Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JORGE SEABRA | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE OBRIGAÇÕES INCUMPRIMENTO DECISÃO FINAL DA EXONERAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RP20210412866/14.7T8STS.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/12/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A recusa final da exoneração do passivo restante depende da verificação dos mesmos requisitos ou pressupostos que a recusa antecipada da exoneração, previstos no artigo 243º, do CIRE. II - A recusa da exoneração para efeitos do previsto no artigo 243º, n.º 1 al. a), do CIRE, depende da demonstração de um elemento objectivo – incumprimento pelo devedor de alguma das obrigações que lhe são consignadas pelo artigo 239º e prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência em razão desse incumprimento – e de um elemento subjectivo – dolo ou negligência grave do devedor. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 866/14.7T8STS.P1 - Juízo de Comércio de Santo Tirso – J5. Relator: Jorge Seabra 1º Juiz Adjunto: Desembargador Pedro Damião e Cunha 2º Juiz Adjunto: Desembargadora Maria de Fátima Andrade. * Sumário:……………………………… ……………………………… ……………………………… * I. RELATÓRIO:1. Mediante despacho proferido a 9.12.2020 foi recusada, a título de decisão final, a exoneração do passivo restante da devedora/insolvente B…, invocando-se, para o efeito, o disposto nos artigos 239º, n.º 4, alíneas a) e c), 243º, n.º 1, alínea a) e 244º, n.º 2, todos do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (ainda designado por CIRE). * 2. Inconformada, veio a insolvente interpor recurso de apelação, no qual ofereceu alegações e aduziu, a final, as seguintesCONCLUSÕES ……………………………… ……………………………… ……………………………… * 3. O credor “Banco C…, SA.” contra-alegou, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.* 4. Foram observados os vistos legais.Cumpre decidir. * II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO do RECURSO.Como resulta das conclusões do recurso – que, como é pacífico, delimitam o objecto do recurso e da actividade jurisdicional do tribunal ad quem – a questão a decidir é apenas a de saber se ocorrem os pressupostos legais para efeitos de recusa da exoneração do passivo restante, conforme decretado no despacho recorrido. * III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:Os factos que relevam à decisão são os seguintes (conforme constam documentalmente demonstrados dos autos): a) Por despacho proferido a 19.02.2015 (referência 348410711) foi fixado como rendimento disponível dos insolventes (marido e mulher, a ora Apelante) um salário mínimo nacional e meio por cada um; b) O aludido despacho foi notificado aos insolventes e ao seu Ilustre Mandatário (de ambos) com data de 3.03.2015 (referência 348410807); c) Por requerimento apresentado pelo Sr. Fiduciário, respeitante ao 1º ano de cessão – referência 12186637 – veio este informar que “1. Foi fixado o valor de três salários mínimos para a sobrevivência dos insolventes; 2. Analisado o modelo 3 de IRS de 2015, verificou-se que receberam acima do valor de retenção a quantia de € 679, 56; Já informou os insolventes bem como o seu distinto mandatário da situação.” c) O insolvente D… veio a falecer a 12.01.2017. d) A 11.01.2018 foi proferido despacho de extinção da instância incidental quanto ao devedor D…, por falecimento, ali se mencionando que “Atento o teor do despacho liminar de exoneração do passivo restante que fixou, para cada um dos insolventes, o valor de um salário mínimo e meio, nada a ordenar.” e) Posteriormente, e com referência aos relatórios anuais do fiduciário - referências 33294374 e 35100463 -, respeitantes aos 2º, 3º, 4º e 5º ano do período de cessão de rendimentos, veio o Sr. Fiduciário reiterar que “foi fixado o valor mensal de um salário mínimo e meio para a sobrevivência da insolvente B…” e concluir que “a quantia em dívida pelos cinco anos do período de exoneração do passivo restante ascende a € 11. 