Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | FERNANDO SAMÕES | ||
Descritores: | SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL ACIDENTE RESULTANTE DO FUNCIONAMENTO DE UMA GRUA ACOPLADA A UM VEÍCULO | ||
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Nº do Documento: | RP201202153845/09.2TBPRD.P1 | ||
Data do Acordão: | 02/15/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO. | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | O acidente resultante do funcionamento de uma grua acoplada a um veículo que se encontrava imobilizado, ocorrido durante operações de carga e descarga, não está coberto pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel relativo a esta viatura, por os danos por ele causados não resultarem dos riscos próprios do veículo e por estarem, legal e convencionalmente, excluídos da garantia do seguro. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3845/09.2TBPRD.P1 * Relator: Fernando Samões1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha 2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção: I. Relatório B…, residente na …, n.º .., …, Paredes, instaurou, em 20/11/2009, no Tribunal Judicial da Comarca de Paredes, onde foi distribuída ao 1.º Juízo Cível, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra a Companhia de Seguros C…, S.A., com sede na …, n.º …, Lisboa, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 112.700,00 €, acrescida de juros à taxa anual de 4%, desde a citação e até integral pagamento. Para tanto, alegou, em resumo, que, no dia 7 de Maio de 2009, pelas 18 horas, na Rua …, …, Paredes, quando se encontrava apeado, foi atingido por um pedaço de um bloco de cimento que estava a ser movimentado por uma grua que fazia parte do equipamento do veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-..-NQ, a qual estava a ser tripulada por D…, por culpa exclusiva deste, tendo daí resultado danos patrimoniais e não patrimoniais que pretende ver indemnizados, pelos quais é responsável a ré por força do contrato de seguro celebrado com aquele, proprietário desse veículo. A ré contestou aceitando a ocorrência do sinistro, mas negando tratar-se de um acidente de viação, por ter resultado de uma operação de carga e descarga, excluída da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, e impugnando outros factos, nomeadamente, os danos, concluindo pela improcedência da acção. O autor replicou negando tratar-se de uma operação de carga e descarga, concluindo como na petição inicial. Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador tabelar e procedeu-se à condensação, com selecção dos factos considerados assentes e organização da base instrutória, de que reclamou, com êxito, a ré. Prosseguiram os autos para julgamento, ao qual se procedeu com observância das formalidades legais aplicáveis, tendo a matéria de facto controvertida sido decidida nos termos que constam do despacho de fls. 194 a 196, que não foi objecto de qualquer reclamação. E, em 27/10/2011, foi elaborada sentença que julgou a acção improcedente, com a consequente absolvição da ré do pedido. Inconformado com o assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação para este Tribunal e apresentou a correspondente alegação com as conclusões que aqui se transcrevem: “1./ Nos termos do Art.503 nº 1 do C. Civil compreende-se no conceito de “riscos próprios do veículo” tudo o que se relacione com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento. Fora do círculo de danos abrangidos pela responsabilidade ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo, os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, entendendo-se como tal os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel. 2./ A grua em causa neste acidente é uma grua auxiliar que não tem autonomia face ao pesado de mercadorias, sendo tão só um acessório, que até - como é do conhecimento geral - só funciona com o motor do pesado de mercadorias ligado e a trabalhar e com a energia que por ele lhe é transmitida. 3./ O acidente está relacionado com os riscos próprios do funcionamento deste concreto pesado de mercadorias, integrado de uma grua auxiliar, que o completa e optimiza na sua função e fim de transporte de mercadorias, e por isso os riscos inerentes à sua circulação enquanto “unidade circulante”, está coberto pelo seguro automóvel, tanto mais que a função da grua é indissociável da função do pesado de mercadorias. 