Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ALEXANDRA PELAYO | ||
| Descritores: | RECONHECIMENTO DE DÍVIDA CONHECIMENTO DO MÉRITO NO DESPACHO SANEADOR SOLUÇÕES PLAUSÍVEIS DA QUESTÃO DE DIREITO | ||
| Nº do Documento: | RP20251028601/23.9T8MAI-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/28/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - O reconhecimento da dívida resultante da inação do terceiro devedor do executado nos termos do citado nº 3, do artº 777º, assenta numa presunção, que é ilidível em sede de oposição à execução. II - A dívida tem-se por fictamente confessada, embora apenas para efeitos daquele concreto processo executivo, pelo que não tem valor de caso julgado, mas antes um valor de preclusão e apenas no âmbito de eficácia da execução pendente, nada impedindo por isso que, em execução instaurada contra o terceiro devedor, este possa impugnar ou excecionar o crédito. III - A decisão do processo na fase do saneador-sentença só pode suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência. IV - Se de acordo com as soluções plausíveis da questão e direito, a decisão final puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, que mostram algum relevo para a decisão, não se mostra justificado o julgamento antecipado da causa, devendo o juiz proceder ao prévio apuramento de todos os factos que interessem á correta e completa integração jurídica da questão a decidir. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo: 601/23.9T8MAI-A.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo de Execução da Maia - Juiz 2
Juíza Desembargadora Relatora: Alexandra Pelayo Juízes Desembargadores Adjuntos: Pinto dos Santos Ramos Lopes
SUMÁRIO: ……………………………… ……………………………… ………………………………
Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:
I-RELATÓRIO: Nos autos de execução que a exequente A..., SA intentou contra a executada B..., Unipessoal, Lda., foi proferido despacho que admitiu a cumulação de execuções, passando a execução a seguir a forma ordinária, e dirigida contra o executado AA, nos termos do n.º 3 do artigo 777.º do Código do Processo Civil. Este veio deduzir embargos de executado questionando a validade do título e alegando que a executada não detém sobre si qualquer crédito, seja de que natureza for (artigo 5º da p.i. dos embargos). Indicou uma testemunha. A embargada A..., SA veio contestar impugnando o alegando e requerendo a improcedência dos embargos por falta de fundamento. Pediu ainda, na contestação, para o caso de assim se não entender, a condenação do Embargante a indemnizar a Embargada por todos os danos causados à mesma, nos termos do artigo 777º nº 4 do CPC, danos esses que se consubstanciam em todos os custos que a Embargada/Exequente incorreu com a demanda do aqui Embargante, a saber: “a) € 51,00 a título de taxa de justiça do Requerimento Executivo; b) € 612,00 a título de taxa de justiça referente ao presente articulado de contestação; c) € 1.850,00 a título de honorários do mandatário para a apresentação do Requerimento Executivo e presente articulado de Contestação; d) Bem como todas as despesas que incorrer por conta do presente apenso, a apurar em sede de liquidação de sentença.” Veio a ser proferido despacho, que determinou o seguinte: “Tendo em conta que as partes já exerceram o contraditório relativamente a todas as questões levantadas e que já apresentaram os respetivos requerimentos probatórios, entende o tribunal que poderá ser dispensada a realização de audiência prévia, sem prejuízo da oposição das partes. Assim, determina-se a notificação das partes para, em 10 dias, virem aos autos comunicar se se opõem a que seja dispensada a realização da audiência prévia.” Ambas as partes expressaram a sua não oposição à dispensa da audiência prévia. De seguida, o tribunal recorrido proferiu “despacho de aperfeiçoamento” convidando o embargante a concretizar a matéria de facto “de onde se possa extrair a conclusão do artº 5º da pi” (inexistência do crédito), convite que o embargante acedeu, alegando em suma que, nunca teve qualquer relacionamento comercial com a embargada, nunca na qualidade de socio da executada realizou qualquer operação financeira com tal sociedade, que nunca lhe emprestou dinheiro nem ao sócio. Juntou 3 documentos. A parte contrária exerceu o contraditório, pronunciando-se ainda sobre os documentos juntos, na sequência do que, o executado reconheceu a existência de créditos por salários. Após uma tentativa de conciliação, cujo fim ficou frustrado, foi proferido despacho saneador sentença, onde se apreciou do mérito dos embargos, com o seguinte dispositivo: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgam-se os presentes embargos improcedentes por não provados e, em conformidade, absolve-se a embargada dos pedidos contra si formulados. Custas pelo embargante.” Inconformado, AA, veio interpor o presente recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões: (…) A exequente A..., SA veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo da seguinte forma: (…) O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito devolutivo. Colhidos os vistos, importa decidir.
