Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
528/19.9PCMTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CLÁUDIA RODRIGUES
Descritores: AMNISTIA
PERDÃO
LEI ESPECIAL
DIREITOS FUNDAMENTAIS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
JOVEM
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20240403528/19.9PCMTS-A.P1
Data do Acordão: 04/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO/CONDENADO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O legislador pretendeu exercer o direito de graça da Lei n.º 38-A/2023 por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude e da visita Papal a ela associada.
II – A escolha do legislador centrada na diferenciação estabelecida naquela lei em relação à idade das pessoas abrangidas, até aos 30 anos de idade à data da prática do facto, encontra uma justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo e constitucionalmente relevantes, pois tem alguma correspondência com a idade dos destinatários principais das ditas jornadas, tratando-se de circunstâncias não arbitrárias, antes razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito.
III – Isto porque é perfeitamente compreensível que se tivesse querido favorecer com a concessão das medidas de clemência os arguidos jovens, todos os pertencentes à faixa etária dos destinatários do evento internacional motivador da sobredita lei, que se associou ao mote de otimismo e esperança na Juventude que as Jornadas assinalaram, e reconhecer nesta medida um contributo para a reinserção destes jovens, contribuindo, desta forma, para a humanização e dignidade dos mesmos, por verem a sua reinserção reforçada através deste ato de clemência e generosidade.
IV – Assim sendo, e porque a diferenciação não é arbitrária, não podem ter-se como violados os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da proibição da discriminação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 528/19.9PCMTS-A.P1

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO

AA, condenado no processo abreviado n.º 528/19.9PCMTS do Juízo Local Criminal de Matosinhos (J1) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, arts. 203º, nº 1, 204º, nº 1, al. b), 21º, nº 1 e 23º, nºs 1 e 2, e 73º, nº 1, als. a) e c), do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, com regime de prova, veio requerer lhe fosse perdoada tal pena de prisão, por entender estarem reunidos todos os requisitos que emergem da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Para o efeito alegou (transcrição):

AA, condenado nos autos à margem referenciados e neles devidamente identificado, na sequência do surgimento de legislação superveniente, mais favorável, vem expôr e requerer a V. Ex.ª, o seguinte:

Nos presentes autos, por decisão transitada em julgada, há quase 4 anos (21/02/2020), o tribunal decidiu o seguinte:
“Face ao exposto, o Tribunal decide:
(…)
b) condenar o arguido AA pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, artº 203º, nº 1, 204º, nº 1, al. b), 21º, nº 1 e 23º, nºs 1 e 2, e 73º, nº 1, al.s a) e c), do Cód. Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão;
no entanto, por se considerar que as exigências de prevenção ficam devidamente salvaguardadas, decide-se suspender a execução da pena de prisão aplicada, condenando-se assim o arguido AA na pena de 9 (nove) meses de prisão, prisão suspensa na execução pelo período de 2 (dois) anos, suspensão
i) sujeita a regime de prova, obrigando-se o arguido ao cumprimento do plano de reinserção social que venha a ser homologado (do plano de reinserção social deverá constar, se necessário, a submissão ao tratamento à toxicodependência, tratamento para o qual o arguido deu o seu consentimento) e impondo-se, ainda, ao arguido, que, nos termos do disposto no artº 54º, nº 3, do Cód. Penal se sujeite a:
- responder a convocatórias dos técnicos de reinserção social, no âmbito da elaboração e acompanhamento dos planos de reinserção social;
- receber as visitas dos técnicos de reinserção social e comunicar-lhes ou colocar à disposição informações necessárias elaboração e acompanhamento do plano de reinserção social;
- informar os técnicos de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso;
- obter autorização prévia do magistrado, que à data da deslocação seja titular deste processo, para se deslocar para o estrangeiro; e
ii) subordinada ao pagamento, por parte do arguido AA, no prazo de 1 (um) ano, a BB, do valor de €300,00 (trezentos euros), para o IBAN que este venha a indicar no processo;
(…)”

Contudo, no dia 01 de Setembro de 2023, entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

A sobredita Lei seria aplicável aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.

À data da prática dos factos o condenado tinha 52 anos.

Numa primeira leitura, atenta a idade do condenado, este regime não seria aplicável.
SUCEDE, PORÉM, QUE,

Conforme tem sido do domínio público, os tribunais de 1ª instância não têm tido entendimento unânime quanto à legalidade deste factor limitador da idade.

Pois alguns têm considerado que a Lei, aqui em análise, sempre será aplicável aos arguidos com idade superior a 30 anos, à data da prática dos factos, na medida em que solução diferente resultaria inconstitucional, por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

É, assim, inconstitucional a interpretação normativa da conjugação dos artigos 2º n.º 1 da Lei n.º 38º-A/2023, de 02 de Agosto, quando interpretada no sentido de que a idade constitui factor limitador ao perdão de penas, por violação do princípio da igualdade, a que alude o art.º 13º da Constituição da República Portuguesa.

