Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | PAULO DUARTE TEIXEIRA | ||
| Descritores: | COMPETÊNCIA INTERNACIONAL CONTRATO DE UTILIZAÇÃO E ACESSO DE CONTA DE EMAIL PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR REGULAMENTO EU 1215/2012 | ||
| Nº do Documento: | RP2022091519710/21.2T8PRT-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 09/15/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Legislação Comunitária: | REGULAMENTO EU 1215/2012 | ||
| Sumário: | I - A competência internacional afere-se pela versão alegada pelo autor. II - Caso o litígio diga respeito a partes domiciliadas na União são aplicáveis as normas comunitárias e não as regras do CPC. III - Num litígio relativo ao acesso a uma conta de email deve considerar-se preponderante o local da residência do autor, na medida em que é esse o local de utilização mais frequente. IV - Deve considerar-se consumidor aquele que utiliza simultaneamente uma conta de email para fins profissionais e pessoais, se nem sequer foi posta em causa a utilização particular e ambas são exteriores à sua competência profissional. V - Num litigio com um consumidor a fixação convencional de outra competência só é permitida nos termos do art. 19º, do regulamento 1215/2012. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo: 19710/21.2T8PRT * Sumário:** ……………………….. ……………………….. ……………………….. * 1. Relatório O autor intentou a presente acção contra M... Limited, ..., ..., ..., ..., Irlanda, registada na Conservatória do Registo Comercial da Irlanda com o número ..., com a morada registada ... ..., Irlanda. K..., Lda., NIPC ..., sociedade por quotas com sede na Rua ..., ..., ..., Lisboa. Alegando que: “olhando para os vários Contratos de Serviços da M..., se retira que será o local para onde os serviços do Cliente são encaminhados pela M... e que o Contrato de Serviços M... de abril de 2021 especifica como sendo o local onde o Cliente tem residência habitual”, devendo a competência territorial situar-se, por isso, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto (cfr. §§ 36 e 37 da Réplica) As RR invocaram a incompetência internacional do tribunal dizendo que ““o local do cumprimento da obrigação não se localiza no Porto, pois a especificidade e desmaterialização atinentes à mesma implicam que, caso as Rés fossem condenadas a conceder ao Autor a recuperação do acesso à sua alegada conta de email (o que não se concede e não poderia, em qualquer caso, suceder, dado que a conta foi eliminada dados os anos de inatividade), essa “permissão” de acesso possa ser cumprida em qualquer um dos data centres localizados por toda a Europa. Foi proferido despacho que julgou a excepção improcedente. Inconformadas vieram as RR recorrer o qual foi admitido como de apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo (artigos 644º, nº 2, alínea b), 645º, nº 2 e 647º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil). * 2.1. Foram apresentadas as seguintes CONCLUSÕES1. Na sequência da sua citação, as Rés contestaram e aduziram, entre outras, verificação da exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses para julgarem e decidirem a presente ação, em virtude de ter sido celebrado um pacto de jurisdição que atribui competência internacional aos tribunais do Luxemburgo para quaisquer litígios decorrentes de, ou relacionados com, o Master Services Agreement (“MSA”) – o contrato ao qual o Autor se vinculou ao, alegadamente, ter criado um endereço de email Hotmail e utilizar os serviços da M.... 2. Tendo o Autor respondido às exceções aduzidas pelas Rés, o douto Tribunal a quo proferiu um Despacho Liminar no qual apenas decidiu sobre a exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses e, ainda, sobre a exceção de incompetência territorial do Juízo Local Cível da Comarca do Porto. 3. O douto Tribunal a quo julgou improcedente a exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, com fundamento no critério da alínea a) do artigo 62.º do CPC, nos termos da qual os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando a ação possa ser proposta em tribunal 4. português segundo as regras de competência territorial internas (o denominado “critério da coincidência”). 5. Ainda segundo o douto Tribunal a quo, pelo facto de o artigo 81.º, n.º 2, do CPC atribuir competência territorial ao tribunal do local da sede quando o Réu seja uma sociedade comercial, é territorialmente competente para conhecer da presente ação o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (local da sede da Ré K..., Lda.) e, por isso, verifica-se o critério da alínea a) do artigo 62.