Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
144/23.0T8CPV.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO MARCELO DE NÓBREGA DOS SANTOS DE FREITAS ARAÚJO
Descritores: SERVIDÃO PREDIAL
USUCAPIÃO
DIREITO DE PASSAGEM FORÇADA MOMENTÂNEA
Nº do Documento: RP20241125144/23.0T8CPV.P1
Data do Acordão: 11/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIAL
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Constitui fundamento para rejeitar a reapreciação da matéria de facto e da prova, por inutilidade, o caso em que as alterações factuais pedidas pelo recorrente são irrelevantes para o mérito da causa.
II - Apenas pode constituir-se por usucapião a servidão predial marcada pela visibilidade e permanência dos sinais em que se manifesta.
III - A colheita de frutos em prédio alheio não constitui, em regra, objecto idóneo para a constituição válida de uma servidão predial e está sujeita a uma regulamentação legal específica cujo conteúdo, baseado na precariedade da utilização, não é idóneo para o nascimento do referido direito real.
IV - Todavia, é ilícito o comportamento do dono do prédio invadido pelas plantas do vizinho que impede o dono delas de apanhar os seus frutos que não possa colher no seu lado.
V - As características do direito de passagem forçada momentânea do dono das plantas e a sua conciliação com os direitos do proprietário do prédio invadido justificam que a licitude seja reposta através da conformação da utilização desse prédio de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
VI - Salvo situações excepcionais, o proprietário do imóvel vizinho, tendo o direito de cortar as plantas que invadam o seu imóvel, não pode já obter a condenação do dono das plantas, a expensas suas, a proceder a esse corte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acção Comum nº144/23.0T8CPV

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL):

Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Maria de Fátima Almeida Andrade
2.º Adjunto: Carlos Gil

RELATÓRIO.
AA, viúva, titular do NIF ... e com domicílio na Rua ..., ..., União de Freguesias, em ..., intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL e MM.
Pediu que os réus fossem condenados a:
“a) Reconhecer a existência de uma servidão de passagem pelo prédio urbano de que são proprietários, em favor da AA, permitindo que esta ou alguém a seu mando, possa proceder à poda das videiras da ramada da qual é legítima proprietária, recolha dos sobrantes da poda, efetuar a vindima e outras intervenções que venham a mostrar-se estritamente necessárias.
b) Obrigados a permitir que a AA ou seus familiares, possam entrar no prédio de que os RR são proprietários, para recolher objetos que ali caiam.
c) Obrigados a permitir que a Autora possa aceder à faixa de terreno em causa, para proceder à reconstrução do muro de suporte de terras da qual é proprietária e que ruiu, designadamente por ali passando com os materiais necessários;
d) Para o efeito, devem condenados a remover o portão que colocaram, ou em alternativa manter o mesmo funcional, abrindo e fechando, que diga-se é em regra a finalidade normal de um portão, caso em que deverão entregar de imediato uma chave à A., para que esta possa aceder quando necessário;
e) Absterem-se de qualquer conduta que impeça o livre acesso da A., seus familiares ou outros a seu mando de acederem e a utilizarem a dita servidão;
f) Por fim, a título dos danos não patrimoniais causados pelos RR. à A., devem aqueles ser condenados a pagar-lhes uma indemnização, a fixar segundo o prudente arbítrio do Tribunal, mas nunca inferior a 2.500,00€”.
Os RR. ofereceram contestação com pedido reconvencional, na qual, entre o mais, impugnaram parte da matéria invocada na petição inicial e alegaram que, até 1970, existiu no local um rego foreiro ou de consortes junto ao muro de suporte da extrema sul da propriedade dos A.A., que canalizava a água por gravidade, dum tanque de lavar a roupa desde a aldeia de ... a cerca de 6 Kms de ....
Da reconvenção que deduziram, invocando o art. 1366.º do Código Civil, foram admitidos, no despacho saneador, os seguintes pedidos:
a) condenação da autora a arrancar os dois esteios em granito que plantou na propriedade dos réus sem o seu consentimento, assim como guiar as videiras para a sua propriedade;
b) condenação da autora a cortar todas as raízes, troncos e ramos de árvores de sua pertença e que impendem sobre a propriedade dos réus; e
c) condenação da autora a reconstruir/reparar o muro de suporte desmoronado em várias secções da sua extensão, no prazo de 30 dias.
