Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
892/22.2T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
NÃO USO DO LOCADO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP20240116892/22.2T8PRD.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio (…) d) o não uso do locado por mais de um ano (…). Tal noção remete-nos, em termos de normalidade das coisas, para um conceito de “justa causa subjetiva”, na medida em que envolve um juízo de censura ao arrendatário.
II- O caso de força maior capaz de impedir a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na al. d) do n.º 2 do art.º 1083.º, terá de consistir numa circunstância exterior ao arrendatário, mas que o impede de usar o locado, habitá-lo, ocupá-lo, etc.
III – O facto de o autor/senhorio ter recebido as rendas do locado, pagas mensalmente pela apelante, mormente desde que a ré nele deixou de ter a sua residência, que um normal cidadão normal, colocado na posição da ré/apelante, tivesse por tal razão criado legítima convição de que o autor/senhorio jamais iria interpor uma ação para que fosse decretada a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no não uso por mais de um ano.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 892/22.2 T8PRD-P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Paredes - Juiz 1

Recorrente – AA
Recorrido - BB

Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Rodrigues Pires
Desemb. Márcia Portela




Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)


I BB, intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Paredes a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo:
“(…) Nestes termos e nos melhores do Direito, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência
a) Ser declarada a resolução do contrato de arrendamento urbano celebrado entre o autor e a ré.
b) Ser a ré condenada a proceder à desocupação do imóvel locado, devendo o mesmo ser entregue ao autor, livre de pessoas e bens.
c) Mais se requer que nos termos do disposto no artigo 15.º-J, n.º1, do NRAU, e em caso de decisão favorável ao autor, seja nomeado o agente de execução CC, (…), para tomar posse do imóvel sub judice, com recurso ao auxílio das autoridades policiais (…)”.
Alegou, para tanto e em síntese, que é proprietário do prédio urbano sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., Concelho de Paredes, e nessa qualidade celebrou com o cônjuge da ré, a 16.04.1993, um contrato de arrendamento que se destinava a habitação própria da ré e do seu cônjuge. O contrato de arrendamento foi realizado pelo período de doze meses, com início no dia 16.04.1993 e término no dia 16.04.1994, renovando-se o mesmo por períodos de doze meses, caso o mesmo não fosse denunciado pelas partes. A renda anual estipulada foi de 84.000$00, sendo os duodécimos no valor de 7.000 escudos, vencendo-se no 1.º dia útil do mês imediatamente anterior aquele a que diz respeito.
O imóvel arrendado destinava-se, exclusivamente, à habitação, não lhe podendo a ré – tal como vertido no contrato de arrendamento outorgado – dar outro fim ou uso, sob pena de resolução contratual. Ademais, o respetivo contrato de arrendamento fixava que a ré deveria fazer um uso prudente do imóvel arrendado, ficando a seu cargo todas as obras de beneficiação, de limpeza dos interiores e as de manutenção do bom estado e funcionamento das instalações elétricas, ficando ainda responsável pelas despesas com luz, saneamento, gás e telefone.
Sucede que, a ré e o seu cônjuge – pelo menos há mais de 25 anos –, separaram-se, tendo o último abandonado o imóvel arrendado com o intuito de ir viver para França – País, onde aquele reside atualmente, nunca tendo procurado regressar. Desde então, apenas a ré ficou a residir no imóvel arrendado, tendo esta assumindo, para todos os efeitos legais, a posição e a qualidade de arrendatária em substituição do seu cônjuge, pagando mensalmente a renda acordada ao autor.
Acontece que a ré, apesar cumprir pontualmente com o contrato de arrendamento, pagando mensalmente todas as rendas mensais, a verdade é que a mesma, há mais de 10 anos, deixou de residir no imóvel arrendando, fazendo do imóvel um mero depósito/armazém de bens e materiais. Aliás, a ré não procedeu à ligação da água da rede pública e o contador da luz, cujo contrato está em nome do autor, não apresenta qualquer consumo, apenas é debitado pela cooperativa fornecedora de eletricidade – a A..., a taxa fixa referente ao contador. Por este motivo, o autor tentou, por diversas vezes, junto da ré, sensibilizar a mesma para a necessidade de proceder à entrega das chaves do imóvel arrendado, pois o mesmo estava devoluto, sem que a mesma o habitasse. Sucede que todas as tentativas se revelaram infrutíferas uma vez que a ré se recusa a entregar as chaves do imóvel, apesar de nele não habitar.
O autor, por intermédio da sua mandatária, remeteu à ré, missiva comunicando-lhe a efetiva e integral resolução do contrato de arrendamento por abandono do imóvel (arrendado) ao abrigo do preceituado no artigo n.º 1083.º al) d do Código Civil e a ré não apresentou qualquer resposta ou oposição, nem procedeu à entrega das chaves do imóvel arrendado.
Devida e regularmente citada, a ré deduziu contestação e formulou reconvenção, pedindo a condenação do autor-reconvindo no pagamento de quantia global não inferior a €6.015,00 (sendo certo que ainda acrescerá o montante liquidado à “A...”, a apurar) e ainda a condenação do mesmo, em multa e indemnização, a fixar ulteriormente, como litigante de má fé.
Para tanto, e em síntese, alegou que o autor, após ter adquirido o prédio já arrendado pela ré e seu marido, começou a assediá-los para que abrissem mão do locado, e como não conseguiu, insistiu pela celebração de um novo contrato de arrendamento, que ficou plasmado no doc. nº 2 junto com a p. inicial.
O autor esconde intencionalmente que não cumpriu com a obrigação que decorre do art.º 1031.º, alínea b) do C.Civil – assegurar o gozo da coisa locada para os fins a que se destina – a habitação. Pois, na verdade, logo em 1999, o autor cortou o fornecimento de energia elétrica e de água ao arrendado, sendo certo que o logrou porque não existe um quadro elétrico separado para aquele e o quadro se situa no rés-do-chão do prédio a que somente o senhorio tem acesso. Tal comportamento, que nada justificava, a não ser a vontade de correr com os arrendatários, motivou que estes tivessem apresentado uma providência cautelar contra o ora autor, que recebeu o n.º 514/99 do extinto 1.º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Paredes.
Mas, nem após ter sido proferida a decisão que deferiu a providência, o autor cumpriu com o restabelecimento da energia elétrica e da água, obrigando a que fosse proposta a respetiva execução de sentença, que ainda embargou.
Sucede que a ré vem padecendo, desde há anos, de síndroma depressivo que a obriga a tratamento e a procurar a companhia dos seus familiares mais próximos – os seus dois filhos – durante alguns períodos mais agudos. Quando regressou ao locado, de um desses períodos, em 2017, constatou que não tinha energia elétrica, nem água. Como a casa da outra inquilina do mesmo prédio não apresentava esses problemas, a ré falou com o autor, dando-lhe conta da situação, tendo-lhe aquele afirmado que se tratava de uma “avaria”. Mas era mentira: o autor, mais uma vez, tinha cortado os cabos que, do mencionado quadro situado na garagem do rés-do-chão, conduziam a energia elétrica até ao locado e, não havendo energia elétrica, não é possível ter água, que é extraída do poço.
Mau grado as instâncias da ré, e apesar de continuar a receber a renda devida, o autor sempre se recusou a restabelecer a ligação elétrica ao arrendado. O que forçou a ré a ir viver, com apenas alguns pertences pessoais, para casa do seu filho, pois sem energia elétrica e água, bens absolutamente essenciais a qualquer lar, como é facto notório, não era possível à ré manter-se a habitar o locado.
O cansaço e o desânimo que a conduta abusiva do autor desencadeou na ré, agravaram a sua depressão, razão por que, juntamente com a pandemia provocada pela COVID-19, não recorreu ao Tribunal para obrigar novamente o senhorio a cumprir o contrato.
Ora, vir a juízo pedir a resolução do contrato de arrendamento, com o fundamento de que a ré não habita o arrendado, quando foi o autor que, com o seu (ilegal) comportamento, privou a arrendatária do gozo daquele, constitui uma descarada manifestação de abuso de direito, aqui expressamente invocado.
A ré, como confessa o autor, continuou a pagar pontualmente a renda, no valor de €51,00, ou seja €3.315,00, incluindo o mês de maio de 2022, e suportou o pagamento das despesas do contador de energia elétrica do local arrendado, que lhe são debitadas na sua conta pela cooperativa “A A...”, cujo montante global desconhece, sem poder utilizar o locado.
O comportamento do autor/reconvindo, privando-a do normal uso da sua habitação, onde já vivia há 22 anos, afetou de forma muito negativa a saúde psíquica da ré, que se traduziu em angústia, privação de sono e irritabilidade, aumentando o seu estado de ansiedade e depressão, pelo que, nunca deverá fixar-se em quantia inferior a €2.500,00 a indemnização a atribuir à ré/reconvinte, em consequência dos danos não patrimoniais sofridos.

O autor apresentou réplica pedindo a improcedência da reconvenção e a condenação da ré como litigante de má-fé.
Alega ser totalmente falso que o autor tenha assediado quem quer que seja para que abrissem mão do locado. A providência cautelar de que fala a ré, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal cível da Comarca de Paredes com o n.º 514/99 foi intentada pela ré e pelo marido, mas era respeitante apenas ao fornecimento de água. E esqueceu-se de mencionar a ré que o arrendado nunca teve água fornecida pelo autor. Que do contrato de arrendamento nunca fez parte o fornecimento de água dos senhorios aos inquilinos. O autor é que por mera tolerância autorizou que a ré utilizasse para consumo doméstico a água do seu poço, como contrapartida a ré e o marido responsabilizavam-se pelo custo de qualquer avaria que sucedesse com o motor do poço e a certa altura, o motor avariou, e a ré e o marido não o concertaram, pois queriam que fosse o autor a custear a despesa com o concerto do motor, quando o acordado era ser a ré e o marido a pagar as reparações necessárias e tanto, assim é que, em 20.10.1999, no âmbito do processo acima mencionado, o autor, a ré e o marido celebraram um acordo no qual o autor obrigava-se a restabelecer o fornecimento de água e a entregar uma chave de acesso ao quadro de ligação da água e a ré e o marido além de liquidarem a quantia referente à reparação do poço do motor, obrigavam-se a fazer um uso prudente da água proveniente do poço, utilizando-a para serviços e limpezas domésticas.
Também é totalmente falso que tenha existido qualquer corte de energia elétrica ou de água por parte do autor.
A ré sempre teve acesso a energia elétrica e água, aliás, o autor pagou à empresa concessionária da água e saneamento os ramais de acesso, mas a ré, ao contrário dos outros inquilinos, recusou-se a fazer a ligação para não ter que pagar a água. Por diversas vezes a empresa B... notificou a ré para proceder à ligação da água, mas a mesma até à data não o fez.
A ré é que decidiu residir num outro local, levando todos os seus pertences, inclusive os vasos que tinha em frente ao locado, deixando o mesmo num estado deplorável. Apesar de a ré pagar a renda estipulada, esta é que causou e causa graves prejuízos ao autor pois a casa está num estado de extrema degradação, cheia de silvas, com paredes a cair, pois a ré abandonou a mesma não conservando, conforme estipula o contrato, o local arrendado.

Foi proferido despacho saneador, admitida a reconvenção, foram dispensadas a fixação do objeto do litígio e a enumeração dos temas da prova.

Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença, de onde consta:
“Nos termos e com os fundamentos supra referidos, decido julgar a presente ação procedente e a reconvenção improcedente e, em consequência:
a) Declaro a resolução do contrato de arrendamento urbano em discussão nos presentes autos.
b) Condeno a ré a proceder à desocupação do imóvel locado, devendo o mesmo ser entregue ao autor, livre de pessoas e bens, no prazo de 30 dias.
c) Absolvo o autor do pedido reconvencional.
Quanto ao pedido da al. c) do autor, oportunamente e havendo necessidade, o Tribunal se pronunciará.
Custas a suportar pela ré - cfr. art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.
Registe e notifique.

