sua posição: - A natureza urgente do processo só teria aplicação se o processo de insolvência ainda estivesse a ser processado; - Os autos de insolvência encontram-se findos e encerrado o incidente de liquidação; - Ocorre aqui uma situação análoga à dos procedimentos cautelares, em que a natureza urgente existe até a mesma ser decretada, após o que o processo segue a tramitação normal, não urgente. Não foi oferecida resposta à reclamação. O relator indeferiu a reclamação, essencialmente com a seguinte fundamentação: «(…) Se o processo for considerado urgente, o prazo de recurso é de 15 dias, a contar da notificação da decisão recorrida (art.º 638º, nº 1, segunda parte, do Código de Processo Civil). Sendo de 26.10.2021 a data de elaboração da notificação à recorrente daquela decisão, o prazo de recurso teria terminado no dia 15 de novembro de 2021 (art.ºs 144º e 248º do Código de Processo Civil). Mediante o pagamento de multa, o ato de apresentação do recurso poderia ainda ser apresentado até ao dia 18 do mesmo mês (art.º 139º, nº 5, do mesmo código). Não sendo o processo considerado urgente, o prazo para a interposição do recurso seria de 30 dias (art.º 238º, nº 1, primeira parte, do Código de Processo Civil), ou seja, teria terminado no dia 29.11.2021 e o recurso, interposto no dia 24.11.2021, seriar considerado tempestivo. Pois bem. Do relatório da decisão recorrida extrai-se o seguinte: «(…) Veio aquela, por apenso ao processo de insolvência principal em que foi declarada a insolvência de BB e AA, intentar a presente acção de condenação, sob a forma comum, pedindo que a mesma seja julgada procedente, e nessa conformidade, seja declarada nula ou anulada a venda do imóvel consistente em fracção autónoma designada pela letra “A” (…), realizada no âmbito da liquidação do activo que teve lugar nos aludidos autos insolvenciais, venda essa que terá sido realizada por valor muito inferior ao seu valor de mercado (o preço arrecadado para a massa foi de € 5 000,00, e o seu valor de mercado rondará os € 80.000,00), e, por outro lado, tratando-se de um acto especial de relevo deveria ter sido obtido o consentimento da Comissão de Credores, sendo que não tendo tal acto sido comunicado aos insolventes o mesmo será ineficaz em relação a estes, ao que acrescerá a inobservância da forma legal para o acto de venda realizado. (…).» Como referimos já, aquela ação constitui o apenso N ao processo principal de insolvência. É uma ação destinada a apreciar uma questão relativa a bens compreendidos na massa insolvente, cujo resultado pode influenciar o valor da massa, devendo, por isso, correr, como corre efetivamente, por apenso à insolvência (art.º 85º do CIRE). Dispõe o art.º 9º, nº 1, do CIRE: «O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem caracter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal.» Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[2] explicam: «A celeridade dos processos relativos à insolvência de há muito vem sendo considerada um factor decisivo para a sua eficácia, constituindo uma preocupação constante do legislador, traduzida em diversos mecanismos. O mais significativo deles tem consistido na atribuição do carácter de urgência ao processo.» Acrescentam que no Direito anterior ao CPEREF já existiam disposições que estatuíam no sentido da urgência do processo falimentar, mas apenas relativa a uma determinada fase do processo. Com a entrada em vigor do CPEREF deu-se mais um importante passo no sentido da urgência processual, “alargando-se o âmbito da urgência a todas as fases dos então processos de recuperação da empresa e de falência, incluindo, na expressão legal, os embargos e os recursos que fossem deduzidos por quem tivesse legitimidade para o efeito”. “O texto do n.° 1 do art.° 10.° do CPEREF deixava espaço para a dúvida sobre se a urgência era extensível a todos os apensos dos processos ou, pelo contrário, apenas abrangia aqueles que expressamente referia, a saber, os embargos e, quando devessem ser processados por esse meio, os recursos. Independentemente de qual devesse ser então a melhor resposta, a questão ficou agora totalmente esclarecida pelo n.