Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
452/21.5T8VNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
EFEITOS PESSOAIS
INDEMNIZAÇÃO AOS CREDORES
Nº do Documento: RP20231107452/21.5T8VNG-B.P1
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE; DECISÃO ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O incidente de Qualificação de Insolvência, constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor.
II - A verificação de alguma das situações previstas no n.º 2 do art.º 186.º do CIRE faz presumir, de forma inilidível a culpabilidade na insolvência.
III - Uma vez qualificada a Insolvência como culposa, impõe-se retirar dessa qualificação todos os efeitos legais, e, em particular, os efeitos pessoais que poderão atingir o Insolvente que tenha agido com culpa, nos quais se inclui a responsabilização de indemnizar os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados. (als. a) e e) do nº 2 do art. 189º do CIRE).
IV - Na fixação desse montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afetado, que deverá responder apenas na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 452/21.5T8VNG-B.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 2

Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Rui Moreira
Márcia Portela

SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO:
Declarada a insolvência de “A... - Unipessoal Lda.” veio a credora “B..., Lda.” apresentar parecer de qualificação da insolvência como culposa contra AA.
Para tanto alegou, em suma, que:
- é detentora, desde 2019, de um crédito sobre a Insolvente, sendo a requerida sócia e gerente da insolvente.
- não foram prestadas as contas e informações financeiras da insolvente relativamente aos três últimos exercícios, o que impediu os credores de conhecerem a situação contabilística real daquela.
- No decurso do ano de 2015, a Requerida adquiriu quotas, no valor de 11.875,00€ na sociedade “C..., Lda.” que, à data, tinha como gerente o seu pai.
- Na data em que a Requerida adquiriu participações sociais na sociedade “C..., Lda.”, esta detinha a marca e o estabelecimento comercial sobejamente conhecido por “D...”, sito na Rua ..., ..., 4000-431 Porto.
- Em 2018 a requerida constituiu a sociedade insolvente.
- No dia 11/1/2019, a insolvente adquiriu todo o imobilizado, que compunha o estabelecimento comercial da “D...”, à sociedade “C..., Lda.”, sendo que os trabalhadores da “C..., Lda.” também transitaram para os quadros da insolvente.
- no dia 15/12/2020 constatou-se que na sede da insolvente se encontrava a exercer atividade a empresa “E..., Lda.”, sendo que todo o equipamento que era propriedade da insolvente ali se encontrava.
- a requerida incumpriu com o dever legal de manter a contabilidade organizada.
- a Requerida não se permitiu notificar na morada constante da certidão do registo comercial, tendo a notificação para o exercício do dever de apresentação e colaboração sido devolvida pelos CTT com a menção de que não foi reclamada pelo destinatário, sendo que a requerida nunca contactou o Sr. administrador da insolvência, pelo que não foi possível obter qualquer informação adicional.
Por despacho de 10/8/2021 foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos termos do artigo 188.º, n.º 1, do C.I.R.E.
O Sr. administrador da insolvência apresentou, em 20/8/2021, parecer de qualificação da insolvência como culposa, propondo a afetação da sócia e gerente AA.
Em 22/4/2022 o Ministério Público apresentou, igualmente, parecer de qualificação da insolvência como culposa propondo a afetação de AA.
A requerida AA deduziu oposição pugnando pela improcedência do presente incidente de qualificação de insolvência quanto a si.
Para tanto alegou, em suma, que:
- apesar de constar na certidão permanente da insolvente como gerente, nunca exerceu na sociedade qualquer ato de gerência, tanto mais que nem se deslocava ao local onde a insolvente exercia atividade.
- só com a notificação para oposição à qualificação da insolvência tomou conhecimento de que era gerente da sociedade.
- o seu pai solicitava, a si e à sua mãe, (BB) a assinatura de muitos documentos, limitando-se estas a assinar o que lhes fosse pedido ou exigido pelo mesmo.
- sem que a requerida tivesse conhecimento, o seu pai constituiu a insolvente no nome da requerida, sem lhe pedir ou explicar o que quer que fosse.
- à data da constituição da insolvente, a requerida tinha 21 anos de idade, era estudante de psicologia na Universidade ... e dependia financeira e economicamente do pai, que detinha sobre si ascendência a nível psicológico, emocional e financeiro.
- assim, a requerida é totalmente alheia ao desenvolvimento da atividade da insolvente, bem como ao modo de gestão da mesma.
- só com a sua citação para o presente incidente é que teve conhecimento deste “feito” do seu pai à sua revelia, nunca tendo exercido qualquer função relacionada com a gerência da insolvente, nunca tendo recebido qualquer retribuição pela gerência da insolvente, nunca movimentou contas da insolvente, nunca recebeu qualquer montante a título de distribuição de lucros, nunca contatou com qualquer funcionário da insolvente, nunca prestou qualquer serviço a esta, nem contatou com qualquer fornecedor ou cliente da insolvente, limitando-se a assinar tudo o que o seu pai lhe exigia.
- no ano de 2018 a requerida foi obrigada pelo seu pai a assinar uma procuração a outorgar plenos poderes ao mesmo, desconhecendo, a requerido, o seu conteúdo.
- foi sempre o seu pai que geriu a insolvente, participando nas assembleias gerais, retirando proveitos da mesma, contatava com clientes, fornecedores, funcionários e que movimentava as contas bancárias e fundos de caixa da insolvente.
- a requerida desconhece os registos e documentos de suporte contabilístico da insolvente, bem como os resultados fiscais da mesma e o local onde o seu pai guardava tal documentação.
- o seu pai faleceu no dia 3/2/2022 e só a partir dessa data é que a requerida e a sua mãe começaram a tratar da correspondência dirigida para a morada de ambas
- a requerida nunca recebeu deste tribunal ou do Sr. administrador da insolvência qualquer comunicação.
Foi proferido despacho saneador e após veio a realizar-se a audiência de julgamento, tendo, no final, sido proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, decide-se:
1. Qualificar a insolvência da sociedade “A... - Unipessoal Lda.” como culposa;
2. Declarar afetada pela qualificação da insolvência como culposa a requerida AA.
3. Decretar a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros pelo período de três anos.
4. Declarar AA inibida para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de três anos.
5. Determinar a perda de quaisquer créditos da requerida AA sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-a na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
6. Condenar a requerida AA a indemnizar os credores da insolvente no montante de €50.000,00 (cinquenta mil euros).
Custas pela requerida, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.”
Inconformada, AA veio interpor o presente recurso de Apelação, tendo formulado as seguintes conclusões:
“A) Não poderia o douto Tribunal a quo ter decidido como decidiu no que a Recorrente pessoalmente diz respeito, i.e., declará-la como responsável pela insolvência e, como tal, afetá-la pela mesma, impondo-lhe pessoalmente um conjunto de condenações que pressupõem a sua responsabilidade pessoal.
B) As razões da discordância da Recorrente assentam, grosso modo: 1. Nos factos que o douto Tribunal a quo não deu - indevidamente - como provados no aresto em apreço, quando outra solução era reclamada pela prova produzida nos autos; 2. Da afetação da Recorrente, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 198º do CIRE, pela insolvência culposa; 3. Sem prejuízo do enunciado nas alíneas anteriores, discorda-se igualmente sobre a obrigação de indemnização em que a Recorrente foi condenada a favor dos credores da insolvente, especificamente quanto ao quantum concreto dessa indemnização (€50.000,00).
C) O douto Tribunal a quo, considerou – erroneamente face à prova produzida - como não provados alguns factos.
D) A não inclusão dos factos - factos 4 a 7 da matéria de facto dada como não provada - permitiu ao douto Tribunal a quo, em essência, não levar em consideração os concretos processos cognitivos e volitivos da Recorrente e, assim, adscrever à Recorrente a “possibilidade de ação” e, logo, um juízo ético de censura (culpa) pelo uso, ou não uso, de tal “possibilidade de ação” enquanto gerente da insolvente, e, consequentemente, qualificar a Recorrente como “gerente de direito” da insolvente e, nesses termos, afetá-la com a qualificação da insolvência como culposa e impor-lhe as nefastas consequências que desse juízo de afetação decorrem.
E) O falecido CC, pai da Recorrente e gerente de facto da insolvente (e atrevemo-nos a enunciar, único e exclusivo gerente), de facto, possuía e exercia sobre a Recorrente um ascendente.
F) Resultou da prova testemunhal (depoimento da Recorrente, da sua irmã DD, de EE, de FF, de GG e de HH) a existência de uma ascendência emocional e psicológica do pai da Recorrente sobre esta (atenta a idade da Recorrente, a relação familiar existente e a dependência desta em relação ao seu pai) e que era ele quem realizou a totalidade dos atos relativos à “vida” da insolvente.