Conquanto, o n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa consagra que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”
10º
Por sua vez, o n.º 2 do mesmo normativo constitucional acrescenta que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
11º
O princípio da igualdade traduz-se na regra da generalidade na atribuição de direitos e na imposição de deveres.
12º
Em princípio, os direitos e vantagens devem beneficiar a todos; e os deveres e encargos devem impender sobre todos, concretizando-se, essencialmente, na proibição do arbítrio, na proibição de discriminações - mormente em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual -, e na obrigação de diferenciação.
13º
Como escrevem os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, “o princípio da igualdade tem a ver fundamentalmente com igual posição em matéria de direitos e deveres (...).
Essencialmente, consiste em duas coisas: proibição de privilégios ou benefícios no gozo de qualquer direito ou na isenção de qualquer dever; proibição de prejuízo ou detrimento na privação de qualquer direito ou imposição de qualquer dever (n.º 2). No fundo, o princípio da igualdade traduz-se na regra da generalidade na atribuição de direitos e na imposição de deveres.” (in “Constituição da República Portuguesa Anotada – Volume I”, Coimbra Editora, 2014, p. 338).
14º
Continuam os autores, “a proibição do arbítrio constitui um limite externo de liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual pode ser arbitrariamente tratado como igual. (...) Só quando os limites externos da «discricionariedade legislativa» são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma «infracção» do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio.” (in “Constituição da República Portuguesa Anotada – Volume I”, Coimbra Editora, 2014, p. 339).
15º
Nessa medida, o princípio da igualdade desdobra-se, assim, na obrigação de tratar de forma igual aquilo que é igual e desigual aquilo que é desigual.
16º
Ora, da exposição de motivos da proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª resulta o seguinte, cita-se:
“Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.”
17º
Desde logo, impõem-se sempre as seguintes questões:
- Qual é o fundamento racional presente no estabelecimento do limite?
- O limite de 30 anos, constitui um factor de discriminação objectivo para ser estabelecido como condição para a concessão do perdão de penas ou da amnistia?
18º
Como sabemos, o legislador português definiu o limite máximo etário, por ser o limite de idade para a inscrição nas Jornadas Mundiais da Juventude.
19º
Contudo, mesmo esse limite não é certo, uma vez que cada Conferência Episcopal, de cada país, poderia definir outra idade, bem como poderiam ser inscritos pessoas com outras idades, sob condições, cfr. https://www.lisboa2023.org/pt/inscricoes-peregrinos.
20º
Pelo que surgem dúvidas quanto ao fundamento da delimitação dos destinatários das medidas de clemência apenas se bastar com o foco dos destinatários centrais do evento, isto é, jovens até aos 30 anos.
21º
Conforme resulta do Acórdão n.º 488/2008, de 7 de Outubro do Tribunal Constitucional, relatado pelo Conselheiro Benjamim Rodrigues, “Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cfr. GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; ALVES CORREIA, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da "diferença" de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.”
22º
Acrescenta ainda, “[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.]”
23º
Exige-se, portanto, que no âmbito de aplicação da norma, “a ideia de igualdade, com efeito, só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/95, relatado pelo Conselheiro Messias Bento), devendo a condicionalidade ser de carácter geral quanto aos destinatários e objectiva no seu fundamento.
24º
Na verdade, o legislador não oferece um critério penalístico para aquele limite.
25º
Se, por um lado, se compreende a opção do legislador em amnistiar as condutas de mínima gravidade ou perdoar até 1 ano de pena de prisão a todas as penas até 8 anos, transmitindo à comunidade jurídica que os crimes de média e grave criminalidade continuarão a ser objecto de punição, por outro, o limite etário é compreendido como uma anomalia e soa comunitariamente como injustiça, uma vez que o Estado não oferece qualquer fundamento objectivo para a diferenciação.
26º
Ademais, a limitação etária subjacente ao conceito de “juventude” prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, mais não é, do que uma discriminação injustificada por parte do legislador.
27º
Desde logo, o conceito “juventude” não é um técnico-jurídico.
28º
Em face da variabilidade do conceito “juventude”, não é possível no nosso ordenamento jurídico encontrar um limite fixado em critérios penalísticos, para aplicação da identificada Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, designadamente para se estabelecer como limite etário para a “juventude” 31 anos menos um dia.
29º
E, nesse sentido, deverá o condenado beneficiar da aplicação da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, e nessa medida, ser-lhe concedido o perdão da pena aplicada nos presentes autos, declarando- se a inconstitucionalidade do artigo 2.º da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto.
30º
Entendendo-se que o condenado deve beneficiar deste regime penal mais favorável, por se tratar de crime excluído do catálogo do art.º 7º do sobredito diploma (…)”.

Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho judicial, datado de 09.11.2023 (decisão recorrida):

“Veio AA requerer lhe fosse perdoada a pena de prisão em que foi condenado, por entender estarem reunidos todos os requisitos que emergem da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, sendo que, no que concerne à idade dos arguidos/condenados abrangidos naquele diploma legal, quando interpretada no sentido de que a idade constitui fator limitador ao perdão de penas, por violação do princípio da igualdade, a que alude o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
A Lei nº 9/2020 teve por objetivo abranger parte da população, considerada como jovem, no momento concreto em que foi publicada por força das Jornadas Internacionais da Juventude que decorreram em Portugal. A referida lei teve um propósito específico – de abranger a população jovem - e temporalmente limitado. Foi uma medida de cariz único e temporalmente circunscrita. Se o propósito da lei era, naquele momento, a celebração em Portugal de um evento mundial destinado à juventude, afigura-se razoável e adequado ao objetivo proposto, que tais medidas se circunscrevessem a um universo restrito e determinado.
Esta diferenciação de tratamento mostra-se fundada naquele objetivo racional. Entende-se pois que, neste respeito, a norma em questão se mostra de acordo com os princípios constitucionais vigentes.
Face ao exposto, indefere-se o requerido pelo condenado, por o mesmo não se encontrar abrangido pelo disposto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.”