No saneador, as excepções dilatórias suscitadas nos articulados foram julgadas improcedentes.
Procedeu-se igualmente, nesse despacho, sem reparo das partes, à fixação do valor da causa, à delimitação do objecto do litígio e à selecção dos temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, decidiu:
“a) reconhecer a constituição, por usucapião, de uma servidão de acesso, passagem e utilização sobre o prédio urbano inscrito na matriz da União de Freguesias ..., ... e ... sob o art.º ... (anterior ... da extinta freguesia ...), composto de casa de habitação de construção antiga a favor do prédio urbano composto de casa de habitação com 2 pavimentos, inscrito na matriz da União de Freguesias ..., ... e ... sob o art.º ... (anterior ... da extinta freguesia ...) e não descrito na conservatória do registo predial, ambos sitos no lugar ...;
b) declarar que tal servidão consiste no acesso, passagem e utilização da faixa de terreno contígua ao muro de suporte existente na extrema sul do prédio da autora, com cerca de dois metros de largura (variável), que comportava um rego foreiro, para aí proceder à poda e vindima da ramada de videiras plantadas no terreno da autora e que deita sobre a dita faixa de terreno, localizada na extrema norte do prédio dos réus;
c) condenar os réus a reconhecer a servidão identificada em a) e b) e a absterem-se de praticar quaisquer atos que impeçam ou dificultem o acesso, passagem ou utilização pela autora ou alguém a seu mando da referida faixa de terreno;
d) condenar os réus a remover ou manter funcional (permitindo a sua abertura e fecho) o portão existente entre o caminho/estrada principal situado a nascente dos prédios das partes e a faixa de terreno mencionada em b), entregando, caso tal se mostre necessário, uma chave do mesmo à autora;
e) condenar a autora a arrancar os dois esteios em granito que implantou na propriedade dos réus;
f) julgar improcedentes os demais pedidos formulados pelas partes”.
Da referida sentença, inconformados, apelaram os réus, mediante recurso admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Finalizaram a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
1ª- Os R.R. não se conformam com a sentença desde logo arguindo a sua nulidade nos termos do artº 615º-1-d) do CPC.
2º-Porquanto o MM. juiz a quo não se pronunciou sobre questões que no nosso modesto entender devia apreciar e não podia deixar de tomar conhecimento.
3º- Tendo sido admitida reconvenção nos presentes autos e elencando no saneador questão a decidir, entre os demais quanto ao pedido da A., reconstruir/reparar o muro de suporte desmoronado em várias secções da sua extensão, no prazo de 30 dias e não o tendo feito Tribunal a quo violou claramente o disposto no artº. 615º, nº. 1 al. d), do CPC, porquanto omitiu por completo a questão de decidir sobre a condenação da A. a reconstruir/reparar o muro de suporte desmoronado em várias secções da sua extensão, no prazo de 30 dias.
4º- Isto porque de acordo com a primeira parte do artº 608º 2 do CPC, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuando aquelas de cuja decisão seja prejudicada pela solução dada a outra, o que no caso vertente não se verificou.
5º-Os réus não se conformam com a sentença no que concerne aos seguintes pontos do dispositivo: a), b), c), d) e f).
6ª- A prova produzida, quer documental quer testemunhal, impõe decisão diversa da matéria de facto constante dos pontos 7, 8, 9 e 11 dos factos provados.
7º-Quanto ao facto provado em 7) da prova produzida, indicada nas alegações, impõe a alteração da decisão sobre a matéria de facto constante que deverá ficar a constar com a seguinte redacção: Foi dado como provado que desde a morte dos pais dos R.R., há cerca de 10 anos, existe na extrema sul/nascente do prédio da autora uma ramada de videiras que deita sobre a faixa de terreno, referida em 3), tendo inclusivamente esteios de suporte implantados nesta.
8º-Resultou provados pelo depoimento das testemunhas NN e OO que não existiam videiras a pender sobre a faixa de terreno propriedade dos RR. e só posteriormente após a morte dos pais dos R.R. é que lá foi colocada a ramada, pois antes as videiras encontravam-se aprumadas na vertical.