4./ Tanto assim é que o Estado não prescinde da tutela e prevenção dos riscos destas gruas auxiliares acopladas a veículos pesados de mercadorias. De facto, a instalação de gruas auxiliares em veículos pesados de mercadorias rege-se pelo Despacho da Direcção Geral de Viação n.º 877/2003 de 16 de Janeiro. Assim a montagem de gruas em automóveis de mercadorias constam no documento de identificação do veículo em anotações especiais, e a verificação das condições técnicas da montagem de gruas é efectuada através da especificação técnica da montagem e de inspecção extraordinária ao veículo, que incide entre outros aspectos sobre as cargas por eixo, as condições de fixação da grua ao quadro, a largura do veículo com grua e o comprimento da caixa, não podendo ser ultrapassados os limites de peso por eixo definidos na aprovação do modelo do veículo e não podendo ainda o comprimento da caixa com grua exceder para trás do eixo da retaguarda dois terços da distância entre-eixos do veículo. 5./Não faria qualquer sentido o Estado impor que a grua auxiliar, à semelhança das demais características do veículo pesado de mercadorias – por ex. tipo de motor, cilindrada, tipo de combustível, chassis etc. etc. - tivesse que ser sujeita a uma rigorosa inspecção e de constar do documento de identificação do veículo, e depois para efeitos do conceito de riscos próprios do veículo, essa parte do veículo - a grua - fosse excluída. 6./Poderá dizer-se que este tipo de veículos tem um risco acrescido, mas não que a grua implique um risco impróprio do veículo porque a grua não é estranha muito menos totalmente estranha à função do pesado de mercadorias - o transporte de cargas. Nos acidentes de viação os riscos próprios de cada veículo devem ser aferidos em função da sua concreta capacidade danosa, 7./ Ao que acresce que, a condução de veículo não se circunscreve ao acto de dirigir ou guiar o veículo, inclui também os cuidados a ter com a manutenção e as condições do seu bom e correcto funcionamento, bem como com o transporte de pessoas, cargas e objectos, bem assim, com a própria utilização na via dos concretos acessórios. 8./ Um pesado de mercadorias com estas características, no seu desempenho laboral para com a grua a trabalhar, ao ocupar parte da via, constitui um risco enorme para os utentes desta, devendo por isso considerar-se que a sua actividade está relacionada com os riscos da actividade diária com cobertura do seguro automóvel de responsabilidade civil. 9./ Pelo que, riscos próprios do veículo são os riscos que advêm da presença na via de um veículo com umas determinadas características (as que constam do doc. Único de circulação) para todos os utentes das vias públicas. 10./ Existe efectivamente um nexo causal entre o acidente e os especiais perigos que a utilização do veículo nele interveniente comporta, uma vez que o risco próprio do veículo resultou de função que lhe é própria e para a qual sob vários aspectos está apetrechado incluindo uma grua – transporte de carga e mercadorias. 11./ Por outro lado, 12./ A analogia do acidente dos autos com o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 4/04/2006 não é feliz. É que o Acórdão citado ocupa-se de uma máquina de terraplanagem cujo fim principal é efectuar movimentação de terras e só acessoriamente a circulação terrestre, enquanto na situação dos presentes autos o fim principal do pesado de mercadorias é a circulação terrestre no transporte de mercadorias, equipado, para o fim a que se destina com uma grua. 13./ Resulta claramente da matéria de facto dada como provada que o acidente em questão nos autos não foi consequência de uma operação de descarga pois a descarga (de madeira), quando se verificou o acidente, já estava concluída. O acidente ocorreu “após uma operação de descarga de madeira”, pretendendo o condutor deslocar alguns metros para o lado um bloco de cimento para servir de travão às madeiras. 14./ Mesmo que o acidente tivesse sido consequência de uma operação de carga ou descarga inevitavelmente teríamos de considerar nula a cláusula inserta nas condições gerais do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel (cláusula 5 nº 4 alínea b) que exclui da garantia obrigatória do seguro quaisquer danos causados a terceiros em consequência de operações de carga e descarga. 