Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3326/22.9T8VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
ADMINISTRAÇÃO DO CONDOMÍNIO
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
SOCIEDADE ADMINISTRADORA DE CONDOMÍNIO
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Nº do Documento: RP202401223326/22.9T8VNG-A.P1
Data do Acordão: 01/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A obrigação de diligenciar por reparação de danos nas frações de edifício constituído em propriedade horizontal só tem enquadramento no âmbito da relação entre um condómino e a administração do condomínio, não havendo fundamento legal para a responsabilização dos representantes dessa administração, a título pessoal, pela sua reparação;
II - A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade tem, pela sua natureza, caráter excecional e depende, para que se verifique, da prova de factos de que decorra que o comportamento de quem agiu em nome da sociedade seja contrário à boa-fé, aos bons costumes, ou ao fim económico do direito exercido e aos fins a que a estrutura societária se destina;
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 3326/22.9T8VNG-A.P1, Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia, Juiz 3.
Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeiro adjunto: António Mendes Coelho
Segunda adjunta: Teresa Maria Sena Fonseca

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:
1. Em 28 de abril de 2022, AA propôs ação a seguir a forma de processo comum contra A..., Unipessoal, Ldª, Drª BB (na qualidade de representante dessa sociedade e da marca ...), B..., Unipessoal, Ldª; Drª CC (na qualidade de representante dessa sociedade e também da marca ...) e C..., Unipessoal, Ldª.
Pediu a declaração de inexistência de deliberação de assembleia de condóminos de 14-10-2019 e a condenação de todas as Ré no pagamento de 55.000 € a título de indemnização pelos danos morais que as suas condutas ilícitas lhe causaram, bem como em valor a liquidar posteriormente, destinado a ressarcir danos patrimoniais.
Para tanto alegou ser proprietária de fração de imóvel constituído em propriedade horizontal, cuja administração foi sucessivamente exercida pelas Rés “C...” “B...” e “A...”, todas usando a marca .... Segundo articulou, em assembleia de condóminos de 14-10-2019 foi deliberado aprovar orçamento de reparação de danos decorrentes de humidades em determinada fração do edifício que, todavia, se encontrava em bom estado de conservação, ao contrário das paredes exteriores da fração da Autora que tinham estragos, eventualmente agravados pelo rebentamento de foguetes nas noites de São João de 2018 e 2019 nos terraços de cobertura do segundo piso do prédio. Alega ter sofrido terror com o referido rebentamento de foguetes, que diz ter posto em perigo a segurança do prédio e da sua fração em concreto o que comunicou à administração do condomínio.
Entende que não há fundamento para que as Rés exijam o pagamento de quotas extra para pagamento das obras aprovadas na assembleia de 14-10-2019, alegando que a Ré BB “em representação da Ré administradora” promoveu a ilegítima deliberação em causa, bem como que as Rés geriram danosamente o condomínio, por não terem promovido obras de conservação de parede exterior não revestida a tijoleira, essa sim, necessitada de reparação. Daqui retirou a conclusão que a deliberação em causa é inexistente. Afirmou que passou a ser marginalizada pelas Rés por “motivos fúteis” que conduziram ao que descreve como “uma luta continuada pela própria sobrevivência dentro do prédio e da sua habitação e lhe provoca sofrimento e tortura indescritíveis”.
Imputa, ainda, omissão de auxílio das primeiras Rés, consubstanciada na falta de resposta adequada a situações de repetidas inundações na sua fração provindas de fração acima da sua. Afirmou, contudo, que foram realizadas de obras na fração que se encontra sobre a sua, obras essas de que também se queixa por muito perturbadoras e perigosas e cuja autoria não imputou a nenhuma das Rés.
Segundo afirma, pagou valor que lhe foi pedido a título de despesas do condomínio com a propositura de ação de prestação de contas pela Ré “B...” contra anterior administração do condomínio, processo esse de cujo andamento diz nunca te sido informada.
Afirmou, ainda, que as Rés permitiram que fosse desviada ou destruída documentação pertencente ao condomínio bem como que instalaram câmaras de vigilância em entradas do edifício sem que tal lhe fosse comunicado e sem que saiba quem é detentor e tem acesso a esses registos de imagem. Insinua que o custo dessa instalação terá sido cobrado aos condóminos de forma “camuflada” e alega ter sofrido danos morais com essa referida condutas.