° 1 do preceito em anotação, no sentido de que tudo o que se relaciona com o processo é urgente, aí incluindo todos os incidentes, apensos e recursos. (…) Mas a menção directa que agora se faz aos incidentes, afastando qualquer discussão, tem ainda o efeito de significar que tudo quanto respeita ao processo é urgente, o que, aliás, também se colhe do que estabelece o n.° 5”. Também para Luís Menezes Leitão a estatuição do nº 1 do art.º 9º não acarreta dúvidas, nomeadamente as que se suscitavam no âmbito da aplicação do CPEREF. Agora é seguro afirmar que a urgência processual se estende a todos os incidentes, apensos e recursos. Alega a reclamante que o incidente de liquidação já foi encerrado, assim como o próprio processo de insolvência, não se justificando, por isso, a urgência processual, à semelhança do que acontece nos procedimentos cautelares após a decisão de deferimento. A comparação é infeliz. O art.º 363º, nº 1, do Código de Processo Civil dispõe que “os procedimentos cautelares revestem sempre caráter urgente, precedendo os respetivos atos qualquer outro serviço judicial não urgente”. Não vemos como excecionar onde o legislador não excecionou. Este regime é aplicável em todas as fases processuais do procedimento, abarcando não apenas os atos que antecedem a prolação da decisão cautelar, mas também aqueles que se destinam a executar, substituir, modificar ou fazer cessar a providência decretada.[3] E se dúvidas houvesse, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uniformizador de jurisprudência nº 9/2009, de 31 de março de 2009[4], interpretou a norma do art.º 382º do Código de Processo Civil anterior, mas de conteúdo absolutamente idêntico ao da norma do atual art.º 363º, com o seguinte texto: «Os procedimentos cautelares revestem sempre carácter urgente mesmo na fase de recurso». Colhe-se nos seus fundamentos que «a garantia provisória do direito não deve fazer esquecer a urgência da outra parte em infirmar essa garantia decretada de forma precária e que pode constituir uma lesão do seu direito que também o tempo agravará». Desenvolvendo-se a ação liminarmente indeferida por apenso ao processo de insolvência, não vemos como ultrapassar a própria letra do nº 1 do art.º 9º do CIRE que é expresso no sentido de que os processos que correm por apenso ao processo de insolvência têm, todos eles, caráter urgente. Mas ainda que a expressão legal não bastasse, a reclamante pretende, por via da ação que constitui o apenso N, que seja anulada a venda de um determinado bem (uma fração autónoma) apreendido para a massa insolvente, venda essa realizada no âmbito da liquidação do ativo que teve lugar no processo de insolvência. Basta pensar nas consequências da eventual procedência do pedido dessa ação --- a anulação daquela venda --- para perspetivar a reabertura do processo de insolvência e a repetição de atos de natureza urgente, o que, obviamente, sempre justifica a abrangente posição do legislador e, assim, a urgência do apenso N. Não fosse este apenso N urgente, estaria então encontrado o caminho para retardar a prática de atos no processo principal onde corre termos (também) urgentes a liquidação do ativo. De resto, o tribunal a quo citou, na decisão reclamada, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de março de 2017[5], de onde se colhe também segura argumentação no sentido do seu sumário: “As acções onde se discutam questões relacionadas com bens compreendidos na massa insolvente, apensas aos autos de insolvência a requerimento do AI, não afasta a aplicação do preceituado no artigo 9º, nº 1 do CIRE, nos termos do qual «O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal.». O que significa que tais acções assumem o carácter de urgentes.”» O relator reafirmou ali a urgência processual do apenso N, tal como do presente apenso O, e confirmou a decisão sob reclamação, por violação do prazo de 15 dias de que a reclamante dispunha para a interposição do recurso, nos termos do art.º 638º, nº 1, 2ª parte, do Código de Processo Civil, ex vi art.