Inconformada com tal decisão, dela veio a recorrer de apelação, pedindo a sua revogação e a substituição por outra que julgue a ação improcedente.
A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes e prolixas conclusões:
1. A respeitável decisão recorrida incorreu nas nulidades previstas no art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aqui expressamente arguidas, por se ter debruçado sobre uma questão não suscitada pelas partes – a exceção de não cumprimento do contrato - e, não ter apreciado, como o impõe o art.º 608.º, n.º 2 do mesmo normativo, a invocação da existência de abuso de direito no pedido de resolução do contrato.
2. Deve, pois, a Mmª Juiz, ao abrigo do disposto no art.º 617.º, n.º 1 do CPC, suprir as nulidades cometidas, pronunciando-se expressamente sobre a existência do invocado abuso de direito.
3. Sem prescindir, a decisão recorrida, salvo o devido respeito, julgou incorretamente, nos termos do art.º 640.º do CPC, os pontos 3), 4), 5), 9), 11), 12), 14), 30), 31), 33), 34), 35), 36) e 37) dos factos provados, e ainda julgou incorretamente os pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 (da contestação), ao considerá-los como factos não provados (a ordenação segue o exposto no corpo destas alegações). Quanto ao ponto 3), o Tribunal “a quo”, não deve ter analisado o contrato de arrendamento, porque teria verificado que o contrato de arrendamento teve início em 1 de maio de 1993 e termo em 1 de maio de 1994, pelo que deve este Tribunal alterar a redação do ponto 3), passando a ser a que segue: O contrato de arrendamento atrás mencionado, foi realizado pelo período de doze meses, com início no dia 1 de maio de 1993 e término no dia 1 de Maio de 1994, renovando-se o mesmo por períodos de doze meses, caso o mesmo não fosse denunciado pelas partes – cfr. doc. 2.
4. No que diz respeito ao ponto 4) dos factos provados, também aqui não foi devidamente tomado em conta o teor do documento n.º 2, pois, como dimana daquele contrato, a renda vence-se no primeiro dia útil do mês a que respeitar e não no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que diz respeito, o que deve levar esta Relação a alterar a redação que passa a ser a seguinte: A renda anual estipulada foi de 84.000$00 (oitenta e quatro mil escudos), sendo os duodécimos no valor de 7.000$00 escudos, vencendo-se no primeiro dia útil do mês a que diz respeito – cfr. doc. 2.
5. Já a parte final do ponto 9) dos factos provados, apresenta-se como meramente conclusiva, desprovida de qualquer suporte probatório, como se constata ao percorrer-se a gravação digital da audiência de julgamento, pelo que deverá ser expurgada, passando a redação a ser a seguinte: A ré, apesar de pagar mensalmente todas as rendas, pelo menos desde 2017, deixou de residir no imóvel arrendado.
6. Face à evidente ligação entre eles, os pontos 11), 12) e 14) dos factos provados, vão ser apreciados conjuntamente, anotando-se, desde logo, que compulsada a gravação digital, não se divisa qualquer depoimento que confirme que o autor tentou, por diversas vezes, junto da ré, sensibilizar a mesma para a necessidade de proceder à entrega das chaves do imóvel arrendado, por o mesmo se encontrar devoluto, sem que a mesma o habitasse.
7. Pelo contrário, é o próprio autor que desmente qualquer tentativa de abordar a ré sobre a sua não habitação no locado, como ficou registado nas declarações de parte, no segmento gravado de 04:40 a 04:58; e se não existiram conversas sobre a entrega do imóvel, não só não pode resultar provado que as mesmas resultaram infrutíferas, como que se verificou a recusa da entrega das chaves por parte da ré.
8. Deve, pois, este Colendo Tribunal alterar para “não provado” os pontos 11) e 12) e a parte inicial do ponto 14) dos factos provados.
9. Nos pontos 30) e 31) dos factos provados, o Tribunal considerou como provados um pagamento do autor à empresa concessionária de água e saneamento “B...”, e uma notificação daquela à ré apesar de não existir qualquer prova documental que os comprovasse, pelo que deve este Colendo Tribunal alterar para “não provado” tais pontos.
10. O ponto 33) dos factos provados apresenta-se também com natureza conclusiva, porque a expressão “decidiu residir noutro local” nele inserta conduz, só por si, ao desfecho da ação, pelo que deve ser expurgada tal matéria conclusiva, e, consequentemente, alterada a redação que deverá ser a seguinte: A ré passou a residir num outro local.
11. Quanto ao ponto 34), verifica-se a ausência de prova concreta e segura se os arrendatários da parte restante do prédio do autor usam a água fornecida pela concessionária “B...”, como resulta dos depoimentos das testemunhas DD, gravado no sistema digital, no segmento de 00:18:54 a 00:20:06; EE, no segmento de 00:07:48 a 00:08:43 e ainda das declarações de parte do autor, no segmento de 00:22:00 a 00:22:50, pelo que deve este Colendo Tribunal alterar para “não provado” o identificado ponto dos factos provados.
12. Relativamente ao ponto 35), é inaceitável a afirmação de que se a ré habitasse no arrendado, bastava fazer a ligação da água, que de um dia para o outro tinha água no arrendado, porquanto, além de não ser necessário habitar no locado para fazer a ligação da água, a questão não tem a ver com o ramal de ligação, mas antes com a colocação de um contador de água.
13. E ainda, e sobretudo, com a condição de o locado não dispor de rede predial de abastecimento (nem torneiras, sendo a água do poço tirada ao balde) desde que foi celebrado o contrato de arrendamento, e que aquela é exigida aos proprietários dos imóveis previamente ao fornecimento e instalação de contadores pela concessionária “B...”, como resulta do depoimento prestado por FF, no segmento de 00:14:30 a 00:15:32 e das declarações de parte da ré, no segmento gravado de 00:06:50 a 00:08:24.
14. Deve, assim, este Alto Tribunal alterar para “não provado” o ponto 35) dos factos provados.
15. Compulsada a gravação digital e a prova documental, não se descortina donde resulta que a casa esteja “com paredes a cair”, o que inquina a conclusão de que “a casa está num estado de extrema degradação”, motivo por que deve este Alto Tribunal alterar para “não provado” o ponto 36) dos factos provados.
16. O mesmo vale para o ponto 37), até porque, com exceção das declarações de parte da ré e do depoimento do seu filho, FF, mais ninguém, incluindo o autor, declarou ter entrado alguma vez que fosse no locado, de forma a que possa ser considerado demonstrado que o interior daquele não se mostra conservado.
17. No que diz respeito aos factos não provados, há que considerar que a energia elétrica que pode abastecer o locado, parte de um quadro (e contador) situado numa dependência fechada no rés-do-chão a que apenas o autor tem acesso (cf. o ponto 17) dos factos provados).
18. Para interromper o fornecimento de energia elétrica a partir do quadro, basta desligar um ou mais dos quatro disjuntores do quadro elétrico que permitem a passagem da corrente para o locado, e que se observam na fotografia, doc. n.º 4, junto com o requerimento apresentado pelo autor em 19.12.2022 (ref. Citius 8421172).
19. Com o consabido respeito, a existência e relevância dos referidos disjuntores podia e devia ter sido tomada em conta pela Mmª Juiz a quo, por força do disposto no art.º 5.º, n.º 2 do CPC, não se entendendo que o Tribunal, apesar de ter considerado como provado que apenas o senhorio tem acesso ao quadro, não lhe atribua a falta de energia elétrica no locado, porque nenhuma outra pessoa pode ter desligado os disjuntores.
20. Também se não alcança porque não foi considerado provado que a ré comunicou a existência destes problemas ao senhorio, nem sequer verbalmente, perante o que consta dos segmentos gravados de 00:04:25 a 00:05:55 e 17:50 a 18:40 das respetivas declarações de parte, nos quais fica claro que a ré falava pessoalmente com o senhorio e se queixava das faltas de energia e de água, mas, ainda, que não esteve 17 anos sem luz e água, como a Mmª Juiz parecia estar convicta.
21. Bem como, no segmento da gravação digital de 00:13:00 a 00:14:24, que pediu muito a realização de obras ao autor, vários anos antes de 2017, e que o autor se comprometeu a fazer, mas que não se concretizaram, apesar de incluírem um aumento do valor da renda.
22. Crê-se, perante as perplexidades do Tribunal sobre não ter agido judicialmente contra o senhorio, que a ré, ainda nas declarações de parte prestadas no dia 8.2.2023, agora no segmento da gravação digital de 00:14:50 a 00:15:50, conseguiu elucidar os motivos – doença psíquica grave e a pandemia – que a impediram de efetivar essa demanda.
23. Assim, face ao exposto, deverão ser aditados aos factos provados os seguintes:
-O autor, em 2017, desligou os disjuntores do quadro elétrico situado na garagem do rés-do-chão, a que só ele tem acesso, que permitiam que a energia elétrica chegasse ao locado.
- A ré, pelo menos desde 2017, falava pessoalmente com o autor, dando-lhe conta da situação de não haver energia elétrica, nem água, de que ele tinha conhecimento.
- O autor, apesar de continuar a receber a renda devida, não restabeleceu a ligação elétrica ao arrendado, através dos mencionados disjuntores.
- O que forçou a ré a ir viver, com apenas alguns pertences pessoais, para casa do seu filho.
- Na medida em que, sem energia elétrica e água, não era possível à ré manter-se a habitar o locado.
- A doença da ré e a pandemia provocada pela COVID-19, foram as causas daquela não ter recorrido ao Tribunal para obrigar novamente o senhorio a cumprir o contrato, como era sua intenção.
24. A assim não ser entendido, o que só por mera hipótese dialética se concede, não deverá concluir-se, como aconteceu com o Tribunal a quo, que a falta de energia elétrica [e de água] “não foi de molde a inviabilizar o concreto gozo do locado” e ainda que “não se apurou que a desocupação do local arrendado por mais de um ano foi devida a caso de força maior ou sequer que, em razão do estado do imóvel, as condições de gozo do locado tivessem sofrido uma significativa diminuição, em termos de não ser razoável exigir à ré que nele habitasse”.
25. Na verdade, não se entende, nem se aceita que possa ser considerado que a falta de energia elétrica e de água não constitui uma diminuição significativa das condições de gozo do locado, em termos de se exigir que a ré se mantivesse naquele.
26. Avultando, pois, como lícito que a apelante não tenha de habitar o local arrendado, enquanto o senhorio não restabelecer o fornecimento de água e energia elétrica e, como tal, não preenchido o fundamento de resolução do contrato de arrendamento previsto no art.º 1083.º, n.º 2, alínea d) do C. Civil.
27. Acresce que, havendo sido o senhorio a criar a situação da falta de energia elétrica e de água no locado, mormente a primeira, de todo incompatível com a habitação naquele espaço, o que fez com que a ré fosse viver para casa do seu filho em 2017, não pode vir invocar esta não residência como violação da obrigação de habitar o arrendado, sob pena de incorrer em evidente abuso de direito, previsto no art.º 334.º do C. Civil, oportunamente invocado na contestação e aliás de conhecimento oficioso.
28. A existência do abuso de direito equivale à falta do próprio direito, tendo como consequência a paralisação do direito de resolução do contrato de arrendamento por parte do autor, como deve ser declarado por este Tribunal.
29. Violados foram pois, entre outros, os art.ºs 334.º, 1031.º, 1072.º e 1083.º do C. Civil e 608.º e 615.º do C.P.Civil.