G) O douto Tribunal a quo entendeu, equivocadamente, não dar como provados e constantes dos pontos 4 a 7 da matéria de facto dada como não provada.
H) A análise conjunta das declarações prestadas pela Recorrente e os demais depoimentos, conjugada com a matéria de facto considerada provada na douta sentença, é suficiente para que o Tribunal a quo desse como provados a factualidade constantes nos pontos 4 a 7 dos “factos não provados”.
I) Resultou da prova testemunhal que, a Recorrente não possuía conhecimento do teor dos poucos documentos que, o seu pai exigiu que a mesma assinasse e bem desconhecia em absoluto a qualidade que, após o decesso daquele, a mesma foi surpreendida possuir.
J) O pai da Recorrente, aproveitando-se de uma mescla imensa ingenuidade, inexperiência de vida e desconhecimento dos rudimentos do tráfico jurídico, bem como a situação de debilidade física e emocional em que esta se encontrava - decorrente de uma enfermidade como a anorexia nervosa-, misturada com a ascendência emocional que aquele possuía sobre a Recorrente decorrente da subjugação desta, não somente a nível económico/financeiro para suprir as suas necessidades mais básicas, mas inclusive do profundo temor reverencial que lhe instilou e esta sentida para consigo, para, usá-la como um mero instrumento nos seus “esquemas” negociais/societários.
K) Compreende-se que, abstratamente e a priori, se possa reputar como peculiar que uma estudante universitária não lesse o teor dos documentos que assinava e não compreendesse o seu teor.
L) Mas a posteriori (após a produção de prova, mormente a de natureza testemunhal supratranscrita) tal estranheza desvanece, esfuma-se e a situação concreta da Recorrente emerge com clareza.
M) Não deixa de ser impressivo que a testemunha EE a tenha qualificado a Recorrente como “uma bebé” e que “O pai é que fazia tudo.” Ou a testemunha GG ter declarado que a Recorrente nada sabia quanto ao funcionamento da empresa e das contas bancárias ou a testemunha DD que inequivocamente declarou que a Recorrente desconhecia a sua qualidade de sócia e que não conhecia o teor dos documentos que o seu pai lhe exigia que assinasse, a técnica oficial de contas da insolvente (HH) pensava que o gerente (de direito) era apenas o Sr. CC.
N) Não deixa de ser curioso que os trabalhadores e colaboradores que prestaram depoimento nos autos não tenham enunciado que a Recorrente haja alguma vez declarado que era seria gerente, ou até sócia, da insolvente.
O) O douto Tribunal a quo deveria ter dado como provado que: “o pai da requerida constituiu a insolvente em nome da requerida sem que a requerida tivesse conhecimento.”, que “A requerida desconhecia ser sócia e gerente da insolvente.”, que “A requerida assinou os documentos mencionados no ponto 4 dos factos provados e o acordo mencionado no ponto 15 dos factos provados, desconhecendo o conteúdo dos mesmos, não tendo sequer lido os mesmos.” e que “A mesma não percebia o alcance de tais documentos e os mesmos não correspondiam à sua vontade, sendo que a sua assinatura foi imposta pelo seu pai.”, pelo que se impõe a correção da sentença nesta matéria.
P) O douto Tribunal a quo, concluiu, por outro lado que, a presente insolvência em apreço deveria ser qualificada “como culposa nos termos do art. 186.º, n.º 2, al. a), d) e h), e n.º 3, al. a), do C.I.R.E.”
Q) Tal não significa que a Recorrente deva ser pela mesma afetada. Bem pelo contrário.
R) A afetação do administrador/gerente meramente de direito impõe que se conclua que o mesmo poderia ter tido uma diversa daquele que teve em concreto.
S) Contrariamente à conclusão empreendida na sentença condenatória, reputa-se manifesto que em caso algum poderia a ora Recorrente ser afetada pela insolvência culposa.
T) A Recorrente desconhecia em absoluto a sua qualidade de gerente da sociedade insolvente.
U) Desconhecendo, como desconhecia, a Recorrente a sua qualidade de gerente, naturalmente que esta não podia conformar diferentemente o seu comportamento, i. e, de acordo com o que se lhe imporia tal qualidade e ciência da mesma pela Recorrente.
V) Não poderá assim, a Recorrente ser afetada, nos termos da alínea a) do n.º 2 do art. 198º do CIRE, pela qualificação como culposa da insolvência da pessoa coletiva.
W) Mesmo que a Recorrente tivesse tido conhecimento da sua qualidade institucional (que, como viu, não tinha) certo é que, atento inclusivamente os factos e fundamentos expressos na sentença recorrida, entende-se que a mesma nunca poderia ser afetada, nos termos da alínea a) do n.º 2 do art. 198º do CIRE, pela declaração da insolvência como culposa.
X) O douto tribunal reconhece a incapacidade de ação que afetava a Recorrente decorrente de tal ascendência (e não de uma mera situação de confiança) do seu pai sobre si quando na decisão proferida refere que: “… que nos parece evidente é que a mesma confiaria no seu pai quando o mesmo lhe pedia para assinar documentos respeitantes à insolvente, que terá aceite figurar como gerente de direito da sociedade insolvente, confiando que o seu pai geriria de facto a sociedade insolvente e confiaria na gestão que o mesmo levaria a cabo, não prevendo que o mesmo pudesse vir a praticar atos que a colocassem em causa.”,
Y) A ascendência emocional/psicológica/financeira que aquele (pai) possuía sobre a Recorrente e que determinava a pura subjugação desta - e assim da sua atuação - à vontade daquele, significa que, em essência, ela não poderia ter agido de forma diferente daquele em que agiu.
Z) Não lhe pode ser imputado que, no seu espaço de liberdade, a Recorrente tenha optado livremente por nada fazer e nada querer saber. E não pode ser-lhe tal imputado porque, tal liberdade de ação lhe estava cerceada pela ascendência (e consequente subjugação) que o pai da Recorrente tinha sobre esta.
AA) Não poderá por isso, a Recorrente ser afetada pela declaração de insolvência culposa.
BB) SEM PREJUÍZO, concluindo pela afetação da Recorrente pela insolvência culposa nos termos da termos da alínea a) do n.º 2 do art. 198º do CIRE.
CC) Dispõe a alínea e) do n.º 2 do art. 189º do CIRE (com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01) que a sentença deve “Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.”.
DD) De acordo com a doutrina e jurisprudência aplicável nesta matéria e tendo em consideração a matéria provada na sentença em apreço e a fundamentação aí expressa, de imediato se atesta a desproporcionalidade, por manifestamente excessiva, entre o quantum indemnizatório determinado pelo douto Tribunal a quo (€50.000,00) e a ilicitude e culpa que é atribuída à Recorrente, mas também o nexo de causalidade entre a atuação omissiva que lhe é imputada e os danos produzidos, tendo em consideração que os créditos reconhecidos sobre a insolvente ascendem ao montante de €63.972,74.
EE) Na douta sentença foi a Recorrente condenada a pagar um valor correspondente a aproximadamente 78% do limite máximo que lhe poderia ser determinado a título de indemnização.
FF) Quando nem sequer se consegue discernir qual o grau de culpa que foi fixado à Recorrente pelo douto Tribunal a quo.
GG) A poder atribuir-se algum juízo de censura à Recorrente - que se entende não ser possível conforme já se teve oportunidade de enunciar supra – esta deverá ser sempre qualificada como sendo levíssima.
HH) A matéria dada como provada pelo tribunal a quo é, em si mesma, apta e suficiente para ilidir a presunção iuris tantum de culpa grave ínsita na alínea a) do n.º 3 do art. 186º do CIRE que o douto Tribunal a quo entendeu existir em sede de qualificação da insolvência e o grau da ilicitude da conduta da Recorrente (que a existir é muito baixo).
II) Por referência à conclusão ínsita na sentença recorrida, uma omissão decorrente de um quadro de confiança filial, de uma pessoa muito jovem, absolutamente inexperiente e debilitada por um quadro de anorexia nervosa, num contexto de ascendência aguda do progenitor em relação à sua progénia é de concluir que, existindo, o grau de ilicitude da sua atuação é elevado? Ou até mediano? Entende-se naturalmente que não.
JJ) E tendo por fim como critério o nexo causal entre a imputada conduta omissiva da Recorrente e o agravamento dos danos dos credores, estes, se bem se interpreta o aresto em crise, reconduzem-se apenas aos €10.188,86 a título de IVA à Autoridade Tributária e nada mais.