º do CPC, do que resulta que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes. 6. Sucede, porém, que o entendimento do douto Tribunal a quo quanto à competência internacional dos tribunais portugueses é, salvo o devido respeito, equivocado. 7. Em primeiro lugar, porque não considera que entre o Autor e a M... Luxembourg S.à.r.l foi celebrado o MSA, em virtude da criação da conta de email e da utilização dos serviços da M..., nos termos do qual são competentes para dirimir os litígios emergentes de, ou relacionados com, o MSA os tribunais do Luxemburgo – ou seja, não considera a existência de um pacto de jurisdição que se sobrepõe às normas legais supletivas sobre competência internacional. 8. Sendo impossível determinar – porque o próprio Autor não o sabe/não o faz na sua alegação – os anos da alegada criação e cessação de uso da conta de email Hotmail, podem ter-se por referência o MSA fevereiro 2007 ou o MSA outubro 2007 – uma vez que o Autor refere que no ano de 2007 realizou um backup à referida conta de email e tem registos dessa altura – ou, ainda, o MSA 2014, pois o Autor refere que este terá sido o ano em que, alegadamente, perdeu o acesso à conta. 9. Conforme resulta do teor de cada um destes MSA, que são celebrados com a M... Luxembourg S.à.r.l (e não com as Rés, e por isso se encontra pendente de decisão verificação de uma exceção de ilegitimidade passiva das Rés), os tribunais competentes para dirimir litígios emergentes de, ou relacionados com, o MSA é dos tribunais luxemburgueses. 10. A utilização dos serviços da M... e, designadamente, da conta Hotmail que o Autor diz ter criado e da qual se arroga titular implica a celebração de termos contratuais com a M... (rectius, com determinada sociedade do “grupo”) e o cumprimento das obrigações naqueles contidas – de entre as quais se encontra a obrigação mútua de submeter quaisquer litígios à resolução pelos tribunais luxemburgueses. 11. Em segundo lugar, porque analisa esta exceção à luz de normas legais que não são as aplicáveis no caso concreto, recorrendo às normas do CPC que regulam a competência internacional dos tribunais portugueses, ao invés de recorrer às normas do Regulamento n.º 1215/2012. 12. O Regulamento n.º 1215/2012 regula a determinação da (in)competência internacional dos tribunais portugueses na presente ação pois os seus pressupostos de aplicação objetivo, subjetivo, temporal e espacial estão verificados no caso em apreço, sendo a sua aplicação convocada por estar em causa um litígio plurilocalizado. 13. Segundo o artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o artigo 288.º do TFUE e, ainda, o princípio do primado do direito eurocomunitário, o Regulamento n.º 1215/2012, conquanto estão preenchidos os seus âmbitos de aplicação no caso concreto, prevalece sobre as normas internas – neste caso, sobre os artigos 62.º e 63.º do CPC. 14. Nos termos do artigo 25.º do Regulamento n.º 1215/2012, quando as partes, independentemente do seu domicílio, tenham convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. 15. Conforme resulta do preceito transcrito, a existência de um pacto de jurisdição (neste caso, atributivo) celebrado entre as partes para dirimir determinado(s) litígio(s), ou um certo tipo de litígios, é o critério determinante para definir o tribunal internacionalmente competente num caso, que prevalece sobre os demais critérios legais supletivos. 16. Ainda nos termos do artigo 25.º, n.º 1, 2ª parte do Regulamento n.º 1215/2012, o pacto de jurisdição celebrado pelas partes deve cumprir dois requisitos para ser considerado válido e eficaz à luz do Regulamento, estando ambos verificados no caso em apreço. 17. Com efeito, (i) este pacto foi celebrado por escrito e (ii) estando em causa o comércio internacional, este pacto foi celebrado de acordo com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto em questão. 18. Para este efeito, são irrelevantes os critérios internos / nacionais de validade, devendo a verificação daqueles requisitos ser feita à luz do próprio Regulamento e/ou de outra legislação europeia. 19. Do exposto resulta que o Despacho Liminar de que se recorre decidiu pela improcedência da exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses em completa desconsideração pela verificação, no caso em apreço, do critério que permite afastar as normas legais supletivas: a vontade das partes. 20. A esta omissão soma-se, ainda, o facto de ter decidido com base em regras legais inaplicáveis ao caso em apreço (pese embora, não pode deixar de se referir, a aplicação das regras sobre competência internacional do CPC conduzam à mesma solução, pois que, de acordo com o artigo 94.