Não há contra-alegações.
A 1.ª instância pronunciou-se no sentido da não verificação das nulidades da sentença invocadas pela apelante.


II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos, onde também se fazem constar as decisões de recurso:
1. O autor é proprietário do prédio urbano sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., Concelho de Paredes, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo n.º ...62.
2. Na qualidade de legítimo proprietário do imóvel, o autor celebrou com o cônjuge da ora ré, a 16 de abril de 1993, um contrato de arrendamento que se destinava a habitação própria da ré e do seu cônjuge.
3. O contrato de arrendamento atrás mencionado, foi realizado pelo período de doze meses, com início no dia 16 de abril de 1993 e término no dia 16 de abril de 1994, renovando-se o mesmo por períodos de doze meses, caso o mesmo não fosse denunciado pelas partes – cfr. doc. 2. - Alterado - O contrato de arrendamento atrás mencionado, foi realizado pelo prazo de 1 (um) ano, a começar a 1 de maio de 1993 e a terminar a 1 de maio de 1994, considerando-se prorrogado por sucessivos períodos iguais, enquanto por qualquer das partes não fosse denunciado. – cfr. doc. 2
4. A renda anual estipulada foi de 84.000$00 (oitenta e quatro mil escudos), sendo os duodécimos no valor de 7.000$00 escudos, vencendo-se no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior aquele a que diz respeito – cfr. doc. 2. - Alterado - A renda anual estipulada durante o primeiro ano do contrato foi de 84.000$00 (oitenta e quatro mil escudos), sendo os duodécimos no valor de 7.000$00 escudos cada, vencendo-se no primeiro dia útil do mês a que respeitasse. – cfr. doc. 2.
5. O imóvel arrendado destinava-se, exclusivamente, à habitação.
6. O respetivo contrato de arrendamento fixava que a ré deveria fazer um uso prudente do imóvel arrendado, ficando a seu cargo todas as obras de beneficiação, de limpeza dos interiores e as de manutenção do bom estado e funcionamento das instalações elétricas, ficando ainda responsável pelas despesas com luz, saneamento, gás e telefone.
7. A ré e o seu marido separaram-se, tendo o último abandonado o imóvel arrendado.
8. Desde então, apenas a ré ficou a residir no imóvel arrendado, tendo esta assumindo, para todos os efeitos legais, a posição e a qualidade de arrendatária em substituição do primitivo arrendatário, pagando mensalmente a renda acordada ao autor.
9. A ré, apesar de pagar mensalmente todas as rendas, pelo menos, desde 2017, deixou de residir no imóvel arrendando, fazendo do imóvel um mero depósito/armazém de bens e materiais. - Alterado - A ré, apesar de pagar mensalmente todas as rendas, pelo menos desde 2017, deixou de residir no imóvel arrendando, mantendo no mesmo, bens e materiais.
10. A ré não procedeu à ligação da água da rede pública e o contador da luz, cujo contrato está em nome do autor, não apresenta qualquer consumo, apenas é debitado pela cooperativa fornecedora de eletricidade – A A..., a taxa fixa referente ao contador.
11. O autor tentou, por diversas vezes, junto da ré, sensibilizar a mesma para a necessidade de proceder à entrega das chaves do imóvel arrendado, pois o mesmo estava devoluto, sem que a mesma o habitasse. – Eliminado.
12. Sucede que todas as tentativas se revelaram infrutíferas uma vez que a ré se recusa a entregar as chaves do imóvel, apesar de nele não habitar. – Eliminado.
13. Na parte exterior do imóvel arrendado são visíveis sebes altas.
14. Em face da recusa da entrega das chaves por parte da ré, o autor, por intermédio da sua mandatária, remeteu-lhe missiva comunicando-lhe a efetiva e integral resolução do contrato de arrendamento por abandono do imóvel (arrendado) ao abrigo do preceituado no artigo n.º 1083.º al) d) do Código Civil – cfr. doc. 4. - Alterado - 14. O autor, por intermédio da sua mandatária, remeteu à ré, com data de 6.10.2021, missiva comunicando-lhe a resolução do contrato de arrendamento por abandono do imóvel (arrendado) ao abrigo do preceituado no artigo n.º 1083.º al) d) do Código Civil – cfr. doc. 4”.
15. A ré, não logrou apresentar qualquer resposta ou oposição à missiva que lhe havia endereçada, nem procedeu à entrega das chaves do imóvel arrendado.
16. Em 1999, o autor não restabeleceu o fornecimento de água ao arrendado.
17. Não existe um quadro elétrico separado para aquele e o quadro situa-se no rés-do-chão do prédio a que somente o senhorio tem acesso.
18. Os arrendatários apresentaram uma providência cautelar contra o ora autor, que recebeu o n.º 514/99 do extinto 1.º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Paredes.
19. Foi proposta a respetiva execução de sentença, que foi embargada.
20. A ré vem padecendo, desde há anos, de síndroma depressivo que a obriga a tratamento.
21. A ré continuou a pagar pontualmente a renda, no valor de 51,00€, incluindo o mês de maio de 2022, e suportou o pagamento das despesas do contador de energia elétrica do local arrendado, que lhe são debitadas na sua conta pela cooperativa “A A...”.
22. A providência cautelar de que fala a ré, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal cível da Comarca de Paredes com o número de processo 514/99 foi intentada pela ré e pelo marido, mas era respeitante apenas ao fornecimento de água.
23. O autor autorizou que a ré utilizasse para consumo doméstico a água do seu poço. Como contrapartida a ré e o marido responsabilizavam-se pelo custo de qualquer avaria que sucedesse com o motor do poço – doc. 2.
24. A certa altura, o motor avariou, e a ré e o marido não o consertaram, pois queriam que fosse o autor a custear a despesa com o conserto do motor, quando o acordado era ser a ré e o marido a pagar as reparações necessárias. – cfr. doc. 2.
25. Em 20 de Outubro de 1999, no âmbito do processo acima mencionado, o autor, a ré e o marido celebraram um acordo no qual o autor obrigava-se a restabelecer o fornecimento de água e a entregar uma chave de acesso ao quadro de ligação da água e a ré e o marido além de liquidarem a quantia referente à reparação do poço do motor, obrigavam-se a fazer um uso prudente da água proveniente do poço, utilizando-a para serviços e limpezas domésticas. – cfr. doc. 3.
26. A execução para prestação de facto intentada pela ré e o marido tinha a ver com a entrega da chave de acesso ao quadro de ligação do motor da água – cfr. doc. 4.
27. O autor apresentou embargos alegando que a ré não fazia um uso prudente da água proveniente do poço não se limitando a utiliza-la para serviços e limpezas domésticas e sempre que ligavam o motor não tinham a atenção de o desligar, facto que motivava permanentemente o transbordar do depósito existente sobre a casa – cfr. doc. 5.
28. O autor mais uma vez teve que custear uma reparação do motor da água – doc. 5.
29. Em fevereiro de 2003, a ré recebeu a chave que dava acesso ao motor da água.
30. O autor pagou à empresa concessionária da água e saneamento os ramais de acesso, mas a ré, não fez a ligação.
31. A empresa B... notificou a ré para proceder à ligação da água, mas a mesma até à data não o fez. – Não provado.
32. Desde pelo menos 2017 a esta parte são inexistentes consumos de água e de energia no locado.
33. A ré decidiu residir num outro local.
34. Os restantes inquilinos usam a água fornecida pela empresa B.... – Não provado.
35. Caso a ré habitasse no arrendado, bastava fazer a ligação da água que de um dia para o outro tinha água no arrendado. – Não provado.
36. A casa está num estado de extrema degradação, cheia de silvas, com paredes a cair. – Alterado - A casa apresenta um estado exterior de degradação, mormente com o acesso repleto de silvas.
37. A ré abandonou a casa arrendada não a conservando. – Eliminado.


Não se provaram os seguintes factos:
1. A ré e o seu marido pelo menos há mais de 25 anos, separaram-se, tendo o último ido viver para França – País, onde reside atualmente, nunca tendo procurado regressar.
2. A ré, há mais de 10 anos, deixou de residir no imóvel arrendando.
3. O autor, após ter adquirido o prédio já arrendado pela ré e seu marido, GG, há diversos anos, começou a assediá-los para que abrissem mão do locado, e como não conseguiu, insistiu pela celebração de um novo contrato de arrendamento.
4. Em 1999, o autor cortou o fornecimento de energia elétrica ao arrendado.
5. Quando regressou ao locado, de um desses períodos, em 2017, constatou que não tinha energia elétrica, nem água.
6. Como a casa da outra inquilina do mesmo prédio não apresentava esses problemas, a ré falou com o autor, dando-lhe conta da situação, tendo-lhe aquele afirmado que se tratava de uma “avaria”.
7. Mas era mentira: o autor, mais uma vez, tinha cortado os cabos que, do mencionado quadro situado na garagem do rés-do-chão, conduziam a energia elétrica até ao locado e, não havendo energia elétrica, não é possível ter água, que é extraída do poço.
8. Ora, mau grado as instâncias da ré, e apesar de continuar a receber a renda devida, o autor sempre se recusou a restabelecer a ligação elétrica ao arrendado.
9. O que forçou a ré a ir viver, com apenas alguns pertences pessoais, para casa do seu filho.
10. Na medida em que, sem energia elétrica e água, bens absolutamente essenciais a qualquer lar, não era possível à ré manter-se a habitar o locado.
11. O cansaço e o desânimo que a conduta abusiva do autor desencadeou na ré, agravaram a sua depressão, razão por que, juntamente com a pandemia provocada pela COVID-19, não recorreu ao Tribunal para obrigar novamente o senhorio a cumprir o contrato.
12. O autor cortou o abastecimento de energia elétrica, e consequentemente, de água ao local arrendado.
13. O comportamento do autor, privando-a do normal uso da sua habitação, onde já vivia há 22 anos, afetou de forma muito negativa a saúde psíquica da ré, que se traduziu em angústia, privação de sono e irritabilidade, aumentando o seu estado de ansiedade e depressão.
14. O síndrome depressivo de que a ré padece obriga a procurar a companhia dos seus familiares mais próximos – os seus dois filhos – durante alguns períodos mais agudos.
15. A ré levou todos os seus pertences, inclusive os vasos que tinha em frente ao locado.
16. Durante toda a vigência do contrato de arrendamento, a ligação de luz esteve sempre ativa.
17. O arrendado nunca teve água fornecida pelo autor.
18. Do contrato de arrendamento nunca fez parte o fornecimento de água dos senhorios aos inquilinos.



III – Como é sabido o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
*
*
Ora, visto o teor das alegações da ré/apelante são questões a apreciar no presente recurso:
1.ª – Das alegadas nulidades.
2.ª - Da impugnação da decisão da matéria de facto.
3.ª – De Direito.