KK) Não se pode minimamente concordar com o juízo conclusivo empreendido pelo douto Tribunal a quo de que a alegada (pois nenhuma houve) violação do dever de apresentação à insolvência teria também obstado à realização do acordo com a “E..., Lda.” pois não só tal não era do conhecimento da Recorrente, mas também em nada se demonstrou que prejudicou o ativo da insolvente, ou não tivessem sido pagos a esta €595.345,00, mas muito menos se compreende o raciocínio de que se tivesse cumprido o alegado dever de apresentação à insolvência teriam sido, apreendido: “os montantes que essa “E..., Lda.” veio a pagar por força da celebração desse acordo, montantes esses que eram mais do que suficientes para pagar todas as dívidas que a insolvente tinha.”.
LL) vista toda a factualidade dado como provada, o baixíssimo grau de ilicitude e o grau de culpa diminuto que podem ser imputados à Recorrente, entende-se que o quantum indemnizatório não deverá ultrapassar o teto máximo correspondente a 1/6 dos créditos não satisfeitos na insolvência (€10.188,86).
MM) Em conclusão, deverá a matéria de facto provada constante da sentença ser alterada para incluir os factos que o douto Tribunal a quo entendeu (mal) não dar como provados, constantes dos pontos 4 a 7 dos factos não provados.
NN) Determinar-se que a Recorrente não é afetada pela declaração como culposa da insolvência, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.198º do CIRE, pela insolvência culposa.
OO) Ser quando muito, a Recorrente condenada a pagar uma indemnização aos credores da insolvente, que o quantum da mesma não deverá ultrapassar o teto máximo correspondente a 1/6 dos créditos não satisfeitos na insolvência (€10.188,86).
NESTES TERMOS, NOS MELHORES DE DIREITO E COM O SEMPRE MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVERÁ O RECURSO INTERPOSTO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS E SER ALTERADA A SENTENÇA PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO NO QUE INFRA SE MENCIONA:
A) A matéria de facto provada constante da sentença ser alterada para incluir os factos constantes dos pontos 4 a 7 dos factos não provados e consequentemente, determinar-se que a Recorrente não é afetada pela declaração como culposa da insolvência, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 198º do CIRE;
B) Independentemente da alteração da matéria de facto que se requer na alínea anterior, sempre deverá face aquela que ficou assente na douta sentença determinar-se que a Recorrente não é afetada pela declaração como culposa da insolvência, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 198º do CIRE;
C) Subsidiariamente, caso se considere que a Recorrente deva ser afetada pela declaração de insolvência como culposo e consequentemente, ser a mesma condenada a pagar uma indemnização aos credores desta, requer-se que, o respetivo quantum da obrigação indemnizatória não ultrapasse o teto máximo correspondente a 1/6 dos créditos não satisfeitos na insolvência, isto é, o montante de €10.188,86.”
O MINISTÉRIO PÚBLICO, veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo da seguinte forma:
“1. Nos termos do artigo 185.º do CIRE a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita;
2. Nos termos do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
3. Os factos dados como provados na sentença integram as situações previstas no artigo 186.º, n.ºs n.º 2, al. a), d) e h), e n.º 3, al. a), do C.I.R.E.
4. Um administrador de direito que o não seja de facto pode ser também ele afetado pela qualificação de insolvência como culposa, nomeadamente quando se encontre em causa um comportamento omissivo dos deveres que sobre o mesmo impendiam enquanto fazendo parte do órgão de gestão da devedora, nomeadamente o de apresentação da devedora à insolvência e de manter contabilidade organizada;
5. a condenação da recorrente a indemnizar os credores da insolvente no montante de € 50.000,00, teve por fundamento a gravidade das condutas enquanto gerente da insolvente (considerando, especialmente, o valor dos créditos que não serão satisfeitos; a circunstância da qualificação de insolvência se basear ainda na irregularidade na contabilidade; ter sido utilizado o património da devedora em proveito próprio; a violação do dever de se apresentar à insolvência, e o facto do património apreendido ser residual em face do valor em divida;
6. a Mma Juíza aplicou corretamente o direito aos factos provados, pelo que a decisão recorrida não violou quaisquer normas legais, não merecendo qualquer reparo;
7. Face ao exposto, deve improceder o presente recurso e ser mantida a sentença recorrida.”
Foi o recurso admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Admitido o recurso e colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
As questões decidendas são as seguintes:
-Modificabilidade da decisão de facto por reapreciação das provas produzidas e eventual alteração da decisão de direito em consequência de tal modificação;
-Saber se a Recorrente não deve ser afetada pela qualificação da insolvência, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 198º do CIRE;
-Fixação do quantum indemnizatório.

III-MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO:
Pretende a Apelante ver alterada a decisão sobre a matéria de facto, no que respeita os pontos 4 a 7, que na sentença foram julgados não provados.
Para que a parte que pretenda beneficiar dum “segundo julgamento” da matéria de facto, para poder ver ser reapreciada a prova produzida, a lei impõe-lhe o cumprimento de alguns ónus, que se encontram devidamente especificados no art. 640º do C.P.C.
Dispõe esta norma o seguinte:
“Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. (…)”
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º
Quando a prova invocada como fundamento do erro na apreciação das provas tenha sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Nos objetivos previstos pelo legislador, quando introduziu um efetivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto, através do DL 39/95 de 15.2, deixou consignado no respetivo preâmbulo, o seguinte:
“A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação.
Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redação do artigo 712.º) - e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1.ª instância - possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correta.
Daí que se estabeleça, no artigo 690.º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto.”
Como refere Abrantes Geraldes,[1] “os aspetos fundamentais a assegurar neste campo são os relacionados com a definição clara do objeto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de factos em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado produzido.
Haverá que encontrar o justo equilíbrio, dentro dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, entre por um lado, o critério de rigor que se impõe no cumprimento das exigências legais, que são afinal “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” e por outro lado, uma exponenciação dos requisitos formais “a tal ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espirito do legislador”.
Afirma também Abrantes Geraldes,[2] que “as referidas exigências devem ser apreciadas á luz de um critério de rigor. Trata-se afinal de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto, s transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
No caso em apreço, da leitura das conclusões de recurso, que como já tivemos oportunidade de dizer, delimitam os objeto do recurso, estas exigências não se mostram observadas.
Acontece que, se é certo que da leitura das conclusões não resulta a indicação das passagens das gravações, nem é feita qualquer remissão para as alegações, no corpo das alegações do recurso tal indicação mostra-se efetuada e com transcrição dos depoimentos aí indicados, pelo que entendemos, no âmbito daquele invocado “equilíbrio” não ser de rejeitar o recurso, nessa parte.
Isto posto, decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa." (sublinhado nosso).
A “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei nº 113/XII salientou o intuito do legislador de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada ao referir que “para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar insuficiente, obscura ou contraditória – são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede á reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material”.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes[3], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
O Tribunal da Relação deve, pois, exercer um verdadeiro e efetivo segundo grau de jurisdição da matéria de facto, sindicando os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da recorrida, e referenciar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais.[4]
Porém, a possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova reanalisados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que, manifestamente, apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo, melhor dizendo, “imponham decisão diversa”.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos consagrados pelo n.º 5 do art.º 607.º do C.P. Civil, sem olvidar porém, o princípio da oralidade e da imediação.
Tendo isto presente, analisemos agora a situação em apreço.
São estes os factos impugnados, que foram julgados não provados e que a Recorrente pretende que sejam julgados provados:
4. O pai da requerida constituiu a insolvente em nome da requerida sem que a requerida tivesse conhecimento.
5. A requerida desconhecia ser sócia e gerente da insolvente.
6. A requerida assinou os documentos mencionados no ponto 4 dos factos provados e o acordo mencionado no ponto 15 dos factos provados, desconhecendo o conteúdo dos mesmos, não tendo sequer lido os mesmos.
7. A mesma não percebia o alcance de tais documentos e os mesmos não correspondiam à sua vontade, sendo que a sua assinatura foi imposta pelo seu pai.
Diz a Recorrente que foi feita prova suficiente desta factualidade com base, nos depoimentos da própria Recorrente, que declarou que interveio nos aludidos negócios, por imposição do pai, que lhe dizia para confiar nele, que não lhe explicava o conteúdo dos mesmos e que a ameaçava tirar da faculdade se não cooperasse, que nunca teve qualquer intervenção em nenhum ato de gestão, e de sua irmã DD, que trabalhou na D..., durante 7 anos, a qual referiu que o patrão sempre foi o seu pai e que a irmã nunca teve qualquer intervenção na gestão da sociedade, limitando-se a ir lá para almoçar com amigas ou para pedir dinheiro ao pai, tendo afirmado “A minha irmã, não tinha conhecimento que era dona ou gerente, o que fosse daquela confeitaria, e eu também não, porque se ela soubesse, com certeza me dizia, eu também diria. Ela não tinha conhecimento que era realmente ou sócio ou gerente ou que quer que fosse.” E ainda que “Não sei de que documentos está a falar, portanto o que eu sei é que a minha irmã não sabia que era sócia ou gerente da Cunha. Realmente ela assinava os papéis, mas o pai que lhes dava e dizia assina aqui ela assinava, como se calhar, eu também assinava. Porque nós confiávamos naquela pessoa. Nós só ficamos a saber disto tudo a após a morte dele.”