º, n.º 1, são competentes os tribunais da jurisdição que as partes convencionarem para dirimir os litígios decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica). 21. Do exposto resulta que os tribunais internacionalmente competentes para conhecer da presente ação são os tribunais do Grão-Ducado do Luxemburgo, pelo que, tendo a mesma sido instaurada em Portugal, verifica-se uma exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses (sem competência internacional) que determina a absolvição das Rés da instância, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC. 22. Deve, por isso, ser o Despacho de que se recorre anulado quanto ao segmento decisória sobre a competência internacional dos tribunais portugueses e, em substituição do mesmo, devem os tribunais portugueses ser declarados internacionalmente incompetentes e as Rés absolvidas da instância, através da procedência do presente recurso de apelação. * 2.2. A parte contrária respondeu: 1. Está em discussão a competência internacional dos Tribunais portugueses, tendo sido o Recurso de Apelação interposto em virtude da decisão do Tribunal a quo que julgou improcedente a exceção de incompetência internacional dos Tribunais portugueses. 2. Alegam as Recorrentes, fundamentalmente, a existência de uma pacto de jurisdição decorrente, quer do MSA de fevereiro de 2007, quer do MSA de outubro de 2007, que resultaria, a seu ver, necessariamente na competência dos tribunais luxemburgueses. 3. Nenhuma razão assiste as Rés, a não ser no que toca à defesa da aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012. 4. Entendemos que o percurso legal a seguir, salvo o devido respeito por opinião diversa, terá de ser outro, ainda que com a mesma conclusão a que terá chegado o Tribunal a quo. 5. Nomeadamente, fazendo aplicação dos Regulamentos Europeus aplicáveis ao caso em apreço e não ao Código de Processo Civil na fundamentação da competência dos tribunais portugueses. 6. Refira-se que nunca seriam de aplicar à relação os MSAs de 2007, uma vez que não se retira da Petição Inicial, nem de qualquer peça dos Autos que terá sido nesse ano que o Autor terá criado a conta, reportando-se sempre a data anterior e, por isso, nunca poderia ser este o contrato regulador da relação entre as Partes. 7. Contudo, ainda que assim se considerasse, também as normas destes contratos não seriam as aplicáveis, uma vez que as sucessivas atualizações dos MSAs têm aplicação imediata após entrada em vigor. 8. Resultando dos próprios contratos que a última atualização substitui integralmente os contratos celebrados anteriormente com os clientes. 9. Assim, não vigora qualquer pacto de jurisdição entre as Partes, e muito menos aquele que fazia referência aos tribunais Luxemburgueses, tendo sido substituído e desaparecido nas sucessivas atualizações do contrato regulador das relações com os clientes e a M.... 10. Assim, da aplicação conjunta do Regulamento Geral de Proteção de Dados (considerando 145) e do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 (do seu artigo 7.º, n.º 1, al. b)), que se aplicam supletivamente e que remetem, respetivamente, para os tribunais do Estado-Membro de residência do titular dos dados e para o local onde foram prestados os serviços, apenas se poderá concluir pela competência internacional dos Tribunais portugueses. 11. Caso isto não bastasse, ainda que, inexplicavelmente, se entendesse que efetivamente se retira da situação em causa a vigência de um pacto de jurisdição, alerta o Autor para a nulidade do mesmo. 12. Cabendo a cláusula, na parte em que atribui a competência exclusiva aos tribunais luxemburgueses, em detrimento de todos os outros, no conceito de cláusula relativamente proibida por força do artigo 20.º que remete para o art. 19.º, mais precisamente, na al. g), ambos do DL n.º 446/85, de 25 de outubro. 13. Aplicando-se a referida alínea, por maioria de razão, e uma vez que a lista não tem caráter taxativo, às situações de estabelecimento de jurisdição que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem. 14. Temos uma sociedade com representação permanente em Portugal, tendo, nomeadamente, uma das Rés, sede neste país. 15. Não representando qualquer entrave à sua defesa ou qualquer inconveniente para os seus interesses que a ação decorra nos nossos tribunais. 16. Contrariamente, para o Autor, esta pode ser a diferença entre conseguir ou não a tutela jurisdicional efetiva dos direitos que a merecem. 17. Desde logo, pelas “inevitáveis dificuldades de litigância perante uma jurisdição estrangeira” referidas no Acórdão da Relação de Lisboa de 10/04/2014. 