Relatou as diversas participações criminais que tem vindo a fazer contra as Rés.
2. Citadas as Rés, as mesmas contestaram alegando: a extinção da sociedade “B...”, a ilegitimidade da Ré BB por ter sido demandada na qualidade de representante da Ré “A...” quando é apenas suas funcionária, a ilegitimidade da Ré CC por ter cessado de ser representante da sociedade extinta “B...”; a ilegitimidade da Ré “C...” por se tratar de sociedade administradora de franquias nada tendo sido alegado na petição inicial com a virtualidade de a relacionar com os factos alegados como causa de pedir; a prescrição do alegado direito à indemnização pelos factos ocorridos nos festejos de São João de 2018; impugnando os factos alegados pela Autora como fundamento da ação e invocando a caducidade do direito da Autora de impugnar a deliberação social referida na petição inicial. Pediram a condenação da Autora como litigante de má-fé.
3. Por despacho de 21-09-2022 foi facultado à Autora o contraditório sobre a matéria de exceção invocada na contestação e sobre o pedido de sua condenação como litigante de má-fé.
4. A mesma ofereceu resposta a 10-10-2022, tendo defendido o prosseguimento da ação contra a Ré CC, em substituição da sociedade extinta de que era representante, e imputa-lhe a responsabilidade pelos factos alegados na petição inicial, tal como o faz em relação a Ré BB que diz ter agido como representante da Sociedade “A...”, fosse sua gerente ou trabalhadora.
Afirmou, ainda, que por via desta ação não está a impugnar a deliberação social de 14-10-2019, mas a conduta da referida Ré BB que acusa de ter sido a causa dessa deliberação. Alegou que não ocorreu prescrição do direito à indemnização pelos alegados danos decorrentes de rebentamento de foguetes em junho de 2018 porque “tiveram de ser transportados, em estação de verão, materiais explosivos para dentro do edifício e nesse interior até à sua cobertura sobre o 2º andar (o que deve conferir natureza pública ao correspondente ilícito criminal)” (sic). Finalmente deduziu pedido de condenação das Rés A..., BB e CC como litigantes de má-fé.
5. A 02-11-2022 foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento, dirigido à Autora, com vista à concretização das condutas e danos relativos à detonação de explosivos, às inundações da sua fração e à intervenção das Rés nas obras que disse terem sido conduzidas na fração acima da sua, bem como para esclarecer a sua intervenção/conhecimento relativamente à alegada colocação de câmaras no edifício. Mais, anunciou tal decisão o entendimento de que era ininteligível o fundamento da demanda da última Ré, convidando a Autora a esclarecer todas as apontadas insuficiências do seu articulado.
6. A mesma respondeu ao convite a 9-11-2022, não apresentando nova petição inicial, mas juntando articulado com descrição de algumas das condutas já antes alegadas e defendendo a legitimidade passiva da última Ré, “C...”, que entende “objetivamente” responsável pelos danos que sofreu por ser proprietária da marca usada pelas sociedades administradoras do condomínio e convocando, como fundamento legal dessa pretensão o DL 383/89 (que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 85/374/CEE, em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos).
7. As Rés responderam a este novo articulado a 19-12-2022, defendendo, em suma, que o mesmo não logrou esclarecer ou aperfeiçoar a sua petição inicial.
8. Após instrução, oficiosamente determinada, da matéria relativa à estrutura societária e representação das primeira e terceira Ré e da relação contratual entre estas e a quinta Ré, por via da junção das competentes certidões e contrato, o tribunal facultou às partes contraditório sobre a possibilidade de dispensa de audiência prévia, considerando que os articulados haviam permitido suficiente debate das questões a conhecer.
9. A Autora opôs-se à dispensa da audiência prévia e veio solicitar a intervenção provocada das legais representantes das primeira e quinta Rés, cuja identificação resultou das certidões de Registo Comercial, ao que as Rés se opuseram.
10. A 27-06-2023 foi indeferida tal pretensão por intempestividade e porque não foram alegados na petição inicial quaisquer factos que pudessem fundar a condenação das chamadas. Foi designada audiência prévia.