15./ A circunstância de as cláusulas gerais do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel serem aprovadas pelo Instituto de Seguros de Portugal e publicadas em Diário da República, não as subtrai ao regime das cláusulas contratuais gerais, revestindo tal contrato de seguro a natureza dum contrato de adesão, que se encontra, nessa medida, sujeito ao regime consignado no Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 220/95, de 31 de Agosto e pelo Decreto-lei nº 249/99, de 7 de Julho. 16./ E as cláusulas limitativas de responsabilidade não podem revestir uma abrangência tal que acabem por esvaziar, na prática, o direito fundamental do consumidor à reparação dos danos, protegido constitucionalmente pelo artº 60º, nº 1, da Constituição da República 17./ Analisando os termos da cláusula do seguro que exclui quaisquer danos causados consequência de operações de carga e descarga teremos de concluir, que se devidamente ponderada, muito dificilmente um declaratário normal cuja actividade normal é o transporte de carga a quem tivesse sido colocada a proposta de contrato aceitaria concluí-lo com a citada cláusula, pois esta esvaziaria quase completamente a função do seguro tornando-o perfeitamente inútil. 18./ Por outro lado o bloco de cimento que estilhaçou e originou os danos não constituía carga. É que os conceitos de carga e objectos não coincidem necessariamente, já que pode perfeitamente conceber-se a hipótese de uma viatura transportar objectos que não constituam carga e no caso dos presentes autos, o pesado de mercadorias deslocava um objecto (bloco de cimento) e não carga. 19./ Esta é a interpretação que se nos afigura mais razoável e também nomeadamente à luz do disposto nos artigos 10 e 11º nº 1 e 2 do DL 446/85 de 7 de Julho de harmonia com o qual "na dúvida prevalece o sentido mais favorável ao aderente". 20./ Nos termos dos artigos 5º nº 1, 8º a), 12º, 18ºdo Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro e 3º e 37º nº3 do Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de Abril não mostrando ter a Ré/Recorrida comunicado a cláusula de exclusão ao A. Recorrente, tão pouco que a tenham realçado ou destacado no clausulado do contrato, sempre a mesma teria que considerar-se nula e excluída no caso em análise. 21./ Acresce que sempre seria nula a cláusula nos termos do art. 280 nº1 do C. Civil que, num contrato de seguro de veículo de transporte, exclui da cobertura as situações de carga e descarga, porquanto incompatíveis com a própria natureza do seguro, já que tais operações são inerentes à actividade do veículo da classe pesado de mercadorias. 22./ Sem prescindir, 23./ O contrato seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel garante não só a responsabilidade civil do obrigado a segurar com base no risco que a circulação automóvel acrescenta para os demais utentes da via, como também a sua responsabilidade com base na culpa. 24./ Pelo que mesmo que se viesse a entender que não estava em causa neste processo a responsabilidade pelo risco, nem por isso a R./Recorrida deixaria de responder com base na responsabilidade por factos ilícitos pois resulta claramente dos factos provados que o condutor do pesado de mercadorias violou culposamente o disposto no art. 56 nº 2 e 3 b) do Código da Estrada. 25./ Na verdade actua com inconsideração um condutor que, depois de parar o pesado de mercadorias em local por onde circulavam peões, com o motor a trabalhar e com o auxílio da grua acoplada à viatura, pretende deslocar um bloco de cimento muito pesado, envolvendo-o deficientemente por forma a que se soltassem lascas e pedaços que lançados sobre a via foram atingir um peão que por ali passava. 26./ Reunidos assim que estão os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos sempre a R./Recorrida teria que responder. 27./ Revogando-se a sentença recorrida e proferindo-se Acórdão que acolha as conclusões precedentes e conclua tal como na PI condenando-se a R./Recorrida nos pedidos SE FARÁ JUSTIÇA”. A ré contra-alegou pugnando pela confirmação da decisão recorrida. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 707.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso. Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável), e não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, as questões que importa dirimir consistem em saber se o sinistro verificado se inclui, ou não, nos riscos cobertos pelo seguro contratado e, na afirmativa, determinar a medida da responsabilidade da ré. II. Fundamentação 1. De facto Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos: 1. No dia 7 de Maio de 2009, cerca das 18.00 h, na Rua …, freguesia de …, concelho de Paredes, junto à E…, o veículo pesado de mercadorias equipado com grua, com a matrícula ..-..-NQ, tripulado por D…, estava imobilizado na hemi-faixa direita de rodagem e junto ao limite da mesma, atento o sentido ascendente daquela Rua e o A. encontrava-se apeado no solo, a cerca de 2 m do vértice direito traseiro do ..-..-NQ. 2. O veículo com a matrícula ..-..-NQ está equipado com uma grua/guindaste utilizada para a elevação, deslocação e movimentação quer de cargas quer de materiais pesados. 3. Naquela data, hora e local, o referido D…, após imobilizar o veículo de matrícula ..-..-NQ, na hemi-faixa direita de rodagem e junto ao limite útil da mesma, passou a operar com a grua. 4. Pois pretendia deslocar alguns metros no solo, para o lado, um bloco de cimento composto por diversos mecans que se encontrava depositado no solo junto à parte lateral direita do ..-..-NQ. 5. Prendeu o cadeado da grua à volta do bloco, e accionando os comandos da grua, iniciou o movimento ascensional do bloco do solo, com vista a colocá-lo também no solo alguns metros ao lado. 6. Enquanto tal acontecia, o A. encontrava-se apeado no solo a assistir àquela manobra, a cerca de 2 m do vértice direito traseiro de ..-..-NQ. 7. Quando o D… já havia elevado o bloco de mecans, inesperada e repentinamente, o cadeado que envolvia o bloco resvalou, desprendeu-se, ao mesmo tempo que desfazia em pedaços e lascas o bloco. 8. Fazendo saltar e projectar um desses pedaços ou lasca contra a mão esquerda do A. 9. A força do impacto entre o pedaço de mecan contra a mão esquerda do A., originou a amputação imediata dos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º dedos da mão esquerda do A. 10. D… havia transferido a responsabilidade por todos os danos causados pelo ..-..-NQ, através da apólice n.º ………. para a R.. 11. O A. nasceu a 2/05/1963. 12. O bloco tinha um peso superior a 150 Kg. 13. Mercê da projecção do pedaço/lasca do bloco de mecans contra a mão do A. sofreu este diversas e graves lesões, algumas das quais jamais recuperará. 14. Essas lesões consistiram em: a) amputação do polegar da mão esquerda pela articulação interfalangica; b) amputação do indicador da mão esquerda pela articulação metocarpo-falangica; c) amputação do médio da mão esquerda pela articulação metocarpo-falangica; d) amputação do anelar da mão esquerda pela articulação interfalangica proximal. 15. Mercê dessas lesões, o A: • Recebeu os primeiros socorros e tratamentos no Centro Hospitalar …, Penafiel E.P.E.; • Foi transferido no mesmo dia para o Hospital … no Porto, tendo regressado ao Centro Hospitalar …, Penafiel EPE; • Foi operado com anestesia geral no Centro Hospitalar …, Penafiel EPE, onde esteve internado alguns dias; • Realizou múltiplos tratamentos de fisioterapia e recuperação: • Esteve totalmente incapacitado para o trabalho desde a data do acidente até 7/07/2009 e está totalmente e definitivamente incapacitado para o seu trabalho habitual. 16. Apesar de clinicamente curado o A. apresenta uma incapacidade permanente geral de 23 pontos. 17. Na altura do acidente o A. era um adulto perfeito e saudável. 18. À data do acidente, o A. encontrava-se desempregado da profissão de carpinteiro, profissão essa que em exclusividade sempre exerceu durante toda a sua vida, nunca tendo tido outra. 19. Caso estivesse na altura empregado o A. auferiria mensalmente pelo menos a quantia de 450,00 € equivalente ao salário mínimo nacional, com direito a subsídio de férias e de Natal. 20. À data do acidente, o A. tinha a 4.ª classe do antigo ensino primário e não possuía outra habilitação ou formação que lhe permitisse exercer outra actividade profissional. 21. As lesões supra descritas são, em termos de rebate profissional, impeditivas do exercício da actividade profissional habitual. 