Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3769/22.8T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: ACOMPANHAMENTO A MAIOR
MAIOR ACOMPANHADO
REQUISITOS
DEVERES GERAIS DE COOPERAÇÃO E ASSISTÊNCIA
Nº do Documento: RP202309253769/22.8T8VFR.P1
Data do Acordão: 09/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Sendo a medida de acompanhamento a maior decretada para salvaguarda dos interesses do beneficiário, com vista a garantir “o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres”, mesmo que verificados os requisitos subjetivos e objetivos de que depende a aplicação da medida, esta não terá lugar quando tais finalidades se mostrem garantidas através dos deveres gerais de cooperação e assistência, nomeadamente familiares (artigo 140º nº 2 do CC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3769/22.8T8VFR.P1
3ª Secção Cível
Relatora – M. Fátima Andrade
Adjunto –Carlos Gil
Adjunto –António Mendes Coelho
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Jz. Local Cível de Santa Maria da Feira
Apelante/ AA

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC)
………………………
………………………
………………………

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
AA instaurou a presente ação especial de acompanhamento relativamente à maior BB requerendo, pela sua procedência, que seja “decretado o acompanhamento da Requerida BB, por se mostrar totalmente incapaz de se governar a si e aos seus bens, não tendo capacidade para praticar todo e qualquer ato de administração, e ao final, seja decretado o acompanhamento da Requerida pela Requerente no regime de representação geral e a administração total de bens, e, no imediato e em concreto, representando-a junto de quaisquer entidades, públicas e privadas, bem como as funções inerentes ao cabeça de casal da Herança aberta por óbito do marido da Requerida e pai da Requerente, ao abrigo do exercício das funções previstas nos artigos 2087º, 2088º, 2089º e 2090º do C.C.”
Para além da nomeação da requerente como acompanhante, requereu ainda que como acompanhante substituto fosse nomeado CC.
*
Para efeitos do previsto no artigo 141º nº 1, juntou a requerente aos autos declaração da identificada beneficiária de acompanhamento, autorizando a propositura da presente ação.

A requerida foi citada pessoalmente e não contestou.
Foi após citado o MºPº nos termos do artigo 21º do CPC.
Tendo deduzido contestação, pugnou pela decisão da causa em conformidade com a prova a produzir.

Teve lugar a audição pessoal da requerida e foi realizado exame pericial.
Junto o relatório pericial e do mesmo notificado a requerente e MºPº, pronunciou-se este último no sentido do indeferimento do requerido, “considerando a subsidiariedade das medidas de acompanhamento e o princípio da necessidade e atendendo a que as necessidades da requerida se encontram a ser devidamente acauteladas”.
Notificada a requerente da posição assumida pelo MºPº, pronunciou-se pelo deferimento do requerido, pelos fundamentos que expôs no requerimento de 10/05/2023.

Foi após proferida decisão final, tendo o tribunal a quo decidido:
“julgo a presente ação improcedente, por não provada, e em consequência, por desnecessário, indefiro o decretamento de acompanhamento a BB.”
*
Do assim decidido interpôs a requerente AA recurso, oferecendo alegações, a final tendo formulado as seguintes
Conclusões:
“I – A Requerente não se pode conformar com a sentença final que julgou a ação improcedente, por não provada, indeferindo o decretamento de acompanhamento a BB, quando se impunha, mesmo em face da matéria de facto julgada provada, que fosse decretado o requerido acompanhamento.
II - Os fundamentos do presente recurso assentam, fundamentalmente, na nulidade da decisão, e, no menos, na violação do disposto nos artigos 138.º. 139.º, 140 e 141.º do Código Civil, desde logo por errada interpretação daqueles normativos e errada aplicação do direito aos factos.
III – A sentença recorrida incorre em lapso flagrante e relevante ao considerar que: “Foi suprida a autorização da beneficiária para instauração da presente ação.” (fls. 2 da sentença), porquanto, conforme documento junto com requerimento de 18/11/2022, (referência citius: 13769740), a Requerida veio declarar que autoriza a propositura de ação especial de acompanhamento de maior, para serem decretadas as medidas necessárias para o exercício dos seus direitos e cumprimento dos seus deveres.
IV - Assim se constata que não foi suprida a autorização da Requerida como, erradamente, se menciona na sentença, não podendo, como foi, atento aquele erro, ser desconsiderada a própria vontade da Requerida, no sentido de lhe ser nomeado um acompanhante.
V – A douta decisão de que se recorre, contrariou a vontade e entendimento i) da Requerente (que já exerce tal papel, mas de forma condicionada e limitada pela ausência de decisão judicial – Cfr. Relatório Pericial), ii) da própria Requerida e iii) do Sr. Perito Médico-Legal, ( relatório junto em 27/03/2023 – Ref.ª 14353982):
VI - Como factos mais relevantes dados como provados na douta sentença temos:
“1. BB, aqui beneficiária, filha de DD e de EE, nasceu no dia .../.../1927.