11. Nesta, discutidos os termos do litígio o tribunal comunicou às partes a sua intenção de decidir: “Pela absolvição da instância da 3ª Ré por falta de personalidade judiciária; Pela absolvição da instância da Ré BB por ilegitimidade; Pela absolvição da instância da 5ª Ré "C..." também por ilegitimidade; Julgar a ação improcedente quanto à Ré CC por manifesta improcedência; Julgar improcedente o pedido de declaração de inexistência de deliberação; Relegar para a decisão final a exceção de prescrição invocada na contestação” Foi discutido o objeto do litígio (“danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da atuação da 1ª Ré”) e foram debatidos de forma oral os temas de prova a fixar, relacionados com os factos alegados quanto aos festejos de São João, quanto aos danos existentes no teto da casa de banho da fração da Autora e à existência das câmaras de vigilância.
12. A 11-09-2023 foi proferido despacho saneador em que: se fixou o valor da ação, se absolveu a ré B..., Unipessoal Lda da instância por falta de personalidade judiciária; se absolveram da instância as Rés BB e C..., Unipessoal, Ldª por ilegitimidade passiva; se absolveu do pedido a Ré CC e se julgou improcedente o pedido de declaração de inexistência da deliberação da assembleia de condóminos de 14-10-2019. Foi relegado para final o conhecimento da exceção perentória de prescrição e foram fixados o objeto do litígio e os temas da prova.

II - O recurso
É de parte desta decisão que recorre a Autora, pretendendo ver revogadas as decisões de absolvição de instância da Ré BB e de improcedência do pedido de declaração de inexistência da deliberação da assembleia de condóminos de 14-10-2019.
Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:
(…)
*
As Rés contra-alegaram sublinhando que:
- na petição inicial a Autora demandou a Ré BB como representante da sociedade A..., sendo esta, todavia, sua trabalhadora pelo que não tem qualquer interesse em contradizer, em face do que é invocado na petição inicial; e
- antes da propositura da ação já caducara o direito da Autora de reagir contra a deliberação da assembleia de condóminos de 14-10-2019.

III – Questões a resolver:
Em face das conclusões da Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1. Aferir se a Ré BB é parte legítima na ação;
2. Apurar se foram alegados factos que podem conduzir à declaração de inexistência da deliberação da assembleia de condóminos de 14-10-2019 e, em caso afirmativo, se caducou o direito da Autora de invocar a mesma.

IV – Fundamentação.
1. Da legitimidade passiva da Ré BB:
O conceito de legitimidade processual encontra-se estabelecido artigo 30º número 1 do Código de Processo Civil onde se estatui que o “autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”, concretizando o número 2 do citado preceito legal que o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
Nuclear para apreciar a pertinência da exceção objeto do recurso é, no entanto, o número 3 do artigo onde se define que são titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade “os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
A Autora configura a ação alegando que demanda a Ré BB “na qualidade de representante da sociedade “A..., Unipessoal, Ldª”. Identifica, ainda, aquela Ré como representante da marca ....
Ao longo da petição inicial faz uma extensa narração de factos, muitos deles não relacionados entre si, imputando-os na maioria das vezes às Rés sem concretização de qual ou quais delas pretende responsabilizar. O traço comum a todas as afirmações factuais da Autora é este: a sua qualidade de condómina e a atuação das quatro primeiras Rés enquanto responsáveis pela administração do condomínio (e da quinta enquanto titular de marca usada pelas sociedades administradoras desse condomínio).
Ou seja, o que está em causa nos autos é a apreciação das obrigações da administração do condomínio perante a Autora, enquanto condómina.
É neste âmbito que se situam:
- a pretensão de declaração de inexistência de uma deliberação expressa nas alíneas 7ª a 9ª da petição inicial em que descreve a forma como ocorreu deliberação da assembleia de condóminos que entende inexistente (pedido este pelo qual nunca poderia ser condenada a Ré BB, como adiante se verá na apreciação da segunda questão a resolver);
- a pretensão de indemnização por danos não patrimoniais decorrentes de detonação de foguetes e de deterioração e de infiltrações/inundação da sua fração, com as causas descritas nas alíneas 10ª, 13ª, 14ª a 17ª, 24ª a 28ª e 45ª a 51ª (neste ponto deve desde já sublinhar-se que os danos alegadamente decorrentes dos rebentamentos de foguetes terão tido origem em factos ocorridos em junho de 2018 e em junho de 2019 e que a Ré “A...”, que a Autora afirma ser representada por BB, apenas se tornou administradora do condomínio em 14-10-2019, segundo o que resulta do artigo 3º da petição inicial);
- a pretensão de indemnização por danos não patrimoniais decorrentes de despesas suportadas com ação judicial e da falta de comunicação e informação sobre tal processo, como descrito nas alíneas 52º a 58º da petição inicial (neste ponto devendo ter-se presente que a alegada propositura da ação e deliberação que a antecedeu ocorreram em 2015, conforme resulta do ponto 52º da petição inicial, ou seja, quatro anos antes da sociedade “A...”, de que a Ré BB é alegada representante, se ter tornado administradora do condomínio);
- a pretensão de indemnização por danos não patrimoniais decorrentes de colocação de câmaras de vigilância no edifício que está descrita nas alíneas 59ª a 67ª, factos que, neste caso, a Autora imputa apenas às Rés “B...” e CC.