22. O acidente, os ferimentos, os tratamentos a que o A. teve de submeter-se causaram-lhe fortíssimas dores, tristeza e medo. 23. O A. sofre psicologicamente pelo reconhecimento que tem de fazer de que padece das lesões supra referidas e das consequentes limitações. 24. Durante o período de incapacidade fixável desde 7/05/2009 até 7/06/2009 teve sofrimento físico e psicológico correspondente a um quantum doloris fixável no grau 4 numa escala de 7 graus de gravidade crescente. 25. As lesões sofridas pelo A. provocaram-lhe um dano estético fixável num grau 4/7. 26. Os factos em causa ocorreram nos termos descritos em 3) a 9) imediatamente após uma operação de descarga de madeira do veículo NQ para o solo através da grua a que se refere o ponto 1), destinando-se o bloco de mecans a servir de travão às madeiras que haviam sido depositadas no solo. 27. Depois do tripulante ter imobilizado o veículo de matrícula ..-..-NQ junto ao limite direito da hemi-faixa direita da Rua …, desceu da cabine e deslocou-se para a lateral do veículo, para junto dos comandos de mencionada grua. 28. Depois dos factos supra descritos em 27, o tripulante começou a manobrar a grua por forma a deslocar um bloco de cimento composto por diversos mecans nos termos descritos em 3) e 5). 29. Depois de prender o dito bloco de cimento com um cadeado, levantou esta estrutura do solo com o gancho da grua com vista a deslocá-lo alguns metros para o lado. 30. Quando se achava elevado no ar o bloco de cimentos partiu-se, desfazendo-se em pedaços e lascas. 31. Foi um desses pedaços ou lascas do bloco de cimento que atingiu a mão esquerda do autor, causando nela ferimentos. 2. De direito Os factos acabados de transcrever não foram impugnados em sede de recurso, nem é caso para os alterar nos termos do art.º 712.º do CPC, pelo que se consideram definitivamente assentes. Resta, pois, aplicar-lhes o direito, tendo em vista a resolução das supramencionadas questões, começando, obviamente, pela principal que se resume a saber qual é o exacto âmbito do contrato de seguro ajuizado, isto é, definir se o sinistro verificado se inclui, ou não, nos riscos cobertos pela apólice contratada. Com efeito, estamos em presença de um contrato de seguro e foi com base nele que a ré foi demandada pelo autor. Trata-se, mais precisamente, de um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, regido pelo DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, por ser o vigente à data do acidente. É sabido que este tipo de seguro surgiu como resultado da necessidade de socializar o risco, tomado numa acepção ampla, fruto das exigências das sociedades modernas. É que, se, por um lado, a dinâmica social potencia a possibilidade da ocorrência de danos em pessoas e coisas, por outro, a consciencialização da respectiva gravidade e a incompleta ou deficiente capacidade do responsável do respectivo causador para o ressarcimento, impõem a instituição de mecanismos indemnizatórios de assunção obrigatória como condição indispensável ao exercício de certas actividades potencialmente perigosas ou portadoras de riscos nomeadamente em face de terceiros. É na linha deste entendimento que se perfila a instituição do seguro obrigatório (para mais desenvolvimentos ver Dario Martins de Almeida, em Manual de Acidentes de Viação, Almedina, Coimbra, 3.ª edição, págs. 450 e seguintes e Carlo Castronovo "La Nuova Responsabilità Civile" 2.ª Edizione, Giuffrè págs. 457 e segs.). Sociologicamente dirigido, acima de tudo, à protecção dos terceiros lesados, o seguro começou a assumir uma dupla natureza, não apenas de contrato celebrado a favor do segurado, mas ainda de contrato celebrado em benefício de terceiro, lesado, que adquire um direito à prestação, ou seja, ao percebimento da indemnização. O contrato assume, pois, nesta veste uma natureza trilateral em que figuram, por um lado, a seguradora, a qual garante ao segurado, mediante o pagamento de um prémio, a indemnização que lhe possa vir a ser exigida por um terceiro lesado em consequência do acidente que o vitimou na sua pessoa e também nos seus bens. Por outro lado, o seguro acautela o próprio património do segurado colocando-o ao abrigo da pretensão indemnizatória dos potenciais lesados. Funciona, assim, o seguro obrigatório de certa forma como um contrato a favor de