4. A beneficiária não é portadora de um défice cognitivo, não estando atingidas grave e globalmente as suas funções psíquicas; padece de cegueira total e défices motores muito significativos.
5. Constata-se que não existe à data dos exames médicos uma limitação grave da faculdade de discernimento da beneficiária.
8. A beneficiária apresenta cegueira total há 4 anos, tendo também desde então limitação da mobilidade com uso de cadeira de rodas e dependência para as atividades de vida diárias e também no recurso aos serviços de saúde e outros serviços públicos.
9. A beneficiária precisa de ajuda no banho, de ajuda a vestir-se, tem de ser conduzida mesmo em sua casa, come pela sua mão, mas tem de ser preparado o prato de forma a que ela possa utilizar devidamente os talheres; tem controlo de esfíncteres, mas tem que ser ajudada a ir à casa de banho.
VII - Não obstante todas estas limitações (cegueira total e falta de mobilidade) que retiram qualquer grau de autonomia à Requerida, conclui a douta sentença aqui posta em crise que “Resultou de igual modo apurado que a extensão dos efeitos dos seus problemas de saúde, mormente das suas dificuldades de visão e motoras, não impedem a Beneficiária do exercício capaz, pessoal, direto e consciente dos seus direitos e dos seus deveres.”, o que constitui uma decisão/fundamentação em flagrante contradição com os factos provados, e, por isso, nula, ou no menos, que se reconduz a uma errada aplicação do direito aos factos.
VII – Não se alcança o sentido de tal conclusão vertida na sentença, sendo que tal decisão parece sufragar o entendimento de que a figura do maior acompanhado não se aplica a pessoas sem deficit cognitivo, o que não resulta da lei, nem da doutrina, nem tampouco da jurisprudência.
VIII – Foi julgado provado que a Requerida tem 95 anos de idade, padecendo, de forma irreversível, de cegueira total, com total limitação de mobilidade, sem qualquer grau de autonomia para as tarefas quotidianas mais básicas, exceto para comer, mas desde que lhe preparem devidamente o prato e o coloquem à sua frente.
IX – A Requerente necessita de ajuda de terceiros para se deslocar da cama para a cadeira de rodas, (e vice-versa), e de ser transportada de ambulância quando se mostra absolutamente necessário ausentar-se de casa, o que, naturalmente, nunca acontece, exceto em situações de absoluta necessidade.
X - Depende do auxílio de terceiros para todo e qualquer ato da sua vida que não se resuma à mera comunicação, designadamente para vestir-se, higiene pessoal, alimentação, bem como para sair da cama para a cadeira de rodas, ou para entrar e sair da ambulância, caso tenha de se deslocar ao exterior.
XI - Tal estado de dependência está plasmado no relatório pericial, em que se concluiu “(…) precisando por isso da ajuda de terceiros na gestão da sua pessoa e bens, tendo também que lhe ser prestados todos os cuidados nas atividades simples da vida diária e na utilização de recursos da comunidade, nomeadamente nos cuidados de segurança e nos cuidados de saúde, sendo indispensável que o Tribunal lhe atribua uma acompanhante que reúna as condições para exercer essas funções (…)”.
XII - A título de exemplo, não foi permitido à Requerida encerrar conta bancária, porquanto a instituição financeira em causa informou que, mesmo que a Requerida ali se deslocasse de ambulância, nunca aceitariam a sua assinatura como válida, atento o seu estado de cegueira total, o seu estado vem impedindo a renovação do seu cartão de cidadão, que se encontra com dados desatualizados, está também impedida de alterar contratos ainda titulados pelo seu falecido marido, de exercer direitos e deveres relativos à herança deste (situação que tornou premente a presente ação), etc.
XIII - Salvo o devido respeito, que é muito, não poderá colher o entendimento sufragado na sentença, que segue uma interpretação restritiva dos arts. 138.º e 140.º do Código Civil.
XIV - A seguir-se a tese adotada, o regime do maior acompanhado só seria aplicado nas situações em que o beneficiário é portador de patologias do foro mental, excluindo todas as outras situações de saúde e de deficiência físicas que impossibilitam o maior de exercer, plena, pessoalmente e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, como determina o art.138.º.
XV – Tal entendimento viola a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a qual o Estado Português ratificou, sendo um instrumento internacional vinculante, sendo que o regime do maior acompanhado visou alargar o leque de situações de acompanhamento de pessoas com deficiência e não restringi-lo.
XVI – Por todos, assim se decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação Porto, com data de 14/07/2020, no processo n.º15/20.2T8OVR.P1, no qual se decidiu que “se o maior necessita de apoio de terceira pessoa nas atividades da vida diária, isso significa que não consegue exercer plena e pessoalmente os seus direitos por motivos de saúde, tanto bastando para o decretamento das medidas de acompanhamento.”
XVII - À cegueira total da Requerida, soma-se uma incapacidade total de se locomover pelos seus meios e até de ser transportada sem auxílio de uma ambulância, quadro irreversível pelo que não se concebe o entendimento de que pode exercer “plena” e de forma “pessoal” os seus direitos e cumprir os seus deveres.