Em momento nenhum da petição inicial é descrita outra relação entre a Autora e a Ré BB senão a que depende da qualidade de condómina da primeira e de alegada “representante” da administradora do condomínio da segunda.
E os únicos factos em que alegadamente terá tido participação tal Ré, desde 14-10-2019, foram a sua presença em assembleia de condóminos, dessa data, em alegada representação da sociedade administradora e os relativos ao que a Autora descreve como omissão de auxílio e se traduz na falta de resposta atempada e adequada a inundações/infiltrações em casa da Autora a partir de 24-04-2021. São, ainda, alegados danos decorrentes das subsequentes obras levadas a cabo em fração acima da sua que, todavia, a Autora desconhece quem levou a cabo.
Afirmou, ainda, a Autora em sede de reposta à contestação, que foi uma conduta ilícita da Ré BB que esteve na base da deliberação da Assembleia de Condóminos de 14-10-2019. Tal conduta fora descrita na petição inicial da seguinte forma: “ Na assembleia de condóminos de 14.10.2019, presidida pela 2ª ré, quando estava a ser tratado o ponto da ordem de trabalhos “OUTROS ASSUNTOS”, subitamente, foi entabulada conversa sobre ditas humidades na fração de condómina (que alegadamente estava para ter bebé) alí representada por quem veio a sair da reunião e regressou à mesma (assinou a acta em 4º lugar), com alegado “orçamento” para obras no valor de €3.780,00 - acrescido de IVA – que é dirigido à C... e foi de imediato colocado à votação e aprovado.” Afirma, de seguida, a Autora, que era falsa a referida existência de infiltrações na fração cujas obras foram aprovadas. Ou seja, o que é imputado à Ré BB é um comportamento que terá levado a cabo enquanto representante, naquela assembleia da administradora do condomínio. Por este comportamento, todavia, não é pedida qualquer indemnização, apenas sendo deduzido pedido de declaração de inexistência de uma deliberação da assembleia de condóminos, pedido que não se dirige contra tal Ré e que infra será autonomamente apreciado.
Ou seja, e em suma, os únicos factos pelos quais é pedida indemnização, que se relacionam com alegada conduta da Ré BB em suposta “representação” do condomínio são a os que a Autora qualifica como alegada “omissão de auxílio” de que diz ter sido vítima. A mesma ter-se-ia traduzido, segundo a Autora, no facto de, perante inundação da sua fração as Rés (entre elas a Ré BB) não terem diligenciado pela sua reparação. Apesar de, depois, alegar que foram levadas a cabo obras que a Autora entende desadequadas e, elas mesmas causadoras de dano. Quanto a estas obras, levadas a cabo em fração situada acima da sua, contudo, a Autora não imputa a sua autoria a quem quer que seja.
Ora, obrigação de diligenciar por reparação de danos nas frações de edifício constituído em propriedade horizontal só tem enquadramento no âmbito da já referida relação entre um condómino e a administração do condomínio, à luz do previsto no artigo 1436º número 1 g) do Código Civil, caso tais danos provenham de partes comuns do edifício. De facto, não alega a Autora qualquer outra causa pela qual a Ré BB estivesse obrigada a prestar-lhe o referido “auxílio” que não a da sua (imperfeitamente) alegada qualidade de representante da administradora do condomínio.