Não conformado com esta decisão, da mesma interpôs o arguido o presente recurso, tendo extraído da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

!1º No passado dia 09 de Novembro de 2023, na sequência de requerimento para apreciação de perdão de pena e de inconstitucionalidade normativa, de um segmento da Lei n.º 38º-A/2023, de Agosto, foi proferido despacho no sentido de indeferir o requerido pelo condenado, por o mesmo não se encontrar abrangido pelo disposto na sobredita lei.
2º No âmbito destes autos, o tribunal a quo, havia proferido decisão condenatória do arguido AA pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, artº 203º, nº 1, 204º, nº 1, al. b), 21º, nº 1 e 23º, nºs 1 e 2, e 73º, nº 1, al.s a) e c), do Cód. Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 2 (dois) anos, sujeita a regime de prova e subordinada ao pagamento, no prazo de 1 (um) ano, a BB, do valor de €300,00 (trezentos euros).
3º Contudo, no dia 01 de Setembro de 2023, entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações, por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, aplicável aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
4º À data da prática dos factos o condenado tinha 52 anos, idade superior ao estalecido pela sobredita lei, pelo que, numa primeira leitura, atenta a idade do condenado, este regime não seria aplicável.
SUCEDE, PORÉM, QUE,
5º Desde a sua génese, esta lei nunca colheu entendimento unânime quanto à constitucionalidade da restrição na sua aplicação e os próprios tribunais de 1ª instância não têm tido entendimento unânime quanto à legalidade deste factor limitador da idade
6º O que queria situações de flagrante injustiça, pois os indivíduos condenados, com idade superior a 30 anos, não devem ver o seu destino deixado à sorte do entendimento do tribunal onde o seu processo corre termos.
7º Foi tornado público, entre outros casos, nos termos e para os efeitos do art.º 412º n.º 1 do Código Processo Civil, nos diversos jornais de tiragem nacional, a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, proferida no âmbito do Processo n.º 29/23.0PAMGR.
8º O ali arguido apresentou contestação alegando a inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º, n.º 2 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, por discriminatória com base na idade, violando, assim, o disposto no artigo 13.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
9º Naquele processo considerou-se, para além do mais, que o legislador definiu a faixa etária abrangida pela Lei da Amnistia, tendo em consideração o limite máximo de idade para as inscrições nas Jornadas Mundiais da Juventude, cada Conferência Episcopal de cada país poderia definir outra idade e permitir inscrições de pessoas com idades diferentes, sob certas condições.
10º Também se considerou que os limites de idade e o conceito de juventude são utilizados em diversos contextos, pelo que podemos encontrar diversas definições do mesmo, citando-se alguns exemplos:
- Programa de mobilidade e intercâmbio para jovens, é-se considerado jovem até os 30 anos de idade, isto de acordo com a Portaria n.º 345/2006, de 11 de Abril.
- A Assembleia Geral das Nações Unidas, entende que a juventude termina aos 24 anos, conforme dispõe a Resolução n.º 36/28 de 1981.
- No contexto de “Jovens Agricultores” são considerados jovens até os 40 anos, de acordo com o artigo 3.º, alínea d), da Portaria n.º 31/2015, de 12 de Fevereiro.
11º Dessa forma, o Tribunal conclui que, dependendo do Diploma Legal em análise, o fim da juventude varia entre os 24 e os 40 anos, o que impede a definição de um limite universal para o conceito de juventude, considerando que o termo “juventude” é vago e não possui definição jurídica, e que o legislador não estabeleceu critérios específicos para o limite de até 30 anos, sendo esse limite, em concreto, 31 anos menos um dia para a sua aplicação.
12º Na verdade, o legislador não oferece um critério penalístico para aquele limite etário, que acaba por ser compreendido como uma anomalia e soa comunitariamente como injustiça, uma vez que o Estado não oferece qualquer fundamento objectivo para a diferenciação.
13º Em face da variabilidade do conceito “juventude”, não é possível no nosso ordenamento jurídico encontrar um limite fixado em critérios penalísticos, para aplicação da identificada Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, designadamente para se estabelecer como limite etário para a “juventude” 31 anos menos um dia.
14º Pelo que a norma do artigo 2.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2/8, é materialmente inconstitucional, por ofensa à norma do artigo 13.º, n.º 2 da CRP, pelo que, com base na referida inconstitucionalidade parcial quantitativa, foi declarado extinto o procedimento criminal.
15º É, assim, inconstitucional a interpretação normativa da conjugação dos artigos 2º n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, quando interpretada no sentido de que a idade constitui factor limitador ao perdão de penas, por violação do princípio da igualdade, a que alude o art.º 13º da Constituição da República Portuguesa.
16º O princípio da igualdade traduz-se na regra da generalidade na atribuição de direitos e na imposição de deveres, pelo que os direitos e vantagens devem beneficiar a todos; e os deveres e encargos devem impender sobre todos, concretizando-se, essencialmente, na proibição do arbítrio, na proibição de discriminações - mormente em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual -, e na obrigação de diferenciação.
17º Nessa medida, o princípio da igualdade desdobra-se, assim, na obrigação de tratar de forma igual aquilo que é igual e desigual aquilo que é desigual.
18º Temos assim duas questões que ficam sem resposta:
1.ª - Qual o fundamento racional presente no estabelecimento do limite de idade;
2.ª - Se o limite de 30 anos, constitui um factor de discriminação objectivo para ser estabelecido como condição para a concessão do perdão de penas ou da amnistia.
19º Como sabemos, o legislador português definiu o limite máximo etário, por ser o limite de idade para a inscrição nas Jornadas Mundiais da Juventude, sendo que mesmo esse limite não é certo, uma vez que poderiam ser inscritas pessoas com outras idades, sob condições, como se poderá apurar em https://www.lisboa2023.org/pt/inscricoes-peregrinos.
20º Pelo que surgem dúvidas quanto ao fundamento da delimitação dos destinatários das medidas de clemência apenas se bastar com o foco dos destinatários centrais do evento, isto é, jovens até aos 30 anos.
21º E, nesse sentido, deverá o condenado beneficiar da aplicação da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, por se tratar de crime excluído do catálogo do art.º 7º do sobredito diploma e, nessa medida, ser-lhe concedido o perdão da pena aplicada nos presentes autos, declarando-se a inconstitucionalidade do artigo 2.º da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto.
A- Por tudo o exposto, verifica-se a violação do art.º 13º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como deverá ser declarada a inconstitucionalidade do art.º 2º n.º 1 da Lei n.º 38º-A/2023, de 02 de Agosto.
B- De igual forma, deverá ser revogado o despacho recorrido, devendo o tribunal a quo determinar a sua substituição por um outro que conceda o perdão da pena aplicada ao condenado.
Dessa forma, Vossas Exas. farão a costumada JUSTIÇA”