XVIII – In casu não se revela possível ultrapassar as graves limitações da Requerida com simples cooperação e assistência, pois na prática a mesma encontra-se totalmente cega e confinada a uma cama, ou cadeira de rodas, impossibilitada de sair de casa, pelo menos sem auxílio de ambulância, numa situação de total e absoluta dependência de terceiros.
XIX – A Requerida já se encontra numa situação de absoluta e irreversível necessidade de acompanhamento e não numa situação de eventual necessidade, ou em que pudesse haver uma reversão do quadro clínico, em que poderiam mostrar-se mais adequadas outras ferramentas jurídicas, como é o caso da procuração, instrumento que não se destina nem está apto a substituir o necessário acompanhamento em todos os atos da vida de uma pessoa.
XX - O art.141.º, n.º1 do C.C.. estatui no seu n.º 1 que “O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste”, não sendo compaginável tal preceito com um entendimento que restrinja o campo de aplicação desta figura a pessoas com problemas cognitivos, pelo contrário, destina-se, em primeira linha, a pessoas com capacidade e discernimento para entender as suas próprias incapacidades, como é o caso da aqui Requerida, que anuiu ao pedido de acompanhamento.
XXI – O decretamento de medida de acompanhamento da Requerida revela-se a única forma adequada de garantir cabalmente que sejam acautelados os interesses da requerida e de garantir o pleno exercício dos seus direitos e cumprimento dos seus deveres.
XXII - A sentença recorrida, além do manifesto erro quanto ao consentimento, e da manifesta contradição entre a factualidade provada e a fundamentação e decisão, viola o disposto nos artigos 138.º. 139.º, 140 e 141.º do Código Civil, enfermando de errada e interpretação daqueles normativos e incorrendo numa errada aplicação do direito aos factos.
NESTES TERMOS E NOS MAIS E MELHORES DE DIREITO APLICADO, COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXA.S deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, nos termos propugnados, e em consequência ser declarada a revogação da sentença recorrida, substituindo-a por decisão que julgue a ação procedente por provada e, em consequência, designados a Requerente, aqui recorrente, e o seu irmão CC, acompanhantes nos termos requeridos e decretadas as
medidas de acompanhamento requeridas ou quaisquer outras que o Tribunal considere convenientes assim se fazendo a costumada JUSTIÇA”

Apresentou o MºPº contra-alegações, tendo como questão prévia suscitado a inexistência de conclusões, por as apresentadas serem “uma reprodução quase integral das suas alegações, denominando tal acervo de conclusões”, que verdadeiramente o não são, em manifesta violação do disposto no artigo 639. °, n.º 1 do CPC.”.
Pugnando por tal pela rejeição do recurso.
Mais e quanto à decisão de facto, realçou o MºPº não ter sido impugnada a decisão de facto, pelo que a factualidade invocada pela recorrente que não consta da decisão de facto não poderá ser considerada.
No mais, concluiu pela improcedência do recurso face ao bem decidido pelo tribunal a quo.
*
O tribunal a quo admitiu o recurso interposto como de apelação, com subida imediata e nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
*
II- Fundamentação
O tribunal a quo julgou provada a seguinte factualidade:
“1. BB, aqui beneficiária, filha de DD e de EE, nasceu no dia .../.../1927.
2. É viúva.
3. Tem quatro filhos, a saber: AA (aqui requerente), CC, FF e GG.
4. A beneficiária não é portadora de um défice cognitivo, não estando atingidas grave e globalmente as suas funções psíquicas; padece de cegueira total e défices motores muito significativos.
5. Constata-se que não existe à data dos exames médicos uma limitação grave da faculdade de discernimento da beneficiária.
6. À luz dos conhecimentos médicos atuais não é previsível que possa melhorar, apesar dos tratamentos e cuidados necessários que lhe são prestados permanentemente.
7. A deficiência constatada limita seriamente as capacidades da beneficiária, necessitando de ajuda para gerir a sua pessoa e bens, necessitando do acompanhamento de uma terceira pessoa da sua confiança, que permita que juntas tomem as decisões de gestão patrimonial.
8. A beneficiária apresenta cegueira total há 4 anos, tendo também desde então limitação da mobilidade com uso de cadeira de rodas e dependência para as atividades de vida diárias e também no recurso aos serviços de saúde e outros serviços públicos.
9. A beneficiária precisa de ajuda no banho, de ajuda a vestir-se, tem de ser conduzida mesmo em sua casa, come pela sua mão, mas tem de ser preparado o prato de forma a que ela possa utilizar devidamente os talheres; tem controlo de esfíncteres, mas tem que ser ajudada a ir à casa de banho.
10. A beneficiária é acompanhada regularmente por Medicina Geral e Familiar na Unidade de Saúde da sua área de residência, USF ..., com consultas domiciliárias, tendo consultas de outras especialidades sempre que estas se justificam.