O depoimento da testemunha FF, funcionária da D…, que nunca reconheceu a recorrente como patroa, garantido que era tudo assinado pelo Senhor AA”.
A testemunha GG, funcionário que bancário que atestou que conheceu a recorrente só após a morte do pai e que aquela foi ao banco inteirar-se da situação que desconhecia de todo, alegando que sempre tratou de todos os assuntos com o pai da ora apelante.
A testemunha HH (contabilista) referiu que apenas tratava dos assuntos com o pai da apelante e com a funcionária FF, atestando nunca ter tratado de nenhum assunto societário com a com a recorrente.
Vejamos.
Na sentença fundamentou-se desta forma a prova negativa destes factos: “Por último, a requerida alegou nestes autos que o seu pai (da requerida) constituiu a insolvente em seu nome sem que a requerida tivesse conhecimento, que a requerida desconhecia ser sócia e gerente da insolvente, que assinou os documentos mencionados no ponto 4 dos factos provados e o acordo mencionado no ponto 15 dos factos provados, desconhecendo o conteúdo dos mesmos, não tendo sequer lido os mesmos e que a mesma não percebia o alcance de tais documentos e os mesmos não correspondiam à sua vontade, sendo que a sua assinatura foi imposta pelo seu pai.
Este tribunal considerou essa factualidade não provada (pontos 4 a 7 dos factos não provados) por entender que não foi feita prova bastante da mesma.
Com efeito, é certo que a testemunha DD (meia irmã da requerida) veio aos autos dizer que a sua irmã não sabia que era a gerente da insolvente e que a mesma assinava a documentação que o pai a mandava assinar “de cruz”.
E a requerida tentou convencer este tribunal que se limitou a assinar a documentação que o pai a mandava assinar, não compreendendo o alcance de tal documentação e desconhecendo o conteúdo da mesma.
A verdade é que, embora este tribunal tenha ficado convencido que o pai da requerida tinha ascendência sobre a mesma, não só atendendo à idade desta, mas também porque a requerida dependia financeiramente do seu pai, entende este tribunal que a versão da requerida não é credível atendendo a regras de experiência comum e a juízos de normalidade.
A requerida, inquirida em sede de julgamento, mostrou ser uma pessoa esclarecida e não ter qualquer dificuldade de compreensão.
Ora, a mesma reconheceu ter assinado o contrato de constituição da sociedade insolvente e a declaração junta aos autos em 28/11/2022, datada de 21/3/2018, com o seguinte conteúdo:
“AA (…) declara para os devidos efeito, que é única detentora do controle efetivo da sociedade “A... - Unipessoal Lda.” (…).
E reconheceu igualmente ter assinado o acordo mencionado no ponto 15 dos factos provados, assim como os documentos anexos ao mesmo.
Não é credível, atendendo a regras de experiência comum e a juízos de normalidade que a requerida, sendo uma pessoa esclarecida e demonstrando ser uma pessoa sem quaisquer dificuldades de compreensão, não se tivesse apercebido do conteúdo dos documentos que estava a assinar, sendo certo que a mesma assinou também uma a ficha de abertura de uma conta no Banco 1... que foi aberta em nome da insolvente.
Ao apor a sua assinatura em tais documentos a mesma facilmente apreenderia o conteúdo de tais documentos, ainda que os mesmos apenas lhe tivessem sido disponibilizados pelo seu pai para os assinar.
Ficou, pois, este tribunal convencido que a requerida, a mando do seu pai, assinou tais documentos e que se terá apercebido do conteúdo dos mesmos, até porque os documentos que assinou eram facilmente compreensíveis e que requerida facilmente se aperceberia do conteúdo dos mesmos, não ficando este tribunal convencido que a requerida desconhecia ser sócia e gerente da insolvente e que não se apercebeu do conteúdo dos documentos que assinou. A requerida era, de acordo com o que mencionou, estudante universitária não sendo por isso minimamente credível que não alcançaria o conteúdo desses documentos. O que nos parece evidente é que a mesma confiaria no seu pai quando o mesmo lhe pedia para assinar documentos respeitantes à insolvente, que terá aceite figurar como gerente de direito da sociedade insolvente, confiando que o seu pai geriria de facto a sociedade insolvente e confiaria na gestão que o mesmo levaria a cabo, não prevendo que o mesmo pudesse vir a praticar atos que a colocassem em causa.
Assim, afigura-se-nos que o alegado desconhecimento sobre o conteúdo do que estava a assinar não convence tendo este tribunal ficado convencido que a requerida terá conscientemente assinado os documentos em causa, apercebendo-se do que estava a assinar, embora não colocasse a hipótese, na altura, que o desfecho que a sociedade insolvente veio a ter viesse a ocorrer e muito menos que o seu pai viesse a adotar comportamentos que a pudessem vir a afetar enquanto gerente de direito.
A requerida, assumiu, assim, conscientemente, a gerência de direito da insolvente, tendo-se desligado completamente da sociedade, confiando na gestão de facto que o seu pai levaria a cabo, embora não desconhecesse que era, efetivamente, a gerente de direito da sociedade que foi por si constituída.”
Na análise crítica da prova a que o tribunal recorrido procedeu, mostram-se devidamente ponderados os meios de prova, com base nos quais pretende a recorrente ver alterada a decisão sobre a matéria de facto.
Acontece que, e parece-nos bem, o tribunal considerou que, atenta a idade da recorrente, e o facto de ser uma estudante universitária e ainda o facto de a mesma ter demonstrado “ser uma pessoa sem quaisquer dificuldades de compreensão”, não é crível que a mesma não se tivesse apercebido do conteúdo dos documentos que assinou, mesmo que tal tenha ocorrido num contexto, que emergiu provado, de ascendência emocional e psicológica do pai da Recorrente sobre esta (atenta a idade da Recorrente, a relação familiar existente e a dependência desta em relação ao seu pai).
Está provado (facto não impugnado) que a requerida assinou o contrato de constituição da “A... - Unipessoal Lda.” cuja cópia se encontra junta aos autos em 28/11/2022, bem como a “declaração” junta aos autos na mesma data, datada de 21/3/2018, com o seguinte conteúdo “AA (…) declara para os devidos efeito, que é única detentora do controle efetivo da sociedade “A... - Unipessoal Lda.” (…) (facto 4 dos factos provados).
Igualmente se provou que em 19/7/2019 foi outorgado entre a insolvente e a “E..., Lda.” um documento denominado “Acordo” cuja cópia se encontra junta aos autos em 23/8/2021, no qual ficou a constar que “a senhoria e a arrendatária acordam em resolver, por mútuo acordo, o contrato de arrendamento atualmente em vigor, relativo ao “Locado”, sendo parte integrante deste acordo e condição essencial para a sua celebração que o mesmo incida também sobre os elementos que caraterizam o estabelecimento “D...”, designadamente, o mobiliário, equipamento, e o logotipo registado, por forma a preservar a integridade do estabelecimento, com as caraterísticas que levaram a Câmara Municipal ... a reconhece-lo como estabelecimento de interesse histórico e cultural ou social local.(facto 15 dos factos provados).
Assinou também uma ficha de abertura de uma conta no Banco 1... que foi aberta em nome da insolvente.
Não se pode também dizer, como pretende a apelante, que a recorrente tenha assinado aqueles documentos contra a sua vontade. Assinou os documentos porque os quis assinar, se bem que o fez, no contexto que foi apurado de ter sido o pai, que sobre ela mantinha uma ascendência emocional e psicológica, quem lho exigiu, sem contudo ter deixado de existir algum “espaço de manobra” para aquela poder dizer não (pese embora o receio das consequências a nível do relacionamento com o pai - emocionais e financeiras).
A recorrente acedeu fazer a vontade do pai, constituindo a sociedade ora declarada insolvente, mais aceitando ser a gerente de direito da mesma, participando nos negócios daquela, assinando-os a pedido do pai, intervindo aquele nos mesmos atos, utilizando a procuração que aquela lhe conferiu.
Feitas estas ponderações, não podemos deixar de concordar com a análise crítica da prova feita pelo tribunal recorrido, que se mostra conforme às regras da normalidade e da experiência, ao contrário da versão que a apelante pretende ver reconhecida por este tribunal de recurso, de que não se tinha apercebido da constituição da sociedade nem do facto de ser gerente da mesma.
