Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3275/22.0T8VNG-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO
ATO INÚTIL
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO FORTUITA
Nº do Documento: RP202404093275/22.0T8VNG-C.P1
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo a factualidade dela objecto indiferente e alheia à sorte da acção, não interferindo de modo algum na solução do caso, de acordo com o direito (considerando as soluções plausíveis da questão de direito), não deverá a Relação conhecer da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril.
II - O preenchimento da previsão da alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE não se basta com a demonstração do incumprimento dos deveres de apresentação e/ou de colaboração, exigindo-se que tal falta (dolosa ou gravemente negligente) seja reiterada – a falta (incumprimento) tem de ser repetida, renovada (para lá daquela que ocorra na sequência duma primeira solicitação ou intimação para prestação de colaboração ou apresentação).
III - O número 3 do art. 186º do CIRE estabelece presunções relativas (ilidíveis) de culpa grave, não dispensando a demonstração, pela parte interessada na qualificação, do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou agravamento da situação de insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 3275/22.0T8VNG-C.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Maria Eiró
Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO


Apelante: AA.
Insolvente: A..., Ld.ª.

Juízo de comércio de Vila Nova de Gaia (lugar de provimento de Juiz 4) – T. J. da Comarca do Porto.


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Decretada a insolvência da sociedade A..., Ld.ª, processou-se, por apenso, o incidente de qualificação da insolvência, no âmbito do qual o administrador da insolvência propôs a sua qualificação como culposa, com afectação de AA, tendo também assim concluído (qualificação da insolvência e afectação do requerido AA) o Ministério Público no seu parecer.

Observada a tramitação legal e realizado o julgamento, foi proferida sentença que, considerando preenchidas as previsões normativas da a alínea i) do nº 2 e alínea b) do nº 3 do art. 186º, do CIRE,

a) qualificou como culposa a insolvência da A..., Ld.ª, declarando afectado pela mesma AA,

b) fixou em quatro (4) anos o período da sua inibição para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa e em igual período a inibição para administrar patrimónios de terceiros,

c) determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo AA e condenou-o na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos,

d) condenou ainda o AA a pagar aos credores o montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo

senhor Administrador da Insolvência, nos termos do art. 129º do CIRE, que não forem pagos pelo produto da liquidação do activo, até às forças do seu património.

Apresentou-se o requerido a arguir nulidade decorrente da imperceptibilidade do depoimento por si prestado em audiência de julgamento e, após pronúncia do Ministério Público no sentido da improcedência, foi proferido despacho que indeferiu a arguição – despacho notificado ao requerido (bem assim aos demais interessados) por carta enviada ao seu mandatário.

Inconformado com a sentença, apelou o requerido afectado, defendendo se reconheça e declare o carácter fortuito da insolvência, terminando as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:

A- Nos presentes autos foi proferida Sentença que qualificou a insolvência como culposa e declarou afetada pela mesma o Recorrente AA.

B- O Apelante discorda da douta sentença proferida, uma vez que a mesma padece de reparos e de vícios que a enfermam, razão pela qual vem da mesma recorrer, quer quanto à matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, quer quanto à questão de direito, para o que deverá ser reapreciada e produzida diferente decisão de mérito, alegando ainda a nulidade do seu depoimento, por deficiência na gravação, bem como a desproporcionalidade da decisão.

C- O registo áudio do depoimento do Recorrente encontra-se inaudível e impercetível.

D- O Recorrente arguiu a nulidade decorrente da deficiência da gravação no dia a seguir ao da sua disponibilização.

E- Até ao momento da submissão do presente recurso, ainda não rececionou qualquer despacho sobre a invocação, razão pela qual se vê obrigado a alegar e a invocar novamente a mesma nesta sede.

F- Assim, deverá ser declarada a nulidade do depoimento prestado pelo Recorrente e, consequentemente, ordenar-se a repetição de todo o julgamento, ou, se assim não se entender, a repetição do depoimento do Apelante, voltando ulteriormente a ser proferida nova sentença.

G- Deverá ser excluído dos factos provados o ponto “k”.

H- O Tribunal fundamentou este facto nas declarações do Administrador da Insolvência e no documento n.º 5 anexo ao relatório do Administrador da Insolvência.

I- Quanto à prova documental, inexiste qualquer carta ou documento no sentido de ser contactado o Administrador da Insolvência para efeitos de agendamento de uma reunião e para garantir o acesso à instalação sede social da insolvente.

J- O documento n.º 5 corresponde a uma carta endereçada para a Sociedade Insolvente a pedir a entrega de informação e documentação.

K- Essa carta não foi rececionada, tendo sido devolvida.

L- À data do envio e até à devolução do documento n.º 5, estava fixado pelo Tribunal que os seus administradores eram outras pessoas que não o Recorrente.

M- Da prova testemunhal – Administrador da Insolvência – a mesma não pode ser valorada, primeiro porque é confusa contraditória com os próprios documentos juntos (relatório do arrigo 155.º do CIRE e seus anexos) e ainda porque parte do seu depoimento se limitou reproduzir o que uma certa pessoa (desconhecida e alheia ao processo) que estava ao seu lado aquando da prestação do seu depoimento à distância lhe foi ditando para aquele dizer.

N- Deve acrescentar-se à matéria de facto provada “1 – O anúncio público da sentença de declaração da insolvência determinou que os administradores da insolvente eram BB e CC, tendo sido fixado o domicílio dos mesmos na Rua ..., ..., ... Porto.”

O- Esta factualidade resulta do Anúncio da Sentença de Declaração de Insolvência.

P- Deve ainda acrescentar-se à factualidade dada como provada “2 – O Administrador da Insolvência endereçou uma carta para a morada fixada pelo Tribunal cujo destinatário era o senhor BB.”