Por despacho proferido em 15.12.2023 foi o recurso regularmente admitido, sendo fixado o regime de subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

Respondendo ao recurso, o Ministério Público pugna pela improcedência do recurso, por não restarem dúvidas que os crimes terão de ser praticados por pessoas entre os 16 e os 30 anos. Termos em que fica prejudicada a apreciação da violação do art. 13º n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, para ser declarada a inconstitucionalidade do art.º 2º n.º 1 da Lei n.º 38º-A/2023, de 02 de agosto, nem existe qualquer fundamento para revogar o despacho recorrido.

Subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o art. 416º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), alinhando com a posição do Ministério Público da 1.ª Instância, entende também que o recurso do arguido deve ser rejeitado, por manifesta improcedência - nos termos do disposto nos arts. 417º, n.º 6, alínea b), e 420º, nºs 1, alínea a), e 2 do CPP -, em primeiro lugar, porque o recorrente, que à data da prática dos factos pelos quais foi condenado tinha 52 anos de idade, não reúne o pressuposto de aplicação previsto no art. 2º, nº 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto e, em segundo lugar, porque esta norma não é inconstitucional, nomeadamente, não viola o princípio da igualdade, previsto no art.º 13º da Constituição da República Portuguesa, invocando jurisprudência no sentido de tal posição.

Não foi produzida qualquer resposta ao parecer.
*
Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
2. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412º, nº 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

Tendo em conta este contexto normativo e o teor das conclusões que supra se deixaram transcritas, a questão submetida ao conhecimento deste tribunal é única e exclusivamente é a de saber se é inconstitucional a restrição contida no art. 2º, nº 1da Lei n.º 38-A/2023, por violar o princípio da igualdade - art.º 13º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, devendo ser revogado o despacho recorrido, e o tribunal a quo determinar a sua substituição por um outro que conceda o perdão da pena aplicada ao condenado.

Para além do que já consta do relatório que antecede, há a considerar as seguintes ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso:
a) Por sentença proferida em 21.01.2020 o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, arts. 203º, nº 1, 204º, nº 1, al. b), 21º, nº 1 e 23º, nºs 1 e 2, e 73º, nº 1, als. a) e c), do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, com regime de prova.
b) O arguido AA nasceu no dia ../../1967.
c) A pena aplicada ainda não se mostra extinta.

Progredindo para a apreciação do mérito do recurso:

O recorrente AA, nascido a ../../1967, foi condenado pela autoria de crime de furto qualificado, na forma tentada, arts. 203º, nº 1, 204º, nº 1, al. b), 21º, nº 1 e 23º, nºs 1 e 2, e 73º, nº 1, als. a) e c), do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, com regime de prova.
Pretende beneficiar de medida de clemência decretada pela Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, não obstante ter 52 anos de idade à data em que os factos da condenação foram por si praticados (6 de agosto de 2019), e que assim se conceda o perdão da pena aplicada ao condenado, declarando-se a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 38-A/2023 de 2 de agosto.
Entende o recorrente que o aludido art. 2º nº 1 da Lei n.º 38-A/2023 viola grosseiramente a Constituição da República Portuguesa, no que tange ao princípio da igualdade, a que alude o repetivo art. 13º.
Vejamos.
A sobredita Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, conforme dispõe o seu art. 1º veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
Nos termos do seu art. 2º, nº 1 “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”.
Da interpretação da lei resulta que aqueles que já completaram mais de 30 anos de idade à data da prática do facto, não beneficiam das medidas de graça da lei relativamente às sanções penais.
Por seu turno, estabelece o art. 13º da CRP sob a epigrafe “Princípio da igualdade”: 1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
Outrossim no âmbito de aplicação do direito da União Europeia, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Proclamada solenemente em Nice, em dezembro de 2000, a Carta é, desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em dezembro de 2009, juridicamente vinculativa - cfr. art. 6.º do Tratado da União Europeia) estabelece, de forma juridicamente vinculativa e diretamente aplicável nos Estados Membros (i. e., vincula as instituições, os órgãos e organismos da União Europeia em toda a sua atuação e, por outro lado, vincula os Estados-membros quando apliquem direito da União):
Artigo 20.º
Igualdade perante a lei
Todas as pessoas são iguais perante a lei.
Artigo 21.º
Não discriminação
1. É proibida a discriminação em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual.
2. No âmbito de aplicação do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Tratado da União Europeia, e sem prejuízo das disposições especiais destes Tratados, é proibida toda a discriminação em razão da nacionalidade.
Centremo-nos antes de mais na natureza das medidas decretadas pela citada Lei, isto é, medidas de Direito de Graça ou Clemência.
Por bastante elucidativo, trazemos à liça o que sobre o tópico em referência se explanou no Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2001, de 14 de novembro (publicado no Diário da República n.º 264/2001, Série I-A de 2001-11-14) “2 - Amnistia significa, tal como o vocábulo grego que lhe serviu de étimo, esquecimento. É a abolição da incriminação de um facto passado.
Embora inexistindo, actualmente, na lei, uma definição de amnistia, é aquela uma ideia assumida pela jurisprudência e pela generalidade da doutrina, nacional e estrangeira. A amnistia aniquila os factos já ocorridos como objecto da incriminação, «de sorte que aos olhos da justiça, por uma ficção legal, considera-se como se nunca tivessem existido, salvos os direitos de terceiro com relação à acção civil para a reparação do dano», conforme as considerações de N. Paiva e de L. Osório, apud Notas, 2.ª ed., p. 425 (extracto do estudo «As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão», de M. Maia Gonçalves, in RPCC, ano 4, fasc. 1, p. 13).
Concepção que, segundo o Prof. Figueiredo Dias (in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, p. 689), embora tenha uma longa tradição, não se apresenta, todavia, à luz da «estadualidade de direito» subjacente à Constituição da República Portuguesa, como a mais rigorosa ou mesmo aceitável, pois, na verdade, «o direito de graça só pode ter a ver, em qualquer dos casos, com a consequência jurídica, não com o facto ou o crime praticados», pelo que «o que distingue os vários institutos abrangidos por aquela realidade é o carácter geral da amnistia (dirigida a grupos de factos ou agentes, na qual se inclui o perdão genérico, que deve ser considerado, para todos os efeitos, uma verdadeira amnistia) em contraposição ao carácter individual do indulto (dirigido a pessoas concretas)».
Numa breve resenha histórica da evolução dos conceitos em causa, que cremos ser relevante para a dilucidação da questão sub judice, seguindo de perto os ensinamentos daquele ilustre mestre (cf. declaração de voto no parecer 13/79 da Comissão Constitucional, in Pareceres, 8.º vol., pp. 107 e segs.), dir-se-á que:
Nos períodos da monarquia absoluta e do Estado de polícia a amnistia fazia parte - conjuntamente com o perdão de pena, o indulto e a comutação, dos quais, teórica e praticamente mal se distinguia - do acervo de actos indiferenciados de graça ou de clemência, que exclusivamente cabiam na indulgentia principis: só o soberano, como supremo e em rigor único titular do poder do Estado, tinha competência para os actos que constituíam a expressão pura do arbítrio real.
Contra esse estado de coisas reagiu, compreensivelmente, a Revolução Francesa e todas as correntes de pensamento coevas, dominadas pelos desejos de legalidade e igualdade estritas. Todavia, se, por um lado, era indiscutível a função política que em certas circunstâncias os actos de clemência ou de graça cumpriam (temperar a dureza da justiça, quando particulares circunstâncias políticas, económicas e sociais houvessem tornado aquele rigor aberrante e iníquo), era, por outro, inestimável a oportunidade deles quando se destinassem a corrigir efeitos legislativos ou de aplicação do direito ou erros judiciários. Por último, era conveniente o seu uso quando se propusessem finalidades político-criminais ligadas à reabilitação dos delinquentes.
Por tais razões, o Estado de direito liberal acolheria tais medidas no seu seio, imputando a competência para a prática de tais actos ao rei, como «poder moderador», em compatibilização com o princípio básico da separação dos poderes, situação de que foi exemplo o nosso Código Penal de 1852, onde tanto o poder de amnistiar como o de perdoar constituíam «actos reais.»
Não deixaram, porém, as assembleias legislativas de reivindicar pelo menos uma parte dessa competência, tornando-se então largamente dominante a distinção entre amnistia em sentido amplo, que caberia no poder das assembleias, e um perdão, indulto ou graça, cujo exercício caberia ao chefe de Estado ou equivalente.
Aquela, abrangendo tanto a amnistia própria (anterior à condenação) como a imprópria (a posterior à condenação), era entendida como medida jurídica (pertencente ao mundo do direito e portanto sujeita ao controlo jurisdicional), distinguia-se basicamente do perdão ou indulto, entendido, pelo contrário, como medida graciosa, pré-jurídica (portanto, jurisdicionalmente incontrolável).