11. A beneficiária é capaz de assinar o nome, mas com a letra irregular, dado os seus problemas de visão.
12. A beneficiária vive sozinha e as limitações que apresenta e que a condicionam nas atividades da vida diária são colmatadas por quatro cuidadoras contratadas, duas para o dia e duas à noite, que a auxiliam permanentemente.
13. Tem apoio total e presente da sua família, em especial da sua filha, aqui Requerente, e do seu filho CC.
14. A Requerida delegou na sua filha, aqui Requerente, os levantamentos e depósitos bancários, sendo a mesma quem trata dos seus assuntos bancários.
15. Dado o seu problema de visão e défices motores, a beneficiária já não consegue fazer pagamento como seja a água, a eletricidade ou o telefone, nem se desloca, por não o conseguir de forma autónoma, quer ao médico, quer a repartições públicas, financeiras e sociais.”

O tribunal a quo julgou ainda não provada a seguinte factualidade:
“B) Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa não resultaram provados os seguintes factos:
a) Em face da idade e incapacidades físicas apuradas, a Requerida apresenta, em determinados momentos, lapsos de memória, demonstrando declínio cognitivo em outras habilidades como atenção e linguagem.”
*
III- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pela apelante serem questões a apreciar:
- se a sentença recorrida padece de lapso (vide conclusões III e IV);
- se a sentença proferida padece de nulidade por contradição entre os factos e a decisão (vide conclusão VII).
- se ocorre erro na subsunção jurídica dos factos ao direito (vide conclusões VIII e seguintes).

Ainda e como questão suscitada pelo MºPº nas suas contra-alegações - se o recurso deve ser rejeitado por falta de conclusões.
*
Questão prévia:
Estando o processo “Do acompanhamento de maiores” enquadrado nos processos especiais [Livro V, Título III] é ao mesmo aplicável para além das disposições que lhe são próprias as disposições gerais e comuns, observando-se em tudo o que não estiver previsto numas e noutras o estabelecido para o processo comum – vide artigo 549º nº 1 do CPC.
No que aos recursos respeita e na ausência de disposição própria – para além do previsto no artigo 901º [o qual estipula a recorribilidade da decisão relativa à medida de acompanhamento e legitimidade ativa] - são-lhe aplicáveis as regras do processo comum.
Será assim por referência a estas regras que será apreciada a pretensão deduzida pela recorrente em sede de recurso e nomeadamente considerado o seu objeto, em função das conclusões das alegações aduzidas pela mesma.
Bem como apreciada a questão suscitada pelo MºPº quanto à inexistência de conclusões.
*
Apreciando.
1) Em função das questões acima enunciadas e por em relação ao conhecimento das demais se apresentar como prejudicial, será apreciada em primeiro lugar a invocada inexistência de conclusões.
Tal como resulta do alegado, esta inexistência funda-se no facto de a recorrente, em violação do poder de síntese que lhe é imposto pelo artigo 639º nº 1 do CPC, se ter limitado à quase integral reprodução do corpo alegatório no segmento denominado de “Conclusões”.
Como é sabido, esta é questão que tem dividido a jurisprudência.
Para os que seguem uma interpretação mais restritiva, é defendido que a reprodução “ipsis verbis” nas conclusões do corpo alegatório, não respeita o dever de apresentar conclusões entendidas estas como uma síntese do alegado no corpo alegatório.
Com a consequente rejeição imediata do recurso, por violação do disposto no artigo 639º do CPC nº 1 e de acordo com a sanção prevista no artigo 641º nº 2 al. b) do mesmo CPC - entendimento em que o MºPº sustentou a sua argumentação.
Uma outra corrente, maioritariamente seguida pelo nosso tribunal superior, defende que no caso em que as conclusões consubstanciam uma reprodução “ipsis verbis” do corpo alegatório, justificarão as mesmas em última análise o convite ao seu aperfeiçoamento nos termos do artigo 639º, nº 3 do CPC. Já que formal e objetivamente as mesmas existem, ainda que violando a exigida e pressuposta síntese da argumentação aduzida, com vista a de forma clara e inteligível identificarem as questões colocadas ao tribunal[1].
Concordando com esta última corrente a que aderimos e entendendo que as conclusões aduzidas no presente recurso se apresentam claras e inteligíveis, de tal modo que o MºPº nas suas contra-alegações às mesmas respondeu, sem denotar qualquer dificuldade na perceção das questões colocadas à apreciação deste tribunal entende-se não só observado o dever de apresentar conclusões, como desnecessário o convite ao aperfeiçoamento das conclusões apresentadas.
Termos em que improcede a, pelo MºPº, pugnada rejeição do recurso.
2) Do lapso identificado pela recorrente (vide conclusões III e IV).
Consta do relatório da decisão recorrida que “Foi suprida a autorização da beneficiária para instauração da presente ação.”
Tal como acima já deixámos enunciado, a beneficiária fez juntar aos autos (através da requerente) declaração de autorização à instauração da presente ação.