Q- Esta factualidade resulta do depoimento do Administrador da Insolvência (registo gravado com o n.º Diligencia_3275- 22.0T8VNG-C_2023-11-15_09-59-28 (00:25:47)) [00:23:53 a 00:24:21] Administrador da Insolvência: essa carta foi enviada para a morada da sede social, que está afixada no processo e essa carta foi devolvida.

Meritíssimo Juiz: Sr. Dr. Mas foi dirigida, foi enviada mas dirigida ao Sr. BB, que nada tem a ver com este processo.

Administrador da Insolvência: Pois, mas nessa altura, quando nós começamos a trabalhar neste processo, tínhamos a informação de que havia dois sócios e, portanto, automaticamente enviamos para um.

R- Não obstante a discordância quanto à matéria de facto, também existe uma divergência de entendimento quanto à matéria de direito no que respeita aos incumprimentos das alíneas i) do n.º 2, bem como da alínea b) do n.º 3, ambas do artigo 186.º do CIRE.

S- Para que se verifique o incumprimento da alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, é necessário que haja violação das obrigações de colaboração previstas no artigo 86.º do CIRE e que haja mais do que um incumprimento (que haja uma reiteração do incumprimento).

T- Não foi dada como provada qualquer notificação efetuada diretamente ao Recorrente.

U- As únicas de que o Tribunal se recorre são a citação (endereçada à Sociedade Insolvente) e uma carta enviada pelo Administrador da Insolvência, também à insolvente, não tendo esta último sido rececionada.

V- Duas notificações endereçadas à Sociedade Insolvente, uma delas não entregue, não poderá ser considerada factualidade suficiente para considerar que o Apelante incumpriu dupla e reiteradamente os deveres de colaboração.

W- Impunha-se que existisse, pelo menos, uma notificação direta ao Recorrente ou que se tomassem as providências necessárias para que, perante a carta não entregue, fosse a mesma notificada, no limite que se procedesse a uma notificação pessoal.

X- Tendo em conta as consequências tão gravosas que resultam da qualificação da insolvência como culposa torna-se exigível a prova de que qualquer comunicação endereçada tenha sido rececionada pelo Recorrente e de que este tomou conhecimento da mesma, o que, in casu, não se verificou, uma vez que nem sequer se provou que o Apelante tomou conhecimento do teor da citação.

Y- Ainda que se considere que o Recorrente tomou conhecimento da citação, o incumprimento da colaboração exigida nesse documento, não pode, por si só, consubstanciar um incumprimento reiterado.

Z- Face à inexistência de prova de notificação direta ao Recorrente, inexiste assim qualquer incumprimento dos deveres de colaboração e, muito menos, um incumprimento reiterado.

AA- Não foi provado qualquer pedido ou insistência por parte do Administrador da Insolvência em contactar com o próprio Recorrente.

BB- O Apelante nunca negou qualquer colaboração.

CC- Daí que, não se pode concluir que o Recorrente incumpriu reiteradamente os deveres de colaboração e que se encontra preenchida a alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, não podendo assim ser considerado pelo Tribunal uma situação de insolvência culposa.

DD- De igual modo, discorda-se do preenchimento da alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE.

EE- Para se dar como provado que foi incumprido o prazo de apresentação das contas, é necessário fixar qual é esse prazo, qual é a data concreta.

FF- E da prova produzida, da matéria dada como provada e ainda de todo o teor da sentença, não decorre qual é a data que o Tribunal considerada como limite para apresentação das contas, para que assim pudesse considerar a mesma incumprida.

GG- Daí que, não poderá ser considerado que foi violada a alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE.

HH- Ainda assim, caso se entenda que mesmo sem determinar a data, que pode o Tribunal concluir pela violação desse facto omitido, deveria ser aplicado o ensinamento do Tribunal da Relação de Coimbra (acórdão de 11-10-2016, processo n.º 462/12.3TJCBR-J.C1) de que um atraso de três meses na apresentação das contas é insuficiente para preencher a alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE.

II- Não se dando como violada a alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, não podendo ser considerada a insolvência como culposa.

JJ- Por fim, considera o Recorrente que a medida de indemnização aplicada é manifestamente desproporcional.

KK- É necessário que na determinação do quantum indemnizatório seja efetuada uma ponderação, entre a ilicitude e a culpa, bem como dos danos causados por determinada conduta.

LL- Ora, não resulta provado qualquer prejuízo efetivo ou potencial.

MM- Deveria ter sido aplicado um montante indemnizatório equitativo e não ser aplicada a indemnização pelo seu montante máximo.

NN- Tudo ponderado, mostrava-se justificado, a nosso ver, que o montante indemnizatório não deve ser decretado pela totalidade dos créditos, mas sim por um valor inferir a um quarto desses créditos.

OO- Pelo que, a ser considerada a insolvência como culposa e a ser considerado que o Recorrente deverá ser afeto pela mesma, deverá ser reduzida a condenação indemnizatória por um valor inferir a um quarto dos créditos.

PP- Foram violadas, entre outras, as normas dos artigos 83.º, 186.º, n.º 1, n.º 2, alínea i), n.º 3, alínea b), artigo 189.º, n.º 2, alínea e) e n.º 4, todos do CIRE, os artigos 155.º e 195.º do CPC e 566.º, n.º 3 do CPC.

QQ- Por tudo o exposto, deverá ser dado provimento ao recurso e ser a insolvência considerada como fortuita.

Contra-alegou o Ministério Público em defesa da decisão recorrida e pela improcedência da apelação.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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Delimitação do objecto do recurso – questões a apreciar.

As questões suscitadas pelo apelante (atendendo às conclusões formuladas na apelação – por estas se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, nos termos dos arts. - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), podem sintetizar-se nos seguintes termos:

- a nulidade decorrente da deficiência da gravação do seu (requerido apelante) depoimento (e consequente anulação do acto e dos actos subsequentes).

- a censura dirigida à decisão sobre a matéria de facto,

- a qualificação da insolvência como culposa - preenchimento das previsões da alínea i) do nº 2 e da alínea b) do nº 3 do artigo 186º do CIRE, e

- a medida da indemnização (a determinação do quantum indemnizatório em atenção à ilicitude, à culpa e aos danos causados pela conduta).