II-OBJETO DO RECURSO: Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões do recurso, que, assim, definem e delimitam o objeto do mesmo. As questões decidendas são as seguintes: -nulidade por falta de motivação no que concerne à fundamentação de facto – artigo 615.º n.º 1 b) do CPC. -nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto á prova documental que não foi apreciada -artigo 615º nº 1 al d). -nulidade da sentença, por ter sido proferida decisão de mérito sem os necessários elementos. -erro de julgamento ao considerar como provado os factos contantes nos pontos 2 a 4 da sentença recorrida. -violação do artº 20º CRP.
III-FUNDAMENTAÇÃO: Na sentença foram julgados provados e não provados os seguintes factos com interesse para a decisão: 1 – Nos autos de execução ordinária que a exequente A..., SA intentou contra a executada B..., Unipessoal, Lda., foi o embargante AA notificado, por notificação de 31.1.2024 de que, “Nos termos do 773º do Código do Processo Civil (CPC), se considera penhorado o crédito que o executado B... Unipessoal, Lda. detém, ficando este à ordem do signatário, até ao montante de 135.802,97 Euros. No prazo de DEZ DIAS deve(m) declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução. Não podendo ser feitas no ato da notificação, serão as declarações prestadas, por meio de termo ou de simples requerimento dirigido ao signatário, no prazo de DEZ DIAS, prorrogável com fundamento justificado. Fica(m) advertidos do seguinte: a) Se nada disser(em), entende-se que reconhece(m) a existência da obrigação, nos termos da indicação do crédito à penhora. b) Se faltar(em) conscientemente à verdade, incorre(m) na responsabilidade do litigante de má fé. Mais se adverte nos termos do n.º 3 do artigo 777.º do Código do Processo Civil, "não sendo cumprida a obrigação, pode o exequente ou o adquirente exigir, nos próprios autos da execução, a prestação, servindo de título executivo a declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efetuada e a falta de declaração ou o título de aquisição do crédito.” 2 – O embargante não respondeu à notificação aludida em 1. 3 – Perante a ausência de resposta do embargante, o Agente de Execução remeteu ao mesmo notificação em 20.2.2024 com seguinte teor “Não tendo V.Exª(s) contestado a existência do crédito resultante da notificação para de penhora (de que se junta cópia), considera-se que reconheceram a existência deste, conforme ali indicado, pelo que, no prazo de 10 (DEZ) DIAS, devem proceder ao pagamento do valor de 135.802,97 Euros, utilizando para o efeito as referências de pagamento indicadas no referido documento. Mais se adverte nos termos do n.º 3 do artigo 777.º do Código do Processo Civil, "não sendo cumprida a obrigação, pode o exequente ou o adquirente exigir, nos próprios autos da execução, a prestação, servindo de título executivo a declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efetuada e a falta de declaração ou o título de aquisição do crédito.” 4 – O embargante não respondeu nem efetuou o pagamento na sequência da notificação referida em 3. 5 – O Agente de Execução extraiu certidão nos termos do n.º 3 do art.º 777.º do CPC, tendo a exequente apresentado requerimento executivo com base na mesma. Factos não provados: Não se provou que o crédito penhorado e aludido em 1 dos factos provados não existe.