1.ªquestão - Das alegadas nulidades da decisão recorrida.
Em suma, vem a ré/apelante defender que na sentença recorrida se refere que a mesma havia invocado, em sede de contestação, a exceção de não cumprimento do contrato, com vista a justificar a sua não residência no locado, e conhecendo-se de tal questão, decidiu-se pela sua não verificação. Todavia, defende a apelante que apesar de ter alegado o incumprimento do contrato de arrendamento por parte do autor, certo é que a sua defesa se fundou antes no instituto do abuso de direito e de que a 1.ª instância não tomou conhecimento. Por tais razões defende a apelante que a sentença recorrida enferma da nulidade prevista na al. d) do n.º1 do art.º 615.º do C.P.Civil.
Vejamos.
Segundo o disposto no art.º 615.º n.º1 al. d) do C.P.Civil, a sentença é nula se deixa de conhecer na sentença de questões de que devia tomar conhecimento ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Como é sabido, este vício traduz-se no incumprimento ou desrespeito por parte do julgador, do dever prescrito no art.º 608.º n.º2 do C.P.Civil, cfr. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 690 e Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. III, pág. 247, segundo o qual deve o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Tal nulidade é assim a sanção pela violação do disposto no art.º 608.º n.º 2 do C.P.Civil, o qual impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação mas, por outro lado, de só poder ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, salvo tratando-se de questões do conhecimento oficioso do tribunal (omissão ou excesso de pronúncia). Mas havendo, neste campo, que distinguir entre “questões a apreciar” e “razões” ou “argumentos” avançados pelas partes, bem como ter cautela por forma a não confundir tais situações com eventuais fundamentos para a modificabilidade da decisão de facto.
Pois como já referiu Alberto dos Reis - Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 143: “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
Em suma, as questões a que se reporta a alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.Civil são os pontos de facto e/ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções do respetivo litígio, ou seja, estamos em sede de apreciação dos limites devidos por lei, e não ultrapassáveis, da própria sentença. Deve assim o tribunal conhecer de todas as questões que lhe forem submetidas, ou seja, todos os pedidos formulados, todas as causas de pedir e exceções invocadas, e ainda as exceções que oficiosamente tem o dever de conhecer, cfr. n.º2 do art.º 608.º do C.P.Civil.
No caso dos autos, em sede de contestação, a ré/apelante alegou, além do mais que: “(…) o autor esconde intencionalmente que não cumpriu com a obrigação que decorre do art.º 1031.º, alínea b) do Cod. Civil – assegurar o gozo da coisa locada para os fins a que se destina – a habitação. Na verdade, logo em 1999, o autor cortou o fornecimento de energia elétrica e de água ao arrendado, sendo certo que o logrou porque não existe um quadro elétrico separado para aquele e o quadro se situa no rés-do-chão do prédio a que somente o senhorio tem acesso. (…) Quando regressou ao locado, de um desses períodos, em 2017, constatou que não tinha energia elétrica, nem água. (…) Ora, mau grado as instâncias da ré, e apesar de continuar a receber a renda devida, o autor sempre se recusou a restabelecer a ligação elétrica ao arrendado. O que forçou a ré a ir viver, com apenas alguns pertences pessoais, para casa do seu filho. Na medida em que, sem energia elétrica e água, bens absolutamente essenciais a qualquer lar, como é facto notório, não era possível à ré manter-se a habitar o locado. Sendo, pois, forçoso concluir-se que o autor faltou ao cumprimento do contrato (cit. art.º 1031.º, alínea b), art.º 1037.º, n.º 1, 798.º e 799.º, n.º 1, todos do Cod. Civil).(…) Acresce que vir a juízo pedir a resolução do contrato de arrendamento, com o fundamento de que a ré não habita o arrendado, quando foi o autor que, com o seu (ilegal) comportamento, privou a arrendatária do gozo daquele, constitui uma descarada manifestação de abuso de direito, aqui expressamente invocado (Cod. Civil, art.º 334.º).”.
Consta da sentença recorrida, além do mais, que: “Cumpre saber se deve ser decretada a resolução do contrato de arrendamento e se a ré deve ser condenada nos termos peticionados pelo autor ou se se verifica a exceção de não cumprimento do contrato invocada pela ré devendo esta ser absolvida do pedido e ver procedente o seu pedido reconvencional.
As questões a decidir resumem-se, pois, a saber:
- se a falta de uso do arrendado é lícita, nos termos do art.º 1072.º, n.º 2, al. a) do C. Civil;
- se a arrendatária deixou de habitar no locado por este carecer de condições de habitabilidade;
- se assiste à arrendatária o direito à exceptio non adimpleti contratus;
(…)
O contrato de arrendamento é configurável como um contrato bilateral ou sinalagmático, uma vez que dele decorre, entre outras obrigações acessórias, a obrigação para o senhorio de entregar e assegurar ao arrendatário o gozo temporário da coisa arrendada para os fins a que se destina (cfr. art.º 1031.º do Código Civil), mediante a obrigação deste de lhe pagar a renda (art.º 1038.º, al. a) do mesmo Código).
(…)
Uma outra obrigação que recai sobre o arrendatário, a obrigação de habitar permanentemente o arrendado, ou de usar o locado, faz também parte do sinalagma contratual, na medida em que se contrapõe à obrigação fundamental, imposta ao locador, de proporcionar o gozo da coisa.
A ser assim, o arrendatário pode recusar a realização da sua prestação – de habitar com carácter de permanência o locado ou de usar o locado - enquanto não ocorrer a prévia realização da prestação da contraparte – na situação em causa, o alegado fornecimento de água e energia elétrica ao locado ou a realização pelo senhorio das obras necessárias àqueles fornecimentos que levariam à habitabilidade do mesmo.
Do funcionamento desta exceção, resultaria ser lícita a recusa do cumprimento, e, consequentemente, na aplicação da mesma que aqui está em consideração, o não poder ser valorada em termos de causa de resolução do contrato a falta de residência permanente da arrendatária no locado.
(…)
De acordo com o disposto no art.º 1083.º, n.º 1, do C.C. “Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.”.
(…) cumpre, ainda analisar se a falta de residência permanente da ré no locado desde pelo menos 2017, resulta justificada em face da alegada falta de água e de eletricidade, de que o mesmo então alegadamente carecia, consubstanciando essa situação caso de força maior previsto na al a) do n.º2, do art.º1072.º, do C.C. e impedindo a resolução do contrato – e já vimos que não, ou se essa falta de residência permanente ou falta de uso, constitui exercício da “exceptio non adimpleti contractus”, perante o estado do imóvel resultante da falta de tais abastecimentos.
A ideia é, também aqui, a de que o inquilino pode recusar a realização da sua prestação – de habitar com carácter de permanência o locado, o uso do locado - enquanto não ocorrer a prévia realização da prestação da contraparte – na situação em causa, a realização pelo senhorio das obras/das diligências necessárias àquela habitabilidade.
Invocou a ré, como vimos, na contestação, a exceção do não cumprimento do contrato, quanto á falta de uso do locado por período superior a um ano, com o incumprimento, por parte do autor, do contrato, traduzido na não concessão à ré do gozo
pleno do local arrendado.
(…)
Quer isto dizer que, se não é entregue a coisa objeto do negócio, o outro contraente pode, invocando aquele meio de defesa – essa exceção - deixar de cumprir a sua contraprestação até que a outra parte o faça (exceptio non adimpleti contractus).
(…)
É também comummente aceite pela doutrina o recurso a este instrumento no caso de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso (exceptio non rite adimpleti contractus) (cfr. entre outros - Menezes Cordeiro “Violação positiva do contrato. Cumprimento imperfeito e garantia de bom funcionamento da coisa vendida; âmbito da exceção do Contrato não cumprido”, ROA, 1981, pag. 147 ss.).
(…)
Ora, no caso “sub judice”, a ré não alegou e logicamente não provou, que o seu afastamento do locado tivesse como único fim o de “forçar” o senhorio a realizar as diligências tendentes a restabelecer o fornecimento que alega não estar em execução, de tal modo que, assim que ele as realizasse, ela voltaria de imediato a residir no mesmo.
Bem pelo contrário. Pois, o que resulta da matéria provada, é que a ré, desde pelo menos 2017, não só não reside no locado, como não “exige”, interpela ou comunica ao senhorio quaisquer condições para o seu retorno.
(…) Mas, mesmo que tivesse resultado provado que era e foi o autor/senhorio que procedeu a cortes de água, energia elétrica, mesmo assim, a invocação da exceptio improcederia igualmente por falta da relação de proporcionalidade, pois que, as diligências tendentes a restabelecer tais fornecimentos de que o locado carecia não eram tais que impossibilitassem a falta de residência permanente nele, já que, sempre que tal se verificou – a falta esporádica de fornecimento (desconhecendo-se a causa) – logo se repôs o mesmo e por outro lado, sempre a ré poderia realizar diligências, ela própria para o restabelecer.
(…)
Pelo que não se poderia verificar a impossibilidade da ré, arrendatária, gozar o local arrendado para o fim a que se destinava, não se justificando que nele deixasse de residir”.
Por fim, e ainda com relevância para a decisão da questão em apreço neste recurso, consta da decisão recorrida, além do mais, que: “(…) Por tudo o que se deixou supra exposto, não se apurou que a desocupação do local arrendado por mais de um ano foi devida a caso de força maior ou sequer que, em razão do estado do imóvel, as condições de gozo do locado tivessem sofrido uma significativa diminuição, em termos de não ser razoável exigir à ré que nele habitasse.
Não logrou, assim, a ré provar, como lhe competia (art.º 342.º, n.º 2, do C.C.), as causas de exclusão da ilicitude previstas no art.º 1072.º, n.º 2, al. a) e 428.º do citado diploma legal.
Em conclusão, estando demonstrado o incumprimento do contrato de arrendamento pelo não uso do locado por parte da ré e bem assim a gravidade objetiva de tal incumprimento nenhuma circunstância se apurou que possa justificar a imposição ao autor/senhorio da manutenção do contrato de arrendamento, o que levará a declarar resolvido o contrato de arrendamento e, em decorrência de tal, improcedente o pedido reconvencional da ré.
A resolução do contrato de arrendamento consubstancia uma forma de cessação deste contrato (art.º 1079.º do Cód. Civil) e torna imediatamente exigível a desocupação do arrendado e a sua entrega ao arrendatário (art.º 1081.º, n.º 1 do Cód. Civil).
Assim sendo, por tudo o que se deixou supra exposto, fácil é de ver que se impõe decretar a resolução do contrato supra referido (…)”.
Ora, apenas nos resta concluir que a 1.ª instância debruçou-se, analisou, fundamentou e bem decidiu todas as questões – fundamentadoras da causa de pedir e das exceções invocadas pela ré/apelante - colocadas nos autos pelas partes, isto sem se olvidar que, conforme preceitua os n.ºs 1 e 3 do art.º 5.º do C.P.Civil, “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas” e que “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”.
É certo que expressamente nada se refere relativamente ao argumento aventado pela ré na sua contestação, ou seja, de que o autor ao interpor a presente ação estava a agir em abuso de direito. Todavia, disse-se “Em conclusão, estando demonstrado o incumprimento do contrato de arrendamento pelo não uso do locado por parte da ré e bem assim a gravidade objetiva de tal incumprimento nenhuma circunstância se apurou que possa justificar a imposição ao autor/senhorio da manutenção do contrato de arrendamento, o que levará a declarar resolvido o contrato de arrendamento e, em decorrência de tal, improcedente o pedido reconvencional da ré”, sendo tal o necessário e suficiente para que qualquer cidadão mediano entenda que o tribunal concluiu pela atuação legitima do autor, ficando assim prejudicada, qualquer necessidade de um maior desenvolvimento relativamente a tal questão.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, temos de concluir que a sentença sob recurso não padece das apontadas nulidades - por omissão e excesso de pronúncia.
Improcedem as respetivas conclusões da apelante.