A primeira questão abordada pelo apelante nas suas conclusões não integra, porém, o poder cognitivo deste tribunal (não constitui questão a decidir), pois que suscitada perante o tribunal a quo (o tribunal perante o qual se desenrolou o acto que se invoca estar inquinado pela irregularidade), como se impõe (art. 155º, nº 4 do CPC)[1], este a apreciou e julgou, indeferindo-a, sem que tal decisão tenha merecido impugnação (tendo o prazo de impugnação decorrido mesmo antes do processo ter subido em recurso), mostrando-se assim a questão já decidida com força de caso julgado (caso julgado formal – arts. 619º e 620º do CPC), impondo-se às partes e ao tribunal (não apenas ao tribunal a quo mas também à Relação).

Assim, fácil concluir que o objecto do recurso, delimitado, por um lado, pelas conclusões das alegações e por outro, pela impossibilidade de ser apreciada a questão elencada em primeiro lugar, resume-se às três outras acima sintetizadas questões.


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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto

Na sentença recorrida consideraram-se

Factos provados

A. A sociedade A..., Ld.ª, foi constituída em 15 de Março de 2001 e tem sede na Rua ... n.º S, .../..., freguesia ..., concelho e distrito do Porto, ... Porto.

B. AA foi nomeado gerente da insolvente a 9/8/2011 e cessou funções a 29/4/2013.

C. BB e CC foram os gerentes da insolvente desde a sua constituição, tendo o primeiro cessado funções a 9/8/2011 e o segundo a 7/4/2021.

D. DD foi nomeado gerente da insolvente a 29/4/2013 e cessou funções a 29/3/2022.

E. A sociedade foi constituída com duas quotas de 90.000,00€ cada, pertencentes a BB e CC.

F. A 9/8/2011, BB transmitiu as suas quotas a DD.

G. A 7/4/2021, CC transmitiu as suas quotas a AA.

H. Por petição inicial que deu entrada em juízo a 27/4/2022, EE e FF vieram peticionar a declaração de insolvência da sociedade A..., Ld.ª, invocando créditos laborais.

I. A sociedade A..., Ld.ª, foi declarada insolvente por sentença proferida a 12/8/2022, já transitada em julgado.

J. Aquando da citação da requerida, por carta enviada a 1/6/2022 para a morada da sua sede, foi solicitado aos seus legais representantes que entregassem “os documentos previstos no nº 1 do art.º 24º do CIRE (…) ao administrador nomeado, caso a insolvência venha a ser decretada”.

K. O senhor Administrador da Insolvência notificou o sócio AA, via CTT por carta registada e que este recebeu, no sentido de o contactar para efeitos de agendamento de uma reunião pessoal e garantir o acesso à instalação sede social da insolvente.

L. AA não contactou o senhor Administrador da Insolvência.

M. Por isso, o senhor Administrador da Insolvência não acedeu à sede social da sociedade a não ser por arrombamento, e não conseguiu apreender os seus documentos contabilísticos.

N. O Instituto da Segurança Social, I.P. realizou uma acção inspectiva à sociedade insolvente, a qual teve como objectivo a verificação do cumprimento das obrigações das entidades empregadoras em toda a vertente jurídico-contributiva, nomeadamente a declaração de subsídios de férias e de Natal.

O. Em conclusão da referida acção inspectiva resultou o apuramento de contribuições não declaradas ao ISS, I.P., relativas a remuneração, subsídios de férias e natal dos trabalhadores reportadas ao período de 2019 a 2022, no montante total de 8.098,05 € (oito mil e noventa e oito euros e cinco cêntimos).

P. As últimas contas prestadas por esta sociedade reportam-se ao exercício económico de 2020.

Q. Era AA quem acordava os negócios a encetar pela insolvente e os seus termos, decidindo quais as relações comerciais que mantinha com terceiros, com quem tratava, assumindo a gestão, administração e representação de toda a actividade exercida, cabendo-lhe também a decisão de afectação dos seus recursos financeiros à satisfação das respectivas necessidades e sobre os pagamentos aos fornecedores e credores da sociedade insolvente, dando ordens aos seus funcionários.

Factos não provados

R. Uma divisora pesadora Volum Iris 20 SP RD Inox, um Cortante 6 vias Corte “bijou” e uma máquina de gelo granulado 220kg e as viaturas de matricula ..-XU-.., ..-RA-.. e ..-RB-.., objecto de um contrato de leasing entre a insolvente e o Banco 1..., foram colocados ao serviço da sociedade B..., de que o requerido AA é gerente.

S. O requerido fez desaparecer a quantia de 8.098,05€ (oito mil e noventa e oito euros e cinco cêntimos) referida em O).

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Fundamentação de direito

A. Da censura dirigida à decisão da matéria de facto.

Impugna o apelante a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto sustentando dever excluir-se dos factos provados o ponto K e aditar-se à fundamentação dois factos, um fazendo constar (como do anúncio da sentença da declaração de insolvência consta) que o ‘anúncio público da sentença de declaração da insolvência determinou que os administradores da insolvente eram BB e CC, tendo sido fixado o domicílio dos mesmos na Rua ..., ..., ... Porto’ e outro (como resulta do depoimento do administrador da insolvência) dando nota de que o ‘Administrador da Insolvência endereçou uma carta para a morada fixada pelo Tribunal cujo destinatário era o senhor BB’.

A.1. Da não apreciação da impugnação na parte que tem por objecto matéria irrelevante à apreciação e decisão da causa.

Patente a desnecessidade de apreciar da impugnação na parte em que o apelante pretende ver aditada aos factos provados matéria que a decisão apelada terá desconsiderado – melhor e com mais rigor: impõe-se à Relação o dever de rejeitar a apreciação desta parte da impugnação, abstendo-se de a conhecer.