ºs 9º, nº 1 e 17º, nº 1, do CIRE. * II.Apreciemos agora a reclamação daquela decisão singular. À semelhança do que acontece com os recursos das decisões dos tribunais, em que o objeto do recurso está delimitado pela decisão de que se recorre, não podendo ir além do que nela se decidiu ou cumpria decidir, também na reclamação para a conferência é sobre o objeto da decisão singular reclamada que a deliberação do coletivo vai incidir, mas aqui ao ponto de se dever admitir que o reclamante possa simplesmente manifestar a vontade de que, sobre o despacho do relator recaia um acórdão, sem necessidade de repetir a fundamentação, valendo então aquela que já anteriormente justificara o requerimento inicial de reclamação, nada obstando a que se possa seguir entendimento diverso do que foi seguido na decisão singular[6]. Se é verdade que, ainda assim, o reclamante pode desenvolver ali a argumentação que justificou o requerimento inicial de reclamação, temos para nós que ao coletivo cumpre essencialmente averiguar da bondade dos fundamentos da decisão singular, por referência aos fundamentos expostos na reclamação inicial. Num surpreendente e tortuoso percurso argumentativo, e com algum contrassenso, vista a decisão singular, a reclamante passou da defesa inicial de que o presente apenso não tem natureza urgente por não lhe ser aplicável o art.º 9º do CIRE --- argumentando essencialmente que o processo de insolvência (designadamente a liquidação) já não estava em curso quando a ação foi interposta --- para a defesa, na reclamação para a conferência, de que, com a rejeição da apelação, foi violado o princípio da proteção da confiança. Sustenta este novo fundamento num alegado comportamento do tribunal que seria adequado a criar na reclamante a expetativa legítima de que o processo estaria a ser processado sem caráter de urgência. Alegou (só) agora que: -A ação deu entrada no dia 16.3.2021 e que a A. foi notificada da recusa da petição inicial no dia 18 desse mesmo mês; - Apresentou requerimento no dia 23.3.2021 e que os autos só foram conclusos no dia 5.5.2021; - Apresentou dois requerimentos, em 13.7.2021 e em 20.7.2021 que só foram conclusos em 9.9.2021; não tendo sido observada pela Ex.ma Juiz e pela secretaria a natureza urgente do processo, assim se tendo criado na A. a expetativa de que a tramitação processual não tinha a natureza de urgente. A reclamante citou jurisprudência em abono desta sua nova posição. Vejamos. Na falta de disposição especial, os despachos judiciais são proferidos no prazo de dez dias (art.º 156º, nº 1, do Código de Processo Civil). Porém, os despachos urgentes devem ser proferidos no prazo máximo de dois dias (nº 2 do mesmo artigo). No que respeita aos atos da secretaria, o prazo para a abertura de conclusão para despacho é de 5 dias, salvo nos casos de urgência (art.º 162º, nº 1, do Código de Processo Civil) em que, por aplicação extensiva do nº 2 do art.º 162º, será de entender que a conclusão deve ocorrer no próprio dia, se possível. Tendo a petição inicial entrado em Juízo no dia 16 de março de 2021, a sua recusa pela secretaria foi notificada por envio eletrónico do dia 18 do mesmo mês. Considerando a necessidade de exame do articulado inicial, o decurso de um dia não representa qualquer atraso da secretaria e constitui um ato conforme às exigências de um processo urgente, sendo mesmo sinalizador dessa urgência. No dia 23.3.2021, a A. juntou um requerimento aos autos cuja apreciação foi submetida à Sr.ª Juiz no dia 5 de maio seguinte. Também resulta dos autos que a A, juntou outro requerimento no dia 13.7.2021 e ainda outro no dia 20.7.2021 que só foram conclusos no dia 9.9.2021, mas a Sr.ª Juiz proferiu despacho nesse mesmo dia, após férias judiciais. Todos os despachos judiciais foram proferidos no apenso N na data da conclusão, com exceção do despacho liminar de indeferimento que o foi no dia 25 de outubro, sendo a conclusão datada do anterior dia 22. Não se trata de um mero despacho de expediente, mas de uma decisão fundamentada ao longo de nove páginas que põe termo à causa, pelo que foi proferida, como todos os despachos do apenso N, em prazo absolutamente compatível com a tramitação urgente do processo. A questão é saber se os referidos atrasos da secretaria na conclusão do processo são suficientes e razoavelmente adequados a inverter a exigência de rigor e segurança que emana da explícita caraterização do processo como urgente do art.º 9º do CIRE, para a necessidade de proteção da existência de uma situação justificada e legítima de confiança da A. em que o processo não tinha que obedecer àquela norma, por ter seguido todo um trajeto com ela desconforme, designadamente por ação do tribunal. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.7.2014[7], evidencia-se --- como o relator já fez notar na decisão reclamada --- a clareza e rigor da norma do art.º 9º do CIRE, no sentido de que o caráter urgente do processo de insolvência se estende a todos os seus apensos, assim se potenciando a celeridade de todos esses processos. Di-lo assim, entre outros argumentos: «A apensação das acções, determinada nos termos do citado art. 85º nº 1, tem por fundamento a conveniência que daí advém para os fins do processo (parte final do preceito); sendo a mesma ordenada, isso significa e pressupõe, portanto, que há conveniência e interesse na apensação (que não é automática), o que dita, logicamente, que haja um correspondente interesse na sua celeridade e que a acção apensada seja processada com a urgência exigida e inerente aos processos relativos à insolvência. A urgência nessa tramitação não está, assim, dependente de um juízo de oportunidade ou de discricionariedade, em função da natureza e objecto da acção apensada, ou de razão que determine ou justifique a excepcionalidade da urgência (como parece entender a Recorrente). Esta depende apenas dessa apensação. Porém, naquele caso, o próprio Juiz reconhecem por despacho: "a tramitação prosseguida nos presentes autos desde o seu início e após a apensação ao processo de insolvência não revestiu ou respeitou o carácter de urgência que vem agora invocado pela ré (…)". E daí retirou que “julgar extemporâneas as alegações por esse motivo (carácter urgente) "seria contrariar, de forma manifesta e ilegítima, a segurança jurídica do caso concreto e as legítimas expectativas criadas pelas partes, maxime, pela autora, ao longo da sua longa tramitação, as quais foram determinantes de relevantes investimentos de confiança nas normas jurídicas que vinham sendo aplicáveis nos autos (no caso concreto quanto à inaplicabilidade do art. 9.º n.º 1 do CIRE)”. Considerou aquele acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: «Com efeito, percorrendo a tramitação da acção, iniciada em 1996, é manifesto que a mesma não sofreu qualquer alteração, no que respeita à celeridade, após a aludida apensação. Tudo se continuou a fazer como até aí, como se de uma acção normal e autónoma se tratasse, apesar de, pela própria antiguidade, já ser exigível um outro cuidado a esse respeito. Mas não: quer em termos de tramitação dos actos, quer na marcação de diligências, quer na contagem dos prazos, a acção foi tratada sempre como um processo normal, não urgente. A forma como a acção foi tratada tem, pois, (pelo menos) implícito o entendimento de que o processo não era urgente (entendimento que não é, aliás, contrariado no aludido despacho), o que torna compreensível o modo como o acto foi praticado pela Recorrente, em termos de contagem do prazo de recurso. Acresce que o referido entendimento não é, apesar do que acima se expôs, inteiramente descabido – no sentido de excluir manifestamente a sua aplicação –, considerando a natureza da acção, diferente da dos típicos apensos do processo de insolvência, especialmente previstos na lei, instaurados e processados na pendência desse processo. Neste condicionalismo, sendo a acção processada nos termos referidos durante mais de seis anos após a apensação, sem que a questão da urgência fosse suscitada, é razoável e perfeitamente plausível que a recorrente admitisse que o entendimento do Tribunal fosse realmente aquele e que tivesse actuado em conformidade. (…) Esta convicção é fundada e legítima e merece, por isso, a tutela do direito, como se reconheceu, para situação similar, na fundamentação do AUJ deste Tribunal de 31.03.2009. (…) Existe justificação para essa confiança, uma vez que, como se disse, era razoável e plausível que a Recorrente aderisse a essa aparência, que tinha por legítima, por a referida tramitação ocorrer durante longo período e sob a direcção do Juiz. E foi na sequência e em função dessa legítima convicção que a Recorrente definiu a sua actuação processual: sempre interveio nos autos e veio a apresentar as alegações, nos termos que seriam os devidos, de acordo com a tramitação até aí seguida (investimento de confiança). A protecção dessa confiança conduz à “preservação da posição nela alicerçada", ou seja, "à manutenção das vantagens que assistiriam ao