2.ªquestão - Da impugnação da decisão da matéria de facto.
Vem, de seguida, a ré/apelante defender que a 1.ª instância interpretou deficientemente a prova produzida nos autos e em consequência decidiu incorretamente os factos, os pontos constantes dos pontos 3), 4), 9), 11), 12), 14), 30), 31), 33), 34), 35), 36) e 37) do elenco julgado provado, e os factos constantes dos pontos 5., 6., 7., 8., 9., 10. e 11., ao considerá-los como factos não provados.
Pretende a apelante que reapreciada a prova, e que analisado o teor do doc. n.º junto aos autos seja alterada a redação dos factos n.ºs 3 e 4 do elenco factual provado para:
“3.O contrato de arrendamento atrás mencionado, foi realizado pelo período de doze meses, com início no dia 1 de maio de 1993 e término no dia 1 de maio de 1994, renovando-se o mesmo por períodos de doze meses, caso o mesmo não fosse denunciado pelas partes – Cfr. Doc. 2.”
“4. A renda anual estipulada foi de 84.000$00 (oitenta e quatro mil escudos), sendo os duodécimos no valor de 7.000$00 escudos, vencendo-se no primeiro dia útil do mês a que diz respeito – Cfr. Doc. 2.”
Pretende que seja eliminada dos factos n.ºs 9 e 33 do elenco factual provado o conteúdo que diz ser conclusivo, passando a deles apenas constar: “9.A ré, apesar de pagar mensalmente todas as rendas, pelo menos desde 2017, deixou de residir no imóvel arrendado” e, “33. A ré passou a residir num outro local”.
Pretende que os factos n.ºs 11,12, 14, 30, 31, 34, 35, 36 e 37 - julgados provados em 1.ª instância, sejam agora julgados não provados, por alegadamente se não ter feito prova bastante dessa realidade.
Finalmente, pretende a ré/apelante que os factos constantes dos pontos 5, 7, 8, 9, 10 e 11 do elenco factual julgado não provado em 1.ª instância sejam agora julgados provados e, com a seguinte redação:
“- O autor, em 2017, desligou os disjuntores do quadro elétrico situado na garagem do rés-do-chão, a que só ele tem acesso, que permitiam que a energia elétrica chegasse ao locado.
- A ré, pelo menos desde 2017, falava pessoalmente com o autor, dando-lhe conta da situação de não haver energia elétrica, nem água, de que ele tinha conhecimento.
- O autor, apesar de continuar a receber a renda devida, não restabeleceu a ligação elétrica ao arrendado, através dos mencionados disjuntores.
- O que forçou a ré a ir viver, com apenas alguns pertences pessoais, para casa do seu filho.
- Na medida em que, sem energia elétrica e água, não era possível à ré manter-se a habitar o locado.
- A doença da ré e a pandemia provocada pela COVID-19, foram as causas daquela não ter recorrido ao Tribunal para obrigar novamente o senhorio a cumprir o contrato, como era sua intenção”.
Para tanto a ré/apelante chama à colação o teor do doc. n.º 2 e de outros que identifica e junto aos autos, o teor dos depoimentos das testemunhas - FF, EE e, DD e ainda o teor das suas próprias declarações de parte e das declarações de parte do autor.

Vejamos.
Como é sabido e no que concerne à impugnação da decisão de facto proferida em 1.ª instância, importa atentar no que dispõe no art.º 662.º do C.P.Civil. referindo F. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, pág. 127, que resulta de tal preceito que “...o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação…”, ainda que não em toda a sua pureza, porquanto comporta exceções, as quais se mostram referidas pelo mesmo autor na obra citada.
Os recursos de reponderação, segundo o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudo Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 374, “...satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a “justiça relativa” dessa decisão”. Por isso, havendo gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, como no presente caso se verifica, temos que, nos termos do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, o tribunal da Relação deve alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente, a gravação), seja razoável concluir que aquela enferma de erro.
Todavia, não nos podemos esquecer de que ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 657, a propósito do “Princípio da Imediação”, “...Esse contacto direto, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reações do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. ...”.
Decorre também do preâmbulo do DL n.º 39/95 de 15.12, que instituiu no nosso ordenamento processual civil a possibilidade de documentação da prova, que a mesma se destina a correção de erros grosseiros ou manifestos verificados na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos concretos da mesma, dizendo-se aí que “a criação de um verdadeiro e efetivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reação contra eventuais – e seguramente excecionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto”. E resulta ainda desse mesmo preâmbulo que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Quanto ao resultado da apreciação da prova testemunhal e pericial não pode esquecer-se que, nos termos do art.º 607.º n.º 5 do C.P.Civil, “O juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, mantendo o princípio da liberdade de julgamento. E, quanto à força probatória, os depoimentos das testemunhas e os relatórios e respostas dos peritos, são apreciados livremente pelo tribunal, como resulta do disposto nos art.ºs 389.º e 396.º, ambos do C.Civil.
Tendo em atenção o que preceitua o art.º 640.º n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil, ou seja, que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, isto é, não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que:
i) especifique quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
ii) indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto;
iii) indique com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição;
iv) devendo ainda, desenvolver a análise crítica dessas provas, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável e,
v) indique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Em suma, é dever deste tribunal de recurso alterar a decisão de facto proferida em 1.ª instância, devendo para tal reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo ainda em consideração o teor das alegações das partes, para o que terá de ouvir os depoimentos chamados à colação pelas partes. E assim, (re) ponderando livremente essas provas, deve, por força do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Ou seja, deve o tribunal de recurso formar a sua própria convicção relativamente a cada um dos factos em causa não desconsiderando, principalmente, a ausência de imediação na produção dessa prova, e a consequente e natural limitação à formação desta convicção, o que em confronto com o decidido em 1.ª instância terá como consequência a alteração ou a manutenção dessa decisão. E isso, por se ter concluído que a decisão de facto em causa, (re) apreciada “segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica”, corresponde, ou não, ao decidido em 1.ª instância.
No caso em apreço, consideramos que a ré/apelante cumpriu, minimamente, aqueles ónus de alegação, cfr. art.º 640.º do C.P.Civil.

2.1. – Reapreciação da prova.
Relativamente aos factos julgados provados n.ºs 3 e 4:
3. O contrato de arrendamento atrás mencionado, foi realizado pelo período de doze meses, com início no dia 16 de abril de 1993 e término no dia 16 de abril de 1994, renovando-se o mesmo por períodos de doze meses, caso o mesmo não fosse denunciado pelas partes – cfr. doc. 2.
4. A renda anual estipulada foi de 84.000$00 (oitenta e quatro mil escudos), sendo os duodécimos no valor de 7.000$00 escudos, vencendo-se no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior aquele a que diz respeito – cfr. doc. 2. - a decisão recorrida fundamenta tal decisão escrevendo “Encontra-se junta aos autos (…) o contrato de arrendamento em causa – elementos documentais esses importantes para a convicção do tribunal acerca d(o) objeto de contrato de arrendamento firmado entre as partes, o autor como senhorio e o marido da ré (na altura da celebração do contrato) como inquilino ou locatário”.
Ora, analisando o teor do referido contrato, tem de se concluir que tais factos encerram imprecisões, aliás, sem a mínima relevância para a boa decisão da causa e justa composição do litígio. Todavia, entende-se e espera-se que a ré/apelante pretenda que se apure toda a realidade factual, e assim sendo, apenas nos resta decidir que os factos n.ºs 3 e 4 do elenco factual provado passem a ter a seguinte redação:
3. O contrato de arrendamento atrás mencionado, foi realizado pelo prazo de 1 (um) ano, a começar a 1 de maio de 1993 e a terminar a 1 de maio de 1994, considerando-se prorrogado por sucessivos períodos iguais, enquanto por qualquer das partes não fosse denunciado. – cfr. doc. 2.
4. A renda anual estipulada durante o primeiro ano do contrato foi de 84.000$00 (oitenta e quatro mil escudos), sendo os duodécimos no valor de 7.000$00 escudos cada, vencendo-se no primeiro dia útil do mês a que respeitasse. – cfr. doc. 2.

No que concerne aos factos n.ºs 9 e 33 do elenco factual provado, ou seja:
9. A ré, apesar de pagar mensalmente todas as rendas, pelo menos desde 2017, deixou de residir no imóvel arrendando, fazendo do imóvel um mero depósito/armazém de bens e materiais.
33. A ré decidiu residir num outro local.
Defende, como se viu, a ré/apelante que há que expurgar tais factos do conteúdo conclusivo neles existente.
É certo que, segundo Karl Larenz, in “Metodologia da Ciência do Direito”, pág. 433 a “questão de facto” reporta-se ao que efetivamente aconteceu. Todavia, entende-se que na matéria de facto concorrem não apenas dados empíricos, mas todos os pressupostos objetivos do problema colocado, por exemplo, elementos sócio-culturais e até jurídicos, cfr. Castanheira Neves, in “Matéria de Facto-Matéria de Direito”, pág. 162. Defendendo já Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pág. 167 que a atividade do juiz se circunscreve ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo, apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos e que “tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é atividade estranha e superior à simples atividade instrutória”, in ibidem, pág.212.
Mais uma vez sem relevância para a boa decisão da cause e justa composição do litígio, decide-se alterar a redação apenas do facto n.º 9, passando dele a constar apenas a realidade objetiva e concreta que encerra.
Assim o facto n.º 9 do elenco factual provado passa a ter a seguinte redação:
9. A ré, apesar de pagar mensalmente todas as rendas, pelo menos desde 2017, deixou de residir no imóvel arrendando, mantendo no mesmo, bens e materiais.
Quanto ao facto 33 não se vê como encerre o mesmo uma conclusão ou juízo conclusivo, antes encerra um facto concreto emergente da vontade da apelante passível de prova, ou seja, ou um facto da vida psíquica da apelante (facto interno), que, por si só, não se pode considerar diretamente relacionado com o “thema decidendum” do presente litígio, nem, por si só, impede ou dificulta, de modo relevante, a perceção da realidade concreta em apreço apontando para determinada solução jurídica. Pois ainda como vem sendo entendido, “Dentro dos factos (processualmente relevantes), cabem não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível), diretamente captável pelas perceções do homem – ex propriis sensibus, visus et adictos), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (verbi gratia, a vontade real do declarante, o conhecimento dessa vontade pelo declaratário, o conhecimento por alguém de determinado evento concreto, as dores físicas ou morais provocadas por uma agressão corporal ou por uma injúria”.
Em suma, tendo-se provado que a ré/apelante decidiu ir residir noutro local, tal não implica qualquer juízo valorativo sobre as circunstâncias que a levaram a tomar tal decisão, sendo certo que nada nos autos indicia que a mesma não tenha agido no uso total das suas capacidades volitivas.
Daí que tal facto se mantenha inalterado.

No que concerne aos factos n.ºs 11,12, 14, 30, 31, 34, 35, 36 e 37 - julgados provados em 1.ª instância, ou seja:
11. O autor tentou, por diversas vezes, junto da ré, sensibilizar a mesma para a necessidade de proceder à entrega das chaves do imóvel arrendado, pois o mesmo estava devoluto, sem que a mesma o habitasse.
12. Sucede que todas as tentativas se revelaram infrutíferas uma vez que a ré se recusa a entregar as chaves do imóvel, apesar de nele não habitar.
14. Em face da recusa da entrega das chaves por parte da ré, o autor, por intermédio da sua mandatária, remeteu-lhe missiva comunicando-lhe a efetiva e integral resolução do contrato de arrendamento por abandono do imóvel (arrendado) ao abrigo do preceituado no artigo n.º 1083.º al) d) do Código Civil – cfr. doc. 4.
30. O autor pagou à empresa concessionária da Água e saneamento os ramais de acesso, mas a ré, não fez a ligação.
31. A empresa B... notificou a ré para proceder à ligação da água, mas a mesma até à data não o fez.
34. Os restantes inquilinos usam a água fornecida pela empresa B....
35. Caso a ré habitasse no arrendado, bastava fazer a ligação da água que de um dia para o outro tinha água no arrendado.
36. A casa está num estado de extrema degradação, cheia de silvas, com paredes a cair.
37. A ré abandonou a casa arrendada não a conservando.