A apreciação da modificabilidade da decisão de facto é actividade reservada a matéria relevante à solução do caso, devendo a Relação abster-se de conhecer da impugnação cujo objecto incida sobre factualidade  que não interfira de modo algum na solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque da matéria de facto a ponderar na decisão[2].

O propósito precípuo da impugnação da decisão de facto é o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido quanto ao mérito da causa, o que faz circunscrever a sua justificação às situações em que a matéria impugnada possa ter interferência na solução do caso, ou seja, aos casos em que a solução do pleito em favor do recorrente esteja dependente da modificação que o mesmo pretende ver introduzida nos factos a considerar na decisão a proferir.

Sendo a matéria dela objecto indiferente e alheia à sorte da acção, não interferindo de modo algum na solução do caso, de acordo com o direito (considerando as soluções plausíveis da questão de direito[3]), não deverá a Relação conhecer da impugnação (da pretendida alteração), sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril – se os factos impugnados não forem relevantes, considerando as  soluções plausíveis de direito da causa, é de todo inútil a reponderação da correspondente decisão da 1ª instância, como sucederá nas situações em que a substituição pretendida pelo impugnante seja indiferente à solução da causa e irrelevante ao enquadramento jurídico do objecto da lide[4].

Tal é, precisamente, o que ocorre no caso dos autos relativamente à matéria que o apelante pretende ver aditada à fundamentação de facto – nem dela (mormente do primeiro facto que pretende ver aditado) se poderia concluir que o apelante não preenche os pressupostos para ser incluído no âmbito subjectivo da insolvência culposa (isto é, não possa ser afectado, à luz do preceituado no nº 1 do art. 186º do CIRE), desde logo ponderando a factualidade exposta na alínea Q. dos factos provados, que permite concluir pela gerência de facto (para lá de que, como referido na decisão, tendo os nomeados gerentes cessado funções, a representação da insolvente cabe a todos os sócios – art. 253º, nº 1 do CIRE), questão que o apelante nem discute no recurso, nem dela (mormente do segundo facto) se poderia concluir pela existência de qualquer interpelação que pudesse relevar para se considerar, à luz da alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE, ter a insolvente (e o afectado) incumprido reiteradamente dever de apresentação e/ou de colaboração, sendo evidente a irrelevância de tal factualidade para a questão concernente à determinação do quantum indemnizatório fixado à luz da alínea e) do nº 2 do art. 189º do CIRE.

É de concluir, pois, que a matéria que o apelante pretende ver acrescentada aos factos provados é, de todo em todo, indiferente e irrelevante à apreciação do mérito da causa (e logo à alteração da decisão), seja quanto à questão do montante da indemnização (como é evidente), seja quanto à questão da qualificação da insolvência como culposa, à luz da alíneas i) do nº 2 e b) do nº 3 do CIRE – atente-se que o ónus de prova da demonstração dos factos necessários ao preenchimento de qualquer das previsões dos nº 2 e 3 do art. 186º do CIRE, porque constitutivos da pretensão de qualificação da insolvência como culposa, cabe a quem pugna por tal qualificação[5], tem de ponderar-se que a matéria em questão não se trata de matéria de excepção (na noção do art. 342º, nº 2 do CC), com virtualidade para afastar a qualificação como culposa a que outra matéria provada possa conduzir.

Mostra-se, pois, a matéria em causa (que o apelante pretende ver adiada aos factos provados) irrelevante e indiferente à solução da causa, em razão do que a Relação se abstém de conhecer da impugnação que a tem por objecto.

A.2. Da impugnação da decisão da matéria de facto – o facto referido no ponto K da fundamentação de facto.

Valorizando os elementos a propósito produzidos nos autos em vista de formar convicção autónoma[6], é patente concluir que o ponto K da matéria provada não pode subsistir nos exactos termos em que foi julgado na decisão apelada.

Efectivamente, como afirmado e reconhecido pelo administrador da insolvência no depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, não estabeleceu qualquer pessoal com o requerido AA, apenas lhe enviando uma carta registada que o mesmo recebeu (carta que fez juntar ao relatório a que alude o art. 155º do CIRE), carta (que consubstancia o documento nº 7 que acompanha o relatório elaborado nos termos do art. 155º do CIRE, junto ao processo principal em 27/09/2022) na qual lhe dirigiu ‘pedido de colaboração’ no sentido de, reconhecendo-o como legal representante da insolvente, proceder à entrega imediata, em prazo não superior a cinco dias, de i) eventuais contactos telefónicos e endereço electrónico (e-mail) do gerente, com vista a prestar eventuais esclarecimentos, ii) de contactos telefónicos, endereço electrónico (e-mail) e direcção do escritório do contabilista certificado da empresa, ‘para prestar eventuais esclarecimentos, iii) de acervo contabilístico (comprovativo da cessação da actividade para efeitos de IVA e causas da situação económica em que se encontra a empresa), iiii) comprovativos da existência/inexistência de bens imóveis e veículos automóveis nos últimos três anos que antecederam o início do processo de insolvência, balanços, demonstração de resultados e IES de 2018 e 2019, 2020 e 2021, os últimos balancetes gerais analíticos), iiiii) folha do pessoal do último mê de actividade, com indicação de morada, vencimentos e antiguidade dos eventuais trabalhadores e valores em dívida a cada um deles, iiiiii) cópias de eventuais comunicações efectuadas aos trabalhadores, iiiiii) cópias de eventuais contratos de arrendamento e/ou locação e/ou leasing, iiiiiiii) cópias de cancelamento de eventuais contratos de prestação de serviços, nomeadamente electricidade, água, via verde, comunicações e de arrendamento, iiiiiiiiiI) inventário imobilizado e iiiiiiiiiI) toda e qualquer informação que considerasse pertinente para a elaboração do relatório a que alude o artigo 155º do CIRE.