confiante”». O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.3.2009[8], citado pela reclamante, tirado em matéria de procedimento cautelar, não fixou jurisprudência nesta matéria, mas em sede de procedimento cautelar. A questão foi ali abordada apenas na sua fundamentação relativamente à confiança que as partes podem conferir a um despacho judicial e às declarações nele contidas, ou seja, se têm elas o direito processual de confiar em que o julgador irá atuar conforme declarou que era sua intenção fazê-lo? A resposta ali dada foi afirmativa, de acordo com um princípio da boa fé, que não pode ser exclusivo dos atos das partes, mas terá de abranger igualmente os atos dos magistrados. O julgador não deve proferir decisões que surpreendam as partes. Ou porque não foram debatidas, ou porque não se esperaria que as tomasse, atentas as posições processuais antes assumidas. A afirmação judicial, por despacho, de que o processo já não tem natureza urgente ou de que o processo não corre termos em férias judicias, é suscetível de criar nas partes, a partir da data da sua notificação, a convicção legítima de que não ficará adstrita ao cumprimento dos prazos previstos para o processo urgente ou para a fase urgente de determinado processo. Tal convicção merece a tutela do direito; e a lei de processo civil contém os mecanismos necessários à proteção da confiança assim criada numa das partes ou em ambas. Mas não foi o que aconteceu no caso em análise. Face à indiscutível natureza urgente do processo, não é a existência de dois ou três atrasos da secretaria na sua tramitação que pode justificar qualquer criação pelas partes da expetativa de que um processo, há poucos meses instaurado, estava a seguir e iria continuar a seguir um processamento normal, não urgente. São conhecidos e frequentes os atrasos ou demoras das secretarias judiciais no processamento das ações judiciais, por razões variáveis, justificadas ou não. Não pode ser por essa simples razão que o processo muda de natureza urgente para normal. Não foi invocado qualquer ofício da secretaria de onde resulte, ainda que tacitamente, que o processo não tem natureza urgente ou que os prazos em que os atos a praticar pelas partes são os normais, sem a redução ditada pela urgência processual. Mas, mais do que isso, todos os despachos judiciais foram cumpridos em função da urgência processual dos autos. Tivesse a reclamante observado tal rigor, mais facilmente teria verificado também a necessidade de respeitar o art.º 9º do CIRE. O problema é que a reclamante não observou aquela norma legal e, verdadeiramente, convenceu-se de que não se tratava de um processo urgente porque, conforme afirmou na reclamação inicial, o processo de insolvência estava findo, quando na realidade, a urgência resulta, sem mais, da apensação da ação ao processo de insolvência. Não há aqui nenhum investimento de confiança, mas um erro da parte na aplicação ou na interpretação da norma legal do art.º 9º do CIRE. Não podendo valer também aquela motivação --- o atraso da secretaria na notificação de três despachos --- como forma de legitimação de uma expetativa da parte em que o processo tinha uma tramitação normal, não urgente, é manifesto que a sua posição não merece a tutela do Direito, impondo-se a confirmação da decisão singular. * III.Face ao exposto, acorda-se em conferência negar provimento à reclamação, mantendo-se a decisão reclamada (art.º 643º, nº 4, in fine, do Código de Processo Civil). Custas da reclamação pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em € 200,00 (tabela II, anexa ao Regulamento das Custas Processuais). * Porto, 21 de abril de 2022 Filipe Caroço Judite Pires Aristides Rodrigues de Almeida __________________ [1] Adiante CIRE. [2] CIRE anotado, Quid Juris, 2009, anot. ao art.º 9º, pág. 97. [3] A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Filipe de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Almedina, 2019, vol. I, pág. 421. [4] Publicado no Diário da República de 19.5.2009, 1ª série. [5] Proc. 616/13.5TJVNF-L.G1.S1, in www.dgsi.pt. [6] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. F. Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Almedina, 2019, pág. 789 e acórdão do Tribunal Constitucional nº 514/2003. [7] Proc. 2577/05.5TBPMS-P.C3.S1, in www.dgsi.pt. [8] Proc. 07B4716, in www.dgsi.pt. |