terceiro, lesado, à partida potencial e estranho ao negócio. Por outro lado, imperativas razões de ordem social impõem que a reparação das vítimas seja rápida e segura, isto é, que não haja dúvidas quanto à pessoa do responsável, que o processo a seguir seja célere e que a efectiva indemnização não seja posta em causa pela insolvabilidade do causador do acidente. São exigências deste tipo que demandam um seguro obrigatório em que a responsabilidade é garantida pela seguradora, só devendo a garantia ser assumida pelo respectivo Fundo em casos excepcionais. Daí que, nos regimes do seguro obrigatório, se encontre amplamente consagrado o princípio da inoponibilidade das excepções contratuais. Aliás, a Convenção de Estrasburgo de 20 de Abril de 1959 já o contemplava ao determinar que "O segurador não pode opor à pessoa lesada a nulidade ou a cessação do contrato, a sua suspensão ou a da garantia, a menos que se trate de sinistros ocorridos finda a expiração do prazo de 16 dias seguintes à notificação pelo segurador da nulidade, cessação ou suspensão" (art.º 9.º, n.º 2) – cfr., no mesmo sentido, o acórdão do STJ, de 18/12/2002, proferido no processo n.º 02B3891, em www.dgsi.pt. E são os relevantes interesses de ordem pública em jogo que justificam, desde logo, o disposto no art.º 22.º do citado DL n.º 291/2007 ao estabelecer que “Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente decreto-lei, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do n.º 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do acidente”, de conteúdo idêntico ao do art.º 14.º do DL n.º 522/85, de 31/12, que revogou e substituiu. As exclusões estão previstas no art.º 14.º daquele diploma, entre as quais constam “quaisquer danos causados a terceiros em consequência de operações de carga e descarga” (cfr. alínea c) do n.º 4). Para além de ser de natureza pessoal, na medida em que garante a responsabilidade aquiliana da pessoa segura (o tomador), o seguro de responsabilidade civil automóvel reporta-se aos danos causados pela utilização/circulação de certo e determinado veículo, objecto do contrato de seguro. Este não tem que ser necessariamente celebrado pelo proprietário do veículo, já que a obrigação de segurar é de quem possa vir a ser responsável pela “reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques”, podendo recair também sobre o usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade e locatário em regime de locação financeira (cfr. art.ºs 4.º, n.º 1 e 6.º, n.º 1 do citado DL n.º 291/2007). Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 15.º do mesmo Decreto-Lei “O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4.º e dos legítimos detentores e condutores do veículo”. E, de acordo com o art.º 11.º do mesmo diploma, o seguro de responsabilidade civil previsto no art.º 4.º abrange “relativamente aos acidentes ocorridos no território de Portugal a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil” [n.º 1, al. a)], incluindo “os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses danos” (n.º 2). Por sua vez, o art.º 503.º, n.º 1, do Código Civil dispõe: “Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”. Em anotação a este artigo, no seu Código Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., pág. 487, os professores Pires de Lima e Antunes Varela escreveram: “A responsabilidade objectiva cobre os «danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação». Dentro desta fórmula legal cabem não só os danos provenientes dos acidentes provocados pelo veículo em circulação …, como pelo veículo estacionado…, sendo irrelevante, por outro lado, que o acidente ocorra nas vias públicas ou fora delas… Fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objectiva ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo – os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, como tais, isto é, os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel”, dando como exemplo, entre outros, o caso de “o condutor ter agredido outrem com um acessório do veículo”. Pressuposto da aplicação desta norma de responsabilidade objectiva é, pois, que os danos sejam provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que ele não se encontre em circulação, ou seja, dos perigos inerentes à circulação e utilização do veículo (cfr., neste sentido o acórdão do STJ de 8/7/2003, proferido no processo n.