IV-APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS: 4.1- Vícios formais da sentença, conducentes à nulidade: Alega o apelante que a sentença padece dos seguintes vícios conducentes à sua nulidade: -nulidade por falta de motivação no que concerne à fundamentação de facto – artigo 615.º n.º 1 b) do CPC. -nulidade por omissão de pronúncia quanto á prova documental que não foi apreciada -artigo 615º nº 1 al d do CPC. Vejamos se ocorrem os vícios imputados. Como é sabido, os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afetam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada[1]. Analisemos o primeiro vício apontado, o da falta de fundamentação da sentença. A fundamentação das decisões tem consagração Constitucional no artº 205º da CRP estando processualmente plasmada no artº 154º do Código de Processo Civil, no qual se dispõe «As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas” e no que às sentenças respeita, o art. 607º nº 3 e nº 4 expressamente prevê a sua fundamentação, sob pena de ocorrer a nulidade prevista no art. 615º nº 1 al b) do C.P.C. A garantia da fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial. A falta de fundamentação da decisão, conduz á nulidade da mesma, nos termos do disposto no art. 615º nº 1 al b) do C.P.C quanto às sentenças, aplicável aos despachos por força do art. 613º nº 3 do mesmo código. É nula a sentença quando nomeadamente não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão ou condene em quantidade superior do pedido—cfr. artigo 615.º, n.º 1, als. b) e e), do C.P.Civil, sendo esta norma aplicável aos despachos por força do que dispõe ao rt. 613º nº 3 do C.P.C. Tem sido entendido porém, de forma reiterada e unânime pela doutrina e jurisprudência, que este vício (da falta de fundamentação) só existe no caso de se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, quer ao nível do quadro factual apurado quer no que respeita ao respetivo enquadramento legal. Assim, a sentença que contenha uma deficiente, incompleta ou não convincente fundamentação não enferma do vício apontado. Na situação em apreço, tal vício não ocorre manifestamente, uma vez que a sentença mostra-se fundamentada de facto (dela constam elencados os factos provados e não provados em que é baseada a decisão), e de direito (com a indicação das normas aplicáveis), apesar de reconhecermos alguma “ligeireza” na fundamentação da matéria de facto, ao basear a prova genericamente nos “requerimento executivo e os documentos juntos”. Porém tal, não afeta a sua validade. Analisemos agora o vício de omissão de pronúncia. Ocorre omissão de pronúncia quando o Tribunal deixe de conhecer questão suscitada ou não aprecie alguma pretensão. Esta nulidade está diretamente relacionada com o artigo 608º nº 2 do CPC, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. Na concretização do que sejam “questões a decidir”, há desde logo que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava Alberto dos Reis, “são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”. Constitui jurisprudência pacífica que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso, mas que não obriga a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com “questões”. Significa isto que a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado. A omissão de pronúncia porém, que o apelante imputa á sentença é de, na decisão da matéria de facto o tribunal não se ter pronunciado sobre um documento - email de 29.2.2024, com a referência CITIUS 38318611- por entender tratar-se de “uma questão que forçosamente teria de apreciar, constituindo tal facto uma nulidade nos termos do artigo 615.º n.º 1 d) do CPC”. Claramente não estamos perante uma nulidade, mas apenas perante a discordância do apelante relativamente aos factos julgados provados ou não provados na sentença, pelo que a mesma só poderá ser devidamente apreciada em sede de impugnação da matéria de facto – saber se a prova dum facto deverá ser alterada em face dum meio de prova não atendido pelo tribunal. Neste sentido, o Prof. Antunes Varela[2] salienta que “…não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário …”. Com efeito, não há que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento (seja em matéria substantiva, seja em matéria processual). As primeiras (errores in procedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à autenticidade, à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade da decisão ou do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com erros de julgamento (errores in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito. As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por ser destituída de mérito jurídico (ilegal). 