Assim sendo, porque a decisão do julgador se mostra devidamente fundamentada, segundo as regras da experiência e da lógica, ela não pode ser modificada, sob pena de inobservância do princípio da livre convicção, pelo que improcede pois a alteração da matéria de facto requerida.
Não se mostra assim violada qualquer regra de direito probatório, sendo, por isso, de manter a decisão proferida pela primeira instância.
Não pode ter acolhimento a pretensão da apelante em ver os factos impugnados serem julgados provados, porque se mostram contrários à prova global efetuada, tal como acabamos de analisar.
A mesma sorte, pelas mesmas razões, terá de ter a sua pretensão em ver aditados os factos supra transcritos.
Pelo exposto, porque não se mostra violada qualquer regra de direito probatório, não ocorre “erro de julgamento” da matéria de facto, sendo, por isso, de manter a decisão proferida pela primeira instância, julgando-se improcedente o recurso na parte da impugnação da matéria de facto.
Dessa forma entendemos não ser de alterar a decisão sobre a matéria de facto.

IV-FUNDAMENTAÇÃO:
Nos presentes autos com interesse para a decisão resultaram provados os seguintes factos:
1. Em 10/12/2015 a sociedade “C..., Lda.” tinha como sócios a, aqui, requerida, AA, II e CC.
2. A sociedade “C..., Lda.” explorava o estabelecimento comercial sobejamente conhecido por “D...”, sito na Rua ..., ..., 4000-431 Porto.
3. A sociedade “A... - Unipessoal Lda.” foi constituída em março de 2018 tendo por objeto social “confeitaria fina, pastelaria, restaurante e conexos, podendo explorar estabelecimentos próprios ou de terceiros” com um capital social de €5.000,00, tendo como única sócia e gerente a requerida AA.
4. A requerida assinou o contrato de constituição da “A... - Unipessoal Lda.” cuja cópia se encontra junta aos autos em 28/11/2022, bem como a “declaração” junta aos autos na mesma data, datada de 21/3/2018, com o seguinte conteúdo “AA (…) declara para os devidos efeito, que é única detentora do controle efetivo da sociedade “A... - Unipessoal Lda.” (…).
5. Em 11/1/2019 a insolvente adquiriu à “C..., Lda.” todo o imobilizado, que compunha o estabelecimento comercial da “D....
6. Nessa altura transitaram da “C..., Lda.” para a insolvente vários trabalhadores que trabalhavam para aquela.
7. Em 18/1/2021 a sociedade “B..., Lda.” requereu a declaração de insolvência da “A... - Unipessoal Lda.”, não tendo sido deduzida qualquer oposição a esse pedido.
8. Por sentença proferida em 13/5/2021 foi declarada a insolvência da sociedade “A... - Unipessoal Lda.”, sendo que nessa sentença fixou-se a morada da sua gerente, AA, na Rua ..., ..., 4º esquerdo, trás, ..., ... Porto.
9. O Sr. administrador da insolvência nomeado no processo de insolvência mencionado em 7. e 8. deslocou-se às instalações onde a insolvente exercia a sua atividade, verificando que aí se encontrava a laborar uma outra empresa, denominada E..., Lda., sendo que foi por esta indicada nova morada das instalações da sociedade insolvente, sitas na Rua ..., ..., Porto.
10. O Sr. administrador da insolvência verificou que na Rua ..., ..., Porto se encontrava a laborar uma empresa denominada “F..., Unipessoal, Lda.”
11. A “F..., Unipessoal, Lda.” foi constituída em maio de 2020, tendo como sócia e gerente a Sra. BB, mãe da requerida.
12. O Sr. administrador da insolvência remeteu, em 17/5/2021, uma carta registada à requerida para a morada indicada em 8 cuja cópia se encontra junta em 20/8/2021, a qual veio devolvida com a menção de “não reclamada”.
13. O processo de insolvência referido em 7 e 8 foi encerrado por insuficiência da massa, nos termos do art. 232º, nº. 2, e 230º, nº. 1, d), do CIRE, sem a apreensão de qualquer bem ou valor.
14. A contabilidade da insolvente não se encontra atualizada, não se mostrando encerradas, aprovadas e depositadas as contas referentes ao exercício de 2019.
15. Em 19/7/2019 foi outorgado entre a insolvente e a “E..., Lda.” um documento denominado “Acordo” cuja cópia se encontra junta aos autos em 23/8/2021, no qual ficou a constar que “a senhoria e a arrendatária acordam em resolver, por mútuo acordo, o contrato de arrendamento atualmente em vigor, relativo ao “Locado”, sendo parte integrante deste acordo e condição essencial para a sua celebração que o mesmo incida também sobre os elementos que caraterizam o estabelecimento “D...”, designadamente, o mobiliário, equipamento, e o logotipo registado, por forma a preservar a integridade do estabelecimento, com as caraterísticas que levaram a Câmara Municipal ... a reconhece-lo como estabelecimento de interesse histórico e cultural ou social local.
Cláusula segunda: Como compensação global pela cessação antecipada do contrato de arrendamento, pelos lucros cessantes e quaisquer outros direitos resultantes do contrato de arrendamento, da sua cessação e da desocupação do “Locado”, por todo o mobiliário, equipamento e acervo que integra o estabelecimento “D...”, a Primeira Outorgante compromete-se a pagar à Segunda, o montante de €598.500,00 (quinhentos e noventa e oito mil e quinhentos euros); e pela transmissão do logotipo “D...” registado sob o n.º ..., aquela paga a esta a quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) – a este último montante acresce IVA à taxa em vigor – (…) quantia que será paga da seguinte forma:
a) €298.500,00 (…) no dia da assinatura do presente contrato, por transferência bancária, sendo €198.500,00 (…) para a conta com o IBAN ... e €100.000,00 (…) para a conta com o IBAN ...
b) €1.500,00 (…) referente ao valor da transmissão do logotipo “D...” acrescido de IVA à taxa legal em 23,00% no momento da transmissão e emissão da respetiva fatura, para a conta com o IBAN ...
c) €300.00000 (…) até ao dia 12 de setembro de 2019 por transferência bancária para a conta com o IBAN ....”
16. O acordo mencionado em 15 bem como os documentos anexos do mesmo foram assinados pela requerida.
17. A requerida assinou a ficha bancária de assinatura da conta bancária com o IBAN ... – documento junto em 1/10/2021.
18. A E... procedeu à transferência bancária do montante de €198.500,00 para a conta bancária da insolvente com o IBAN ... no dia 19/7/2021.
19. E no dia 16/9/2021 transferiu para a mesma conta bancária o montante de €295.000,00.
20. No dia 19/7/2022 a E... transferiu para a conta da insolvente com o IBAN ... as quantias de €1.845,00 e de €100.000,00.
21. No ano de 2019 e 2020 foram efetuados diversos levantamentos das contas bancárias mencionadas em 18 e 20, levantamentos em numerário na ordem dos 160.000,00 realizados pelo pai da requerida, bem como pagamentos de várias despesas designadamente com restaurantes, lojas de roupa de cosméticos e supermercados.
22. A contabilidade da devedora do ano de 2019 não reflete a real situação patrimonial e financeira da devedora, dada a falta de registo de operações e regularizações de cariz contabilístico, designadamente da indemnização paga à insolvente pela “E..., Lda.”, por força da cessação antecipada do contrato de arrendamento celebrado entre a ambas, e, bem assim, pela alienação dos bens que faziam parte do estabelecimento comercial denominado “D...”, a qual não se encontra refletida na contabilidade, nomeadamente no balancete de setembro de 2019.
23. CC, pai da requerida, faleceu em 3/2/2022.
24. A contabilidade da insolvente foi organizada até setembro de 2019, sendo que em 11/10/2019 a contabilista certificada da insolvente renunciou ao cargo.
25. Os valores recebidos pela insolvente e pagos pela E... não se encontram refletidos na contabilidade da insolvente, nomeadamente, no balancete elaborado à data de setembro de 2019.
26. O saldo de Caixa e depósitos bancários da insolvente registava o valor de €123.204, o qual não é verdadeiro, uma vez que o mesmo terá origem na falta de entrega de documentos pela gerência da sociedade insolvente, nomeadamente, extratos das contas bancárias movimentadas no âmbito do exercício da atividade.
27. O saldo de Clientes da insolvente registava o valor de € 203.561,00 o qual não é verdadeiro, atendendo a que também decorre da falta de entrega de documentos pela gerência, estando assim por contabilizar os movimentos a crédito nas respetivas contas de Cliente, o que normalmente é efetuado através do lançamento contabilístico dos recibos.
28. Os créditos reconhecidos sobre a insolvente ascendem ao montante de €63.972,74.
29. O saldo total do passivo constante do balanço da insolvente era composto por fornecedores (€192.759); financiamentos obtidos (€43.767); e outras contas a pagar (€120.293), o que também não tem qualquer correspondência com os créditos reclamados na insolvência.