Assim assiste razão à recorrente no lapso apontado, lapso este evidente e na verdade sem relevo para o que foi decidido, atendendo ao que resulta da própria argumentação constante da decisão recorrida sobre a capacidade da beneficiária de “assinar o nome, mas com a letra irregular, dado os seus problemas de visão” e de “razão discursiva, isto é, de exprimir uma vontade própria, livre e esclarecida sobre assuntos correntes da sua vida, quer sejam patrimoniais, quer sejam pessoais”. Argumentação esta consonante precisamente com a vontade declarada pela beneficiária através da declaração em análise e não questionada.
De qualquer modo e em retrato fiel da tramitação processual, aqui se deixa tal lapso reconhecido e corrigido – devendo passar a constar da decisão que a beneficiária deu autorização à instauração da ação em substituição da afirmada “suprida autorização da beneficiária (...).”

3) Cumpre em terceiro lugar conhecer da arguida nulidade da decisão recorrida, por contradição entre os factos provados e a decisão (vide conclusão VII)
As causas de nulidade da sentença, previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC[2], respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”[3], pelo que nas mesmas não se inclui quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito[4].
A contradição, fundamento da nulidade invocada e prevista no artigo 615º nº 1 al. c) do CPC, pressupõe uma construção viciosa da sentença, na medida em que a argumentação aduzida pelo juiz como fundamento da sua decisão conduziria a um sentido diverso do proferido. Evidenciando como tal um vício de raciocínio.
Sendo a decisão o resultado de um raciocínio lógico, expositivo e argumentativo que da mesma é pressuposto, são os fundamentos da mesma as premissas lógicas necessárias daquela. Entre ambas naturalmente impõe-se a coerência e clareza. E quando assim não ocorra, verifica-se o vício da oposição ou contradição como a recorrente invocou e/ou obscuridade, sancionado com a nulidade ora em análise.
Não se confunde a contradição entre os fundamentos e a decisão geradora de nulidade com a contradição entre factos provados e não provados, ou quando à decisão de facto se imputa a omissão quanto a factos essenciais à decisão da causa, ou ainda quando à motivação da decisão de facto se imputa vício por erro de julgamento.
Nestas hipóteses, o que está em causa é um vício da decisão de facto a ser corrigido nos termos do artigo 662º do CPC (tal como supra já referido).
Tão pouco se confunde a contradição da decisão em análise com a errada subsunção dos factos ao direito, porquanto então estará em causa o erro de julgamento e não a nulidade de sentença[5].
Tendo presentes estes considerandos, cumpre analisar se assiste razão à recorrente nos vícios apontados à decisão recorrida.

Da alegação da recorrente resulta claro discordar a mesma da decisão do tribunal a quo que julgou improcedente a sua pretensão, por em suma ter entendido não estarem preenchidos os pressupostos de que depende a procedência do pedido formulado.
Como resulta da argumentação jurídica da decisão recorrida a mesma é clara, coerente e evidencia um raciocínio lógico em que os seus fundamentos são as premissas lógicas necessárias daquela.
Poderá a recorrente com a mesma não concordar, como o expressou, mas tal não respeita ao vício em análise. Antes ao erro de julgamento.
Erro que cumpre apreciar em sede de subsunção jurídica dos factos ao direito.
Inexiste, pois, um qualquer vício de raciocínio ou argumentativo. Que aliás a recorrente não identifica.
Termos em que se julga improcedente a arguida nulidade por contradição da decisão.
4) Do direito.
Cumpre por último apreciar se a decisão recorrida padece de erro na subsunção jurídica dos factos ao direito (vide conclusões VIII e seguintes).
Certo que a decisão de facto não vem impugnada e como tal se tem como definitivamente assente.
O regime jurídico do maior acompanhado aprovado pela Lei 49/2018[6] resultou de uma proposta de lei do Governo (proposta nº 110/XIII disponível em www.parlamento.pt de cuja exposição de motivos decorre terem sido fundamentos finais da alteração proposta “a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível; a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar; a flexibilização da interdição/inabilitação, dentro da ideia de singularidade da situação; a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; o primado dos seus interesses pessoais e patrimoniais; a agilização dos procedimentos, no respeito pelos pontos anteriores; a intervenção do Ministério Público em defesa e, quando necessário, em representação do visado.”
Do ponto de vista processual manteve-se a sua natureza de processo especial, regulado nos artigos 891º e seguintes do CPC, o qual se rege pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo quanto não estiver prevenido numa e noutras, observando-se ainda o estabelecido para o processo comum – vide artigo 549º do CPC.
Aplicando-se no que respeita aos poderes do juiz, o disposto nos processos de jurisdição voluntária (vide artigo 891º) ou seja o previsto nos artigos 986º a 988º do CPC que regulam nestes processos os poderes do juiz – poder de (986º nº 2) “investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.”; critério de julgamento, regido não por critérios de legalidade estrita mas pela busca no caso concreto da solução mais conveniente e oportuna (987º) e valor das resoluções, alteráveis (988º) “sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.”