18. Mas também todos os custos acrescidos e deslocações necessárias ao decorrer de uma ação no estrangeiro, aliados a uma língua não conhecida pela Parte. 19. Concluindo-se que é nulo o referido pacto atributivo de jurisdição ao abrigo do art. 12.º do do DL n.º 446/85, de 25 de outubro. 20. Resultando na mesma solução melhor descrita no ponto 10 destas conclusões, isto é, na aplicação das regras supletivas que resultam necessariamente na competência dos Tribunais Portugueses. * 3. questões a decidirDeterminar qual o tribunal internacionalmente competente. * 4. Motivação de facto1. O Autor alegou que criou uma conta no serviço de e-mail online Hotmail (que tem a designação atual de Outlook.com) com o endereço de e-mail ...@hotmail.com e que usou esta conta até 2014. 2. O autor não sabe precisar a data, mas alega que a mesma terá sido criada em data anterior a 2007. 3. Refere ainda que não consegue ter acesso à sua conta há mais de 6 anos por ter perdido a respetiva password, pelo que se encontra sem acesso à mesma e às informações e documentos aí contidos e que revestem importância pessoal e profissional. 4. As RR alegam que em 2007 foi celebrado um aditamento ao acordo nos termos da qual as partes estabeleceram os tribunais do Luxemburgo como os competentes para dirimir litígios entre si. 5. Motivação Jurídica Está em causa apurar qual o tribunal internacionalmente competente, se o nacional, se o do Estado do Luxemburgo. A competência internacional afere-se pela versão alegada pelo autor conforme salienta, entre vários, o Ac. STJ de 30/04/2015, proferido na revista 1628/12.1TMPRT-A.P1.S1,. Acresce que o aparente conflito entre as normas do regulamento 1215/2012 e o Código de processo civil, deve ser interpretado de forma simples através do principio da especialidade, sendo estas aplicáveis quando não estivermos numa situação de plurilocalização entre Estados membros.[1] Ora, a aplicabilidade do regulamento depende apenas de as partes estarem domiciliadas num Estado membro ou num Estado terceiro, pelo que é aplicável à situação dos autos.[2] Sendo que face ao primado do direito europeu o regulamento sempre seria aplicável se se considerassem aplicáveis (o que, como vimos não é o caso) as normas do CPC. * 2. Da aplicação do regulamento nº 1215/2012* Neste caso, estamos perante um litigio entre este e, pelo menos, uma sociedade com sede no Luxemburgo, relativo ao contrato de utilização e acesso de uma conta email. Deste modo, segundo o autor estamos perante: a) uma relação contratual b) entre ele e uma sociedade com sede na EU c) relativa ao fornecimento de serviços de acesso a um email. Na União Europeia foi adotado o Regulamento 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que substituiu nas relações entre os Estados-Membros, a Convenção de Bruxelas de 27 de setembro de 1968. Este regulamento sofreu revisões, sendo a mais recente a do Regulamento 1215/2012, aplicável aos autos. O objectivo desse diploma conforme resulta do seu preâmbulo foi impor uma ligação entre os processos a que o presente regulamento se aplica e o território dos países da União Europeia. Sendo que são aplicáveis certas regras relativas à competência, independentemente do domicílio do requerido, a fim de: - assegurar que os consumidores e trabalhadores estão protegidos, - salvaguardar a competência dos tribunais dos países da UE quando têm competência exclusiva (por exemplo, no caso de bens imóveis), e - respeitar a autonomia das partes. Ora, nos termos do art. 7º, desse diploma, nos litígios contratuais, a acção deve ser intentada a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão; b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será: (…) — no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados; É certo que no caso de prestação de serviços, a internet, enquanto meio de informação e de comunicação global, coloca novas e sérias questões em especial quanto precisamente ao local de competência.