A 1.ª instância fundamentou tais decisões dizendo que: “Encontram-se juntas fotografias do locado, a nível exterior, bem como da garagem onde se encontra o quadro da luz.
(…)
Encontra-se junta aos autos carta de resolução do contrato de arrendamento aqui em causa, enviada pelo autor/senhorio à ré/arrendatária, com o motivo invocado de falta de uso do locado por mais de um ano, ao abrigo do disposto no art.º 1083.º, al. d), do C.C.
(…)
Encontra-se junta aos autos conta corrente com as respetivas faturas e valores pagos entre janeiro de 2017 a 31 de maio de 2022, da A..., C.R.L., relativa aos consumos do local arrendado”.

Como é sabido os autos devem versar sobre factos materiais e relevantes qualquer que seja a solução de direito que venha a ser tomada para dirimir o presente litígio. Ou seja, tudo o demais carreado para os autos é absolutamente inócuo e apenas potencia um juízo de indeterminação do objeto do litígio.
Como refere Castanheira Neves, in obra citada, pág. 212 “tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é atividade estranha e superior à simples atividade instrutória”.
Ora vendo o que consta dos factos julgados provados em 1.ª instância sob os n.ºs 11, 12 e 14, ou seja, que o autor terá tentado, por diversas vezes, junto da ré, sensibilizar a mesma para a necessidade de proceder à entrega das chaves do imóvel arrendado, pois o mesmo estava devoluto, sem que a mesma o habitasse, sendo tais tentativas infrutíferas, razão pela qual o autor, por intermédio da sua mandatária, lhe remeteu a carta que constitui o doc. 4 -missiva resolutiva, é algo que talvez não seja de todo inapropriado para se aventar, em sede de p. inicial, o circunstancialismo que originou a interposição da presente ação, todavia, é algo absolutamente inócuo ao objeto do processo, mas tal resulta, como se vê da sentença recorrida, que a 1.ª instância se limitou a transcrever da p. inicial e dos demais articulados o que aí foi alegado, sem ter feito um juízo crítico do assim alegado.
Vem agora a ré/apelante impugnar a factualidade assim julgada provada em 1.ª instância, pedindo que seja julgada improcedente, por dela não ter sido feita a mínima prova.
Como se referiu, a questão, na sua essência, está em saber-se se estamos perante matéria de facto relevante para a decisão do presente litígio ou se estamos perante “juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos”. Evidentemente não estamos perante factos com qualquer relevância para a decisão do objeto do processo e, por outro lado, tem de concluir-se que se trata de meras conclusões valorativas e justificativas da interposição da presente ação.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, não se toma conhecimento da impugnação da respetiva decisão feita pela ré/apelante, antes se ordena a pura e simples eliminação do que consta dos pontos 11 e 12 do elenco factual provado nos autos.
Quanto ao facto n.º14 o mesmo passará a ter a seguinte redação: “14. O autor, por intermédio da sua mandatária, remeteu à ré, com data de 6.10.2021, missiva comunicando-lhe a resolução do contrato de arrendamento por abandono do imóvel (arrendado) ao abrigo do preceituado no artigo n.º 1083.º al) d) do Código Civil – cfr. doc. 4”.

No que concerne aos factos julgados provados sob os n.ºs 30 e 31, sempre se dirá que se não pode olvidar que está provado nos autos e não é impugnado pela ré/apelante que: “10. A ré não procedeu à ligação da água da rede pública e o contador da luz, cujo contrato está em nome do autor, não apresenta qualquer consumo, apenas é debitado pela cooperativa fornecedora de eletricidade – A A..., a taxa fixa referente ao contador”.
Ora, assim sendo, temos de concluir que não constando dos autos quaisquer documentos de onde resulte provada a realidade aí invocada, temos de concluir, desde já, além da inocuidade prolixidade de tal factologia, pela falta de prova bastante dessa realidade.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, ordena-se que o que consta do ponto 31 do elenco factual provado seja agora julgado não provado.
Mas já no que concerne ao facto 30, além de ser uma mera dedução do já assente nos autos, ou seja, de que a ré/apelante não procedeu à ligação da água da rede pública, e se não fez tal podendo-o fazer, foi porque o autor (ou outrem, mas não a ré) suportou junto da empresa concessionária da água e saneamento os custos com a instalação dos ramais de acesso ao locado, logo tal facto mantem-se provado.

No que respeita aos factos elencados na decisão recorrida sob os n.ºs 34 e 36 no complexo factual provado, ou seja, saber se quem é o fornecedor da água aos demais inquilinos e qual o atual estado atual do arrendado, sem olvidar o que já consta provado do facto 13. (ora não impugnado) ou seja, que: 13. Na parte exterior do imóvel arrendado são visíveis sebes altas – não realidade do global dos depoimentos das pessoas ouvidas nos autos, temos de concluir que nada foi referido quanto ao fornecedor de água aos restantes vizinhos/inquilinos do local, e assim sendo manifesto é de concluir que tal facto, além de irrelevante, tem se se considerar não provado.
Logo, há que o excluir do elenco factual provado nos autos o ponto 34.

Já no que respeita ao estado atual do locado em apreço nos autos, temos de reputar que, atento o global do depoimento das testemunhas ouvidas, mormente, o depoimento da testemunha DD, vizinha do locado, pois que vive ao lado do mesmo, há cerca de 8 anos, mas que não é inquilina do autor, a qual declarou muito assertivamente que “… a casa está totalmente deteriorada … não se pode caminhar … entrar …é perigoso… uma pessoa pode cair, … a porta está totalmente deteriorada … a janela …a casa de banho que está fora já nem tem porta…”, ou seja, esta testemunha relatou o que verificou do estado exterior do locado. Também a testemunha EE que é cunhada do autor e vizinha do locado há cerca de 23 anos relatou de forma segura, serena e convicta que, pelo que dá para ver da rua, e até julho/agosto passado quando a ré mandou alguém lá fazer uma limpeza, “…a casa tinha um silvado enorme à volta e que não permitia o acesso à mesma, … ninguém passava lá… a casa de banho que fica para a rua há muitos anos que não tem porta…já não tem estores… a casa está fechada, não é possível lá entrar”. Mais esta situação exterior do locado foi também comprovada de forma espontânea e isenta pelo autor, em sede das declarações de parte deste e ainda a própria ré/apelante no âmbito do seu depoimento declarou que quando lá foi em agosto passado “…havia uma parte da casa … a cozinha e a sala …não havia telhado…”.
Logo, interpretando e criticando os testemunhos prestados relativamente a tal questão julgamos ser de alterar o que consta do facto 36, provado nos autos, passando a estar provado que: 36. A casa apresenta um estado exterior de degradação, mormente com o acesso repleto de silvas.

Relativamente ao facto julgado provado e elencado sob o n.º 35 quanto à operação da ligação da água ao locado e tempo que levaria tal operação, temos por certo que nenhuma testemunha ouvida relatou o que quer que fosse sobre tal questão, logo, nada mais resta do que julgar tal facto como não provado, eliminando-o do complexo factual provado nos autos.

Finalmente, e no que respeita ao facto julgado provado sob o n.º 37, há que ter em mente que, segundo o ponto n.º9 do complexo factual julgado provado nos autos já em sede do presente recurso, está assente que: 9. A ré, apesar de pagar mensalmente todas as rendas, pelo menos desde 2017, deixou de residir no imóvel arrendando, mantendo no mesmo, bens e materiais e, ainda o que consta dos pontos 13 e 32, julgados provados nos autos e, ora não impugnados pela ré/apelante que: 13. Na parte exterior do imóvel arrendado são visíveis sebes altas. e, 32. Desde pelo menos 2017 a esta parte são inexistentes consumos de água e de energia no locado.

Logo, resta-nos concluir que o que consta do facto 37 é, em parte, mera redundância, e no restante, uma conclusão valorativa da alegada atuação da ré/apelante.
Destarte, e sem necessidade de outros considerandos, decide-se eliminar do complexo factual dos autos o que consta de tal ponto.

Finalmente, e no que respeita aos factos julgados não provados em 1.ª instância e elencados sob os n.ºs 5, 7, 8, 9, 10 e 11, ou seja:
5. Quando regressou ao locado, de um desses períodos, em 2017, constatou que não tinha energia elétrica, nem água.
7. Mas era mentira: o autor, mais uma vez, tinha cortado os cabos que, do mencionado quadro situado na garagem do rés-do-chão, conduziam a energia elétrica até ao locado e, não havendo energia elétrica, não é possível ter água, que é extraída do poço.
8. Ora, mau grado as instâncias da ré, e apesar de continuar a receber a renda devida, o autor sempre se recusou a restabelecer a ligação elétrica ao arrendado.
9. O que forçou a ré a ir viver, com apenas alguns pertences pessoais, para casa do seu filho.
10. Na medida em que, sem energia elétrica e água, bens absolutamente essenciais a qualquer lar, não era possível à ré manter-se a habitar o locado.
11. O cansaço e o desânimo que a conduta abusiva do autor desencadeou na ré, agravaram a sua depressão, razão por que, juntamente com a pandemia provocada pela COVID-19, não recorreu ao Tribunal para obrigar novamente o senhorio a cumprir o contrato.

Em fundamentação do assim decidido, consta da decisão recorrida que: “Quanto às condições de habitabilidade do locado, nomeadamente quanto aos alegados constantes e sucessivos cortes de energia elétrica e água no locado, que perdurariam, segundo alegado pela ré e seu filho (FF), por vários anos, o Tribunal questiona que assim tenha sido já que, desde 1999 não há qualquer notícia da
existência de qualquer processo no tribunal, de qualquer missiva escrita, interpelação oral dirigida ao senhorio aqui autor, queixa em qualquer entidade (…), tendentes a resolver qualquer problema relacionado com tais alegados cortes, sendo que resultou dos depoimentos que a ré tinha eletrodomésticos, inclusive máquina de lavar roupa, a qual só poderia trabalhar se “alimentada” por água e por eletricidade.
Resultou ainda, quer das declarações de parte, quer do depoimento do filho com quem a ré reside e que por vezes vai entregar a renda ao autor, que a renda foi sempre sendo pontualmente paga, na íntegra, sem nunca se ter feito qualquer pedido, reivindicação, intimação (…) quanto a eventuais faltas de ligação de água e de luz ao locado e exigências quanto à sua reposição.
Não é crível que a ré não tivesse condições de habitabilidade no locado, que desses factos não desse conhecimento ao senhorio, não reivindicasse condições para habitar no arrendado, e que continuasse a pagar a totalidade da renda, pontualmente, todos os meses, não reagindo de forma alguma contra tamanha situação! E segundo afirmaram a ré e o seu filho, esta situação desde sempre assim foi (…). Não é crível nem se coaduna com a lógica e com as regras da experiência.
A convicção que o tribunal formou (conjugando as declarações de parte da ré, do autor, das testemunhas ouvidas) - lidas à luz das regras da experiência e da normalidade da vida, é que o problema em apreço, que por vezes existia (sem se ter apurado ao certo a razão de tal acontecer e que posteriormente era reposta a normalidade), não foi de molde a inviabilizar o concreto gozo do locado.
Relativamente ao facto de a ré ter comunicado a existência destes alegados problemas ao senhorio não logrou a mesma provar que o tenha feito por escrito, nem sequer que o tenha feito verbalmente antes de entrar em incumprimento quanto à falta de residência permanente no locado por mais de um ano.
(…)
Provado ficou que a ré é acompanhada em consultas psiquiátricas de forma regular desde 02.09.2016, encontrando-se medicada para perturbação de ansiedade e síndrome depressiva, com antecedentes de ideação suicida.
Mais ficou provado que “problemas relacionados com sua casa e senhorio não ajudam à sua estabilidade clínica” – cfr. Declaração Médica assinada pelo Médico Psiquiatra Dr. HH.
Assim sendo, relativamente à matéria não provada, o Tribunal baseou a sua convicção na ausência de prova coerente e cabal quanto à mesma, nomeadamente (para além do que supra já ficou exarado) quanto ao facto de o estado de saúde da ré ter piorado com os problemas que alega que o locado apresentava e que implicaram que a mesma saísse de casa e que tal síndrome depressivo a obriga a procurar a companhia dos seus familiares mais próximos – os seus dois filhos – durante alguns períodos mais agudos – já que, para além da declaração médica junta e supra referida, não existe nada mais que ateste cabalmente tal facto”.
Pretende agora a ré/apelante que tais factos sejam julgados provados e, que lhes seja dada a seguinte redação:
5- O autor, em 2017, desligou os disjuntores do quadro elétrico situado na garagem do rés-do-chão, a que só ele tem acesso, que permitiam que a energia elétrica chegasse ao locado.
7- A ré, pelo menos desde 2017, falava pessoalmente com o autor, dando-lhe conta da situação de não haver energia elétrica, nem água, de que ele tinha conhecimento.
8- O autor, apesar de continuar a receber a renda devida, não restabeleceu a ligação elétrica ao arrendado, através dos mencionados disjuntores.
9- O que forçou a ré a ir viver, com apenas alguns pertences pessoais, para casa do seu filho.
10- Na medida em que, sem energia elétrica e água, não era possível à ré manter-se a habitar o locado.
11- A doença da ré e a pandemia provocada pela COVID-19, foram as causas daquela não ter recorrido ao Tribunal para obrigar novamente o senhorio a cumprir o contrato, como era sua intenção.