Nomeadamente - e muito embora a Autora tenha afirmado a propósito de diversas situações que descreveu (queima de foguetes, infiltrações e realização de obras na fração situada sobre a sua) que temeu pela vida -, em momento nenhum da petição inicial foram alegados factos que permitissem concluir que em decorrência de desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum tenha estado em perigo a sua vida ou integridade física, como exige o artigo 200º do Código Penal que prevê o crime de omissão de auxílio. A Autora apenas alegou, quanto à forma como ocorreram as infiltrações na sua fração, que a água escorria por equipamento elétrico do que retira a conclusão de que havia perigo de eletrocussão. Todavia, o referido artigo 200º do Código Penal, que podia, em tese, ser fundamento jurídico de responsabilização da Ré BB, tem como estatuição que “Em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por ação pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”. É manifesto que os factos descritos na petição inicial não consistem na situação de “grave necessidade”, não sendo descrito que a Autora tenha estado em risco iminente de ser eletrocutada ou de ver a sua integridade física posta em causa pois, localizada a inundação, a mesma podia, sem necessidade de auxílio de terceiro, afastar-se da fonte de perigo que descreve.
O que a Autora alega (na parte em que imputa à Ré BB comportamento omissivo) são os danos, essencialmente de caráter não patrimonial, decorrentes do incómodo e transtorno que as inundações repetidas da sua fração lhe provocaram, nada estando descrito com a virtualidade de levar a concluir que esteve em perigo a sua vida ou a sua integridade física o que apenas conclusivamente é afirmado.
Nesta perspetiva, atenta a configuração dada pela Autora à ação e antecipando a possibilidade da sua procedência nos exatos termos em que se encontram alegados, nunca a Ré BB poderia ser condenada no pagamento de qualquer quantia à Autora, pois a única omissão que lhe é imputada de que resulta um pedido de condenação dessa Ré teria decorrido da sua atuação enquanto alegada representante da administradora do condomínio, este sim obrigado a reparar os danos que resultem de má conservação de partes comuns do edifício.
Como bem salientado na decisão recorrida, a Ré pessoa coletiva não se confunde com os seus representantes e, menos ainda com os seus trabalhadores. Demandada a pessoa coletiva enquanto administradora do condomínio por atos praticados ou por omissões no exercício desse cargo, a responsabilização dos seus legais representantes apenas poderia ocorrer caso tivessem sido alegados factos de que pudesse resultar a “desconsideração da personalidade jurídica” da Ré sociedade.
A personalidade jurídica define-se como sendo a suscetibilidade de ser titular de direitos e obrigações e é reconhecida pela lei a toda a pessoa humana. São também titulares de personalidade jurídica as organizações de pessoas e/ou bens a quem a lei reconhece tal qualidade, caso em que se está perante personalidade coletiva ou personalidade jurídica das pessoas coletivas. A constituição de sociedades, como as de responsabilidade limitada, pretende estabelecer a autonomia, nomeadamente patrimonial, entre si e os seus os seus sócios.
Nos termos do artigo 5º do Código das Sociedades Comerciais “As sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem (…)”.
A responsabilização dos sócios da sociedade por atos da mesma apenas tem sido usada, e admitida doutrinal e jurisprudencialmente, na decorrência da constatação de situações uso abusivo da estrutura societária por aqueles, com prejuízo de terceiros, que se relacionam com a sociedade a qualquer título, e que se vêm lesados por decisões das pessoas humanas que agem em nome da sociedade, mas que a usam para fins diversos daqueles para que foi constituída. Tal solução tem, pela sua natureza, caráter excecional e depende, para que se verifique, da prova de factos de que decorra o alegado uso abusivo do direito, nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil, ou seja, apenas ocorre quando o comportamento do sócio em nome da sociedade seja contrário à boa-fé, aos bons costumes ou ao fim económico do direito exercido.
Nenhum facto foi alegado com a virtualidade de conduzir a tal conclusão, nomeadamente, repetimo-nos, sequer foi alegado qualquer facto de que decorresse que a Ré BB pudesse ser considerada representante da Ré “A...” o que é alegado de forma conclusiva na petição inicial.
Após a contestação, a Autora veio defender que, afinal, mesmo vindo a apurar-se que a Ré BB não é representante da Ré “A...”, mas apenas sua trabalhadora, a mesma agiu como sua representante “pelo que ao abrigo do número 1 dos artigos 500º e 800º do Código Civil” é responsável perante si “conforme está alegado e pedido na petição inicial”. Tal alegação, contudo, como se viu, não consta da petição inicial e não podia, ao abrigo de convite à concretização/esclarecimento da petição inicial que lhe foi dirigido, ser alterada a causa de pedir.