9º-Além disso, a própria sentença incorre numa nítida contradição quando reconhece a existência da ramada há mais de 50 anos e por outro lado condena a A. a retirar os esteios de granito implantados no terreno dos R.R. que suportam a referida ramada.
10º- O Facto provado em 8 face à prova produzida, indicada nas alegações, impõe a alteração da decisão sobre a matéria de facto constante que deverá ficar a constar com a seguinte redacção: Foi dado como provado que desde há, 10 anos desde a morte dos pais dos R.R., a autora e seus familiares acedem à faixa de terreno descrita em 3) para fazerem a poda e vindima da ramada referida em 7), o que faziam pelo caminho/estrada principal situado a nascente dos prédios de autora e réus até ao fecho do portão pelos réus.
11º-Quer os R.R. nos seus depoimentos de parte quer as testemunhas NN e OO referem que a A. e seus familiares só acedem à faixa de terreno para efectuarem a poda e a vindima desde que fizeram pender a ramada sobre o terreno dos R.R. e desde a morte dos pais dos R.R., há cerca de 10 anos.
12ª - A prova produzida, indicada nas alegações, impõe a alteração da decisão sobre a matéria de facto constante de 9. deverá ficar a constar com a seguinte redacção: Em data não concretamente apurada, mas ainda em vida dos antepassados dos réus, estes, colocaram um portão na entrada nascente da parcela de terreno em causa (junto à estrada), sendo que o mesmo era utilizado unicamente pelos consortes das águas do rego foreiro proveniente de ..., com autorização dos pais dos R.R.
13º- A testemunha NN, consorte do rego foreiro das águas de ... foi claro quando referiu que os únicos utilizadores da faixa de terreno e consequentemente quem entrava no portão hoje desactivado eram unicamente os consortes com autorização dos pais dos R.R. para guiar e limpar o rego foreiro e mais ninguém.
14º- A prova produzida, indicada nas alegações, impõe a alteração da decisão sobre a matéria de facto constante de 11 devendo ficar a constar com a seguinte redacção: Enquanto os antepassados dos réus foram vivos, nunca houve qualquer problema entre vizinhos e nunca a A. e seus familiares utilizaram a referida faixa de terreno para fazerem a poda das videiras e a vindima, bem como para ir buscar algum objeto que por algum acaso lá tivesse caído.
15º-De facto se só depois do óbito dos pais dos R.R. a ramada foi guiada para a faixa de terreno, não pode ser dada como provada a utilização de acesso à faixa de terreno em momento anterior à morte daqueles para tratar da poda e vindima dessa ramada.
16º- Face à prova produzida, impunha-se isso sim o corte ou guia das videiras para o terreno da A. e o corte de todas as árvores e arbustos que impendam sobre o terreno dos R.R.
17º- Não foi apreciada e deveria ter sido, a condenação da A. a cortar os ramos e raízes das videiras que pendem sobre o prédio dos R.R. ou pelo menos guiá-las para o terreno da A., em claro desrespeito pelo art.º 1366.º, n.º 1, do Código Civil.
18º- Onde se impõe ao proprietário do prédio vizinho àquele onde se encontram plantadas as árvores o ónus de comunicar judicial ou extrajudicialmente ao dono daquelas que, dentro do prazo de três dias, deverá cortar ou arrancar as raízes e/ou os ramos que invadirem o prédio.
19º -Se este o não fizer, a lei atribui ao proprietário do prédio vizinho um direito de auto-tutela, podendo, findo aquele prazo, cortar os ditos ramos e raízes, não o tendo feito, os aqui R.R. em nome da boa vizinhança, o facto de estarem as videiras sobre o muro divisório e podendo em alternativa ao corte, serem guiadas para o terreno da R. não foi efetuado o respectivo corte.
20º-A sentença de que se recorre onerando os R.R. com uma servidão de passagem por um portão desativado, ativando-o, facultando livre acesso à sua propriedade para fazer a poda e vindima constitui claro abuso de direito.
21º- Mesmo a existir usucapião no acesso à propriedade dos R.R., o que não se concebe, há uma clara desproporção entre o ónus que a sentença impõe em defesa dum direito que assistiria à A. e o sacrifício imposto aos R.R.
