Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4135/22.0T8VLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: ADMINISTRADOR DO CONDOMÍNIO
AÇÃO PARA COBRANÇA DE DÍVIDAS
RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR
Nº do Documento: RP202312194135/22.0T8VLG-A.P1
Data do Acordão: 12/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A estipulação do valor em dívida por referência ao valor do indexante dos apoios sociais (nº 5 do art.º 6º do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro, na redação da Lei nº 8/2022, de 10 de janeiro) funciona como uma limitação da obrigação imposta ao administrador em intentar ação de cobrança das dívidas.
II - Ou, noutra perspetiva, como uma delimitação da responsabilidade: o administrador só incorre em responsabilidade civil por omissão no caso de o valor das quotas em dívida igualar ou for superior ao indexante de cada ano civil.
III - A estipulação do valor em dívida por referência ao valor do indexante dos apoios sociais pretende referir-se à responsabilidade do administrador em propor a ação, e não às condições de exequibilidade do título.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 4135/22.0T8VLG-A.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. Em 2022, o Condomínio ... instaurou execução contra AA, BB e CC, pretendendo haver deles, na qualidade de condóminos, o pagamento de quotas de condomínio.
No que toca à Executada AA, pretendia-se o pagamento “da quota ordinária e extraordinária de Março de 2022 a Novembro de 2022, no valor de € 445,35”. [1]
Em 03/04/2023, o Exequente veio suscitar a cumulação de execuções contra a executada AA. Desta feita, pretendia-se o pagamento coercivo “das quotas mensais ordinárias referentes a Dezembro de 2022 a Março de 2023 no valor de € 106,44”. [2]
Em 17/04/2023, a M.mª Juíza decidiu:
«Como resulta do disposto no nº 5 do art.º 6º do D.L. 268/94, foi introduzida uma limitação à cobrança judicial, só havendo lugar à mesma quando o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais no respetivo ano civil, que em 2023 é de € 480,43.
Sendo o valor das quotas em dívida de € 106,44 não podia o exequente deitar mão da presente execução para cobrar a referida quantia, ainda que em cumulação.
Por tudo o exposto e ao abrigo do disposto no art.º 726º nº 2 al. b) indefiro a requerida cumulação de execuções.»

2. Inconformado com tal decisão, dela apelou o Exequente, formulando as seguintes conclusões:
«I. Pelo presentes Recurso, recorre-se de direito do Despacho Liminar proferido ao abrigo do artigo 726.º n.º 2 al. b) do CPC, por violação dos artigos 6.º n.º 5 do Decreto-lei 268/94, de 25 de outubro, e artigos 18.º e 20.º da CRP.
II. O Tribunal Recorrido entendeu que, com a entrada em vigor da Lei n.º 8/2022 de 10 de janeiro, e a redação dada ao artigo 6.º do Decreto-lei 268/94, de 25 de outubro, apenas podem ser judicialmente exigidas dos condóminos faltosos através da ação executiva, dívidas de condomínio que ultrapassem o Indexante dos Apoios Sociais para o ano civil em curso.
III. Ao contrário do entendimento recorrido, nos termos n.º 5 do aludido artigo 6.º, o administrador do condomínio deverá, sob pena de ser responsabilizado pelos condóminos, executar as dívidas dos condóminos faltosos nos 90 dias contados do primeiro incumprimento, a menos que seja deliberada a sua não instauração, e o valor da dívida seja superior ao IAS para o ano em curso – é o que resulta, com a devida vénia, da evolução da norma no processo legislativo, da letra da norma e do espírito da lei.
Sem prescindir,
IV. O entendimento do Tribunal Recorrido impõe uma limitação do direito fundamental de acesso aos tribunais e à justiça pelo condomínio credor, violando por consequência o artigo 18.º e 20.º da CRP, de forma completamente injustificada e desproporcionada, pois que determinará que o credor tenha que suportar o incumprimento do devedor até que determinada quantia pecuniária, que poderá variar de ano para ano, seja ultrapassada, potenciando que quando exigido judicialmente o pagamento, o devedor não tenha meios financeiros e/ou económicos para cumprir a dívida, fazendo com que a dívida exequenda, mas também os custos associados e decorrentes da cobrança judicial da mesma, aumentem exponencialmente, determinando o empobrecimento injustificado quer de quem cobra a dívida, como de quem a terá que pagar.
V. Nestes termos, será inconstitucional, por violação dos artigos 18.º e 20.º da CRP, o n.º 5 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 268/94 de 25 de outubro, na redação dada pela Lei 8/2022 de 10 de janeiro, quando interpretada no sentido de que o administrador de condomínio só poderá cobrar judicialmente as dívidas de condomínio aos condóminos faltosos quanto o valor da dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais no respetivo ano civil.
Nestes termos e nos melhores de direito, que o douto suprimento de Vs. Exas. acolherão, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogado o despacho de indeferimento liminar que indeferiu a cumulação de execuções, substituindo-a por outra que admita a cumulação requerida, pois assim se fará inteira e já acostumada JUSTIÇA»

3. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, as conclusões suscitam as seguintes questões:
● Se houve erro de julgamento na interpretação do nº 5 do art.º 6º do Decreto-Lei n.º 268/94
● Em caso negativo, se tal preceito padece de inconstitucionalidade, por violação do art.º 18º e 20º da CRP.