Acresce que, ao contrário do sustentado pela Autora, também a escassez da sua alegação de factos não permite a demanda da referida Ré BB no âmbito do disposto nos artigos 500º e 800º do Código Civil.
Desde logo a Autora não alegou qualquer facto de que resulte qualquer relação de mandato, gestão de negócios, comissão ou subordinação.
Assim, e em suma, da petição inicial (nem, em boa verdade, de nenhum outro articulado da Autora) não resulta a alegação de qualquer facto de que possa resultar que a referida Ré seja representante legal ou de facto, mandatária ou trabalhadora da Ré sociedade A..., nomeadamente nos termos do estatuído no artigo 800º do Código Civil, ou que tenha sido por esta encarregada de qualquer comissão relativamente à obrigação de reparação de danos no edifício, nos termos do artigo 500º do Código Civil, sendo ainda certo que ambos os referidos preceitos preveem a responsabilização do comitente ou representado e não a do comissário ou representante, que sempre tem que ser alegada com descrição do facto, ilícito e danoso que o mesmo praticou ou omitiu. Tais preceitos, portanto, preveem a responsabilização dos comitentes ou representados por atos das pessoas que utilizam para o cumprimento das suas obrigações e não a responsabilidade dos segundos que depende de alegação de factos que permitam a sua responsabilização a título pessoal.
Ora, quanto à imputação feita à Ré BB a título pessoal, por assim dizer, e como acima se concluiu, da petição inicial resulta apenas que lhe é atribuída a prestação de informação que deu origem a uma deliberação da assembleia de condóminos em que esteve presente (a apreciar de seguida) e que omitiu auxílio à Autora em consequência de infiltrações/inundações da sua habitação, facto porque esrta pretende ser indemnizada.
Por esta omissão de auxílio bem como pelos danos decorrentes das obras que se seguiram, pede indemnização. Quanto às obras efetuadas na fração situada acima da sua a Autora sequer afirma saber de quem partiu a iniciativa da sua realização nada sendo imputado à Ré BB.
Quanto à alegada “omissão de auxílio”, traduzida, na verdade, na omissão de realização de obras de reparação, como se disse e repete, não há qualquer fundamento legal para que a Ré BB devesse prestar qualquer ajuda ou apoio à Autora salvo enquanto representante da Ré administradora do condomínio, esta sim, obrigada a proceder a reparações e conservação das partes comuns e em frações, desde que provenientes de partes comuns do edifício, o que tampouco a Autora alega.
É, pois, de confirmar a decisão recorrida que absolveu a referida Ré BB da instância na decorrência da afirmação da sua ilegitimidade passiva.
2- Quanto à alegada inexistência da deliberação da assembleia de condóminos, a Autora faz considerável confusão de conceitos ora descrevendo a realização dessa assembleia e a forma como foi tomada essa deliberação, ora afirmando que a mesma é inexistente decorrendo essa inexistência de suposto “ato ilícito” da Ré BB, por ter informado que uma determinada fração do edifício tinha danos provenientes das partes comuns, o que a Autora afirma ser falso.
O primeiro óbice, evidente, à procedência desse pedido é a falta absoluta de factos de que resulte a inexistência dessa deliberação que, a provar-se o alegado pela Autora sequer poderia ser considerada inválida. É que o que a mesma alega é, tão-só, que o órgão deliberativo do condomínio, a sua assembleia (cfr. artigos 1430º e 1432º do Código Civil), tomou a decisão de aprovar a realização de obras que, no entender da Autora, não eram necessárias. Do que vai dito resulta, sem necessidade de demorada fundamentação, que a deliberação de que a Autora discorda existe e foi tomada no âmbito do regular funcionamento do órgão a tanto destinado.
A alegação nas conclusões números 13 e 14 do recurso que a Ré “A...” (por assim estar identificada na ata de assembleia de condóminos em causa), tem denominação social distinta da constante do registo comercial traduz a alegação de facto novo, não admitido nesta fase nos termos do previsto nos artigos 608º, número 2 e 588º do Código de Processo Civil.