Do ponto de vista substantivo foram introduzidas várias alterações no CC, das quais realçamos as que respeitam aos artigos 138º a 156º [antes divididos em duas subsecções interdição e inabilitação] ora integrados numa subsecção III (única) intitulada “Maiores acompanhados”.
Todas as alterações introduzidas evidenciam, na linha dos fundamentos da proposta acima já mencionados, ser este regime do maior acompanhado direcionado para a proteção dos interesses daquele que carece de ser acompanhado[7] e que em consonância é, no regime legal aprovado, apelidado de “beneficiário”.
Em conformidade, define o artigo 138º do CC que este regime se destina a beneficiar das medidas de acompanhamento previstas neste Código o “(…) maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”.
Visando este acompanhamento do maior assegurar “o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.” (artigo 140º nº 1 do CC).
Acresce, estabelecer o nº 2 do artigo 140º, não ter lugar a aplicação de qualquer medida sempre “que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e assistência que no caso caibam”.
Da análise conjugada destes dois normativos têm vindo a ser identificados pela doutrina e jurisprudência requisitos subjetivos e objetivos de aplicação de medidas de acompanhamento, a que se acrescenta um requisito negativo decorrente do princípio da subsidiariedade consagrado no nº 2 deste artigo 140º.
Sendo a medida de acompanhamento a maior decretada para salvaguarda dos interesses do beneficiário, com vista a garantir “o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres”, mesmo que verificados os requisitos subjetivos e objetivos de que depende a aplicação da medida, esta não terá lugar quando tais finalidades se mostrem garantidas através dos deveres gerais de cooperação e assistência, nomeadamente familiares (artigo 140º nº 2 do CC).
Requisitos subjetivos que respeitam à verificação da impossibilidade por parte do beneficiário de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres de forma plena – a conjugar com a correspondente necessidade de beneficiar de uma concreta medida de acompanhamento (remetendo-nos para o requisito negativo).
Requisitos objetivos que respeitam à causa de impossibilidade de exercer tais direitos e deveres “por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento”[8].
Tendo presentes os requisitos de que depende a justificação da aplicação de uma medida de acompanhamento a maior, acima assinalados, e no confronto com os factos apurados, afigura-se-nos não merecer censura o decidido.
Está provado:
- (fp 4) que a beneficiária não é portadora de um défice cognitivo, não estando atingidas grave e globalmente as suas funções psíquicas. Ainda que padeça de cegueira total e défices motores muito significativos.
- (fp 5) não existe à data dos exames médicos uma limitação grave da faculdade de discernimento da beneficiária.
- (fp 6) À luz dos conhecimentos médicos atuais não é previsível que possa melhorar, apesar dos tratamentos e cuidados necessários que lhe são prestados permanentemente.
- (fp 7) A deficiência constatada limita seriamente as capacidades da beneficiária, necessitando de ajuda para gerir a sua pessoa e bens, necessitando do acompanhamento de uma terceira pessoa da sua confiança, que permita que juntas tomem as decisões de gestão patrimonial.
- (fp 8) A beneficiária apresenta cegueira total há 4 anos, tendo também desde então limitação da mobilidade com uso de cadeira de rodas e dependência para as atividades de vida diárias e também no recurso aos serviços de saúde e outros serviços públicos.
- (fp 9) A beneficiária precisa de ajuda no banho, de ajuda a vestir-se, tem de ser conduzida mesmo em sua casa, come pela sua mão, mas tem de ser preparado o prato de forma a que ela possa utilizar devidamente os talheres; tem controlo de esfíncteres, mas tem que ser ajudada a ir à casa de banho.
- (fp 10) A beneficiária é acompanhada regularmente por Medicina Geral e Familiar na Unidade de Saúde da sua área de residência, USF ..., com consultas domiciliárias, tendo consultas de outras especialidades sempre que estas se justificam.
- (fp 11) A beneficiária é capaz de assinar o nome, mas com a letra irregular, dado os seus problemas de visão.
- (fp 12) A beneficiária vive sozinha e as limitações que apresenta e que a condicionam nas atividades da vida diária são colmatadas por quatro cuidadoras contratadas, duas para o dia e duas à noite, que a auxiliam permanentemente.
- (fp 13) Tem apoio total e presente da sua família, em especial da sua filha, aqui Requerente, e do seu filho CC.
- (fp 14) A Requerida delegou na sua filha, aqui Requerente, os levantamentos e depósitos bancários, sendo a mesma quem trata dos seus assuntos bancários.
- (fp 15) Dado o seu problema de visão e défices motores, a beneficiária já não consegue fazer pagamento como seja a água, a eletricidade ou o telefone, nem se desloca, por não o conseguir de forma autónoma, quer ao médico, quer a repartições públicas, financeiras e sociais.
Da factualidade acima elencada extrai-se que a requerida não é portadora de deficit cognitivo, não estando atingidas grave e globalmente as suas funções psíquicas, nem padece de limitação grave da faculdade de discernimento.