4.2 – Decisão proferida na fase do saneador-sentença sem o tribunal dispor dos necessários elementos, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. Vejamos agora se a sentença é nula por ter sido proferida decisão de mérito sem os necessários elementos e se ocorreu violação do direito á prova, com o conhecimento do mérito da causa no saneador. Afirma o apelante que o estado do processo não permitia que o Tribunal a quo conhecesse, sem mais, o seu mérito. Pois que, atendendo ao valor da própria execução (135.802,97€), à discussão que se prende com o facto de saber se existe um título executivo válido contra o aqui Embargante e se sim se o mesmo é certo, líquido e exigível, impunha-se que o Tribunal de 1.ª Instância, após a realização da audiência prévia, proferisse despacho saneador onde identificasse o objeto do litígio e anunciasse os temas da prova. Pela simples análise dos articulados oferecidos pelas partes (embargos e contestação aos mesmos) era possível constatar que as partes arrolaram prova a ser produzida para a boa resolução do pleito. Seria expectável que o Tribunal de 1.ª instância desse cumprimento ao disposto 596.º do CPC e, concomitantemente, concedesse às partes o prazo de 10 dias para alterarem/aditarem os seus requerimentos probatórios de modo a marcar a audiência final. Porém, embora sem estar munido de todos os factos e elementos probatórios que os sustentem, proferiu um saneador-sentença e incorreu em erro de julgamento lesando os direitos de defesa do aqui Embargante. O Tribunal a quo serviu-se de um raciocínio meramente dedutivo, não alicerçado em prova bastante e ignorou a demais prova dos autos, para decidir, sem saber a verdade material e sem permitir a produção de prova sobre o mérito da causa violando o artigo 615.º n.º 1 b) e d) do CPC. Conclui que não podia o Tribunal conhecer o mérito da causa de forma imediata quando o estado do processo não o permita como acontece nos autos, tendo sido violado também o artigo 595.º b) do CPC, o que consubstancia a nulidade invocada. Vejamos. Toda a execução tem de ter por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva (fim esse que, como previsto na lei, pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, positivo ou negativo – (n.º 5 e 6, do art. 10º do CPC). “O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto (nº5), assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação (art. 53º, nº1 do CPC). O Código de Processo Civil prevê diversas situações em que se permite a formação de um título executivo na pendência de um processo judicial, - Títulos de formação processual. Tal sucede no caso de ser penhorado um crédito do executado, não contestado pelo devedor em que este não cumpra a obrigação de entrega do montante do crédito ao agente de execução. Nesse caso, o exequente pode exigir, nos próprios autos de execução, a prestação, servindo de título executivo a declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efetuada e a falta de declaração ou o título de aquisição do crédito (art. 777º, nº3).[3] Analisando o título executivo nesta execução, constata-se que a mesma (à qual os presentes embargos respeitam) foi intentada ao abrigo do nº3, do artº 777º do CPC. Estatui o nº1, do artº 773º, que “A penhora de créditos consiste na notificação ao devedor, feita com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta, de que o crédito fica à ordem do agente de execução.” Por seu turno, o nº 2, estabelece que “Cumpre ao devedor declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução. Não podendo ser feitas no ato da notificação, serão as declarações prestadas, por meio de termo ou de simples requerimento, no prazo de 10 dias, prorrogável com fundamento justificado.” Acresce que conforme impõe o nº1, do artº 777º, que logo que a dívida se vença, o devedor que não a haja contestado é a obrigado a depositar a respetiva importância em instituição de crédito, à ordem do solicitador de execução ou, na sua falta, da secretaria, e a apresentar no processo o documento do depósito, ou a entregar a coisa devida ao agente de execução, que funcionará como seu depositário. E o nº 3 deste artigo estatui que “não sendo cumprida a obrigação, pode