Não se alcança o que pretende significar a Autora com a afirmação, na alínea 15 das alegações de recurso, que “A identidade da administradora eleita naquela assembleia de condóminos não existe juridicamente, por isso o que foi levado àquela acta de 14.10.2019 é inexistente e ao que não existe “o Direito retira qualquer tipo de efeitos”. De todo o modo, tal afirmação pretende introduzir na discussão facto não alegado na petição inicial, onde é afirmado que, na referida data de 14-10-2019, a administração do condomínio passou a ser exercida pela Ré A..., Unipessoal Ldª. Da discussão da causa não resulta, de todo, posta em causa, a identidade da referida Ré “A...” como administradora do condomínio, cuja eleição resulta da mesma ata.
Sempre se dirá, ainda, que não teria tal facto (diferente denominação social da administradora do condomínio) a virtualidade de tornar inexistente a deliberação que foi tomada não pela administração do condomínio, mas pela assembleia de condóminos, único órgão deliberativo do condomínio, como resulta do artigo 1432º do Código Civil.
A posição da Autora nas conclusões 16 e 17 da apelação não tem, também, qualquer fundamento. De facto, ao contrário do ali afirmado, a decisão recorrida dá nota da distinção entre a inexistência material e a inexistência jurídica e, no caso, conclui, e bem, que a deliberação posta em crise existiu no sentido de que foi tomada (corpus) bem como que se tratou de um ato jurídico correspondente a uma efetiva deliberação, como, aliás, resulta da própria alegação da Autora.
Recorde-se o que alegou a Autora com vista a fundar o pedido em análise:
“7º Na assembleia de condóminos de 14.10.2019, presidida pela 2ª ré, quando estava a ser tratado o ponto da ordem de trabalhos “OUTROS ASSUNTOS”, subitamente, foi entabulada conversa sobre ditas humidades na fracção de condómina (que alegadamente estava para ter bebé) alí representada por quem veio a sair da reunião e regressou à mesma (assinou a acta em 4º lugar), com alegado “orçamento” para obras no valor de €3.780,00 - acrescido de IVA – que é dirigido à C... e foi de imediato colocado à votação e aprovado – cfr. acta e folha/orçamento documento 3.
8º Não foram descritos quaisquer danos nas paredes exteriores do prédio em torno dessa fracção, susceptíveis de darem causa a infiltrações ou às referidas humidades, nem existiam, por isso se opôs a autora àquela aprovação de obras “para intervenção na fracção G (1º esq)”, sob alegação súbita de “problemas de infiltrações provenientes da fachada” – documento 3.
9º Nas fotografias que na altura tirou às paredes exteriores do prédio em toda a volta daquela fracção, ressalta que as paredes em causa estavam bem conservadas e assim continuam – cfr. fotografias documento 14.”.
A deliberação em causa consta da respetiva ata, assinada pela autora, cujos sentido de voto (contra) e declaração de voto também ali constam. Como resulta do documento número 3 junto à petição inicial, que não foi impugnado, a aqui Autora opôs-se a tal deliberação “(…) uma vez que entende que não existe a pesquisa sobre a causa dos danos e assim não sabe quem são os responsáveis pela reparação dos mesmos, sendo certo que na noite de S. João do ano de 2018 e 2019 foram rebentados muitos foguetes sobre os terraços do edifício, nomeadamente sobre a fração K, cujo resíduos incandescentes caíram sobre as janelas e varanda da mesma fração”. Não obstante este voto tal deliberação foi tomada sendo aprovada pela maioria dos presentes. O que resulta do alegado pela Autora e do documento por ela junto à petição inicial.
Como tal, é de todo injustificada a afirmação da Autor de que tal deliberação é inexistente (material ou juridicamente), sendo claro que o que a mesma entende é que a mesma foi infundada. Dizendo doutra forma, é manifesto que a Autora discorda do sentido dessa deliberação e não que a entende inexistente, a qualquer título, apenas se explicando a invocação do regime da inexistência como forma de evitar a declaração de caducidade do direito a impugnar tal decisão.
A decisão recorrida demonstra bem ter apreendido esta configuração da causa pela Autora, e a sua motivação, tendo tratado devidamente a questão ao afirmar a improcedência do pedido formulado sob o primeiro parágrafo do petitório, na medida em que, ainda que provados os factos (muito escassos e situados nos artigos da 7º a 9º petição inicial acima transcritos), alegados pela Autora, os mesmos não conduziriam à declaração de inexistência que é peticionada.
Pelo que também quanto a esta segunda questão improcede a apelação

V – Decisão:
Nestes termos julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.

Porto, 22/1/2024
Ana Olívia Loureiro
Mendes Coelho
Teresa Fonseca