As suas relevantes limitações decorrem da sua cegueira e défices motores significativos que implicam a ajuda de terceiros, seja para os seus cuidados do dia a dia [banho, alimentação e deslocação à cava de banho]; seja para gestão das despesas correntes – na medida em que não consegue efetuar pagamentos por não se conseguir deslocar de forma autónoma. Não só pelo estado de cegueira, mas também e principalmente pelas limitações motoras.
Estas limitações demandam a ajuda de terceiros.
Ajuda que está garantida, seja através de cuidadores que a auxiliam no dia a dia (vide fp 12) seja através de familiares muito presentes e que tratam da gestão financeira, com a confiança da beneficiária (vide fp´s 13 e 14).
Não há dúvidas, perante a factualidade apurada de que a beneficiária continua capaz de formar a sua vontade.
A sua limitação está na capacidade de exercer a sua vontade, como consequência das limitações motoras.
Mas no caso a já mencionada capacidade de exercer a sua vontade permite à beneficiária delegar em terceiros, no caso na filha que a apoia totalmente, a gestão dos seus assuntos.
Tanto que até delegou na mencionada filha os assuntos relacionados com a gestão bancária e aos autos veio expressar o acordo na instauração da presente ação.
Não basta, porém à beneficiária, estar de acordo, para que sejam decretadas medidas de acompanhamento.
Como acima aludido, é também necessário que a beneficiária careça de tais medidas, nomeadamente por as finalidades que se visariam obter com as mesmas não estarem garantidas através dos deveres gerais de cooperação e assistência.
Em causa estão as limitações derivadas da impossibilidade de deslocação autónoma da beneficiária – mais do que a cegueira, que em si não é impeditiva do cabal exercício dos direitos e deveres dos cidadãos que se vêm afetados de tal estado - que a impedem de executar a sua vontade.
Ora estas limitações estão supridas pelo apoio total familiar de que a beneficiária goza, nada a impedindo de conferir nomeadamente poderes de representação, gerais ou especiais, a esses mesmos familiares.
Como aliás já o fez ainda que informalmente para tratar dos assuntos bancários.
Nesta medida entende-se verificado o requisito negativo que em respeito pelo princípio da subsidiariedade afasta, no caso concreto, a nomeação de um acompanhante e a adoção de medidas de acompanhamento, tal como decidido pelo tribunal a quo.

IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar a presente apelação totalmente improcedente, consequentemente se mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 2023-09-25
Fátima Andrade
Carlos Gil
António Coelho
_______________
[1] Seguindo esta orientação e reiterando outras decisões deste mesmo tribunal, vide Ac. STJ de 13/07/2022, nº de processo 17909/17.5T8PRT-A.P2.S1 in www.dgsi.pt
[2] Preceitua o artigo 615º nº 1 do CPC
“1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
[3] Cfr. Ac. STJ de 23/03/2017, nº de processo 7095/10.7TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt
[4] Vide Ac. STJ de 30/05/2013, nº de processo 660/1999.P1.S1, in www.dgsi.pt sobre a distinção entre nulidade da sentença (no caso por oposição entre os fundamentos e decisão) versus erro de julgamento.
[5] Cfr. os Acs. citados nas notas 3 e 4.
[6] A Lei 49/2018 de 14/08 entrou em vigor em 10/02/2019.
[7] À luz do que se verificava já no anterior regime. Tendo a alteração introduzida visado corrigir inadequações das soluções anteriormente constantes do CC de 1966, adaptando-se à evolução social entretanto verificada e dando primazia à autonomia da pessoa no novo modelo de acompanhamento em detrimento do anterior conceito de “substituição de pessoa carecida” - cfr. Maria dos Prazeres Beleza, “BREVÍSSIMAS NOTAS SOBRE A CRIAÇÃO DO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO, EM SUBSTITUIÇÃO DOS REGIMES DA INTERDIÇÃO E DA INABILITAÇÃO – LEI N.º 49/2018, DE 14 DE AGOSTO” in “O Novo Regime do Maior Acompanhado”, EBOOK CEJ.
[8] Enunciando esta distinção veja-se na doutrina Mafalda Barbosa “3. Fundamentos, conteúdo e consequências do acompanhamento de maiores”, in Ebook CEJ supra citado, p. 64-66, disponível em cej.justica.gov.pt, que aqui em parte deixamos reproduzido:
“São dois os requisitos para que possa ser decretado o acompanhamento, um de ordem subjetiva e outro de ordem objetiva.