Que tal carta foi recebida pelo requerido resulta demonstrado pelo documento que, com o nº 11, acompanha o relatório elaborado pelo administrador da insolvência – trata-se de documento que consubstancia o seguimento, junto dos CTT, da carta registada enviada ao requerido apelante (seguimento feito em atenção ao número do registo – no caso, ......, como resulta da cópia do registo que consubstancia a folha 3 do já aludido documento nº 7) e que permite concluir pela sua entrega.

Assim, se pode concluir-se, com segurança, pelo envio de carta (através dos CTT) ao requerido (e seu recebimento por parte deste), tem de reconhecer-se que o contacto se não destinou ao agendamento de qualquer reunião pessoal e a garantir o acesso às instalações da insolvente, tão só a solicitar-lhe o envio de determinados contactos, informações e elementos documentais/contabilísticos.

Do exposto resulta dever alterar-se a redacção da alínea K dos factos provados no sentido de dela ficar a constar:

K. O senhor Administrador da Insolvência notificou o sócio AA, via CTT por carta registada e que este recebeu, pedindo a sua colaboração no sentido de lhe enviar determinados contactos telefónicos e endereços de correio electrónico, direcção do contabilista certificado da sociedade e bem assim o envio de informações e elementos documentais/contabilísticos.

B. Da qualificação da insolvência como culposa – do preenchimento das previsões da alínea i) do nº 2 e da alínea b) do nº 3 do artigo 186º do CIRE.

A introdução do incidente de qualificação da insolvência visou afirmar ‘uma mais correcta perspectiva e delineação das finalidades e estrutura do processo de insolvência’, sendo propósito do legislador (com o uso do incidente de qualificação) a obtenção de ‘uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas colectivas’, evitando o ‘surgimento de condutas altamente prejudiciais à proteção e segurança do tráfego jurídico-mercantil’ e impedindo ‘que os promotores dessas condutas passem pelos «pingos da chuva» sem que nenhuma consequência ou advertência’ lhes seja imputada[7].

A finalidade do incidente, anunciada no art. 185º do CIRE, consiste em averiguar as causas que conduziram à situação de insolvência para a qualificar numa das legalmente tipificadas categorias (fortuita ou culposa), ‘podendo desencadear uma verdadeira responsabilidade que é específica e autónoma de outras responsabilidades’[8] – concluindo pela qualificação da insolvência como culposa, ‘a sentença identifica os sujeitos culpados, para que sobre eles se produzam certos efeitos, também eles declarados na sentença’[9] (efeitos que têm, ou devem ter, não uma função instrumental do processo, mas ‘uma função eminentemente punitiva, funcionando como uma espécie de «penas civis»’[10] – o incidente serve ‘para sancionar todos os sujeitos que, com desprezo pelas suas obrigações profissionais, contribuam para a insatisfação geral dos credores’[11]).

A insolvência fortuita delimita-se por exclusão de partes (‘pela negativa ou por omissão, são fortuitas todas aquelas insolvências que não se qualificam como culposas’, não resultando dela qualquer consequência ou sanção para os devedores ou administradores[12]), ocupando-se o CIRE de definir apenas, e por duas vias, o conceito de insolvência culposa: o nº 1 do art. 186º contém uma ‘noção geral do instituto, que os n.ºs 2 e 3 complementam e concretizam por recurso a presunções.’[13]

A insolvência culposa – assim resulta do nº 1 do art. 186º do CIRE – implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, que hajam criado ou agravado a situação de insolvência; deve recorrer-se às noções de dolo e de culpa grave dos termos gerais de Direito, havendo ainda que ponderar, face ao disposto no parte final do nº 1 do art. 186º do CIRE, que uma actuação com as características e relevância assinaladas deixa de ser atendida para o efeito de qualificar a insolvência como culposa se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência[14].

No âmbito objectivo da insolvência culposa incluem-se os comportamentos (dolosos ou gravemente culposos) idóneos e/ou suficientes para a criação da situação de insolvência ou para o seu agravamento, estabelecendo os números 2 e 3 do art. 186º do CIRE, no intuito de oferecer ‘maior e melhor perceção do conceito’, um ‘elenco de presunções’, enumerando ‘situações em que se presume sempre a insolvência culposa do devedor na insolvência (nº 2) e situações em que se presume a existência de culpa grave (nº 3)’[15]  – enquanto o nº 1 do preceito define em que consiste a insolvência culposa, fixando uma noção geral, o nº 2 estabelece presunção inilidível que complementa essa noção e, finalmente, o nº 3 dá por verificada, quando constatadas as circunstâncias elencadas, mediante uma presunção ilidível, a existência de culpa grave[16].

Consagra o nº 2 do art. 186º do CIRE um elenco de situações fácticas cuja verificação determina se considere, sempre, a insolvência culposa – elenco de presunções inilidíveis de insolvência culposa[17] (ou presunções absolutas de insolvência culposa, no que se refere às alíneas a) a g), sendo que as alíneas h) e i) mais parecem ‘ser ficções legais’ dado que a factualidade nelas ‘descrita não é de molde a fazer presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência’, que a par da culpa é o requisito fundamental da insolvência culposa segundo a cláusula geral do nº 1 do preceito[18]) ou a enunciação legal de situações típicas de insolvência culposa; no preceito em questão o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinado facto não a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram: seja considerando as alíneas do nº 2 do art. 186º do CIRE como presunções inilidíveis de culpa, factos-índice ou tipos secundários de insolvência dolosa, o legislador prescinde duma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa como requisito da adopção das medidas restritivas previstas no artigo 189º do CIRE contra as pessoas (os administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas) julgadas responsáveis pela insolvência, sendo que a prova dos comportamentos ali descritos determina se conclua pela verificação da insolvência culposa, sem necessidade (sequer possibilidade) de um juízo casuístico efectuado pelo julgador perante todo o circunstancialismo do caso concreto, tratando-se, assim, duma verdadeira limitação do campo de valoração judicial autónoma do significado normativo da conduta prevista e, por consequência, do âmbito de defesa potencial do interessado (trata-se, em qualquer das alíneas do nº 2 do art. 186º do CIRE, do estabelecimento da automática inerência do juízo normativo de culpa), que se justifica pois se evita a subjectividade inerente a um juízo de censura ético-jurídico, superando-se concomitantemente as dificuldades de apuramento de todo o circunstancialismo envolvente da situação de insolvência (objectivos legítimos, alicerçados em razões de segurança jurídica e de justiça material)[19].