Com a institucionalização do Estado de direito social e democrático, todos os actos de graça são actos que se movem no mundo do direito, desde logo no do direito constitucional, pelo que estão sujeitos ao seu império, portanto ao controlo jurisdicional. O que se reflectiu nos próprios termos da distinção entre amnistia e indulto, evidenciando que na primeira se trata sempre de uma medida formalmente legal (competindo às câmaras legislativas) e, deste modo, dotada das características de objectividade, generalidade e impessoalidade, enquanto no indulto se trata de intervenções executivas através das quais, no caso concreto, são afastadas, reduzidas ou suspensas as consequências jurídicas de uma condenação penal, transitada em julgado.
É assim que a Constituição dispõe hoje que «compete à Assembleia da República [...] conceder amnistias e perdões genéricos» - artigo 161.º, alínea f) -, competindo ao Presidente da República «na prática de actos próprios [...] indultar e comutar penas, ouvido o Governo» - artigo 134.º, alínea f).
Em ambos os casos fica derrogado o sistema legal punitivo; daí o intitular-se, por vezes, o regime das medidas de graça como um jus non puniendi. O direito de graça é, no seu sentido global e abrangente, «a contraface do direito de punir estadual» (Figueiredo Dias, Direito Penal ..., parte geral II, 1993, p. 685).
Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.
Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.
É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).”.
Mais se rememora o ainda recente Acórdão Unificador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2023, de 1 de fevereiro, publicado no Diário da República n.º 23/2023, Série I, páginas 22 - 41, onde se lê: “C. Do Direito de Graça e afins
6 - Ora, o direito de graça, em que se integra o perdão de penas, consubstancia a "contraface do direito de punir estadual", consubstanciando um caminho "para obviar incorrecções legislativas ou a erros judiciários [...] como para propiciar condições favoráveis a modificações profundas da legislação de carácter penal, ou [...] à socialização do condenado"(…).
Assim, as medidas de graça ou de clemência são uma "reminiscência do direito de graça que o soberano detinha quando concentrava em si todos os poderes estatais, incluindo os de castigar e de perdoar", subvertendo os "princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça"(…).
Os atos de graça abrangem, assim, a amnistia, o perdão genérico e o perdão individual ou particular, em que se integram o indulto e a comutação(…). A distinção entre as várias medidas de graça efetua-se conforme o ato respeite ao facto praticado ou à pena concretamente aplicada, bem como consoante abranja um caso concreto ou um grupo de situações, em função das características do facto praticado ou do agente(…).
Assim, "[...] o Estado-de-Direito metamorfoseou o direito de graça, passando a encará-lo através de outro prisma, e aproveitou-o como instrumento útil na realização de uma autêntica justiça. Criteriosamente administrado, o direito de graça pode servir para a realização da justiça nos casos em que a aplicação da lei, na sua generalidade a abstracção, dá lugar a decisões concretas materialmente injustas ou político-criminalmente inadequadas"(…).
Tais medidas de graça não estão expressamente previstas a se no âmbito da Constituição da República Portuguesa, encontrando-se apenas mencionadas aquando da referência aos poderes do Presidente da República (indulto e comutação da pena, nos termos do artigo 134.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa) e do Parlamento (amnistia e perdão genérico, previstos no artigo 161.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa).
"O que verdadeiramente distingue os institutos é o carácter geral da amnistia (dirigido [...] a grupos de factos ou de agentes, em contraposição ao carácter individual do indulto (dirigido a pessoas concretas)"(…).
"A amnistia é, pois, uma instituição de clemência da competência da Assembleia da República. Os seus efeitos podem ser a extinção do processo penal ou, no caso de já existir uma condenação, a extinção da pena e dos respectivos efeitos. No primeiro caso estamos perante uma amnistia própria (em sentido próprio), e no segundo caso perante uma amnistia imprópria (em sentido impróprio).
O perdão genérico é uma figura próxima da amnistia. Trata-se de uma medida de carácter geral, que tem como efeito a extinção de certas penas (pelo que a doutrina o qualifica como verdadeira amnistia imprópria).
Designa-se por amnistia a medida de graça, de carácter geral, aplicada em função do tipo de crime, e perdão genérico a medida de graça geral aplicada em função da pena.
Visto que o perdão genérico é, como se disse, aplicado em função da pena, ele tem a particularidade de poder ser total ou parcial, conforme seja perdoada a totalidade ou apenas uma parte da pena"(…).
Nesta medida, enquanto a amnistia respeita às infrações abstratamente consideradas, "apagando" a natureza criminal do facto, o perdão implica que a pena ou a medida de segurança não sejam, total ou parcialmente, cumpridas.
"A amnistia serve para libertar o agente de um processo penal ainda em curso ou do cumprimento de uma pena, devida à prática de determinado crime. Significa isto que alguns bens jurídicos, protegidos pela legislação penal, são considerados menos importantes, em determinados contextos (por exemplo, em caso de necessidade de pacificação social), razão pela qual a sua protecção pode ser sacrificada reotractivamente. Contudo, tal não significa que a amnistia implique a ausência de dignidade punitiva do acto ilícito.
Assim, e nos termos do artigo 127.º do Código Penal, "a responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto".
Por sua vez, o artigo 128.º, n.º 2 do Código Penal preceitua que "a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança" e, no n.º 3, que "o perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte".”.
Enquadrado o tema, revertendo à situação em análise, e tendo presente a solução normativa vertida na Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece uma diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto e os demais, reservando a aplicação das medidas de clemência decretadas para os primeiros e delas excluindo os últimos, a questão que se coloca, é então, a de saber se tal diferenciação viola o convocado princípio da igualdade.
É consabido que as sucessivas leis que têm decretado amnistias e perdões genéricos têm suscitado a apreciação de inúmeras questões que se prendem com a observância das exigências do princípio da igualdade pelas medidas de clemência.
O Tribunal Constitucional tem tratado do tema regularmente, pronunciando-se entre muitos outros no respetivo Acórdão nº 488/2008 de 07.10.2008, nos seguintes termos:
No art.º 13.º, n.º 2, a Constituição estabelece que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão […] da situação económica […]”.
Mas igualdade não é igualitarismo.
O Tribunal Constitucional tem uma vasta jurisprudência sobre o princípio da igualdade.
“Reflectindo o estado actual da compreensão do princípio da igualdade, tanto na jurisprudência como na doutrina, nacionais e estrangeiras, afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da República 1.ª série-A, de 17 de Junho de 2003), assumindo em diversos passos da sua fundamentação abundante argumentação de jurisprudência anterior:
[...] Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da "atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição) (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).
[...]
1.2 - O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, «razoável, racional e objectivamente fundadas», sob pena de, assim não sucedendo, «estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes», no ponderar do citado Acórdão n.º 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como «princípio negativo de controlo» ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos n.º s. 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados n.º s. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial («tertium comparationis»). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão n.º 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da «diferença» de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação. [...]
[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos n.º s 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16.º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2.ª ed., 1993, p. 213 e ss., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6.ª ed., 1993, pp. 564-5, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.].
[...]
Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.
Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma "fundamentação razoável" (vernünftiger Grund), tal como sustentou o "inventor" do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. f. Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: «[E]stando em causa [...] um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela ratio do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A ratio do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério» (cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido?, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma Autora: «[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a ratio do tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar, e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adoptado e a ratio do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada sociedade» (ob. cit., pp. 31-32).
[...]”. (negrito nosso)
Por conseguinte, e para dirimir a questão, haverá que perscrutar a ratio da diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto e os demais, consagrada pela Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, para se apurar se a mesma é “razoável, racional e objectivamente fundada” ou se, pelo contrário, aquele limite constitui discriminação, sem fundamento razoável, relativamente a outros cidadãos com idade superior, ou seja, se é irrazoável e arbitrária.
Olhemos para a intenção do legislador.
O legislador pretendeu exercer este direito de graça da Lei n.º 38-A/2023 por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude e da visita Papal a ela associada.
Consignou-se na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 97/XV/1ª que o Governo apresentou à Assembleia da República (publicação DAR II série A nº 245, 2023.06.19, da 1ª SL da XV Leg - p. 348-35)3:
A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo. Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens.
Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.
Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.
Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação.
Adicionalmente, é fixado um regime de amnistia, que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda € 1.000, exceto as que forem praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, as infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar e as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa.”.
Ora a previsão da diferenciação de tratamento entre cidadãos com idade compreendida entre os 16 e os 30 anos de idade e os demais, fazia antever alguma preocupação sobre se estaria assegurada a conformidade com o princípio da igualdade, constitucionalmente garantido, daí que logo na nota de admissibilidade (lavrada para efeitos de despacho do Senhor Presidente da Assembleia da República, nos termos do disposto na alínea c. do nº 1 do artigo 16º do respetivo Regimento), o Assessor parlamentar depois de tecer algumas considerações sobre a temática, acaba por concluir “Assim, salvo melhor opinião, poderão ser analisados os critérios que justificam que o artigo 2.º da proposta – e não o motivo que causou a iniciativa – discrimine entre agentes que tenham praticado o mesmo crime ou a mesma contraordenação, consoante tivessem, no momento da prática do facto, por exemplo, 30 ou 31 anos de idade.”.
O Conselho Superior da Magistratura no Parecer que emitiu sobre a iniciativa legislativa, patenteou reservas quanto à compatibilidade da diferenciação estabelecida com o princípio da igualdade.
No Parecer que emitiu, o Conselho Superior do Ministério Público, para além do mais, efetuou uma resenha da jurisprudência do Tribunal Constitucional referente à matéria, e para a qual se remete, posto que já supra se deixou suficientemente exprimida, apenas se deixando a pertinente conclusão:
(…) Na base do n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, e comum a todos os corolários, mais ou menos exigentes, que dele se podem retirar, encontra-se a ideia de igualdade enquanto proibição do arbítrio. Operando essencialmente enquanto proibição do arbítrio, [o princípio da igualdade] enseja um controle externo das opções do legislador ordinário baseado num escrutínio de baixa intensidade. Partindo do reconhecimento de que é ao legislador democraticamente legitimado que cabe ponderar, dentro da ampla margem de valoração e conformação de que dispõe, “os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica” (Acórdão n.º 231/94) – definindo ou qualificando “as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente” (Acórdão n.º 369/97) –, assinala-se ao princípio da igualdade a função de invalidar as escolhas do poder legislativo quando a desigualdade de tratamento que nelas se contém for, quanto ao seu fundamento ou quanto à medida, extensão ou grau em que surge concretizada, à evidência irrazoável.”
Isto posto, podemos sem incerteza afirmar que a escolha do legislador em escrutínio – a diferenciação estabelecida na Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto em relação à idade das pessoas abrangidas, até aos 30 anos de idade à data da prática do facto - encontra uma justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo e constitucionalmente relevantes, pois tem alguma correspondência com a idade dos destinatários principais das ditas jornadas, tratando-se de circunstâncias não arbitrárias, antes razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito.
Na verdade, a justificação apresentada pelo legislador é a de beneficiar com as medidas de clemência os jovens a partir da maioridade penal e até perfazerem 30 anos, por serem os destinatários centrais do evento Jornada Mundial da Juventude (JMJ), sendo essa a idade limite do evento.