30. No ano 2019 a insolvente registava ativos fixos tangíveis no valor de €30.935,00, contudo, o registo de mobiliário consta com uma descrição genérica, cuja eventual existência e localização não foi possível apurar, para além de que relativamente a dois veículos automóveis, de marca Renault, com as matrículas ..-..-SL e ..-..-SO, se verifica através do registo automóvel, que nunca existiu qualquer registo de transmissão de propriedade a favor da insolvente.
31. A requerida nunca exerceu a gerência de facto da insolvente, designadamente nunca deu ordens ou instruções aos seus trabalhadores, não contatava com clientes, nem fornecedores, nem nunca movimentou as contas bancárias da insolvente.
32. A requerida assinou documentos referentes à insolvente a mando do seu pai, sendo que o mesmo foi sempre quem geriu de facto a insolvente.
33. Sempre foi o pai da requerida quem geriu a insolvente, retirando proveitos da mesma, contatava com clientes, fornecedores, funcionários e que movimentava as suas contas bancárias e fundos de caixa.
34. Foi sempre o pai da requerida ou uma funcionária da insolvente, a mando daquele, quem contatava com a contabilista.
35. Não foram depositadas e registadas na Conservatória do Registo Comercial as contas da insolvente dos anos de 2018, 2019 e 2020.
36. A insolvente era devedora à Autoridade tributária do montante de €10.188,86 a título de IVA vencidos nos 12 meses anteriores ao início do processo de insolvência.
37. Não foram apesentadas à ATA as declarações anuais de rendimentos relativas aos anos de 2018 e de 2019.
38. Na data da constituição da insolvente a requerida era estudante e dependia financeiramente dos seus pais.
39. A insolvente era devedora perante a EDP de faturas vencidas desde maio de 2019 e perante a “G...,Lda.” de faturas vencidas desde fevereiro de 2019, sendo devedora perante a “B..., Lda.” de faturas vencidas desde abril de 2019.
E foram julgados não provados os seguintes factos:
1. A requerida nos três últimos anos anteriores ao início do processo de insolvência geriu, de facto, a atividade da insolvente, sendo ela quem dava ordens e instruções aos trabalhadores da insolvente, que os contratou, que movimentava as contas bancárias da insolvente e que contatava com fornecedores e clientes.
2. Os ativos da insolvente foram transferidos a favor da “F... Unipessoal, Lda.”, a título gratuito.
3. A requerida não se deslocava ao local onde a insolvente exercia a sua atividade.
4. O pai da requerida constituiu a insolvente em nome da requerida sem que a requerida tivesse conhecimento.
5. A requerida desconhecia ser sócia e gerente da insolvente.
6. A requerida assinou os documentos mencionados no ponto 4 dos factos provados e o acordo mencionado no ponto 15 dos factos provados, desconhecendo o conteúdo dos mesmos, não tendo sequer lido os mesmos.
7. A mesma não percebia o alcance de tais documentos e os mesmos não correspondiam à sua vontade, sendo que a sua assinatura foi imposta pelo seu pai.
8. A compensação global recebida pela insolvente paga pela E... terá sido usada para favorecer a F... Unipessoal, Lda.

V-APLICAÇÃO DO DIREITO:
5.1. Afetação da Recorrente pela qualificação da insolvência.
Defende a Recorrente que mesmo na hipótese de não ser alterada a matéria de facto, não deverá ser afetada pela qualificação da insolvência, porque mesmo que tivesse tido conhecimento da sua qualidade institucional certo é que, atento inclusivamente os factos e fundamentos expressos na sentença recorrida, entende-se que a mesma nunca poderia ser afetada, nos termos da alínea a) do n.º 2 do art. 198º do CIRE, pela declaração da insolvência como culposa.
Que o tribunal reconheceu a “incapacidade de ação” que afetava a Recorrente decorrente da ascendência que o seu pai tinha sobre ela, (e não de uma mera situação de confiança) do seu pai sobre si quando na decisão proferida refere que: “… que nos parece evidente é que a mesma confiaria no seu pai quando o mesmo lhe pedia para assinar documentos respeitantes à insolvente, que terá aceite figurar como gerente de direito da sociedade insolvente, confiando que o seu pai geriria de facto a sociedade insolvente e confiaria na gestão que o mesmo levaria a cabo, não prevendo que o mesmo pudesse vir a praticar atos que a colocassem em causa.”,
A ascendência emocional/psicológica/financeira que aquele (pai) possuía sobre a Recorrente e que determinava a pura subjugação desta - e assim da sua atuação - à vontade daquele, significa que, em essência, ela não poderia ter agido de forma diferente daquele em que agiu.
Não lhe pode ser imputado que, no seu espaço de liberdade, a Recorrente tenha optado livremente por nada fazer e nada querer saber. E não pode ser-lhe tal imputado porque, tal liberdade de ação lhe estava cerceada pela ascendência (e consequente subjugação) que o pai da Recorrente tinha sobre esta.
Não poderá por isso, a Recorrente ser afetada pela declaração de insolvência culposa.
Vejamos.
Decorre do disposto no art.º 185.º do CIRE que a insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita.
Esta dicotomia tem como pressuposto a consideração de que a situação de insolvência pode resultar de fatores alheios à vontade do Insolvente, tais como contingências económico-financeiras inesperadas ou situações de desemprego, divórcio ou doença.
Por inerência, o incidente de qualificação da insolvência tem por objeto a apreciação da conduta do devedor e como finalidade a responsabilização do mesmo, caso se prove a culpa no surgimento da situação de insolvência.
O incidente de qualificação constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor.
O art.º 186.º do CIRE define como insolvência culposa aquela em que a “situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
A regra é, pois, a de que a atuação do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tem que ser apta à criação ou agravação do estado de insolvência, em termos de nexo de causalidade, e levada a cabo com dolo ou culpa grave.
Trata-se tipicamente de uma norma de proteção. As normas de proteção, como explica Manuel Carneiro da Frada [5] “levando longe a preocupação de prevenir com eficácia a lesão de um interesse ou bem jurídico, (…) permitem como que “pré protegê-lo” (ou “antecipar” a sua proteção), vedando ou prescrevendo condutas independentemente de se demonstrar que essas condutas apresentam no caso concreto um perigo para tal interesse ou bem jurídico (podem mesmo proibir a prova do contrário).
Este normativo consagra uma noção geral de insolvência culposa, limitando a relevância da atuação do devedor ou dos seus administradores nos termos aí descritos, para efeito dessa qualificação (como culposa), a determinado período de tempo, qual seja o triénio anterior ao início do processo de insolvência.
Na sentença, em face da factualidade provada, o tribunal concluiu que a insolvência deve ser qualificada como culposa nos termos do art. 186.º, n.º 2, al. a), d) e h), e n.º 3, al. a), do C.I.R.E.
Prevê o n.º 2 do art.º 186.º do CIRE que “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.°”.
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”
Estando a insolvente em incumprimento generalizado de obrigações desde, pelo menos, abril de 2019, a mesma deveria ter-se apresentado à insolvência até, pelo menos, julho de 2019. A verdade é que não se apresentou à insolvência tendo sido um credor a requerer essa declaração de insolvência em 18/1/2021.
Por existir esse incumprimento do dever de apresentação à insolvência presume-se a existência de culpa grave, presunção essa que não foi afastada.
Quanto á questão concreta da afetação da ora requerente, que cumpre apreciar, o artigo 189º do CIRE dispõe que:
- Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;
A ora recorrente assumiu a gerência da sociedade (ora insolvente), que constituiu.
Provou-se, é certo que, gerência era efetivamente exercida por outrem (pelo pai da recorrente) e que esta, na verdade, não acompanhava a vida societária.
Será que nestas circunstâncias, em que a gerente de direito da sociedade, se encontra totalmente afastada da vida societária, pode, ainda assim ser afetada pela qualificação como dolosa da insolvência?
O tribunal respondeu positivamente a esta questão e parece-nos que bem.
Com efeito, nos termos do disposto no art. 64.º do Código das Sociedades Comerciais:
“1 - Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:
a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e
b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.
2 - Os titulares de órgãos sociais com funções de fiscalização devem observar deveres de cuidado, empregando para o efeito elevados padrões de diligência profissional e deveres de lealdade, no interesse da sociedade.”
Sobre a gerente da insolvente, recaiam assim, por força da lei, especiais deveres de proteção do património da sociedade, tomando as medidas necessárias para que o mesmo se mantivesse intacto de modo a satisfazer na altura própria os interesses dos credores, dever com o qual não cumpriu.