4.1. Erro na interpretação do nº 5 do art.º 6º do Decreto-Lei n.º 268/94, na redação atual, introduzida pela Lei nº 8/2022, de 10 de janeiro
O Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro pretendeu, entre outros aspetos conseguir o “objetivo de procurar soluções que tornem mais eficaz o regime da propriedade horizontal, facilitando simultaneamente o decorrer das relações entre os condóminos e terceiros” (cf. o seu preâmbulo).
Na sua versão original, o art.º 6º, sob a epígrafe “dívidas por encargos de condomínio”, tinha a seguinte redação:
1 - A ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.
2 - O administrador deve instaurar ação judicial destinada a cobrar as quantias referidas no número anterior.
A Lei nº 8/2022, de 10 de janeiro, procedeu à revisão do regime da propriedade horizontal e alterou determinados preceitos do Código Civil, bem como do Decreto-Lei n.º 268/94.
Em particular, alterou o art.º 6º, nos seguintes termos:
1 - A ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições a pagar ao condomínio menciona o montante anual a pagar por cada condómino e a data de vencimento das respetivas obrigações.
2 - A ata da reunião da assembleia de condóminos que reúna os requisitos indicados no n.º 1 constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.
3 - Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante, bem como as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio.
4 - O administrador deve instaurar ação judicial destinada a cobrar as quantias referidas no n.º 1 e 3.
5 - A ação judicial referida no número anterior deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino, salvo deliberação em contrário da assembleia de condóminos e desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respetivo ano civil.
O recurso suscita, pois, a interpretação do nº 5 deste art.º 6º resultante desta alteração.
A M.mª Juíza entendeu que o preceito impôs um novo pressuposto à cobrança judicial das dívidas por encargos de condomínio, ou seja, a ação só poderia ser intentada se o valor em dívida for igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais no respetivo ano civil. [3]
Começando pela letra da lei, o art.º 6º constitui uma norma complexa, na medida em que estatui sobre matérias diversas, umas de índole substantiva, outras adjetivas. Assim:
● A epígrafe do preceito estabelece o âmbito, ou seja, regula sobre as dívidas por encargos de condomínio.
● O nº 2 confere força executiva à ata da reunião da assembleia de condóminos para efeitos de reagir contra o proprietário que deixar de pagar.
● No nº 1 estabelecem-se os requisitos para que essa ata tenha força executiva - a ata só constituirá título executivo se contiver o montante anual a pagar por cada condómino e a data de vencimento das respetivas obrigações (condições de exequibilidade).
● No nº 3 refere-se que se consideram abrangidos pelo título executivo os juros de mora e as sanções pecuniárias. Contudo, também estabelece uma condicionante: os juros e sanções só integrarão o título executivo se (“desde que”) estiverem aprovados em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio.
● Depois, no nº 4 impõe-se um comando ao administrador – é ele quem tem de instaurar a ação judicial para cobrar as quantias em dívida.
● Por fim, no nº 5 refere-se que essa ação judicial deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino, salvo deliberação em contrário da assembleia de condóminos e desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respetivo ano civil.
Daqui decorre que: (i) a ação judicial tem de ser instaurada no prazo de 90 dias a seguir ao primeiro incumprimento; (ii) só não o será se a assembleia tiver deliberado em contrário; (iii) a ação judicial só terá de ser instaurada nos 90 dias no caso em que o valor em dívida tenha já um montante igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respetivo ano civil.
Duas hipóteses se podem prefigurar:
i. a limitação do valor em dívida reporta-se à obrigação do administrador em instaurar a ação;
ii. a limitação do valor em dívida reporta-se à exequibilidade do título.
Em nosso entender, estamos perante a 1ª hipótese. A estipulação do valor em dívida por referência ao valor do indexante dos apoios sociais pretende referir-se à responsabilidade do administrador em propor a ação, e não às condições de exequibilidade do título.
Em termos gramaticais, o nº 5 do art.º 6º constitui uma oração subordinada adverbial condicional que, como se sabe, exprime condição ou uma hipótese. [4]
Assim, a oração subordinada (“desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respetivo ano civil”) tem de ser perspetivada em função da oração subordinante (“A ação judicial referida no número anterior deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino”).
Não faria sentido que esta oração subordinada do final do nº 5 estivesse a completar o sentido de uma outra oração (subordinante), designadamente das contempladas nos números 2 e 3 do preceito que são as que se referem à força executiva do título.
Cremos que esta interpretação é também a que melhor se enquadra no elemento sistemático de interpretação.
A Lei nº 8/2022 procedeu à revisão do regime da propriedade horizontal olhando-a como um todo, pelo que além do Decreto-Lei n.º 268/94, alterou também preceitos do Código Civil (CC) e do Código do Notariado.
No que toca às funções do administrador do condomínio foram introduzidas inovações em termos de maior responsabilização.
Assim, nos termos da atual redação do art.º 1436º do CC, compete ao administrador exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas, incluindo os juros legais devidos e as sanções pecuniárias fixadas pelo regulamento do condomínio ou por deliberação da assembleia (nº 1 al. f).
E, no nº 3 desse preceito, ficou expressamente consignado que o administrador de condomínio que não cumprir as funções que lhe são cometidas neste artigo, (…) é civilmente responsável pela sua omissão, sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal, se aplicável.
Certamente que o legislador não desconhece que existem quotas mensais de condomínio de valor que se pode considerar “irrisório” (dívidas de pequeno valor), pelo que a posição dos administradores ficaria gravemente comprometida se tivessem de instaurar ações judiciais por todas e quaisquer quotas, independentemente do seu valor mensal, sob pena de incorrerem em responsabilidade civil. Além dos congestionamentos que uma tal imposição provocaria nos tribunais. [5]
Nessa medida, a estipulação do valor em dívida por referência ao valor do indexante dos apoios sociais funciona como uma limitação da obrigação imposta ao administrador em intentar ação de cobrança das dívidas.
Ou, noutra perspetiva, como uma delimitação da responsabilidade: o administrador só incorre em responsabilidade civil por omissão no caso de o valor das quotas em dívida igualar ou for superior ao indexante de cada ano civil.
Face ao exposto, conclui-se assistir razão à Recorrente, tendo existido erro na interpretação da lei.