22º- Já que se admite o acesso pleno e sem restrições à propriedade dos R.R. para o exercício duma acção sazonal da A. É como se o a faixa de terreno fosse da A. !!!
22º-Refere o Acordão102/11.8TBALD.C2 do Tribunal da Relação de Coimbra in www.dgsi.pt: “Uma das modalidades que se tem considerado configurar abuso de direito é o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas que se define como o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admitido pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo)”.
23º- A decisão recorrida julgou erradamente na decisão sobre a matéria de facto e de direito, como vai fundamentado nestas alegações e conclusões, e fazendo um aplicação errada do direito, violando dessa forma o disposto no artº 615º-1-d) do CPC art. nº 4 do art. 607º do CPC e arts. 255º, 1260º, 1261º, 1262º, 1265º e art.º 1366.º, n.º 1 do Código Civil.
Concluíram com o pedido de que, pela procedência do recurso, fosse a decisão de primeira instância revogada nos termos expostos e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a acção e procedente o pedido reconvencional.
Não foi apresentada resposta por parte da autora.
Nada obsta ao conhecimento do recurso, o qual foi admitido na forma e com os efeitos legalmente previstos.
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OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635º/4 e 639º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar:
a) se ocorre nulidade da sentença, por omissão de pronúncia sobre o pedido de condenação da A. a reconstruir/reparar o muro de suporte desmoronado em várias secções da sua extensão, no prazo de 30 dias (conclusões 1.ª a 4.ª);
b) se foi validamente deduzida e procede a impugnação da matéria de facto, quanto aos factos indicados pontos 7, 8, 9 e 11 da sentença, de modo a que a resposta que lhes foi dada seja alterada em conformidade com a posição dos réus e, em qualquer caso, de acordo com a prova produzida (conclusões 6.ª a 15.ª);
c) se estão verificados os requisitos necessários para a constituição, por usucapião, da servidão reconhecida a favor da autora (conclusões 5.ª, 20.ª e 23.ª),
d) na afirmativa a esta última questão, se o exercício do direito correspondente à servidão por parte da autora é abusivo (conclusões 21 a 23.ª);
e) se deve proceder o pedido de condenação da A. a cortar os ramos e raízes das videiras que pendem sobre o prédio dos R.R. ou pelo menos guiá-las para o terreno da A. (conclusões 16.ª a 19.ª).
Importará ainda determinar se o pedido reconvencional de condenação da ré a reconstruir/reparar o muro de suporte desmoronado em várias secções da sua extensão, no prazo de 30 dias, deve ser apreciado e, na afirmativa, em que termos.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Em sede de factos julgados provados em primeira instância, alguns (nº7, 8, 9 e 11) foram colocados em crise no recurso, na impugnação da matéria de facto, cuja apreciação terá lugar mais adiante.
Assim, sem prejuízo da subsequente consideração dessa impugnação, foi a seguinte a factualidade em que se estribou a decisão recorrida:
“1) Encontra-se registada a favor da autora a aquisição, por doação datada de 17 de julho de 1975, do direito de propriedade sobre o prédio urbano composto de casa de habitação com 2 pavimentos, inscrito na matriz da União de Freguesias ..., ... e ... sob o art.º ... (anterior ... da extinta freguesia ...) e não descrito na conservatória do registo predial, sito no lugar ...;
2) Encontra-se registada a favor dos réus a aquisição do direito de propriedade sobre os prédios:
a) Prédio urbano, inscrito na matriz da União de Freguesias ..., ... e ... sob o art.º ... (anterior ... da extinta freguesia ...), composto de casa de habitação de construção antiga, sito no referido lugar ...;
b) Prédio rústico inscrito na matriz da União de Freguesias ..., ... e ... sob o art.º ..., composto de cultura, sito no referido lugar ...;
3) A sul/poente do prédio referido em 1) e a norte/nascente dos prédios identificados em 2), existe uma faixa de terreno, com cerca de dois metros de largura (variável), centenária, que comportava um rego foreiro, atualmente com a água entubada, rego foreiro que fica exatamente encostado ao longo do muro de suporte da extrema sul do prédio da autora, contíguo ao prédio dos réus;
4) Até cerca do ano de 1970, a água era canalizada por gravidade, dum tanque de lavar a roupa desde a aldeia de ... a cerca de 6 quilómetros de ...;