º 03A1305, e desta Relação, de 11/6/2007, processo n.º 0752854; e, ao que parece, também o acórdão daquele alto Tribunal, de 23/11/2006, proferido no processo n.º 06B3445, que revogou o acórdão citado na sentença, fazendo, no entanto, relativamente aos danos a distinção entre “Os danos derivados de actividade que não esteja relacionada com os riscos da actividade viária; Os danos, ainda que emergentes do desempenho funcional da própria máquina, mas que derivam também dos riscos dela relativamente à segurança viária”, todos acessíveis em www.dgsi.pt). O apelante defende, em via principal, a aplicação deste normativo para sustentar a responsabilidade da ré/apelada, por entender que os danos por ele sofridos resultaram do funcionamento do veículo, ainda que através de um acessório nele acoplado. Porém, a nosso ver, sem razão. Consta dos factos provados que o acidente ocorreu quando o veículo seguro estava imobilizado, resultou do funcionamento de uma grua com que aquele se encontrava equipado, numa altura em que era manobrada através dos comandos próprios da grua e o seu manobrador se encontrava no exterior da viatura, por forma a deslocar um bloco de cimento para servir de travão à madeira que havia sido depositada no solo e que acabara de descarregar. Não existe qualquer facto provado, nem sequer foi alegado, que permita estabelecer o nexo de causalidade entre os danos verificados e a circulação ou utilização do veículo seguro. O facto de a grua fazer parte do seu equipamento e ser utilizada para elevação, deslocação e movimentação de materiais pesados, não é suficiente, porquanto tanto podiam derivar da utilização da grua acoplada em veículo como numa outra fixa no solo. Para além de se encontrar em cima do veículo seguro, nenhuma outra conexão com ele resulta dos factos provados, tanto mais que a grua era manobrada do exterior e por meio de comandos próprios dela. Aliás, o próprio apelante a apelida de acessório do veículo, o que afasta, desde logo, a conexão com os riscos específicos do veículo. Como bem se afirma na sentença recorrida: “… este acontecimento advém directamente da utilização da grua enquanto instrumento de uma actividade que não se insere na circulação automóvel, antes se serve de um veículo desta natureza como mero instrumento para o seu desenvolvimento próprio que no caso consistia numa operação de descarga perfeitamente autónoma e distinta da função específica e dos riscos inerentes à capacidade de circulação terrestre de um veículo a motor. Deste modo, considera-se que o evento danoso se deveu à laboração da grua e aos riscos próprios da actividade a que estava afecta, carga e descarga, e não à circulação ou aos riscos específicos da capacidade de circulação do veículo NQ”. O acidente ocorreu no desempenho dos trabalhos específicos da grua, pelo que está relacionado com os riscos próprios do seu funcionamento, enquanto máquina industrial, e não com os riscos inerentes à circulação ou utilização do veículo automóvel. Assim sendo, como nos parece, os danos verificados, resultantes do funcionamento da grua, não estão abrangidos pela responsabilidade objectiva, não estando, por conseguinte, cobertos pelo contrato de seguro invocado nos autos. Como se isso não bastasse, os danos sempre estariam excluídos da garantia do seguro do NQ, por força do disposto no art.º 14.º, n.º 4, al. c) do citado DL n.º 291/2007, porquanto foram causados em consequência de uma operação de descarga da madeira ou carga do bloco. Nem se diga que a descarga da madeira já estava concluída. É que o acidente ocorreu imediatamente após a descarga da madeira, mas dentro da mesma operação, visto que o bloco de cimento se destinava a segurar a mesma madeira que acabara de ser colocada no solo. E se não está integrado na operação de descarga da madeira, propriamente dita, não deixa de constituir uma operação de carga do próprio bloco de cimento. Na verdade, ele partiu-se quando se encontrava no ar, depois de ter sido levantado do chão e antes de ser pousado no lugar pretendido para desempenhar a função que lhe estava destinada. E foi nessa deslocação, que se desprendeu da grua e se desfez em pedaços, tendo um deles atingido o corpo do recorrente. Defende, ainda, o apelante que, a considerar-se uma operação de descarga, a cláusula 5.