Diversamente, o número 3 do art. 186º do CIRE contém presunções iuris tantum, ou seja, presunções relativas que admitem ilisão. A propósito, uma posição minoritária entendia que, sob ‘pena de perder grande parte da sua utilidade’, tal número consagrava ‘não meras presunções (relativas) de culpa grave’, mas ‘autênticas presunções (relativas) de insolvência culposa (ou de culpa na insolvência)’[20], enquanto a posição maioritária defendia estarem aí estabelecidas presunções relativas de culpa grave na produção da insolvência (não presunções de insolvência culposa), cabendo à parte que as alegasse fazer prova do nexo de causalidade (ou seja, a demonstração de que a prática de tais condutas ou omissões de comportamentos e actos levara ao surgimento ou agravamento da situação de insolvência)[21].

Este segundo entendimento era o que já seguíamos, por considerarmos que o legislador demarcou a natureza das presunções elencando-as em dois números distintos, o que realçava a sua intenção de estabelecer soluções dissemelhantes, impondo-se ainda ponderar o argumento literal, pois que a norma (nº 3 do art. 186º do CIRE, com a anterior redacção) expressamente referia presumir-se a existência de culpa grave[22], o que nos levava a concluir que estabelecia presunções ilidíveis de culpa grave[23], não dispensando porém ‘a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou agravamento da situação de insolvência’, sendo necessário em tais situações verificar se tais comportamentos criaram ou agravaram a situação de insolvência, ‘não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais actuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento’[24].

Ponto (ou questão) que legislador (através da Lei 9/2022, de 11/01) veio, entretanto, clarificar (fazendo, verdadeiramente, interpretação autêntica) – o proémio do nº 3 do art. 186º do CIRE diz agora presumir-se ‘unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido …’, alteração (aditamento do advérbio ‘unicamente’) ‘que tem o inequívoco propósito de esclarecer que a presunção (relativa) aí consagrada respeita apenas ao requisito da culpa grave e a mais nenhum’, ficando, pois, ‘precludida a possibilidade de entender que a presunção é de insolvência culposa’[25].

Relativamente ao âmbito subjectivo, referência breve (pois a questão não tem verdadeiro interesse à economia da presente apelação) para que o nº 1 do art. 186º do CIRE inclui no incidente de qualificação os administradores de facto ou de direito de pessoas colectivas (o nº 2, a) do art. 189º do CIRE dispõe sobre a afectação de tais administradores e/ou gerentes, de direito ou de facto) – o propósito legal não é o de excluir da afectação os administradores de direito que não exerçam funções de facto (que não exerçam, efectivamente, a administração ou gerência)[26], antes estendê-la (afectação) aos administradores de facto, ‘sobretudo por razões de justiça material’, pois quantas vezes ‘os verdadeiros responsáveis pela administração das pessoas colectivas não são os administradores de direito, estes são apenas os «testas de ferro» de indivíduos que pelas mais variadas razões preferem o anonimato e a ocultação das suas acções’[27] (e por isso a qualificação abrange, quer  os administradores de direito, responsáveis pela administração da sociedade[28], quer os administradores de facto – aqueles que, sem título bastante, exercem, ‘directa ou indirectamente e de modo autónomo (não subordinadamente) funções próprias de administrador de direito da sociedade’[29]).

Não discute o apelante a sua qualidade de gerente (seja de direito, seja de facto) e, por isso, estar incluído no âmbito subjectivo do preceito, como entendido na decisão apelada, sustentando antes que a matéria de facto não permite concluir pelo preenchimento de qualquer das situações elencadas na alínea i) do nº 2 e alínea b) do nº 3 do art. 186º do CIRE – no âmbito objectivo, considerou a decisão apelada, para qualificar a insolvência como culposa, estarem preenchidas tais previsões.

Trata, a alínea i) do nº 2 do art. 186º de CIRE (juntamente com a da alínea h) do mesmo número), duma causa puramente objectiva da insolvência culposa[30] – tal qual a relativa à da alínea h), a factualidade de que trata a situação prevista na referia alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE, sendo estranha à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal entre ela e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, vê justificada a sua inclusão no elenco das presunções inilidíveis de insolvência culposa por se tratar de factualidade que inculca a ideia de que terão sido praticados actos que contribuíram para a insolvência que se pretendem ocultar[31], assim se impedindo que devido à dificuldade de prova do nexo de causalidade fiquem impunes aqueles que violaram obrigações legais, sendo que uma tal solução legal demanda, por isso, particular exigência para considerar preenchida a previsão (designadamente para a verificação dos conceitos indeterminados a que recorre)[32].

Preceito (alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE) cuja interpretação impõe articulação com o nº 3 do art. 83º do CIRE, que dispõe que a ‘recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa’ – para que as normas (art. 83º, nº 3 e alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE) não entrem em conflito, ‘tem de se entender que o poder de livre apreciação que o nº 3 do art. 83º atribui ao juiz, não se aplica quando o incumprimento dos deveres de apresentação e de colaboração seja «reiterado»’, e assim, apurando-se a reiteração (só quanto à verificação desta o juiz tem liberdade de decisão), a insolvência é sempre qualificada de culposa[33].
Não basta, pois, ao preenchimento da previsão da alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE o incumprimento dos deveres de apresentação e de colaboração, exigindo-se que tal falta (dolosa ou gravemente negligente) seja reiterada – a falta (incumprimento) tem de ser repetida, renovada (para lá daquela que ocorra na sequência duma primeira solicitação ou intimação para prestação de colaboração ou apresentação).