5) Desde cerca do ano de 1970 que não correm águas no referido rego foreiro, encontrando-se as mesmas encontram-se canalizadas e soterradas;
6) Até cerca do ano de 1970, os consortes que à água tinham direito, acompanhavam o normal curso da mesma no terreno dos réus, desde maio a outubro;
7) Há pelo menos 50 (cinquenta) anos, existe na extrema sul/nascente do prédio da autora uma ramada de videiras que deita sobre a faixa de terreno referida em 3), tendo inclusivamente esteios de suporte implantados nesta;
8) Desde há, pelo menos, 50 anos, a autora e seus familiares acedem à faixa de terreno descrita em 3) para fazerem a poda e vindima da ramada referida em 7), o que faziam pelo caminho/estrada principal situado a nascente dos prédios de autora e réus até ao fecho do portão pelos réus, sem qualquer oposição ou obstáculo dos antepassados dos réus, percorrendo e utilizando a referida faixa de terreno para executar aqueles trabalhos, o que faziam livremente, à luz do dia, à vista e com conhecimento de toda a gente e na convicção de o fazer legitimamente e em exercício de direito próprio;
9) Em data não concretamente apurada, mas ainda em vida dos antepassados dos réus, estes, com conhecimento da autora e do seu falecido marido, colocaram um portão na entrada nascente da parcela de terreno em causa (junto à estrada), sendo que o mesmo era aberto e fechado por quem queria aceder e utilizar à passagem em causa, sem qualquer problema;
10) Há cerca de 8 ou 9 anos, os réus (nomeadamente o réu KK) procederam à selagem da entrada, soldando o portão e colocando um ferro, impedindo assim a autora e seus familiares de acederem à faixa de terreno mencionada em 3);
11) Enquanto os antepassados dos réus foram vivos, nunca houve qualquer problema entre vizinhos, utilizando a autora e seus familiares e antepossuidores a referida faixa de terreno para fazerem a poda das videiras e a vindima, bem como para ir buscar algum objeto que por algum acaso lá tivesse caído;
12) Desde que o portão foi soldado, os familiares da autora passaram a avançar o muro de suporte de terras para aceder à faixa de terreno mencionada em 3) e aí fazer a poda e vindima da ramada mencionada em 7) ou para ir buscar algum objeto que lá caia;
13) O muro de suporte de terras do terreno da autora encontra-se desmoronado em várias secções.”
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SOBRE A NULIDADE DA SENTENÇA
Considerando o objecto do recurso acima definido e o disposto no art. 663.º/2 do CPC, importa começar a apreciação jurídica pela questão da alegada nulidade da sentença.
Dispõe o art. 615.º/1, al. d), do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando, entre o mais, o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Trata-se da consequência prevista para a infracção ao comando do art. 608.º/2 do mesmo diploma legal, segundo o qual, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Na interpretação dessa causa da nulidade da decisão, a jurisprudência e a doutrina são consensuais no sentido de que as questões cuja falta de apreciação pelo tribunal é susceptível de gerar identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/5/2022, proferido no processo nº588/14.9TVPRT, disponível na base de dados da Dgsi em linha, e J. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. 5º, p. 143).
Está em causa, pois, noutra terminologia, mas com idêntico significado, a necessidade de conhecimento pelo tribunal das questões temáticas centrais, as quais importa não confundir com factos, argumentos, razões ou considerações (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/5/2024, relativo ao processo nº3489/22.3T8VFR e disponível no mesmo sítio).
Na verdade, diferentes das questões a decidir, relevantes para a sentença, são os argumentos e as considerações alegados pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art. 608.º/2 do Código de Processo Civil.
Da mesma forma, a falta de apreciação de algum fundamento fáctico ou argumento jurídico, invocado pela parte, mesmo eventualmente susceptível de prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas, apenas pode determinar um eventual erro de julgamento, mas não já um vício (formal) de omissão de pronúncia.
Por outro lado, importa distinguir claramente as nulidades processuais, cometidas por acção ou omissão durante o procedimento, das nulidades específicas da sentença.