A delimitação pela idade, até aos 30 anos, da aplicação da amnistia e perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não se afigura decisivamente irracional e arbitrária, tendo em conta o evento que se comemora destinado em primeiro lugar à juventude católica, mas também aberto a pessoas não católicas e não jovens, pelo que tal delimitação está dentro da margem de manobra do legislador, não ferindo de forma decisiva o princípio da igualdade” – como se lê no recente Acórdão desta Relação e Secção de 5.01.2024, proferido no Processo n.º 30/21.9SFPRT-B.P1, 4.ª Secção, relatado por William Themudo Gilman, no qual se menciona ainda no sentido da não violação do princípio da igualdade pela Lei n.º 38-A/2023, o Acórdão deste TRP de 19.12.2023, proc. 24/21 .4PEPRT-B.P1 (Raul Cordeiro); o Acórdão do TRC de 22.11.2023, proc. 39/07.5TELSB-H.C1 (João Abrunhosa).
Já no Acórdão do TRE de 18/12/2023 proc. 401/12.1TAFAR-E.E1 (Jorge Antunes) deixou-se exarado “As medidas de clemência surgem motivadas pela realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, “que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal”. Sendo a iniciativa do Legislador motivada pela realização em Portugal do evento JMJ, as medidas de clemência focam-se na faixa etária dos destinatários centrais do evento. Esta opção do Legislador trata por igual todos os que se encontram nas mesmas condições e, por outro lado, opera distinção que assenta num critério objetivo e materialmente fundado – as medidas de clemência são decretadas por ocasião da realização da JMJ e visam beneficiar os jovens. A pretensão de beneficiar os jovens surge como expressão da margem de discricionariedade do Legislador para delimitação do universo dos destinatários das medidas, surgindo essa delimitação em conformidade com critérios suscetíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias, razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de Direito. A opção de estabelecer um limite máximo que não é coincidente com aqueloutro que o Legislador escolheu para a definição do universo dos cidadãos abrangidos pelo Regime Penal Especial para Jovens (sendo este aplicável aos jovens até aos 21 anos de idade - Dec-Lei nº 401/82, de 23 de setembro), não constitui fundamento para se concluir pela arbitrariedade na delimitação operada. Aliás, sendo as JMJ destinadas a jovens até aos 30 anos de idade, e sendo a sua realização em Portugal o mote para o decretamento das medidas, surgiria como muito dificilmente justificável uma diferenciação de tratamento entre um jovem com 20 anos e outro com mais de 21, sendo certo que ambos estariam do mesmo modo incluídos no target das Jornadas. Recordemos que a iniciativa foi expressamente justificada por reporte à realização das JMJ, sendo afirmado: “justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina”. A iniciativa inclui todos aqueles que se compreendem na faixa etária dos protagonistas das Jornadas. A diferenciação entre os que tenham e os que não tenham mais de 30 anos de idade, à data da prática do facto, surge ancorada, assim, de modo razoável e materialmente fundado, na intenção de favorecer os cidadãos da faixa etária dos destinatários das JMJ com as medidas que, sem o evento a eles especialmente dedicado, não seriam decretadas. Deverá notar-se que a opção legislativa pela idade máxima de 30 anos não constitui uma completa originalidade, podendo encontrar-se na ordem jurídica portuguesa outros exemplos em que tal idade máxima surge como limite diferenciador. Assim, por exemplo, a Lei nº 23/2006, de 23 de junho, que estabelece o regime jurídico do associativismo jovem, bem como os programas de apoio ao desenvolvimento da sua atividade, prevê que “São grupos informais de jovens, para efeitos do disposto na presente lei, os grupos que sejam constituídos exclusivamente por jovens com idade igual ou inferior a 30 anos, em número não inferior a cinco elementos.” (artigo 2º, nº 2), e que “São associações juvenis: a) As associações com mais de 75% de associados com idade igual ou inferior a 30 anos, em que o órgão executivo é constituído por 75% de jovens com idade igual ou inferior a 30 anos;” (artigo 3º, nº 1, al. a), assim dando relevância jurídica a tal limite de idade. Por outro lado, e também a título exemplificativo, o Regulamento nº 412/2023, de 3 de abril (publicado no DR nº 66/2023, Série II) que aprovou o “Regulamento do Programa «Voluntariado Jovem para a Natureza e Florestas», prevê a sua aplicabilidade, na qualidade de voluntários, a “jovens residentes em Portugal, com idade compreendida entre os 14 e os 30 anos, com condições de idoneidade para o voluntariado ambiental” (artigo 4º, nº 1).
A Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, optou, pois, pelo limite máximo dos 30 anos de idade e fê-lo no uso da liberdade de conformação legislativa quanto à definição do universo de destinatários das medidas de clemência e não se divisa aí qualquer violação do princípio da igualdade, na medida em que a escolha daquele limite se mostra assente em considerações racionais, tendo presente que, tal como se deixou anotado, o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo, porém, a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, sem fundamento material bastante, como são as indicadas, exemplificativamente, no nº 2 do art. 13º da Constituição da República Portuguesa (nas quais não figura, sublinhamos, a idade).
No mesmo sentido se decidiu, também, no Acórdão TRL de 9.11.2023 disponível em www.dgsi.pt. do qual se extrai: “A Jurisprudência do Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da C.R.P. não é impeditivo da existência de regras especiais, dirigidas a categorias específicas de pessoas, em função de critérios objectivos, apenas obsta à existência de regras diversas para situações objectivamente iguais (por todos ver Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 42/95, de 1.2.1995, e nº 152/95, de 15.3.1995”.
Aliás a determinação do universo de pessoas abrangidas pela amnistia e pelo perdão em função da idade nem sequer constitui opção inédita do legislador, que na Lei nº 29/99, de 12/05, já limitara aos infractores com menos de 21 anos e com mais de 70 anos o perdão das penas de prisão até três anos aí previsto.
É, pois, perfeitamente compreensível que se tivesse querido favorecer com a concessão das medidas de clemência os arguidos jovens, todos os pertencentes à faixa etária dos destinatários do evento internacional motivador da Lei n.º 38-A/2023, que se associou ao mote de otimismo e esperança na Juventude que as Jornadas assinalaram, e reconhecer nesta medida um contributo para a reinserção destes jovens, contribuindo, desta forma, para a humanização e dignidade dos mesmos, por verem a sua reinserção reforçada através deste ato de clemência e generosidade.
E porque a diferenciação não é arbitrária, não se pode ter como violado o princípio da igualdade.
Por conseguinte, tendo o recorrente à data da prática dos factos que lhe são imputados mais do que 30 anos, não pode ter lugar a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, pelo que se confirma a decisão recorrida.
Impõe-se, pois, negar provimento ao recurso.

3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

Notifique.

Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP).

Porto, 03 de abril de 2024
Cláudia Rodrigues
Jorge Langweg
Maria dos Prazeres Silva