Reiteração que na situação dos autos a matéria provada não revela – ainda que pudesse concluir-se, em razão das alíneas J, K e L dos factos provados que o requerido (ao menos com grave negligência) incumpriu os deveres de fornecer informações relevantes para o processo solicitadas pelo administrador da insolvência (alínea a) do nº 1 do art. 83º do CIRE) ou de prestar a colaboração requerida pelo administrador da insolvência para o desempenho das respectivas funções (alínea c) do nº 1 do art. 83º do CIRE), sempre se teria de recusar tratar-se de incumprimento reiterado, pois que tal matéria não espelha a existência de qualquer persistência ou repetição: o requerido foi por uma única vez contactado pelo administrador em vista de prestar a sua colaboração, pelo que é de recusar que se verifique qualquer reiteração do incumprimento do dever de colaboração.

Não pode, pois, considerar-se (ao contrário do que considerou a decisão apelada) mostrar-se preenchida a previsão de insolvência culposa estabelecida na alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE.

Não pode também considerar-se que a ter existido incumprimento da obrigação de elaboração das contas anuais (veja-se o facto provado na alínea P) dos factos provados – as últimas contas prestadas reportam-se ao exercício económico de 2020) o mesmo conduza à qualificação da insolvência como culposa. Na verdade, ainda que fosse de presumir a existência de culpa grave (alínea b) do nº 3 do art. 186º do CIRE), não poderia concluir-se dos demais factos provados a demonstração de nexo de causalidade entre tal facto (tal incumprimento de providenciar pela elaboração das contas anuais) e o surgimento ou agravamento da situação de insolvência da devedora (sendo certo que, como acima referido, é ónus dos interessados que requerem a qualificação da insolvência como culposa a prova da factualidade necessária à demonstração de tal nexo causal) – nenhum facto permite concluir (nem a decisão apelada o aponta) que do incumprimento de providenciar pela elaboração das contas tenha resultado, com nexo de causalidade adequada, a impossibilidade (ou o seu agravamento) de cumprimento das obrigações vencidas da devedora.

De afastar, pois, a qualificação da insolvência como culposa com fundamento na não elaboração das contas anuais (art. 186º, nº 3, b) do CIRE).

C. Da não apreciação da questão concernente ao quantum indemnizatório, por prejudicada.
Ponderando que a insolvência não pode qualificar-se como culposa, fica prejudicada (arts. 608º, nº 2 e 663º, nº 2 do CPC) a apreciação da questão concernente à afectação do requerido e efeitos decorrentes de tal afectação, mormente a concernente ao quantum indemnizatório fixado à luz da alínea e) do nº 2 do art. 189º do CIRE.
D. Síntese conclusiva.

Procede a apelação (com a qualificação da insolvência como fortuita), podendo sintetizar-se a argumentação decisória, nos termos do nº 7 do art. 663º do CPC, nas seguintes proposições:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogando a decisão recorrida, em considerar a insolvência como fortuita.

Custas pela massa insolvente.


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Porto, 9/04/2024
João Ramos Lopes
Maria Eiró
Artur Dionísio Oliveira