As primeiras, “sendo actos de tramitação processual stricto sensu, que se situam a montante da decisão final, não se confundem com os actos ou omissões praticadas pelo tribunal, já a jusante, no âmbito do processo decisório e com este concomitantes, como integrando este, actos que tangem ao âmago da decisão, nulidades de conhecimento, de índole material decisória, que a lei adjectiva também considera e classifica como nulidades do julgamento ou da sentença” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/2022, Nuno Ataíde das Neves, processo nº9337/19.4T8LSB, acessível em texto integral na referida base de dados).
Dito por outras palavras, ao passo que as nulidades do procedimento, que estão previstas nos art. 186.º e seguintes do CPC, versam sobre vícios relativos à tramitação processual, as nulidades da sentença decorrem do teor deste acto do tribunal, quando tal decisão não tem o conteúdo que deveria ter ou tem um conteúdo que não poderia ter, nos termos dos artigos 615.º, 666.º e 685.º do Código de Processo Civil.
Neste enquadramento, é patente que a nulidade suscitada no recurso respeita à sentença e incide sobre uma questão essencial, que repousa na suposta falta de apreciação e decisão sobre o pedido dos réus no sentido da condenação da autora a reconstruir/reparar o muro de suporte desmoronado em várias secções da sua extensão, no prazo de 30 dias.
A verdade, todavia, é que a análise da decisão recorrida afasta de modo inequívoco a verificação da apontada omissão de pronúncia, visto que o referido pedido foi, efectivamente, objecto de decisão em primeira instância.
No seguinte segmento da sentença:
Ainda no âmbito do muro de suporte de terras do prédio da autora, peticionaram os réus, na contestação apresentada, que aquela fosse condenada a reconstrui-lo ou repará-lo.
Conforme bem salientou a autora, tal pedido não carece de apreciação judicial, na medida em que a própria autora, na petição inicial, manifesta intenção e deduz pretensão relacionada com tal reparação/reconstrução.
Acresce que os réus se limitam a referir que o muro em causa se encontra desmoronado em várias secções. Mais nenhum facto é alegado neste conspecto, nomeadamente se tal implica qualquer condicionalismo, perigo ou prejuízo para os réus, que demande a tutela do direito.
Assim, ficou por demonstrar que qualquer direito dos réus tenha sido afetado ou perigado pela situação em causa, inexistindo, além disso, qualquer litígio quanto à necessidade de reparação do muro (apesar de nem sequer haver sido produzida qualquer prova quanto aos efetivos danos de que padece o mesmo).
Pelo exposto, também nesta parte improcederá o pedido reconvencional.
Deste modo, a arguição de omissão de pronúncia apenas pode ser imputada a lapso dos recorrentes.
Em consequência, são manifestamente improcedentes as conclusões 1.ª a 4.ª do recurso.
De sublinhar ainda a este respeito que na primeira instância não foi dado cumprimento, como deveria ter sido, ao disposto no art. 617.º/1 do Código de Processo Civil.
Todavia, mercê da referida falta manifesta de fundamento da pretensão dos réus, em conjugação com a circunstância de, entretanto, ser já outro o magistrado judicial de primeira instância (certamente em consequência do movimento judicial ordinário), concluiu-se não ser “indispensável”, nos termos do art. 617.º/5 do CPC, ordenar o cumprimento dessa formalidade.
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SOBRE A IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Como se sabe, a admissibilidade do recurso em matéria de facto depende do cumprimento de alguns ónus.
De acordo com o disposto no artigo 640º/1 do Código de Processo Civil, é imposto ao recorrente que especifique:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
Enquanto o número 2 prevê que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A análise do recurso evidencia, segundo entendemos, que os recorrentes cumpriram as referidas exigências, indicando os concretos pontos de facto que, a seu ver, foram incorretamente julgados – os pontos 7, 8, 9 e 11 dos factos provados, os meios probatórios que, na mesma óptica, justificariam outra resposta – os depoimentos de duas testemunhas e documentos, e a concreta resposta que consideraram ser justificada para a referida factualidade.