o exequente ou o adquirente exigir, nos próprios autos, a prestação, servindo de título executivo a declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efetuada e a falta de declaração ou o título de aquisição do crédito”. A presente execução funda-se assim num denominado “título judicial impróprio”, formado ao abrigo do disposto no artº. 777º nº 3 do CPC. pela notificação efetuada pelo Agente de Execução e a falta de declaração do terceiro devedor, o aqui embargante . “A penhora de créditos é feita através da notificação ao devedor do executado (debitor debitoris), de acordo com as formalidades previstas para a citação pessoal – entre as quais a indicação expressa da cominação em que o terceiro incorre na eventualidade de nada dizer dentro do prazo legal – de que o crédito fica à ordem do agente de execução (773, nº1 do CPC), ou seja, de que o terceiro deve efetuar o pagamento do crédito penhorado diretamente ao agente de execução (…). Significa isto que a penhora considera-se realizada no momento em que o devedor recebe a notificação da penhora – situação em que o terceiro fica ciente de que o crédito fica penhorado”[4]. E, uma vez notificado da penhora do crédito, o devedor deve declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução. Nada dizendo o devedor, dentro do prazo legal (nº3, do art. 773ºdo CPC), presume-se que o mesmo reconhece a existência da obrigação, nos termos da indicação do crédito à penhora. Nessa situação, presumindo-se o crédito confessado (ficta confessio), incumbe ao terceiro cumprir a obrigação aquando do seu vencimento, sob pena de, não o fazendo, ser movida contra ele uma execução, servindo de título executivo a notificação feita pelo agente de execução e a falta de declaração.[5] Rui Pinto[6] escreve a este propósito esclarecedoramente o seguinte: “O reconhecimento tácito da obrigação nos precisos termos em que foi iniciada á penhora (cfr. art.º 773º nº 49, é um efeito cominatório pleno da omissão de pronúncia sobre o crédito. Tem-se por fictamente a dívida por confessada, embora apenas para efeitos daquele concreto processo executivo. Portanto não há aqui valor de aso julgado, mas um valor de preclusão, ou seja, de caducidade do direito de defesa quanto a uma questão concreta e apenas no âmbito de eficácia da execução pendente. Por isso, liberto do ferrolho do caso julgado, o debitor debitoris pode sempre impugnar em outra ação a “a existência do crédito ou alegar contra ele qualquer exceção”, como ensina Teixeira de Sousa. É o que, implicitamente, admite o nº 4 do artigo 777º: se vier a ser instaurada pelo exequente ou pelo adquirente execução própria contra o terceiro devedor, pode este, na competente oposição à execução impugnar ou excecionar o crédito, com as consequências que ali se determinam de verificação da respetiva inexistência. Compreende-se: a execução em questão não é de sentença, mas de título diverso de sentença – a notificação efetuada e a falta de declaração (cfr. artº 777º nº 3) – beneficiando o executado dos fundamentos gerais do artigo 731º.”[7] Entende-se que a omissão de declaração do terceiro devedor não o impede de, em momento posterior, em oposição à execução que seja instaurada com base em título executivo formado ao abrigo supra mencionado artigo, vir invocar fundamento de impugnação ou de exceção perentória que lhe fosse possível invocar na ação declarativa. Assim, não fica, precludida a dedução dos meios de defesa que o terceiro tenha contra a pretensão executiva, seja invocando facto extintivo, impeditivo ou modificativo, seja impugnando do facto constitutivo da obrigação.[8] Quer a doutrina quer a Jurisprudência tem vindo, com efeito, a entender que o reconhecimento da dívida resultante da inação do terceiro devedor do executado nos termos do citado nº 3, do artº 777º, assenta numa presunção, ilidível em sede de oposição à execução. Tal como se entendeu e decidiu nos Acórdãos do TRC de 18/7/2006, processo 1622/06, o Ac. do TRL de 23/11/2011, processo 1573-B/2002.L2-2, o Ac. do TRL de 12/5/2011, processo 2-C/2002.L2-2, bem como o Ac. do TRP de 02/02/2013, processo 71/07.9TBMCN-A.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt, entendimento que se afigura igualmente acolhido na sentença, quando se afirma que “ora, expressando o título uma confissão da dívida, se não ilidida a presunção, a mesma mantém-se”, a presunção de que o crédito existe, decorrente do silêncio do terceiro, é ilidível, podendo por isso o terceiro, uma vez executado, deduzir oposição à execução, invocando nela os meios de defesa que tenha contra o crédito reclamado. Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa[9] entendem que “Na execução que lhe for movida ao abrigo do nº3, o debitor debitoris que se tenha remetido ao silêncio pode, em sede de oposição à execução (art. 728º, nº1 e 731), impugnar a existência do crédito ou deduzir exceções perentórias contra o mesmo, com as consequências daí advenientes. É, pois, ilidível a presunção acerca da existência do crédito assente no silêncio do terceiro devedor (art. 773º, nº4), sendo admitido a invocar todos os meios de defesa que tenha contra a pretensão executiva, incluindo os que tinha à data da penhora e que então omitiu do devedor”. “Destarte, expressando o título uma confissão da dívida, se não ilidida a presunção, a mesma mantém-se.” Porém, se o embargante alegar e lograr provar factualidade com relevância para afastar a presunção, afastada a mesma, têm os embargos de proceder e a execução, incidental, de ser julgada extinta. Acresce que, tal como se referem os mesmos autores[10], “Caso a oposição á execução revele que, apesar do debitor debitoris, inexistia o crédito a que se reportava a notificação que lhe foi dirigida ao abrigo do nº 1 do artigo 773º, o mesmo responde, nos termos gerais, pelos danos causados ao exequente, liquidando-se a sua responsabilidade na própria execução, desde que o exequente deduza o pedido de indemnização na constatação à oposição (nº 4).” Ora no caso em apreço, o apelante na oposição que deduziu à execução invocou a inexistência do direito de crédito penhorado, no artigo 5º da p.i. Acontece que, (tal como decorre da consulta do processo eletrónico), porque o ora apelante se limitou a alegar a inexistência do crédito, sem concretizar factualmente a afirmação, tal levou a que o tribunal recorrido, usando dos poderes deveres de gestão processual viesse a proferir “despacho de aperfeiçoamento”, convidando o embargante a sanar a irregularidade, concretizando a matéria de facto “de onde se possa extrair a conclusão do artº 5º da pi” (inexistência do crédito), (convite que ocorreu já apos as partes se terem pronunciado quanto à dispensa da audiência prévia), ao qual o embargante correspondeu, vindo alegar em suma que, nunca teve qualquer relacionamento comercial com a embargada, nunca na qualidade de sócio da executada realizou qualquer operação financeira com tal sociedade, que nunca lhe emprestou dinheiro nem ao sócio, juntando documentos nomeadamente constituídos pelos “movimentos contabilísticos” da primitiva sociedade executada. Ora, constata-se que após contraditório da outra parte, o tribunal profere despacho saneador, conhecendo do mérito dos embargos, que julgou improcedentes, entendendo que os autos reuniam todos os elementos para tal, afirmando que, “o embargante veio referir que o crédito não existe porque não teve relações comerciais com a executada e não aparecerem movimentos contabilísticos de onde resulte o crédito, juntando inicialmente alguns documentos, vindo posteriormente a juntar outros, a pedido da embargada, de onde resulta (e o próprio embargante admite no requerimento de 26.09.2024) que afinal existem créditos ainda que possa ser de salários como o próprio embargante admite.” Sem analisar aquela documentação, o tribunal retira da confissão, que se adivinha meramente parcial, pois foi feita apenas em relação a salários em dívida, tratando-a como uma admissão da totalidade dos factos desfavoráveis ao embargante, contrários à versão dos factos por si alegados, quando a confissão respeita apenas a “salários em dívida”. A verdade é que não é irrelevante o valor da dívida objeto de confissão nestes autos (relativa a salários). Uma coisa é a dívida fictamente confessada no âmbito do primitivo processo executivo no total do valor do direito de crédito penhorado, outra é a prova que o executado possa fazer para afastar tal presunção. O tribunal a quo considerou que a confissão de existência de dívidas salariais, (sem apurar o valor das mesmas), importava confissão total da dívida exequenda. O valor da dívida salarial confessada mostra-se relevante para afastar a presunção, tendo necessariamente implicações na decisão final a proferir, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito. Acresce que ficou ainda por apurar a factualidade relativa à possível indemnização a se reporta o artº 