075, 46”. f) O Ilustre Mandatário da insolvente foi notificado deste último relatório, vindo, em síntese, alegar que nunca a insolvente se recusou a prestar qualquer informação e/ou colaboração com o Sr. Administrador de Insolvência e Fiduciário nomeado nos autos, que sempre entregou toda a documentação necessária, nomeadamente as declarações de rendimentos e comprovativos do Centro Nacional de Pensões dos montantes auferidos, que nunca foi notificada dos relatórios anuais subscritos pelo Sr. Fiduciário e, ademais, que a não entrega de valores à fidúcia não se deveu a nenhuma sua falta culposa ou dolosa, na medida em que sempre entendeu beneficiar de 3 SMN – nunca tendo sido notificada (ela e/ou o seu Mandatário) do despacho que alterou esse valor para um e meio do SM -, sendo certo, ainda, que, após o falecimento do seu marido passou a suportar em exclusivo todas as despesas inerentes à sua sobrevivência com um rendimento inferior ao que antes dispunha. Concluiu, assim, no sentido de apenas dever à fidúcia apenas o valor de € 556, 80 (atinente ao 1º ano de cessão), requerendo um prazo não inferior a 15 dias para o pagamento desta quantia. g) Ouvido o fiduciário e os credores, que se pronunciaram sobre o anterior requerimento, veio a insolvente oferecer novo requerimento onde manteve o antes por si alegado, dispondo-se a fazer prova documental de que todos os rendimentos auferidos foram despendidos em “despesas elementares e necessárias à sobrevivência minimamente condigna”, concluindo que a não entrega de valores à fidúcia não se deveu a nenhuma falta culposa ou dolosa. Por último, requereu que fosse dispensada do pagamento das quantias apuradas, com excepção da quantia relativa ao 1º ano de cessão. * III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:Como é consabido, o actual CIRE instituiu medidas excepcionais de protecção do devedor pessoal singular, sendo uma das mais relevantes a exoneração do passivo restante. Através deste instituto, após o património do devedor pessoa singular ter sido liquidado para pagamento aos credores, ou decorridos cinco anos após o encerramento do processo, as obrigações que, apesar dessa liquidação ou após o decurso do dito prazo, não puderem ser satisfeitas, em lugar de subsistirem, são tidas como extintas - artigo 235º do CIRE. De facto, sendo o devedor pessoa singular, pretendeu o legislador conceder-lhe a possibilidade de exoneração (extinção) das suas obrigações perante os credores da insolvência, que não puderam ser liquidadas no decurso do processo ou nos cinco anos subsequentes ao seu encerramento, em ordem a evitar que fique vinculado ao pagamento de tais obrigações até ao limite do prazo de prescrição, prazo este que, nosso direito civil, pode, como é consabido, atingir os vinte anos - artigo 309º do Cód. Civil. Assim, após a liquidação do seu património no processo de insolvência ou após o decurso de cinco anos após o encerramento do processo, o devedor tem a possibilidade de um «fresh start», de recomeçar de novo, sem o peso das obrigações que ainda permaneçam por liquidar. Neste sentido, refere ASSUNÇÃO CRISTAS que “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objectivo é que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações.” [1] Esta solução teve por inspiração, como tem sido salientado pela doutrina e jurisprudência, a legislação dos Estados Unidos (discharge do Bakruptcy Code) e a legislação alemã (Rechstschuldbrefeiung da Insolvenzordnung), permitindo ao devedor, sob certas condições e em função do seu comportamento sério e honesto no denominado período da cessão, “a possibilidade de não viver o resto da vida (ou, pelo menos, até ao decurso do prazo de prescrição) sob o peso de dívidas que tornariam impossível o retomar de uma vida financeiramente equilibrada.” [2] A exoneração do passivo restante resulta, necessariamente, de dois despachos, sendo o primeiro, denominado despacho inicial, que determina a obrigação de cessão do rendimento disponível pelo período de cinco anos após o encerramento do processo (artigo 237º, al. b) do CIRE), e o segundo, denominado de despacho de exoneração, que determina, a final, a definitiva concessão da exoneração, decorrido o mencionado prazo de cinco anos e verificando-se o integral cumprimento de todas as obrigações constantes do despacho inicial (artigos 237º, al. b), 244º e 245º, n.