No que ao primeiro respeita, haveremos de considerar a impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente os direitos ou cumprir os deveres. Em causa está, portanto, a possibilidade de o sujeito formar a sua vontade de um modo natural e são. Por um lado, há-de ter as capacidades intelectuais que lhe permitam compreender o alcance do ato que vai praticar quando exerce o seu direito ou cumpre o seu dever. Por outro lado, há-de ter o suficiente domínio da vontade que lhe garanta que determinará o seu comportamento de acordo com o pré-entendimento da situação concreta que tenha”
E dando a autora como exemplo do não domínio da vontade por parte do sujeito a situação em que esta “está fragilizada ou (...) não consegue torna-la atuante. Pense-se, por exemplo, na situação de um tetraplégico ou de uma pessoa que, sofrendo de uma atrofia muscular que não o afeta intelectualmente, não consegue pôr em marcha a sua vontade, de modo que dela se poderá dizer que não tem o domínio da vontade que lhe permita determinar o seu comportamento de acordo com o seu entendimento.”, conclui:
“Em suma trata-se da possibilidade de o sujeito se autodeterminar, no que respeita ao exercício dos seus direitos e ao cumprimento dos seus deveres. A lei prescinde agora dos requisitos da habitualidade,
permanência e durabilidade e permite que o acompanhamento seja decretado em relação a um especial domínio da vida do beneficiário e a situações transitórias. Pense-se, por exemplo, no internamento subsequente a um acidente, tratamento ou intervenção cirúrgica, que deixa a pessoa impossibilitada de exercer os seus direitos por um período de tempo relativamente curto. Mas continua a exigir-se uma certa constância, até porque o acompanhamento só será decretado quando não seja possível alcançar as finalidades que com ele se prosseguem através de deveres gerais de cooperação e assistência.”
O preenchimento do requisito de índole objetiva, depende, por sua vez, da verificação de que “a impossibilidade para exercer os direitos ou cumprir os deveres se funde em razões de saúde, numa deficiência ou no comportamento do beneficiário.
(...)
Nas razões de saúde integram-se quer as patologias de ordem física, quer as patologias de ordem psíquica e mental. Parece, portanto, haver um alargamento em relação ao quadro de fundamentos das interdições e inabilitações, não se ficando preso a uma ideia estrita de anomalia psíquica. Já no que respeita à deficiência, integram-se na previsão normativa os cegos e os surdos-mudos, a que já se referia o anterior regime das interdições e inabilitações, tal como se integram as deficiências mentais, aí também contempladas. Fundamental é que a deficiência limite o desempenho do sujeito em termos volitivos e/ou cognitivos. Serão, por isso, residuais as situações de cegueira ou surdez-mudez que possam fundar o regime do acompanhamento, na medida em que dificilmente determinarão a limitação da possibilidade de exercer direitos e cumprir deveres, o que não significa que sejam inexistentes.
Finalmente, no tocante ao segmento pelo seu comportamento (...)
Fundamental é que o comportamento concreto se repercuta na impossibilidade de exercer direitos e cumprir deveres, isto é, que o comportamento seja causa, em concreto, pelo menos num domínio específico da vida, da falta de autodeterminação da pessoa. Pense-se por exemplo no sujeito A que é viciado em jogo, condicionando a gestão dos seus interesses patrimoniais por causa dessa adição (...).”
Realça por fim a autora a necessidade de ter presente, na “determinação do âmbito de relevância do acompanhamento (...) uma outra ideia. O regime é edificado com base num princípio de subsidiariedade. Visando assegurar o bem-estar e a recuperação do maior, garantir o pleno exercício dos seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, a medida de acompanhamento só é decretada quando as
finalidades que com ela se prosseguem não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação e assistência, o que significa que, independentemente da verificação dos requisitos subjetivo e objetivo da medida de acompanhamento, pode não se justificar normativamente a nomeação de um acompanhante.”.
No mesmo sentido vide Margarida Paz na mesma publicação – “O Ministério Público e o Novo Regime do Maior Acompanhado”, onde a propósito do princípio da subsidiariedade extraído da norma contida no nº 2 do artigo 140º deixa duas pertinentes notas:
“Deixamos apenas duas breves notas a propósito deste preceito legal.
Como já aflorámos, estes deveres gerais de cooperação e assistência constituem medidas informais de acompanhamento e, por isso, subtraídas à decisão judicial. Mas constituem verdadeiras medidas de apoio e, como tal, também neste caso a vontade e as preferências da pessoa devem ser respeitadas, em obediência à Convenção.
Por outro lado, na análise da necessidade, ou não, de medida de acompanhamento judicialmente decretada, deve ser ponderado com muita cautela se, ainda que se verifiquem em abstrato os deveres de cooperação e assistência, o maior é devida e efetivamente assistido, estando assegurado o seu bem-estar, a sua recuperação, assim como o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres”. Igualmente Maria dos Prazeres Beleza, na mesma publicação – “Brevíssimas notas sobre a criação do regime do maior acompanhado, em substituição dos regimes da interdição e da inabilitação”, p. 18, assinala a subsidiariedade das medidas de acompanhamento «em relação aos “deveres gerais de cooperação e assistência que no caso caibam”, por exemplo, decorrentes de relações familiares (140.º);».
E na jurisprudência, enunciando os mesmos requisitos, vide Ac. TRL de 04/02/2020, nº de processo 3974/17.9T8FNC.L1-7; Ac. TRG de 15/10/2020 de 286/18.4T8MNC.G1 todos in www.dgsi.pt