[3] Mas neste caso se a residência habitual do autor é em território nacional, será esse também habitual em que os serviços seriam prestados ou acedidos. Note-se aliás, que o TUE já decidiu litígios semelhantes considerando, no caso da responsabilidade extra-contratual que os tribunais competentes seriam, não apenas o lugar do evento causal, mas também aquele em ocorreu a materialização do dano. Neste termo o Acs do TJU processos apensos C-509/09 e C-161/10 (eDate Advertising c. X e Olivier e Robert Martinez c. MGN) decidiu, além do mais (com maior relevância para este caso) que: a) o lesado tem direito intentar a acção no “lugar do centro dos seus interesses”; b) e que se deve exigir um “nexo territorial particularmente estreito entre o litígio e os tribunais do lugar onde ocorreu o facto danoso, suscetível de justificar uma atribuição de competência a estes últimos, por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo”. Acresce que como salienta Alexandra Pereira[4] na fixação da competência internacional vigora o principio da protecção da parte mais fraca: “em ordem a assegurar encontrar um equilíbrio entre as partes, permitirá fundamentar adequadamente a sua competência, sempre que o contrato “apresente uma conexão estreita com o território português”, nos termos do art. 23.º, 1, do diploma das cláusulas contratuais gerais”. Deste modo, teremos de concluir que, caso inexista convenção contrária, deve ser aplicável a competência em relação ao local de residência do autor. 3. Da aplicação da protecção como consumidor Em segundo lugar, não está claramente demonstrado, mas na tese e versão do autor este assume a qualidade de consumidor, o qual é, nos termos do art. 17º, do regulamento, aquele que exerce a actividade sem natureza profissional.[5] Esta noção tem vindo a ser uniformemente utilizada no direito comunitário como qualquer pessoa singular que actue com fins que não pertençam ao âmbito da sua actividade profissional [6]. Esta reproduz o conceito habitual utilizado nos diversos instrumentos legislativos comunitários nesta área e caracteriza-se, desde logo, pelo seu carácter restrito, subjectivista e teleológico. Restrito porque emprega um conceito limitado às pessoas físicas. Subjectivista porque a noção é qualificada face às qualidades de um dos contraentes. Teleológico porque se exige que essa aquisição seja realizada com um escopo específico e determinado. A legislação comunitária acentua a natureza subjectiva da relação contratual estabelecida (definindo-a não pelo seu objecto mas pelas características de uma das partes) e restringe a sua aplicação ao conceito de consumidor final, doméstico e familiar. A jurisprudência comunitária tem vindo a confirmar essa noção de forma uniforme[7]. Acresce que o facto de existir uma utilização híbrida do email não implica que o autor perca o seu estatuto de consumidor. Na verdade, seria simplista exigir utilizações absolutas e exclusivas de bens ou contratos para conceder essa protecção, muito menos, numa conta de email. Por isso, podemos (e devemos), em certas circunstâncias incluir na noção de consumidor um profissional na qualidade de consumidor desde que o negócio jurídico não seja celebrado no âmbito da sua actividade profissional. Como salienta Calvão da Silva[8] estão incluídas na noção de consumidor “as relações jurídicas estabelecidas entre uma empresa e um profissional que actua fora da sua profissão”. (nosso sublinhado). O estatuto do consumidor pressupõe precisamente que todos possam assumir essa qualidade face ao concreto negócio jurídico, profissionais e consumidores tendo em conta a sua posição estrutural variável em relação ao contrato. O essencial será, por isso, que o uso não profissional (preponderante) a que se destina o bem, serviço ou direito adquirido. In casu face à natureza do serviço (serviços de email) parece seguro que se situam fora da competência profissional do autor. Logo, neste caso o autor será considerado consumidor[9]. E, por isso, pode intentar uma acção contra a outra parte, quer perante os tribunais do Estado-Membro em cujo território esteja domiciliada essa parte, quer perante o tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio. Isso é o que decorre do art. 18º, desse diploma que dispõe “o consumidor pode intentar uma ação contra a outra parte no contrato, quer nos tribunais do Estado-Membro onde estiver domiciliada essa parte, quer no tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio, independentemente do domicílio da outra parte”. Por seu turno, a outra parte só pode intentar uma acção contra o consumidor perante os tribunais do Estado-Membro em cujo território estiver domiciliado o consumidor, Acresce que resulta do art. 19 limites à alteração contratual desse regime, na medida em que: “As partes só podem derrogar ao disposto na presente secção por acordos que: 1. Sejam posteriores ao surgimento do litígio; 2. Permitam ao consumidor recorrer a tribunais que não sejam os indicados na presente secção; ou 3. Sejam celebrados entre o consumidor e o seu cocontratante, ambos com domicílio ou residência habitual, no momento da celebração do contrato, num mesmo Estado-Membro, e atribuam competência aos tribunais desse Estado-Membro, salvo se a lei desse Estado-Membro não permitir tais acordos (nosso sublinhado). Deste modo, ao contrário do que pretende a apelante a cláusula que terá convencionado um foro não pode ser aplicável no caso presente, porque, por um lado não está demonstrado que tenha sido posterior ao início do litigio[10]; nem estamos perante a restante previsão do art. 19. Importa ainda recordar que o nosso ordenamento prevê como cláusula relativamente proibida, a cláusula que estabeleça um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem (art. 19.