º 1 do CIRE). Com efeito, o despacho inicial de acolhimento do pedido de exoneração corresponde a uma declaração de que a exoneração poderá vir a ser concedida, passados cinco anos do fim do processo de insolvência, desde que o devedor cumpra as condições nele assinaladas e, em especial, dê cumprimento à obrigação de cedência do rendimento disponível que venha a auferir no aludido período de cinco anos, conforme determinado no mesmo despacho inicial, sendo esta, aliás, a sua obrigação mais relevante naquele período da cessão. Neste sentido, a admissão do pedido não significa que a exoneração esteja concedida ou que o venha ser necessariamente; Significa tão só que (i.) se não for aprovado e homologado nenhum plano de insolvência e (ii.) se durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o devedor/insolvente der cumprimento às várias imposições previstas na lei, será exonerado das suas obrigações perante os credores e ainda por satisfazer. A decisão final sobre a concessão ou não da exoneração só virá, portanto, a ter lugar depois de decorrido esse período (sem prejuízo da sua cessão antecipada, nas condições previstas no artigo 243º do CIRE), na decisão final do incidente de exoneração, conforme prevê o artigo 244º do mesmo CIRE. [3] Relativamente à cessão do rendimento disponível do devedor a favor do fiduciário, não obstante a controvérsia sobre a sua natureza, é posição maioritária da doutrina que se trata de uma cessão de créditos futuros, destituída de fundamento contratual ou negocial, mas determinada «ex lege» por via de decisão judicial, sendo-lhe, aplicáveis, pois, os normativos previstos no artigo 577º e seguintes do Código Civil. [4] A cessão é estabelecida, como se referiu, no despacho inicial, despacho que é proferido na assembleia de apreciação do relatório do administrador, ou nos dez dias subsequentes - artigo 239º, n.º 1 do CIRE. Esse despacho determina que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, designada por fiduciário, a quem caberá, posteriormente, proceder satisfazer os créditos sobre a insolvência com base nesse rendimento. Assim, os rendimentos que o insolvente venha a adquirir após o encerramento do processo de insolvência transferem-se para o fiduciário, independentemente do assentimento dos devedores desses rendimentos (artigo 577º, n.º 1 do Cód. Civil), transmitindo-se igualmente as garantias e outros acessórios dos créditos que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (artigo 582º, n.º 1 do mesmo Código). Nesta matéria, a lei, ao mesmo tempo que dá ao insolvente um benefício significativo [exoneração do passivo não satisfeito no final do período da cessão], impõe, em contrapartida, um conjunto estrito de requisitos e cria um regime garantístico para os credores, retirando ao devedor não apenas a possibilidade de dispor do seu património, o que resultaria das regras gerais, mas também a sua titularidade. Em suma, como refere A. Cristas, “A transmissão dos créditos para o fiduciário é o “preço” que o devedor paga para obter a futura exoneração.” [5] Dito isto, no caso dos autos, o que se discute concretamente é saber se ocorrem os fundamentos para a recusa da exoneração decretada pelo Tribunal a quo no termo do período da cessão, à luz do preceituado no artigo 244º, n.º 2, do CIRE. Nesta matéria, preceitua o n.º 1 do artigo 244º, do CIRE, que “ Não tendo havido lugar a cessão antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência. “ Por seu turno, quanto à recusa da exoneração, preceitua o n.º 2 do mesmo normativo que “A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.” Como assim, à luz do citado artigo anterior (artigo 243º, n.º 1 al. a), do CIRE), a recusa da exoneração do passivo restante depende, em primeiro lugar, de requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, ou do fiduciário [não podendo ser decretada oficiosamente], em segundo lugar, da verificação de um elemento objectivo, qual seja a violação pelo insolvente de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, desde que dessa violação decorra prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, e, ainda, um elemento subjectivo, qual seja o dolo ou a negligência grave do devedor/insolvente no incumprimento das suas obrigações. Sem que estes pressupostos cumulativos se mostrem verificados no caso concreto não é, assim, possível decretar a recusa da exoneração do passivo restante, razão porque, como se entende de forma pacífica, o incumprimento pelo insolvente de alguma das obrigações previstas no artigo 239º, nomeadamente da entrega das quantias devidas ao fiduciário no período da cessão, sem que se mostre demonstrado que esse incumprimento foi doloso