Depois de ouvida, cuidadosamente, a gravação de todos os depoimentos prestados em audiência, designadamente os chamados à colação pela ré/apelante – as declarações da própria e do autor; os depoimentos das testemunhas FF, EE e DD
- e intuindo dos silêncios, das frases incompletas, das contradições, das imprecisões da exposição e mesmo dos diversos níveis das vozes, que resultam bem audíveis, tudo devidamente analisado e interpretado à luz da plausibilidade e razoabilidade das coisas e da experiência da vida comum e ainda com o teor dos documentos juntos aos autos, não se encontram razões que permitam concluir que a decisão sobre a matéria de facto ora em apreço se encontre eivada de erro e, menos ainda, de erro manifesto ou grosseiro.
Na verdade, nenhuma das testemunhas ouvidas disse o que quer que fosse sobre tal factologia, à exceção da testemunha FF, filho da ré, e do que resulta dos depoimentos de parte, quer da ré quer do autor, sendo que este descreveu uma realidade totalmente contrária ao que consta dos factos em apreço, todavia e não obstante ser o autor no processo, ao longo do seu depoimento revelou ser pessoa simples, depôs com serenidade, evidenciando distância emocional com o que estava a relatar e com a contraparte dos autos.
Por seu turno, a ré, ao longo do seu depoimento, revelou-se exaltada quando confrontada com algumas questões, quando lhe apontavam contradições no depoimento, etc, pretendendo mostrar-se na “situação de vítima” do autor/senhorio e até dos vizinhos.
Finalmente a testemunha FF, filho da ré, prestou um depoimento de onde é evidente a falta de isenção, se espontaneidade e mesmo de plausibilidade do relatado.
Em suma, foram manifestas as contradições e respostas nada plausíveis apresentadas quer pela ré/apelante quer pelo seu filho FF, mormente quanto às condições de habitabilidade do locado quando nele residiam, no que respeita, principalmente ao serviço de eletricidade e de água e respetivas utilizações. E também quanto à saída da ré/apelante do locado para ir residir com um filho, como decorre das declarações da ré/apelante que acabou por declarar que, atualmente porque o filho vai viver com uma companheira e mudar-se para Lisboa, nada mais lhe resta do que voltar a residir no locado. Daqui se infere que, afinal e apesar de tudo, o locado mantém condições para a ré voltar a residir nele, ou seja, a sua saída durante tanto tempo do mesmo não se deve, primordialmente, à impossibilidade aí continuar a residir por falta absoluta de condições de habitabilidade, mas por mera conveniência.
Na realidade, e como bem se referiu na decisão recorrida, e é também a convicção por nós alcançada, e como é sabido, devendo o Juiz apreciar livremente todas as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, cfr. art.º 607.º n.º5 do C.P.Civil, pela análise crítica do global da prova produzida nos autos, não foi feita prova suficiente, cabal e segura da realidade dos factos julgados não provados em 1.ª instância, e ora em apreço, pelo que se mantêm tal decisão inalterada.
Procedem, assim, nos termos supra exposto, parcialmente as respetivas conclusões da apelante.

3.ªquestão – De Direito.
Os autos versam sobre um contrato de arrendamento urbano, que é o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um imóvel, no todo ou em parte, mediante retribuição, tendo o arrendamento urbano como fim a habitação e relativamente ao qual se pretende que seja declarada a sua resolução. Ou seja, por via da presente ação peticiona-se a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre o autor - BB e o marido da ré/apelante -GG – com fundamento no não uso do locado pela atual locatária, ora ré/apelante, durante mais de um ano.
Em termos sintéticos, e como é sabido, atualmente disposto nas diversas alíneas do art.º 1083.º n.º 2 do C.Civil (na redação dada pela Lei que aprovou o NRAU) deve porém inserir-se numa cláusula genérica de “inexigibilidade do cumprimento contratual”.
O proémio da norma diz: “é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio (…) d) o não uso do locado por mais de um ano (…)”.
A noção remete-nos, em termos de normalidade do acontecer, para um conceito de “justa causa subjetiva”, na medida em que envolve um juízo de censura ao arrendatário.
Ora, a al. d) do n.º 2 do art.º 1083.º inclui-se no âmago da “justa causa”, na medida em que inclui um fenómeno de não cumprimento, pelo locatário das obrigações legais e contratuais e do princípio da boa-fé.
Depois, é do próprio proémio citado que se retira que o incumprimento imputável culposo ao arrendatário deve assumir especial importância – aferida em função da natureza da infração, bem como do carácter reiterado da conduta irregular, neste sentido, Pinto Monteiro e Paulo Henriques, in “O Direito”, 2004/II-III, pág. 293.
Todos esses elementos se devem conjugar ou conduzir à inexigibilidade da prestação a cargo do senhorio.
Como refere Pinto Furtado, in “Manual de Arrendamento Urbano”, Vol. II, pág. 1062agora, é um dado certo que, estejamos perante o encerramento de espaço arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, ou então perante desabitação ou simples falta de residência permanente do espaço arrendado para habitação, sempre, em qualquer destes casos, a falta de uso por mais de um ano torna inexigível a manutenção do contrato por parte do senhorio, é fundamento de resolução por este.
Em suma, deixou de haver a nossa anterior distinção entre falta de residência permanente e desabitação: o não uso tanto pode consistir numa total desocupação do espaço arrendado como apenas numa simples residência intermitente ou não permanente, quando o arrendamento tenha sido dado para residência primária do arrendatário e seu agregado familiar”.

3.1.- Do não uso do locado por mais de uma ano.
In casu” o fundamento invocado pela demandante para a resolução do contrato foi, como já se disse, o “não uso do locado por mais de um ano”. Este fundamento está previsto na al. d) do n.º 2 do art.º 1083.º do C.Civil, que dispõe que é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio, “o não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do art.º 1072.º”. Ou seja, 2 - É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio: d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º”.
E preceitua o n.º 2 do art.º 1072.º do C.Civil que: “2 - O não uso pelo arrendatário é lícito:
a) Em caso de força maior ou de doença;
b) Se a ausência, não perdurando há mais de dois anos, for devida ao cumprimento de deveres militares ou profissionais do próprio, do cônjuge ou de quem viva com o arrendatário em união de facto;
c) Se a utilização for mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano.
d) Se a ausência se dever à prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau de incapacidade superior a 60 /prct., incluindo a familiares”.
No caso em apreço, era ónus do autor/senhorio a alegação e prova dos factos integradores do invocado fundamento de resolução, cfr. art.º 342.º, n.º 1, do C.Civil e, por seu turno, cabia à réu/arrendatária a prova da justificação do não uso do imóvel, cfr. art.ºs 342.º, n.º 2, e 1072.º, n.º 2, ambos do C.Civil.
A 1.ª instância com base no complexo fáctico provado nos autos, mormente como se expressou na decisão recorrida “…estando demonstrado o incumprimento do contrato de arrendamento pelo não uso do locado por parte da ré e bem assim a gravidade objetiva de tal incumprimento nenhuma circunstância se apurou que possa justificar a imposição ao autor/senhorio da manutenção do contrato de arrendamento, o que levará a declarar resolvido o contrato de arrendamento”.
Está provado nos autos que:
Ora, está provado nos autos que:
- o contrato de arrendamento urbano para habitação em apreço nos autos, celebrado entre autor, ré e marido desta fixava que o arrendatário, ora ré/apelante, deveria fazer um uso prudente do imóvel arrendado, ficando a seu cargo todas as obras de beneficiação, de limpeza dos interiores e as de manutenção do bom estado e funcionamento das instalações elétricas, ficando ainda responsável pelas despesas com luz, saneamento, gás e telefone.
- a ré continuou a pagar pontualmente a renda, no valor de €51,00, incluindo o mês de maio de 2022, e suportou o pagamento das despesas do contador de energia elétrica do
local arrendado, que lhe são debitadas na sua conta pela cooperativa “A A...”.
- A ré, apesar de pagar mensalmente todas as rendas, pelo menos desde 2017, deixou de residir no imóvel arrendando, mantendo no mesmo, bens e materiais.
- a ré decidiu residir num outro local.
- desde pelo menos 2017 a esta parte são inexistentes consumos de água e de energia no locado.
- a casa apresenta um estado exterior de degradação, mormente com o acesso repleto de silvas.
- na parte exterior do imóvel arrendado são visíveis sebes altas.
Como acima se decidiu, em sede de impugnação e reapreciação da matéria de facto julgada em 1.ª instância, o complexo fáctico aí julgado provado e não provado não sofreu alterações com relevância para a aplicação do Direito aos mesmos, tal como foi realizada na sentença recorrida, que aliás não nos merece qualquer censura.
Improcedem as respetivas conclusões da ré/apelante.