Assim, quanto ao ponto 7, decidiu o tribunal a quo:
Há pelo menos 50 (cinquenta) anos, existe na extrema sul/nascente do prédio da autora uma ramada de videiras que deita sobre a faixa de terreno referida em 3), tendo inclusivamente esteios de suporte implantados nesta;
Em lugar disso, pretendem os recorrentes a seguinte resposta:
Desde a morte dos pais dos R.R., há cerca de 10 anos, existe na extrema sul/nascente do prédio da autora uma ramada de videiras que deita sobre a faixa de terreno, referida em 3), tendo inclusivamente esteios de suporte implantados nesta.
Basicamente, a divergência é apenas temporal e diz respeito ao período (há 50 ou há 10 anos) desde o qual existe a ramada de videiras no local.
No que se refere ao ponto 8, consta na decisão recorrida:
Desde há, pelo menos, 50 anos, a autora e seus familiares acedem à faixa de terreno descrita em 3) para fazerem a poda e vindima da ramada referida em 7), o que faziam pelo caminho/estrada principal situado a nascente dos prédios de autora e réus até ao fecho do portão pelos réus, sem qualquer oposição ou obstáculo dos antepassados dos réus, percorrendo e utilizando a referida faixa de terreno para executar aqueles trabalhos, o que faziam livremente, à luz do dia, à vista e com conhecimento de toda a gente e na convicção de o fazer legitimamente e em exercício de direito próprio;
Já no recurso a pretensão é no sentido de que fique provado:
Desde há 10 anos desde a morte dos pais dos R.R., a autora e seus familiares acedem à faixa de terreno descrita em 3) para fazerem a poda e vindima da ramada referida em 7), o que faziam pelo caminho/estrada principal situado a nascente dos prédios de autora e réus até ao fecho do portão pelos réus.
Novamente, a diferença é sobretudo temporal, embora acompanhada da pretensão de afastar os elementos da posse pública e de boa fé a respeito da actuação da autora.
Relativamente ao ponto 9, foi decidido na sentença:
Em data não concretamente apurada, mas ainda em vida dos antepassados dos réus, estes, com conhecimento da autora e do seu falecido marido, colocaram um portão na entrada nascente da parcela de terreno em causa (junto à estrada), sendo que o mesmo era aberto e fechado por quem queria aceder e utilizar à passagem em causa, sem qualquer problema;
Diversamente, defendem os recorrentes que deve julgar-se provado que:
Em data não concretamente apurada, mas ainda em vida dos antepassados dos réus, estes, colocaram um portão na entrada nascente da parcela de terreno em causa (junto à estrada), sendo que o mesmo era utilizado unicamente pelos consortes das águas do rego foreiro proveniente de ..., com autorização dos pais dos R.R.
Nesta parte, o dissenso reside na identificação das pessoas que utilizavam o portão colocado na nascente do terreno, mas a proposta dos recorrentes entra em contradição com a formulação que indicaram para o facto nº8, da qual resulta a admissão que a entrada no terreno por parte da autora ocorria através daquele portão.
Finalmente, o tribunal recorrido julgou provado o seguinte facto nº11:
Enquanto os antepassados dos réus foram vivos, nunca houve qualquer problema entre vizinhos, utilizando a autora e seus familiares e antepossuidores a referida faixa de terreno para fazerem a poda das videiras e a vindima, bem como para ir buscar algum objeto que por algum acaso lá tivesse caído;
E, em lugar desse, entende-se no recurso que deve considerar-se provado: Enquanto os antepassados dos réus foram vivos, nunca houve qualquer problema entre vizinhos e nunca a A. e seus familiares utilizaram a referida faixa de terreno para fazerem a poda das videiras e a vindima, bem como para ir buscar algum objeto que por algum acaso lá tivesse caído.
Neste ponto, todavia, a diferença é claramente irrelevante, mesmo do ponto de vista factual, por duas ordens de razões.
Primeiramente, porque a parte do facto nº11 que os réus pretendem amputar (utilizando a autora e seus familiares e antepossuidores a referida faixa de terreno para fazerem a poda das videiras e a vindima, bem como para ir buscar algum objeto que por algum acaso lá tivesse caído) é inócua, em tal ponto, pois já consta exactamente nos mesmos termos no facto nº8.