777º nº 4 que foi peticionada pelo Embargado, a que aquele poderá ter direito, na procedência dos embargos. Dispõe o art. 595º nº1 al. b) CPC que o despacho saneador destina-se a: “(…) b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória“. Como refere Abrantes Geraldes [11]enquadram-se na previsão da norma as situações em que toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita por acordo ou documento; quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, por serem manifestamente insuficientes ou inócuos para apreciar a pretensão do autor ou a exceção deduzida pelo réu; quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental. Contudo, naquelas situações limite, em que concluída a fase dos articulados, o juiz conclui, com recurso aos dispositivos de direito probatório material ou formal, pela existência de um leque de factos que ainda permanecem controvertidos e que, de acordo com as diversas soluções plausíveis, mostram algum relevo para a decisão cumpre atender ao critério do art. 596º nº 1 CPC, ou seja, deve orientar a decisão segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. Também aqui Abrantes Geraldes [12]refere o seguinte: “apesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas”. Por sua vez, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, em anotação a esta norma escrevem o seguinte: (…) A antecipação do conhecimento do mérito pressupõe que independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente da mesma favorecer uma ou outra das partes. Tal acontecerá quando: a) toda a matéria esteja provada por confissão expressa ou tácita ou por acordo ou por documentos (…) b) quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com a soluções plausíveis da questão e direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito; se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum a as condições de procedência da ação, torna-se inútil a sua prova e por conseguinte inútil o prosseguimento da ação para a audiência final; mutatis mutandi quando se trate de apreciar de que forma os factos alegados pelo réu poderão interferir na decisão final, pois se tais factos, enquadrados na defesa por exceção, ainda que provados se revelam insuficientes ou inócuos para evitar a procedência da ação inexiste qualquer razão justificativa para o adiamento da decisão” . (sublinhado nosso). A jurisprudência vem entendendo que, será prematuro o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador quando a decisão apenas assenta numa das possíveis soluções da questão de direito. Existindo, na doutrina e na jurisprudência, soluções diferentes, no que respeita à questão em apreço, deve ser dada às partes a possibilidade de as discutirem e bem assim reunir no processo os necessários elementos para que possa ser acolhida uma ou outra das soluções plausíveis de direito. Assim sendo, a decisão do processo na fase do saneador-sentença só poderá suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência. Veja-se a titulo de exemplo o acórdão desta Relação, de 4.2.2019,[13] no qual se pode ler: “Apesar do juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas, impedindo o conhecimento do mérito em sede de despacho saneador.” Como se sabe, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. art.º 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Assim sendo, considerando o leque de factos que ainda permanecem controvertidos, considerando que a confissão do embargante não abrangeu a totalidade da dívida exequenda e devendo o tribunal orientar a decisão segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, atento o critério do art. 596º nº 1 CPC, mostra-se prematura a decisão do tribunal a quo no saneador, não contendo os autos todos os elementos para poder ser proferida decisão de mérito nesta fase processual, pelo que se impõe a revogação do despacho saneador, para permitir que os autos prossigam a tramitação adequada com a realização da audiência de julgamento para prova dos factos controvertidos nos articulados. Em face do exposto, o conhecimento das demais questões suscitadas no recuso mostra-se prejudicado.
V-DECISÃO Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando o despacho proferido e determinando que, em consequência, os autos prossigam a tramitação adequada ao apuramento da veracidade dos factos acima referidos, que se mostram controvertidos, tendo em consideração as várias soluções de direito possíveis. Custas pela Apelada. |