ª, n.º 4, al. c) das condições gerais do contrato de seguro seria nula, quer por não lhe ter sido comunicada pela seguradora aquando da sua celebração, quer por ser incompatível com a própria natureza do seguro. Trata-se de uma questão nova, suscitada exclusivamente em sede de recurso, a qual só não é indeferida por esse motivo porque a nulidade é de conhecimento oficioso (cfr. art.º 286.º do Código Civil). A referida cláusula não lhe foi comunicada, nem tinha que ser, porque é terceiro e não parte do contrato de seguro para poder manifestar a sua vontade aquando da sua celebração. E, ainda que se entenda que devia ser comunicada ao tomador de seguro, enquanto aderente de um verdadeiro contrato de adesão, sendo-lhe, por isso, aplicável o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, como decorre do art. 1.º, n.º 1 do DL n.º 446/85, de 25/10, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 220/95, de 31 de Outubro, que o republicou, a verdade é que o autor, ora apelante, não suscitou, em tempo oportuno, tal questão para a ré poder alegar e provar que cumpriu o seu dever de informação. Para que fosse apreciada e eventualmente excluída do contrato de seguro celebrado, ao abrigo do art.º 8.º do citado DL n.º 446/85, era necessário que o autor tivesse suscitado essa questão na petição inicial por forma a permitir à ré alegar, na contestação, e provar, em sede de julgamento, que comunicou e explicou o conteúdo de tal cláusula e das restantes ao seu segurado, no momento em que lhe apresentou o prospecto e a sua conformidade com as condições gerais e especiais da apólice, tal como lhe competia nos termos do art.º 5.º, n.ºs 1 e 3 do mesmo diploma. Não tendo o autor suscitado tal questão, a ré nada alegou e, consequentemente, também não provou, relativamente a esse seu dever de comunicação adequada e efectiva, como não podia nem devia, sob pena de praticar actos inúteis que a lei proíbe (cfr. art.º 137.º do CPC). Acresce que não se impunha, no presente caso, a comunicação da questionada cláusula pela simples razão de que se trata de uma reprodução da alínea c) do n.º 4 do art.º 14.º do citado DL n.º 291/2007, que se presume ser por todos conhecido, sendo que a sua ignorância ou má interpretação não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta os interessados das correspondentes sanções (cfr. art.º 6.º do Código Civil). Como tal, era insusceptível de negociação. E também o era por se tratar de uma cláusula típica aprovada pelo legislador, à qual não se aplica o aludido DL n.º 446/85, como dispõe no seu art.º 3.º, al. a), reproduzindo uma norma imperativa, de ordem pública, constante de um diploma legal (decreto-lei) que transpõe parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (cfr. art.º 1.º do citado DL n.º 291/2007), diploma esse que foi decretado pelo Governo da República Portuguesa, aprovado em Conselho de Ministros e promulgado por sua Ex.ª o Sr. Presidente da República, no âmbito das suas atribuições constitucionais. Finalmente, resta dizer que não se vislumbra fundamento para a aplicação do invocado art.º 280.º do Código Civil, nem do art.º 56.º, n.ºs 2 e 3, b) do CE, sendo manifesta a ausência dos correspondentes pressupostos, não fazendo qualquer sentido a nulidade arguida com base no primeiro normativo e a responsabilidade por factos ilícitos fundada no segundo. Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC para concluir: O acidente resultante do funcionamento de uma grua acoplada a um veículo que se encontrava imobilizado, ocorrido durante operações de carga e descarga, não está coberto pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel relativo a esta viatura, por os danos por ele causados não resultarem dos riscos próprios do veículo e por estarem, legal e convencionalmente, excluídos da garantia do seguro. Improcedem, deste modo, todas as conclusões do recurso interposto, ficando prejudicada a determinação da medida da responsabilidade da demandada, pela que deve ser mantida a sentença impugnada. III. Decisão Por tudo o exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida. * Custas pelo apelante.* Porto, 15 de Fevereiro de 2012Fernando Augusto Samões José Manuel Cabrita Vieira e Cunha Maria das Dores Eiró de Araújo |