ou gravemente negligente, ou, ainda, sem que se mostre demonstrado que esse incumprimento resulta em prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, não é bastante para que seja decretada a recusa da exoneração. [6] Note-se, no entanto, que, para efeitos de recusa da exoneração do passivo restante, não é suposto ou exigível que o devedor tenha consciência do prejuízo causado aos credores ou actue com intenção de causar prejuízos aos mesmos; Basta, ao invés, que exista incumprimento pelo devedor de alguns dos seus deveres consignados no artigo 239º, que esse incumprimento lhe seja imputável a título de dolo ou negligência grave e, ainda, que desse incumprimento decorra um prejuízo para os credores da insolvência, prejuízo este que não pode ser irrelevante ou insignificativo. No caso dos autos, o tribunal de 1ª instância decretou aquela recusa, desde logo, com base no preceituado no artigo 239º, n.º 4, alínea a), do CIRE. Este último normativo prevê que “Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e prazo em que isso lhe seja requisitado.” Quanto a este fundamento invocado pelo tribunal de 1ª instância não vemos, com o devido respeito, que a factualidade provada consinta a conclusão firmada quanto à verificação da aludida hipótese. De facto, à luz da factualidade provada, não se vislumbra que a insolvente tenha ocultado ou dissimulado algum rendimento obtido ou, ainda, que não tenha informado o tribunal e/ou o fiduciário sobre os seus rendimentos e o seu património, pois que não resulta daquela factualidade que à insolvente (ou ao seu Mandatário) tenha sido solicitada, em termos regulares e inequívocos, pelo Sr. Fiduciário ou pelo Tribunal alguma informação ou elemento atinente aos seus rendimentos e/ou património e que a mesma não tenha prestado. Ao invés, o que emerge da factualidade provada é que o Sr. Fiduciário teve livre acesso aos rendimentos auferidos pela insolvente, tanto que, com base em tais elementos, elaborou os relatórios atinentes aos cinco anos do período da cessão, dando nota que a insolvente terá feito seu, nesse período, um valor total de € 11. 075, 46, pois que, em função do rendimento indisponível (excluído da cessão) fixado no despacho inicial em 1 SMN e meio, para cada um dos insolventes, aquele diferencial (valor acima do rendimento indisponível) deveria ter sido entregue à fidúcia. Por outro lado, não há notícia nos autos de algum outro rendimento auferido pela insolvente (para além da sua pensão) e que a mesma tenha omitido ou dissimulado ou, ainda, de algum outro património que a mesma tenha também omitido ou escamoteado ao tribunal ou ao fiduciário. Nesta perspectiva, e com o devido respeito, não se vislumbra fundamento para, no caso dos autos, ter por preenchida a hipótese da alínea a) do n.º 4, do artigo 239º e para, nesse contexto, recusar a exoneração do passivo restante. Dito isto, além desta alínea a) do n.º 4 do artigo 239º, do CIRE, invocou, ainda, o Tribunal de 1ª instância, para efeitos de recusa da exoneração passivo restante, o preenchimento da hipótese a que alude a alínea c), do mesmo normativo. Este último normativo reza o seguinte: “Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.” No caso dos autos, em razão do valor fixado no despacho inicial (que não foi objecto de impugnação), a insolvente estava obrigada a entregar imediatamente ao fiduciário a parte do seu rendimento mensal que excedesse o rendimento indisponível fixado (excluído da cessão), ou seja, a insolvente teria que proceder à entrega ao fiduciário de todos os rendimentos mensais por si auferidos que excedessem o equivalente a 1 SMN e meio, pois que foi esta a quantia que, conforme consta do despacho inicial, foi fixada como a bastante para ocorrer às suas despesas essenciais e imprescindíveis a uma vida condigna e que, repete-se, não foi posto em causa. Aqui chegados, cumpre referir, em primeiro lugar, que, compulsadas as alegações e as conclusões do recurso, a insolvente/apelante não coloca em crise que, de facto, durante os cinco anos de cessão, reteve indevidamente a quantia total de € 11. 