3.2. – Do alegado caso de força maior.
Mas como se vê, a ré/apelante vem, por fim, defender que se não pode concluir, que a falta de energia elétrica (e de água) “não foi de molde a inviabilizar o concreto gozo do locado” e ainda que “não se apurou que a desocupação do local arrendado por mais de um ano foi devida a caso de força maior ou sequer que, em razão do estado do imóvel, as condições de gozo do locado tivessem sofrido uma significativa diminuição, em termos de não ser razoável exigir à ré que nele habitasse”.
Como se viu, o n.º 2 do art.º 1072.º do C.Civil preceitua que: ”2 - O não uso pelo arrendatário é lícito:
a) Em caso de força maior (…)”.
Trata-se se uma causa de exclusão da ilicitude da violação da supra referida obrigação do arrendatário tipificada na lei. E vem-se entendendo que o caso de força maior capaz de impedir a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na al. d) do n.º 2 do art.º 1083.º, terá de consistir numa circunstância exterior ao arrendatário, mas que o impede de usar o locado (habitá-lo, ocupá-lo, etc.). Todavia, a lei não nos define o conceito de caso de força maior, daí que como refere Vaz Serra, in BMJ 46/46 “as características que usualmente se atribuem ao caso fortuito ou se força maior são a imprevisibilidade, a inevitabilidade e o causarem a impossibilidade de cumprir”, referindo, por seu turno, Antunes Varela, in RLJ, ano 116, pág. 192 que “no caso de força maior cabem, de modo especial, os impedimentos resultantes de forças da natureza (abalo sísmico, inundação grave, raio) ou de atos insuperáveis da autoridade ou mesmo de particulares (realização de obras públicas de demolição ou desaterro, ocupação militar, guerra, revolução)” pelo que será “à luz desses critérios que as situações concretas devem ser apreciadas a fim de se determinar a existência ou não de força maior”.
Ora, está provado nos autos que:
- o contrato de arrendamento urbano para habitação em apreço nos autos, celebrado entre autor, ré e marido desta fixava que o arrendatário, ora ré/apelante, deveria fazer um uso prudente do imóvel arrendado, ficando a seu cargo todas as obras de beneficiação, de limpeza dos interiores e as de manutenção do bom estado e funcionamento das instalações elétricas, ficando ainda responsável pelas despesas com luz, saneamento, gás e telefone.
- o autor autorizou que a é utilizasse para consumo doméstico a água do seu poço. como contrapartida a ré e o marido responsabilizavam-se pelo custo de qualquer avaria que sucedesse com o motor do poço – Doc. 2.
- a certa altura, o motor avariou, e a ré e o marido não o consertaram, pois queriam que fosse o autor a custear a despesa com o conserto do motor, quando o acordado era ser a ré e o marido a pagar as reparações necessárias. – cfr. Doc.
- em 20 de Outubro de 1999, o autor, a ré e o marido celebraram um acordo no qual o autor obrigava-se a restabelecer o fornecimento de água e a entregar uma chave de acesso ao quadro de ligação da água e a ré e o marido além de liquidarem a quantia referente à reparação do poço do motor, obrigavam-se a fazer um uso prudente da água proveniente do poço, utilizando-a para serviços e limpezas domésticas. – cfr. Doc. 3.
- em 1999, o autor não restabeleceu o fornecimento de água ao arrendado.
- o autor mais uma vez teve que custear uma reparação do motor da água – Doc. 5.
- em Fevereiro de 2003, a ré recebeu a chave que dava acesso ao motor da água.
- o autor pagou à empresa concessionária da água e saneamento os ramais de acesso, mas a ré, não fez a ligação.
- não existe um quadro elétrico separado para aquele e o quadro situa-se no rés-do-chão do prédio a que somente o senhorio tem acesso.
- a ré não procedeu à ligação da água da rede pública e o contador da luz, cujo contrato está em nome do autor, não apresenta qualquer consumo, apenas é debitado pela cooperativa fornecedora de eletricidade – A A..., a taxa fixa referente ao contador.
- a ré continuou a pagar pontualmente a renda, no valor de €51,00, incluindo o mês de maio de 2022, e suportou o pagamento das despesas do contador de energia elétrica do local arrendado, que lhe são debitadas na sua conta pela cooperativa “A A...”.
- A ré, apesar de pagar mensalmente todas as rendas, pelo menos desde 2017, deixou de residir no imóvel arrendando, mantendo no mesmo, bens e materiais.
- a ré decidiu residir num outro local.
- desde pelo menos 2017 a esta parte são inexistentes consumos de água e de energia no locado.
- a casa apresenta um estado exterior de degradação, mormente com o acesso repleto de silvas.
- na parte exterior do imóvel arrendado são visíveis sebes altas.
Ora, perante este complexo fáctico, como acima já se aludi, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida quando concluir estarem reunidos os requisitos legais de resolução do contrato de arrendamento em apreço por “não uso” do locado há “mais de um ano”, previstos na al. d) do n.º 2 do art.º1083.º, do C.Civil, pois é inquestionável que a ré não reside no locado com habitualidade e estabilidade, uma vez que, para tal, utiliza a casa de um filho, desde pelo mesmo 2017, e assim, não sendo temporária a ausência da arrendatária, não há razão para lhe garantir habitação no arrendado, estando reunidos os fundamentos legais que permitem ao senhorio, ora autor, a resolução do contrato de arrendamento, pois que é, atenta a gravidade e/ou consequências, inexigível ao autor/senhorio a manutenção do arrendamento.
Mas, como se viu, vem a apelante defender que a falta de energia elétrica e de água constituem uma diminuição significativa das condições de gozo do locado, não lhe sendo exigível que se mantivesse nele. Ademais, alega a mesma, que, segundo defende, foi o autor/senhorio quem criou a situação da falta de energia elétrica e de água no locado, tornando aquele espaço, de todo, incompatível com a habitação, razão pela qual teve de ir viver para casa do seu filho em 2017, e assim a intentar a presente ação está o autor a agir em abuso de direito.
Mas também não lhe assiste direito.
Na verdade, atento os factos provados nos autos, sem se olvidar o estado do próprio locado quando foi dado e recebido de arrendamento, sendo que é de tal facto que se pode aferir do cumprimento ou não das obrigações decorrentes para os contratantes. Certo que também se não pode olvidar a evolução da própria sociedade e as necessidades dos próprios cidadãos que assim também evoluíram.
Como se escreveu no Ac. da Rel. de Lisboa de 1.02.2007, in www.dgsi.pt, “a força maior que está na base da não habitação ou da falta de residência permanente … só pode ser uma impossibilidade objetiva não imputável ao arrendatário, não uma situação em que simplesmente seria compreensível, aceitável ou perfeitamente explicável a não habitação ou a falta de residência permanente”. Em suma, segundo entendemos,
o “caso de força maior”, apto a impedir a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na al. d) do n.º 2 do art.º 1083.º, tem de consistir numa circunstância exterior ao arrendatário mas que o impede de usar e fruir do locado, nele residindo, complementando-se, como resulta do Ac. da mesma Rel. de 24.11.2015, também in www.dgsi.pt, que é na ideia de imprevisibilidade e na circunstância de haver impossibilidade não imputável ao devedor que geralmente se coloca o acento tónico do conceito de força maior a que se refere a al. a), do n.º2, do citado art.º1072.º.
É certo que estamos perante um contrato de arrendamento, onde à data, todos sabiam que o mesmo não possuía ligação a qualquer rede de fornecimento de água a saneamento públicos (que ao que parece era inexistente no lugar), mas que era fornecido pela água provinda de um poço particular, servido por um motor próprio para a extração e fornecimento de água ao locado. Quanto ao fornecimento de eletricidade ao locado, também o mesmo à data do arrendamento e desde então para cá é um tanto particular, pois o respetivo contador da luz, cujo contrato está em nome do autor/senhorio, ou seja, não existe um quadro elétrico separado para o locado, situando-se o mesmo no rés-do-chão do prédio a que somente o senhorio tem acesso.
Mas o certo também é que, tirando umas questões derivadas da avaria do motor do poço, certo é que a ré/arrendatária se conformou, pelo menos até 2017, a nele residir naquelas condições e circunstancialismos, não tendo sequer feito qualquer alegação e consequente prova de que diligenciou junto do autor senhorio pela melhoria das condições de habitabilidade do locado, mormene com a realização de obras para a instalação de tubagem e torneiras de água nas divisões do locado, onde nelas atualmente são necessárias, nem pela separação da rede de fornecimento de energia elétrica e consequente colocação do respetivo quadro no locado em seu nome. Tendo-se por seu turno, provado que a ré, não obstante o autor/senhorio ter pago à empresa concessionária da água e saneamento os ramais de acesso, não diligenciou pela respetiva ligação do fornecimento de água da rede pública ao locado.
De todo este complexo fáctico analizado à luz da plausibilidade das coisas, temos de concluir, que não obstante as condições objetivas de habitabilidade do locado, serem, considerando a normalidade das coisas, deficientes nos dias de hoje, certo é que não foram essas circunstâncias – exteriores à arrendatária - que determinaram que a mesma, pelo menos desde 2017 deixasse de residir no locado e fosse residir noutro local com um filho. Não se pode olvidar que à mesma é imputável o facto de não possuir no locado fornecimento de água e saneamento da rede pública. Mais, também se não pode olvidar o facto de a ré/arrendatária ter sempre pago as rendas relativas ao locado, mesmo desde 2017, ou seja, da data em que deixou de nele residir, sem ter sequer alegado e, consequentemente, provado que, vez alguma demandou o autor/senhorio pedindo a realização de quaisquer obras ou outros procedimentos para melhor as condições de habitabilidade do locado, como condição para nele voltar a ter a sua residência, aliás é pertinente para o afastamento da ideia de que a ré/apelante deixou de residir no locado por uma situação de força maior, quando a mesma, em sede de declarações de parte revela que pretende voltar a residir no locado (ou seja, nas mesmas condições que existiam em 2017- mormente piores dada a naturação degradação decorrente do não uso durante estes anos de ausência), porque, por razões familiares, não poderá continuar a residir com o filho…
Improcedem, pois, as respectivas conclusões da ré/apelante.

3.3. – Do alegado abuso de Direito.
Finalmente, a ideia subjacente à defesa da ré/apelante fundada no abuso de direito, mormente na proibição do venire contra factum proprium reside na tutela da confiança e na constatação de que o assumir de comportamentos contraditórios viola a norma da observância da boa fé, afirmação esta que é comum na doutrina e na jurisprudência.
Na verdade, a proibição do venire contra factum proprium é uma das modalidade do abuso de direito, cfr. art.º 334.º, do C. Civil, através da fórmula legal que considera ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda limites impostos pela boa fé, cfr. o Ac. do STJ, de 17.01.2002, in CJ, Ano X, tomo I, pág.48 e Baptista Machado, citado nessa Ac., in “Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium”, “Obras Dispersas”, vol. I, pág.385.
Como é sabido, são pressupostos da imputação da consequência jurídica do venire contra factum proprium, neste sentido, Baptista Machado, in ob. cit., pág.416, “I – uma situação objetiva de confiança (uma conduta que possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação ao desenvolvimento futuro de certa situação); II – investimento na confiança e irreversibilidade desse investimento (que o facto gerador da confiança se apresente como o determinante, em termos de causalidade, a influenciar as decisões da contraparte); III – boa fé da contraparte que confiou (a confiança da contraparte só merecerá proteção jurídica quando esta esteja de boa fé e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico”.
Subjacente a tal instituto está a boa fé, como princípio normativo de atuação de qualquer um, cfr. (art.º 762.º, n.º2, do C.Civil, de onde resulta o entendimento de que as pessoas devem ter um comportamento honesto, leal, diligente, zeloso, em termos de não frustrar o fim prosseguido pelo contrato e defraudar os legítimos interesses ou expectativas da outra parte.
Ora, do complexo fáctico apurado não resulta minimamente indiciado, mormente pelo facto de o autor/senhorio ter recebido as rendas do locado, pagas mensalmente pela apelante, mormente desde que a ré nele deixou de ter a sua residência, que um normal cidadão normal, colocado na posição da ré/apelante, tivesse por tal razão criado legítima convição de que o autor/senhorio jamais iria interpor uma ação para que fosse decretada a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no não uso por mais de um ano. Logo. Não se pode concluir que o autor/apelado atue em abuso de Direito.
Pelo que improcedem as derradeias conclusões da ré/apelante.
Logo, apeasr das pontuais alterações à decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância, há que confirmar a decisão recorrida.

Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, confirmando-se decisão recorrida.

Custas pela ré/apelante.



Porto, 2024.01.16
Anabela Dias da Silva
Rodrigues Pires
Márcia Portela