4.2. Procedente esta questão, fica prejudicado o conhecimento da questão da (in)constitucionalidade.

5. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra, que não seja de indeferimento pela razão apontada.
Sem custas, face ao provimento do recurso e ausência de contra-alegações.

Porto, 19 de dezembro de 2023
Isabel Silva
António Paulo Vasconcelos
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Consultado o requerimento executivo, quanto a esta Executada, era o seguinte o valor total em dívida: € 1.224,87 a título de capital + € 8,53 de juros moratórios + 369,00 a título de penalidade por incumprimento estipulado em assembleia de condóminos.
[2] Consultado o requerimento executivo, trata-se agora do valor total das quotas em dívida, acrescidas de juros de mora, bem como de € 369,00 a título de penalidade por incumprimento estipulado em assembleia de condóminos, tudo perfazendo o valor global em execução de € 476,66.
[3] Que em 2023 é de € 480,43.
[4] «As conjunções subordinativas estabelecem uma relação de dependência entre duas orações, uma subordinante e uma subordinada, tendo esta última a função de completar o sentido da primeira (a subordinada depende da subordinante e, regra geral, pode ser anteposta)», podendo ser causais, temporais, condicionais, etc. - in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/conjuncoes-e-preposicoes/34609
[5] Pode ler-se na exposição de motivos do Projeto de Lei n.º 718/XIV/2.ª, que deu origem à Lei nº 8/2022: «São evidentes as crescentes exigências que se apresentam a quem vive, trabalha ou simplesmente é proprietário de frações autónomas em prédios em regime de propriedade horizontal, bem como as idênticas exigências que se colocam a quem, pessoa singular ou coletiva, tem a seu cargo a administração dos respetivos condomínios. Muitos dos condomínios apresentam um elevado número de frações, o que, só por si, torna mais complexa a administração das partes comuns e, consequentemente, as deliberações acerca dos encargos de conservação e fruição que devem ser pagas por todos os condóminos. Tal realidade contribui, muitas vezes, para a criação de inúmeros obstáculos para quem administra os condomínios, o que, consequentemente, potencia o atraso nas decisões e, por isso, a deterioração dos prédios, acarretando prejuízo para todos os condóminos, nomeadamente prejuízos inerentes ao acréscimo de despesas futuras na recuperação dos mesmos. (…)
Depois, o presente Projeto-Lei introduz mecanismos facilitadores da convivência em propriedade horizontal, nomeadamente agilizando procedimentos de cobrança, os quais a administração do condomínio pode e deve concretizar no sentido de responder às necessidades dos condóminos, de forma mais célere e eficaz.
Pretende-se também conferir um maior grau de responsabilidade, por um lado, aos próprios condóminos e, por outro lado, a quem administra o condomínio.
O diploma pretende ainda contribuir para a pacificação da jurisprudência que é abundante e controversa a propósito de algumas matérias, como, por exemplo, os requisitos de exequibilidade da ata da assembleia de condóminos, a legitimidade processual ativa e passiva no âmbito de um processo judicial e a responsabilidade pelo pagamento das despesas e encargos devidos pelos condóminos alienantes e adquirentes de frações autónomas, colocando fim, neste último aspeto, à vasta e sobejamente conhecida discussão acerca das características de tais obrigações.» - disponível em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c6379395953565a4d5a5763765247396a6457316c626e527663306c7561574e7059585270646d4576596d45354e5759354e5745744e324d334f5330305a4745794c54686c4e574d74596a59775a544e6c4f54417a4e474d774c6d527659773d3d&fich=ba95f95a-7c79-4da2-8e5c-b60e3e9034c0.doc&Inline=true