075, 46, quantia que, assim, deveria ter entregue, de imediato, ao fiduciário, ou seja, em cada um dos meses em que recebeu para além do valor equivalente a 1 SMN e meio. Em segundo lugar, nesta sede, cumpre referir, em sentido contrário ao que defende de forma confusa a apelante/insolvente, a parte do seu rendimento mensal que teria que entregar ao fiduciário sempre foi, desde o início (desde a prolação do despacho inicial), o que excedesse o equivalente a 1 SMN e meio, sendo certo que a insolvente e o seu Ilustre Mandatário foram notificados desse despacho inicial e nunca foram notificados de nenhuma outra decisão do tribunal em sentido contrário e, sobretudo, nunca foram notificados no sentido de que a insolvente teria “ direito “, como ora sustenta, ao equivalente a 3 SMN… ! Nesse conspecto, a alegação da insolvente no sentido de que ficou convicta ou que entendeu que beneficiava do equivalente a 3 SMN é, em absoluto, destituída de qualquer sentido, quase roçando, diga-se, a litigância de má-fé, pois que o despacho inicial (que foi notificado à insolvente e ao seu Ilustre Mandatário) é perfeitamente claro e inequívoco quanto ao seu conteúdo, qual seja, o de que cabe a cada um dos insolventes (a ora apelante e o seu marido) 1 SMN e meio… A leitura, a interpretação ou o entendimento da insolvente é, portanto, nesta matéria, com o devido respeito, irrelevante, pois que o mesmo, não só não colhe qualquer apoio nos elementos que constam dos autos, como, ainda, estes o afastam de forma inequívoca. Nesta sede, ainda, e em terceiro lugar, cumpre referir também que nunca ocorreu qualquer alteração do montante do rendimento disponível (excluído da cessão) – repete-se, 1 SMN e meio -, nomeadamente com o falecimento do marido da insolvente… Com efeito, tendo no despacho inicial (como já se referiu) sido fixado com rendimento excluído da cessão, para cada um dos insolventes, o valor de 1 SMN e meio, é evidente que, após o falecimento do marido da insolvente, esta última continuou a beneficiar, tal como fixado inicialmente, apenas e só, como rendimento excluído da cessão, do aludido rendimento equivalente a 1 SMN e meio e nunca, como de forma descontextualizada, sustenta a apelante de 3 SMN…! Por conseguinte, não se vê que esclarecimentos ou informações suplementares deveriam ter sido prestados à insolvente na sequência do falecimento do seu marido a quanto ao valor do seu rendimento excluído da cessão. Todavia, mesmo a admitir-se, por dever de raciocínio e cautela, mas sem conceder (pois que, como se referiu, o despacho inicial não permite quaisquer dúvidas quanto a seu conteúdo e quanto ao rendimento da insolvente que ficaria excluído da cessão – 1 SMN e meio), que, após o falecimento do seu marido, possa a insolvente/apelante ter ficado com alguma dúvida quanto ao rendimento de que beneficiaria a partir dessa data, o que se justificava era, então, naturalmente, que a mesma colocasse essa sua questão ou dúvida pessoal perante o Tribunal e por forma a poder, de forma séria, continuar a dar cumprimento ao antes decidido, o que não fez, e não que, à revelia de qualquer decisão judicial, decidisse reter unilateralmente quantias, que não podia deixar de saber, à luz do despacho inicial que lhe foi notificado, que não podia reter e sob o pretexto de que as mesmas eram indispensáveis para ocorrer a despesas essenciais à sua “sobrevivência” condigna. Ora, neste contexto, as (auto) denominadas despesas em “bem essenciais” ou “indispensáveis à sobrevivência condigna” da insolvente são, com o devido respeito, totalmente irrelevantes, não colhendo, pois, sentido fazer qualquer prova (pessoal ou documental) sobre as mesmas, como defende a apelante/insolvente nas suas alegações. Com efeito, e com o devido respeito, a insolvente não pode, durante o período de cessão, fixar em seu favor, de forma unilateral e à revelia de qualquer decisão judicial, os rendimentos que, ela própria, decide/julga que “são indispensáveis à sua sobrevivência”, pois que isso significaria fazer pura «letra morta» da anterior decisão judicial que a mesma conhecia, pois que lhe foi notificada oportunamente. Concede-se, também nesta sede, por dever de raciocínio, que o valor antes fixado (1 SMN e meio) pudesse, em face do falecimento do marido da insolvente, eventualmente, ser alterado para um outro valor superior ao que foi fixado inicialmente; Todavia, a ser assim, o que a insolvente podia e devia, obrigatoriamente, fazer era suscitar perante o Tribunal essa alteração, justificando-a de forma cabal e fazendo a devida prova dessa alteração da sua situação económica, e não, como