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Cfr., a propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, 2018, p. 178 e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral do Processo de Declaração, 2018, p. 190.
[2] Assim, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime (Decreto Lei nº 303/07, de 24/08) – 2ª edição revista e actualizada, p. 298.
[3] As soluções aventadas na doutrina e/ou na jurisprudência, ou que, em todo o caso, o juiz tenha como dignas de ser consideradas (como admissíveis a uma discussão séria) – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 188, nota 1 –, isto é, as soluções que a doutrina e a jurisprudência adoptem para a questão (designadamente nos casos em que em torno dela se tenham formado duas ou mais correntes) e também aquelas que sejam compreensivelmente defensáveis, considerando a lei e o direito aplicáveis – Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 417 e 418 –, os (todos os) ‘possíveis enquadramentos jurídicos do objecto da acção’, as ‘possíveis soluções de direito da causa’, as soluções jurídicas (entendimentos e posições) propostas pela doutrina e/ou jurisprudência para resolver a questão suscitada no litígio – Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª Edição, 1987, p. 311 –, as vias de solução possível do litígio, ponderando as correntes doutrinárias e jurisprudenciais formadas em torno dos tipos de questão levantadas pela pretensão deduzida em juízo e excepções invocadas – Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2001, p. 381.
[4] Acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014 (Henrique Antunes), no sítio www.dgsi.pt. No mesmo sentido, v. g., os acórdãos do STJ de 19/05/2021 (Júlio Gomes) e de 14/07/2021 (Fernando Baptista), no sítio www.dgsi.pt.
[5] A prova da factualidade necessária para se qualificar a insolvência como culposa incumbe ao requerente, não ao requerido – assim, v. g., o acórdão do STJ de 6/10/2011 (Serra Baptista), no sítio www.dgsi.pt [no mesmo sentido - de que o ónus de prova incumbe ao requerente que pretende a qualificação da insolvência como culposa -, o acórdão do STJ de 5/04/2022 (Ana Paula Boularot), no sítio www.dgsi.pt].
Também considerando que o ónus de prova dos comportamentos referidos nos nº 2 e 3º do art. 186º do CIRE é de quem os invoca (art. 342º, nº 1 do CIRE), o acórdão da Relação do Porto de 29/09/2022 (Filipe Caroço), no sítio www.dgsi.pt.
[6] Ao actuar os poderes que lhe são atribuídos enquanto tribunal de segunda instância que garante um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, deve a Relação proceder a uma autónoma apreciação crítica das provas produzidas (em vista de, a partir delas, expressar a sua convicção com total autonomia, de formar uma convicção autónoma), alterando ou corroborando a decisão em conformidade a convicção que adquira com essa autónoma apreciação dos elementos probatórios a que deve proceder - Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, pp. 298 a 303 (maxime 302 e 303) e os acórdãos do STJ de 8/01/2019 (Ana Paula Boularot), de 25/09/2019 (Ribeiro Cardoso), de 16/12/2020 (Tomé Gomes), de 1/07/2021 (Rosa Tching) e de 29/03/2022 (Pedro de Lima Gonçalves), no sítio www.dgsi.pt.
[7] Carina Magalhães, ‘Incidente de qualificação da insolvência. Uma visão Geral’, in Estudos do Direito da Insolvência, Almedina, 2017 (coordenação de Maria do Rosário Epifânio), p. 101 (itálicos no original).
[8] Carina Magalhães, Incidente de qualificação da insolvência (…), pp. 103 e 104 (itálicos no original).
[9] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, p. 300.
[10] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito (O Problema da Natureza do Processo de Liquidação Aplicável à Insolvência no Direito Português), Coimbra Editora, 2009, p. 371.
[11] Catarina Serra, ‘O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei nº 9/2022 – Algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência’, in Julgar, nº 48 (As alterações do CIRE introduzidas pela Lei nº 92/2022, de 11/01), Setembro-Dezembro de 2022, p. 21.
[12] Carina Magalhães, Incidente de qualificação da insolvência (…), pp. 104 e 113.
[13] Luís Carvalho Fernandes, ‘A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor’, in Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência, Reimpressão, Quid Iuris, 2011, p. 261.
[14] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, 2015, p. 680.
[15] Carina Magalhães, Incidente de qualificação da insolvência (…), pp. 116/117, acrescentando que a doutrina e jurisprudência vinham qualificando as presunções do nº 2 como presunções iuris et de iure e as do nº 3 como presunções iuris tantum.
[16] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência (…), p. 680.
[17] Carina Magalhães, Incidente de qualificação da insolvência (…), pp. 117 a 119, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência (…), p. 680. Com vasta e exaustiva indicação doutrinal e jurisprudencial sobre a questão, o acórdão do STJ de 5/04/2022 (Luís Espírito Santo), no sítio www.dgsi.pt.
[18] Catarina Serra, Lições (…), p. 301 e ‘O Novo Regime da Insolvência, Uma Introdução’, 4ª Edição, p. 122. A autora reconhece que o elenco de presunções em que assenta o sistema talvez não seja o mais justo, sendo disso ilustrativo que o incumprimento substancial da obrigação de manter a contabilidade organizada ou o incumprimento reiterado dos deveres de apresentação e de colaboração com os órgãos da insolvência dê origem a presunções absolutas ou inilidíveis (alíneas h) e i) do nº 2 do art. 186º do CIRE) - A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito (…), p. 373.
[19] Acórdão do Tribunal Constitucional de 26/11/2008 (acórdão nº 570/2008), proferido no processo nº 217/08, disponível no sítio www.tribunalconstitucional.pt.
[20] Catarina Serra, Lições (…), p. 301 e O Novo Regime da Insolvência (…), p. 122. Tal posição foi jurisprudencialmente seguida, p. ex., no acórdão do STJ de 23/10/2018 (Catarina Serra), no acórdão da Relação do Porto de 9/03/2020 (Vieira e Cunha) e no acórdão da Relação de Guimarães de 24/09/2020 (Conceição Sampaio), todos no sítio www.dgsi.pt.
[21] Carina Magalhães, obra citada, p. 120.
[22] Carina Magalhães, obra citada, pp. 121/122.
[23] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência (…), p. 681.
[24] Assim os acórdãos do STJ de 6/10/2011 (Serra Baptista) e (citando-o) de 29/10/2019 (Maria Olinda Garcia), no sítio www.dgsi.pt.. Também neste sentido (estabelecer o nº 3 do art. 186º presunção de culpa grave, não dispensando, porém, a demonstração do nexo causal entre o comportamento presumido culposo e o surgimento ou agravamento da situação de insolvência), por exemplo, os acórdãos da Relação do Porto de 19/11/2020 (Freitas Vieira) e de 23/11/2020 (Fernanda Almeida), no sítio www.dgsi.pt.
[25] Catarina Serra, ‘O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei nº 9/2022 (…)’, p. 20.
[26] Assim o acórdão da Relação do Porto de 22/02/2022 (Rodrigues Pires) – subscrito como adjunto pelo relator deste –, no sítio www.dgsi.pt.
[27] Carina Magalhães, Incidente de qualificação da insolvência (…), pp. 113/114, em nota (nota 52).
[28] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência (…), p. 101.
[29] Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos, Responsabilidade Civil de Administradores e de Sócios Controladores (notas sobre o artigo 379º do Código do Trabalho), in IDET, Miscelâneas, nº 3, Almedina, 2004, p. 43.
[30] Rui Estrela de Oliveira, ‘Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência’, in Julgar, nº 11, Maio-Agosto de 2010, p. 241.
[31] Especificamente a propósito da alínea h) do nº 2 do art. 186º do CIRE, Catarina Serra, in ‘«Decoctor ergo fraudator»? - A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções) - Anotação ao Ac. do TRP de 7.1.2008, Proc. 4886/07’, in Cadernos de Direito Privado, 2008, nº 21, p. 66, refere que a factualidade descrita em tal alínea não gera, nem, em princípio, agrava a insolvência, fazendo-se assentar o juízo de reprovabilidade de tal conduta na circunstância de a não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respetivos documentos permitir supor que o sujeito tem algo a esconder, que terá praticado actos que contribuíram para a insolvência, pretendendo ocultá-los.
Tal ponderação vale inteiramente, acrescentámos nós, a propósito da factualidade pressuposta na alínea i) do preceito.
[32] Assim (também especificamente a propósito da alínea h) do nº 2 do art. 186º do CIRE), o acórdão da Relação do Porto de 29/09/2022 (Filipe Caroço) e o (nele citado) acórdão da Relação de Coimbra de 16/06/2015 (Barateiro Martins), ambos no sítio www.dgsi.pt.
[33] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência (…), pp. 421 e 681.