º, al. g), do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, e alterado pelos Decretos-Lei n.º 220/95 de 31 de Janeiro. Nestes termos o alegado foro convencional não pode, validamente, por em causa a proteção do consumidor prevista no regulamento e, por isso, o tribunal internacionalmente competente será o do domicilio do autor. * A decisão relativa à competência interna, que remeteu os autos para o tribunal da comarca de lisboa não faz parte deste recurso e por isso não pode sequer ser apreciada.* 5. Decisão** Pelo exposto, este tribunal julga o presente recurso de apelação improcedente, por não provado e, por via disso, confirma a decisão recorrida na parte objecto de recurso. * Custas a cargo das apelantes porque decaíram inteiramente * Porto em 15.9.2022Paulo Duarte Teixeira Ana Vieira António Carneiro da Silva _______________________ [1] Cfr., por exemplo, o Ac da RL de 24.10.2019, nº 3682/06.6TBBRR-C.L1 (Pedro Martins). [2] Cfr. neste sentido o Ac da Rl de 19.5.2022, nº 10578/20.7T8LSB.L1-8 (Luís Mendonça) relativo a um caso semelhante (utilização da aplicação facebook), e Ac da RG de 9.6.2016, nº 3077/15.0T8BRG.G1 (Maria Carvalho). [3] Entre nós, a propósito do anterior regulamento: Luís Lima Pinheiro, Competência internacional em matéria de litígios relativos à Internet, Direito da Sociedade da Informação, vol. IV, Coimbra Editora, 2003 e Alexandre L. Dias Pereira, «A jurisdição na Internet segundo o Regulamento 44/2001 (e as alternativas extrajudiciais e tecnológicas)», Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra 77 (2001), p. 633-687, disponível e acedido em Agosto/2022: https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/28775/1/A%20JURISDI%c3%87%c3%83O%20NA%2 0INTER NET.pdf [4] Loc e ob cit., (sem numeração). [5] Cfr sobre essa protecção, entre outros o Ac da RP de 8.6.22, nº 23888/17.1T8PRT-A (Paulo Teixeira). [6] Essa noção foi utilizada pela primeira vez na Convenção de Bruxelas de 27.09.1968, art. 13, onde consumidor é “a pessoa física que não actua no exercício de uma actividade comercial ou profissional". A Convenção de Roma de 1980 dispõe no seu art. 5º, sob a epígrafe contratos concluídos por consumidores: "o presente artigo aplicasse aos contratos que tenham por objecto o fornecimento de objectos móveis corpóreos ou serviços a uma pessoa, o consumidor, para uma utilização que possa ser considerada como estranha à sua actividade profissional". Por seu turno, entre várias, a Directiva 99/44/CE define no seu art. 1º, nº2, al. a), consumidor como "qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente Directiva, actua com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional”. [7] A título meramente exemplificativo no Processo C‑500/18 (acórdão de 2 de abril de 2020), no âmbito deste regulamento o TJU conclui que “uma pessoa singular que, ao abrigo de um contrato como o contrato financeiro por diferenças celebrado com uma sociedade financeira, efetua operações financeiras por intermédio dessa sociedade, pode ser qualificada de «consumidor», na aceção dessa disposição, se a celebração desse contrato não se inserir no âmbito da atividade profissional dessa pessoa, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”. [8] In Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Almedina, p. 113. [9] Note-se que o supra citado Ac da RL decidiu, no caso concreto, pela aplicação de uma convenção celebrada entre as partes precisamente porque o autor “não pode ser considerado um consumidor se não fazia um uso só pessoal da sua conta, mas também utilizava a mesma para algumas divulgações da sua actividade profissional”. [10] Note-se que a apelante admite, nas alegações que “Sendo impossível determinar – porque o próprio Autor não o sabe/não o faz na sua alegação – os anos da alegada criação e cessação de uso da conta de email Hotmail, podem ter-se por referência o MSA fevereiro 2007 ou o MSA outubro 2007 – uma vez que o Autor refere que no ano de 2007 realizou um backup à referida conta de email e tem registos dessa altura – ou, ainda, o MSA 2014”. |