fez, em termos grosseiramente negligentes, decidir, repete-se, unilateralmente e contra a decisão judicial cujo conteúdo conhecia desde a prolação do despacho inicial (e sobre o qual nunca suscitou qualquer dúvida ou esclarecimento perante o Tribunal), reter quantias a que não podia deixar de saber, em termos peremptórios, que não tinha direito, pois que as deveria entregar ao fiduciário e para pagamento dos créditos sobre a insolvência, conforme decidido no aludido despacho inicial de exoneração. Nesta perspectiva, a supra descrita conduta assumida pela insolvente/apelante no período da cessão traduz, em nosso julgamento, e com o devido respeito, uma grosseira displicência face aos deveres que lhe estavam cometidos naquele período, nomeadamente, no que ora releva, do dever de entrega dos seus rendimentos mensais na parte excedente do seu rendimento indisponível (artigo 239º, n.º 4 alínea c), do CIRE), claramente demonstrativo de uma actuação que, no mínimo, tem de qualificar-se como grave negligência. Por outro lado, ainda, quanto ao prejuízo que deste incumprimento decorre para a satisfação dos créditos sobre a insolvência temo-lo por indiscutido, pois que a não entrega de tal valor (que é significativo) prejudica negativamente a massa insolvente e, reflexamente, a satisfação daqueles créditos à custa da massa. Sendo assim, face à conduta gravemente negligente assumida pela insolvente ao nível do incumprimento do dever consignado no artigo 239º, n.º 4, alínea c), do CIRE, estando em causa a retenção de um valor significativo (superior a 15 SMN), não tendo a insolvente, mesmo quando confrontada com esse incumprimento, proposto sequer o pagamento de tal quantia, nem, ainda, sequer o seu pagamento faseado, cremos revelar-se equilibrada e proporcional, no caso, a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, não se vislumbrando, pois, que tal decisão comporte alguma violação do princípio constitucional da proporcionalidade ou adequação, tal como invocado pela apelante. Por outro lado, ainda, em nosso ver, não releva para o caso e para o dito princípio da proporcionalidade, ao contrário do que defende a insolvente/apelante, a circunstância de os principais credores serem entidades financeiras e/ou bancárias, sendo certo que não se nos afiguram constituírem razões substancialmente válidas para discriminar negativamente estes outros credores a sua superior capacidade ou solvabilidade económica. Por conseguinte, mostrando-se, em nosso julgamento, verificados os pressupostos cumulativos (objectivos e subjectivos) exigidos pelos artigos 239º, n.º 4, alínea c), 243º, n.º 1, alínea a) e 244º, n.º 2, do CIRE, a decisão recorrida é de manter e ainda que não se acompanhe a mesma na parte em que deu por verificada a hipótese prevista no n.º 4, alínea a), do artigo 239º, do citado diploma legal. Improcede, assim, a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida que decretou a recusa da exoneração do passivo restante à insolvente. ** IV. DECISÃO:À luz do antes exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto pela insolvente B…, confirmando o despacho recorrido, ainda que por fundamentos não inteiramente coincidentes. ** Custas pela insolvente/apelante, pois que ficou vencida (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.** Porto, 12.04.2021Jorge Seabra Pedro Damião e Cunha Fátima Andrade. (O antecedente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico) ___________________ [1] ASSUNÇÃO CRISTAS, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, Revista “Themis”, Edição Especial, 2005, pág. 167 e CATARINA SERRA, “O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução”, 2010, pág. 133. [2] ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2015, pág. 528. [3] A. CRISTAS, op. cit., pág. 169-174 e MARIA do ROSÁRIO EPIFÂNIO, “Manual de Direito da Insolvência“, 6ª edição, pág. 324-330. [4] Vide, neste sentido, por todos, A. CRISTAS, op. cit., pág. 176, A. SOVERAL MARTINS, op. cit., pág. 544 e LUIS CARVALHO FERNANDES, JOÃO LABAREDA, “CIRE, anotado”, Quid Iuris, 2008, pág. 789. [5] A. CRISTAS, op. cit., pág. 180; No mesmo sentido, ainda, L. CARVALHO FERNANDES, op. cit., pág. 789-790 e A. SOVERAL MARTINS, op. cit., pág. 544. [6] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 9.04.2019, relator ANA PAULA BOULAROT, disponível in www.dgsi.pt. |