A gerente ao desacompanhar a vida societária, confiando é certo que um terceiro, a iria gerir de forma criteriosa, mas sem exercer qualquer controle daquela gestão, atuou com culpa.
Dessa forma, enquanto gerente de direito, incumpriu o seu dever de apresentação à insolvência, sendo que esse incumprimento causou prejuízos aos credores porquanto a insolvente veio a outorgar um acordo com uma outra sociedade para a qual transferiu todo o seu ativo, razão pela qual esse ativo não veio a ser apreendido no âmbito deste processo.
Perante essa factualidade é inquestionável que a presente insolvência tem que ser qualificada como culposa uma vez que foi feito desaparecer parte considerável do património da insolvente em proveito de terceiros, mais propriamente em proveito do pai da requerida.
Diz o Tribunal, na sentença recorrida: “Perante o que resultou provado é inquestionável que o gerente de facto da insolvente era o pai da requerida, sendo este quem retirava proveitos da sociedade, contatava com clientes, fornecedores, funcionários e que movimentava as suas contas bancárias e fundos de caixa e quem contatava com a contabilista, sendo que a requerida nunca geriu, de facto, a insolvente.
Apuramos nestes autos que a requerida era gerente de direito, mas não de facto.
A requerida veio a juízo defender que o seu pai constituiu a insolvente em seu nome sem que a requerida tivesse conhecimento, que desconhecia ser sócia e gerente da insolvente e que assinou os documentos mencionados no ponto 4 dos factos provados e o acordo mencionado no ponto 15 dos factos provados, desconhecendo o conteúdo dos mesmos, não tendo sequer lido os mesmos e que não percebia o alcance de tais documentos e os mesmos não correspondiam à sua vontade, sendo que a sua assinatura foi imposta pelo seu pai.
A verdade é que essa factualidade não foi dada como provada, não havendo, nos autos, indícios probatórios que permitam inferir, com um patamar mínimo de solidez, que a requerida estivesse desprovida de capacidade mental, de discernimento, de incapacidade, no momento em que assinou o contrato de constituição da insolvente e em que assinou uma declaração na qual diz que “para os devidos efeito, que é única detentora do controle efetivo da sociedade “A... - Unipessoal Lda.”
A mesma assumiu conscientemente a posição de gerente de direito da insolvente, desligando-se da sua gerência de facto, relegando a mesma no seu pai.
Sabendo que era gerente de direito da insolvente a mesma, por falta de diligência sua, nunca fez qualquer diligência para apurar o estado da sociedade que representava, certamente por ter confiado que o seu pai a geriria de forma prudente, não tendo cuidado de acompanhar essa gestão de forma diligente.
É certo que a requerida era uma jovem que dependia economicamente do seu pai, sendo que este teria, certamente, ascendente sobre si. A verdade, contudo, é que tal não a impedia de se inteirar da situação concreta da insolvente, podendo a mesma ter tido o cuidado de solicitar elementos à contabilidade no sentido de apurar se a insolvente estava ou não a cumprir com as suas obrigações.
A insolvente demitiu-se desses deveres e, tendo-o feito, sibi imputet.”
Para o Prof. Coutinho de Abreu,[6] resultando do disposto no artº 64º nº1 als. a) e b) CSComercial, os administradores têm poderes-função, poderes-deveres – e os deveres fundamentais são os deveres de cuidado e de lealdade.
No dever de cuidado englobam-se o dever de controlar e vigiar a condução da atividade da sociedade e o dever de se informar sobre as eventuais causas de danos sociais rectius de se informar sobre a situação económico-financeira da sociedade.
Desta forma, podemos dizer que a ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade que caracterizam a atuação da aqui requerida constituem, só por si, uma violação dos deveres gerais que se lhe impunham, enquanto gerente da insolvente, como vimos.
No sentido que, da previsão do art. 186º, nºs 1 e 2 do CIRE verifica-se que não foi objetivo do legislador excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto da qualificação da insolvência como culposa, mas sim estendê-la a atos praticados por administradores de facto - cfr., por ex., Ac. Rel. Porto de 22.10.2019, proc. 327/15.7T8VNG-B.P1; Ac. Rel. Porto de 10.12.2019, proc. 124/10.6TYVNG-A.P1; Ac. Rel. Porto de 26.11.2019, proc. 524/14.2TYVNG-B.P1, Ac. Rel. Porto de 22/02/2022, processo 309/11.8TYVNG-N.P2, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Como se pode ler no sumário do Acórdão do STJ de 6 de Outubro de 2021[7]: “I - A gerência é, por força da lei e salvo casos excecionais, o órgão da sociedade criado para lhe permitir atuar no comércio jurídico, criando, modificando, extinguindo, relações jurídicas com outros sujeitos de direito. Estes poderes não são restritos a alguma espécie de relações jurídicas; compreendem tantas quantas abranja a capacidade da sociedade (cfr. objeto social), com a simples exceção dos casos em que as deliberações dos sócios produzam efeitos externos, sendo pressuposto do esquema de organização societária, tal como legalmente desenhado.
II - Nos últimos anos assistiu-se a um conjunto de fenómenos de progressiva difusão dos poderes societários, que conduziram à transferência, ainda que parcial, das funções de gestão acometidas ao órgão – formal e institucionalizado – da administração para outros sujeitos estranhos à estrutura formal do ente societário, com claras consequências no modelo “fisiológico” de desenvolvimento da atuação da sociedade, sendo que esse exercício fáctico de funções de gestão por sujeitos que não se encontram regularmente investidos no cargo de gerentes e/ou administradores, desacompanhado da extensão dos mecanismos que os responsabilizam enquanto designados formalmente.
III - Acompanhando essa evolução social o direito insolvencial procurou ao longo dos anos regular esses comportamentos atípicos, instituindo normas disciplinadoras dos mesmos com a inerente responsabilização dos sujeitos visados. (…)
VI - Atualmente o CIRE, no seu art. 186.º, n.º 1, prevê expressamente a responsabilização dos administradores/gerentes societários, sejam eles de direito ou de facto, os quais estão sujeitos às mesmas sanções, pessoais e patrimoniais, nos termos do art. 189.º, n.º 2 do mesmo diploma, sendo certo que, por razões de interpretação sistemática do diploma, devemos entender que a qualificação do sujeito como administrador/gerente, de facto ou de direito, é indiferente nesta sede, uma vez que o art. 6.º, n.º 1, al. a), prevê que «Para efeitos deste Código, são considerados administradores a) (…) aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente;».
Em face do exposto, não pode ser acolhida a argumentação da ora apelante no sentido de não dever ser afetada pela qualificação da insolvência como dolosa.
5.2. Do quantum da indemnização
Defende a Apelante que, caso se considere que a Recorrente deva ser afetada pela declaração de insolvência como culposa e consequentemente, ser a mesma condenada a pagar uma indemnização aos credores desta, requer que, o respetivo quantum da obrigação indemnizatória não ultrapasse o teto máximo correspondente a 1/6 dos créditos não satisfeitos na insolvência, isto é, o montante de €10.188,86.
Alega que, de acordo com a doutrina e jurisprudência aplicável nesta matéria e tendo em consideração a matéria provada na sentença de imediato se atesta a desproporcionalidade, por manifestamente excessiva, entre o quantum indemnizatório determinado pelo Tribunal a quo (€50.000,00) e a ilicitude e culpa que é atribuída à Recorrente, mas também o nexo de causalidade entre a atuação omissiva que lhe é imputada e os danos produzidos, tendo em consideração que os créditos reconhecidos sobre a insolvente ascendem ao montante de €63.972,74.
Na sentença foi a Recorrente condenada a pagar um valor correspondente a aproximadamente 78% do limite máximo que lhe poderia ser determinado a título de indemnização, quando nem sequer se consegue discernir qual o grau de culpa que foi fixado à Recorrente.
A poder atribuir-se algum juízo de censura à Recorrente, esta deverá ser sempre qualificada como sendo levíssima.
Que a matéria dada como provada pelo tribunal a quo é, em si mesma, apta e suficiente para ilidir a presunção iuris tantum de culpa grave ínsita na alínea a) do n.º 3 do art. 186º do CIRE que o douto Tribunal a quo entendeu existir em sede de qualificação da insolvência e o grau da ilicitude da conduta da Recorrente (que a existir é muito baixo).
Por referência à conclusão ínsita na sentença recorrida, uma omissão decorrente de um quadro de confiança filial, de uma pessoa muito jovem, absolutamente inexperiente e debilitada por um quadro de anorexia nervosa, num contexto de ascendência aguda do progenitor em relação à sua progénia é de concluir que, existindo, o grau de ilicitude não pode ser considerado elevado.
E tendo por fim como critério o nexo causal entre a imputada conduta omissiva da Recorrente e o agravamento dos danos dos credores, estes, se bem se interpreta o aresto em crise, reconduzem-se apenas aos €10.188,86 a título de IVA à Autoridade Tributária e nada mais.
Assim sendo, tendo em vista toda a factualidade dada como provada, o baixíssimo grau de ilicitude e o grau de culpa diminuto que podem ser imputados à Recorrente, entende-se que o quantum indemnizatório não deverá ultrapassar o teto máximo correspondente a 1/6 dos créditos não satisfeitos na insolvência (€10.188,86).
Vejamos.
O incidente de qualificação da insolvência, como dissemos, tem por objeto a apreciação da conduta do devedor e como finalidade a responsabilização do mesmo, caso se prove a culpa no surgimento da situação de insolvência.
O art.º 186.º do CIRE define como insolvência culposa aquela em que a “situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
Como vimos, a recorrente, enquanto gerente de direito da insolvente, não pode deixar de ser considerada afetada pela insolvência culposa.
Em face dessa situação, dispõe o art.º 189.º, n.º 1, alínea a), do CIRE que “Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa.”
b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afetadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.”
Por sua vez, estabelece o n.º 3 desta norma: “A inibição para o exercício do comércio tal como a inibição para a administração de patrimónios alheios são oficiosamente registadas na conservatória do registo civil, e bem assim, quando a pessoa afetada for comerciante em nome individual, na conservatória do registo comercial, com base em comunicação eletrónica ou telemática da secretaria, acompanhada de extrato da sentença.
Acrescentando o n.º 4 deste normativo que “Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.
Conforme Acórdão desta Relação de 21/02/2019[8]: “O objeto da qualificação da insolvência culposa é a responsabilização das pessoas que podendo e devendo atuar de forma proba na administração do devedor, acabam por praticar atos que estão na origem, comprovada ou presumivelmente, da insolvência do devedor e dos prejuízos que isso acarreta para os credores e para a economia em geral.”
Nos termos da jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão 280/2015, de 16/6/2015[9], entende-se que os efeitos jurídicos da qualificação da insolvência “são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do n.º 2 do artigo 189.º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas.
Daí que, caiba ao juiz, atendendo à gravidade do comportamento das pessoas atingidas, proceder casuisticamente à determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas coletivas aí identificadas) e, naturalmente, proceder à fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal
Quanto ao valor da indemnização a fixar, que é o que aqui nos ocupa, atenta a discordância da apelante do montante fixado, o critério legal é o de que a indemnização deve ser fixada em função dos “montantes dos créditos não satisfeitos”, limitada pelas forças dos patrimónios das pessoas afetadas (artº 189º nº2 al. e) CIRE).
Daí que, perante os credores da massa insolvente prejudicados pela atuação da Insolvente a pessoa afetada responde em princípio integralmente pelos montantes dos créditos não satisfeitos decorrentes daquela sua atuação (artºs 497º nº1 e 512º CCiv).
Releva a diferença entre o valor global do passivo da insolvência e o que o ativo pode cobrir, constituindo esse o critério matricial a adotar pelo juiz.[10]
Ou seja, em princípio, neste âmbito o legislador apenas impõe que seja efetuada uma mera operação matemática de passivo menos o resultado do ativo.
A jurisprudência porém, vem acolhendo o entendimento que a aplicação conjugada dos artºs 186º e 189º nºs 2 als. a) e) e 4 CIRE vincula a uma interpretação que salvaguarde o princípio da proporcionalidade, pelo que, na fixação do montante indemnizatório, deve ser ponderada a culpa do afetado, que deverá responder apenas na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa.[11]
O dolo (direto, necessário ou eventual) ou culpa (negligência) grave não são porém genéricos, são específicos. O juízo de censura subjacente à afirmação desse grau de culpa prende-se com o conhecimento ou o dever de conhecimento da situação financeira em que se encontra a devedora e do contributo da atuação para a criação ou agravamento da situação.
Ora a culpa afere-se tendo por base todo o quadro factual dado como apurado, sendo a partir dele que se impõe aferir a dimensão de culpa - posição sufragada por Carvalho Fernandes e João Labareda, pois como dizem, no n.º 4 do art. 188º do CIRE há “espaço para uma reflexão atinente ao grau de culpa atribuído aos atingidos pela qualificação da insolvência” e em função desse grau de culpa determinar a duração das inibições a que o afetado pela declaração da insolvência como culposa fica sujeito e eventualmente restringir o limite da sua responsabilidade pessoal pelos créditos da insolvência insatisfeitos em função desse grau de culpa, o qual, como referido, tem como limite máximo as forças do património pessoal do afetado por essa declaração, restringindo-se esse limite mais aquém”.
Sobre a requerida/apelante existe de um juízo de censura compatível com a afirmação de um grau de culpa no grau de culpa reduzido, ao contrário do que se entendeu na sentença.
Apesar da recorrente ter participado ativamente em negócios danosos, como o mencionado no facto 15, a sua culpa baseia-se essencialmente no facto de ter ignorado e se alheado dos destinos da sociedade o que por si constitui uma violação dos deveres gerais que se lhe impunham, enquanto gerente da insolvente, como vimos.
Porém, provou-se que toda esta atuação culposa da recorrente ocorreu num contexto, que não pode deixar de ser considerado, neste circunspeto, como diminuidor consideravelmente da sua culpa, pois ocorreu, como se provou, no âmbito dum quadro de confiança filial, de uma pessoa muito jovem, profissionalmente inexperiente, porque mera estudante, debilitada por um quadro de anorexia nervosa e num contexto de grande ascendência do progenitor sobre si.
Não se pode igualmente afirmar que a recorrente tenha tido benefícios pessoais, com a situação, a não ser o de manter um relacionamento afetivo com o pai, que teria ficado provavelmente abalado, se a recorrente tivesse recusado a colaboração com aquele.
Também não se pode em rigor, a nosso ver, afirmar que tenha beneficiado monetariamente, no sentido que, dessa forma logrou conseguir que o pai custeasse os seus estudos universitários, uma vez que tal constitui obrigação dos progenitores nos termos do nº 2 ao art. 1905º do Código Civil, uma vez que a obrigação de alimentos se mantém mesmo após a maioridade do filho e até que este perfaça 25 anos.
Provou-se que os créditos reconhecidos sobre a insolvente ascendem ao montante de €63.972,74.
Desta forma entendemos que, a indemnização a que a apelante foi condenada a pagar viola a regra da proporcionalidade, devendo em consequência ficar limitada a sua responsabilidade pessoal, a créditos no valor de cerca de 1/3, ou seja de €21.000,00 euros.
Assim sendo, subscrevendo o juízo plasmado no Acórdão da R.C. 16/12/2015, supra citado, no sentido de que “tendo em conta tal solução da lei inspiradora e porque o severo regime que emerge da aplicação conjugada dos art.ºs 186.º e 189.º vincula a uma interpretação que salvaguarde o princípio da proporcionalidade, conjugando o teor das als. a) e e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189º, entendemos que encontra acolhimento no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afetado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa”, decide-se reduzir a indemnização fixada ao valor de € 21.000,00 euros, atendendo ao grau de culpa da Recorrente.

VI-DECISÃO:
Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, condenando-se agora a Requerida a indemnizar os credores da devedora Insolvente reconhecidos no apenso de reclamação de créditos, no montante de €21.000,00 euros, (vinte e um mil euros) confirmando-se a sentença no demais.
Custas do recurso a cargo da Recorrente, na proporção de vencido.

Porto, 7 de novembro de 2023
Alexandra Pelayo
Rui Moreira
Márcia Portela
_____________
[1] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, pg. 175.
[2] Obra citada, pg. 169.
[3] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225.
[4] Abrantes Geraldes in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[5] in A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, 2005, disponível em www.oa.pt.
[6] In Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade, 2010, pg. 25.
[7] Relatora Ana Paula Boularot, proferido no P 616/12.2TYVNG-F.P1.S1 e disponível in www.dgsi.pt,
[8] Proferido no processo n.º 1733/15.2T8STS-B.P1 e disponível em www.dgsi.pt
[9] Disponível no endereço https://dre.tretas.org/dre/896506/acordao-280-2015-de-16-de-junho
[10] Prof. Carvalho Fernandes e Dr. João Labareda, CIRE Anotado, pg. 697 e Drª Carina Magalhães, Incidente de Qualificação de Insolvência - Uma Visão Geral, in Estudos de Direito da Insolvência, coord. Profª Maria do Rosário Epifânio, págs. 133ss.
[11] Ver entre outros os Acórdãos da RP de 27.10.2020 (relator Vieira e Cunha), proferido no P. 1139/19.4T8AMT-B.P1 e da RC de 16/12/2015,(relatora Maria Domingas Simões), no P 1430/13.3TBFIG-C.C1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.