Em segundo lugar, porque mesmo que assim não fosse, não haveria qualquer necessidade de averiguar e, se fosse o caso, julgar o facto negativo (nunca a A. e seus familiares utilizaram a referida faixa de terreno para fazerem a poda das videiras e a vindima), visto que, ao invés, apenas releva o facto positivo contrário (a utilização da faixa de terreno), como elemento eventualmente integrante dos requisitos do direito que a autora veio reclamar através da acção.
Todavia, o juízo de irrelevância que deve dirigir-se à impugnação da matéria de facto vai mais fundo e encontra a sua maior expressão na questão da solução jurídica do caso.
Com efeito, vistos os factos que os recorrentes pretendem ver alterados, por um lado, e aqueles que têm de manter-se sem alteração, por não terem sido objecto de qualquer censura, por outro, deve concluir-se pela irrelevância das modificações propostas no recurso para a apreciação do mérito da causa.
Constatação que, de acordo com as regras gerais de gestão processual e de proibição da prática de actos inúteis, consagradas nos arts. 6.º e 130.º do CPC, determina a inviabilidade, a despeito do cumprimento do disposto no art. 640.º do CPC, de proceder-se agora à reapreciação da prova.
Como tem sustentado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, “nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto, por se tratar de ato inútil” (cfr. Acórdão de 09/02/2021, tirado no processo 27069/18.3T8PRT.P1.S1, da autoria de Maria João Vaz Tomé e disponível em texto integral, em linha, no sítio jurisprudencia.pt).
Entendimento que, aliás, tem sido repetidamente defendido, mesmo em arestos mais recentes, destacando-se que “de acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte” e, por isso, que “o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/11/2023, relatado por Mário Belo Morgado, no processo 835/15.0T8LRA e acessível na base de dados da Dgsi em linha).
É o que se passa, no caso dos autos, como se irá fundamentar de seguida e que justificará a rejeição ou improcedência das conclusões 6.ª a 15.ª.
*
SOBRE OS REQUISITOS PARA A CONSTITUIÇÃO DA SERVIDÃO
A servidão, como direito real menor, constitui o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, como resulta do teor e do enquadramento sistemático da norma do art. 1543.º/1 do Código Civil.
Trata-se de um direito real de gozo sobre coisa alheia ou direito real limitado, mediante o qual o dono de um prédio tem a faculdade de aproveitar as vantagens ou utilidades de prédio alheio (ius in re aliena), em benefício do seu, o que envolve correspondente restrição ao gozo efectivo da propriedade sobre o dono do prédio onerado, na medida em que este fica inibido de praticar actos susceptíveis de prejudicar o exercício da servidão.
Por outro lado, o encargo inerente à servidão recai necessariamente sobre um prédio e aproveita em exclusivo a outro prédio, de modo que apenas são admitidas servidões em relação a prédios, não reconhecendo a lei a existência de servidões pessoais. E daí que a utilidade ou o benefício embora reverta a favor de um determinado sujeito, ele só pode fazer-se valer dessa utilidade por intermediação do prédio, em razão da titularidade desse outro direito de gozo sobre o prédio dominante.
Com maior interesse para o caso dos autos, importa ainda distinguir as servidões de figuras que, embora próximas, com elas não se confundem e, em especial, dos atravessadouros, que “são caminhos de passagem de pessoas implantados em prédios de particulares que não constituem servidões ou caminhos públicos” e dos caminhos públicos, i. é, aqueles que “desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público, caracterizando-se a envolvente de utilidade pública pelo destino de satisfação de interesses colectivos relevantes” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/1/2010, relatado por Arlindo Oliveira, no processo nº2963/05.0TBPBL.C1 e acessível na citada base de dados).
Daí a importância de traçar os elementos distintivos da servidão, o que a doutrina e a jurisprudência vêm fazendo através de quatro características:
“1. é um encargo (constitui uma restrição ou limitação ao direito de propriedade sobre o prédio dito serviente); 2. recai sobre um prédio (é uma restrição ao gozo do prédio serviente, inibindo o seu proprietário de praticar os actos que possam prejudicar o exercício da servidão); 3. beneficia outro prédio dito dominante; 4. os prédios (serviente e dominante) devem pertencer a donos diferentes” (cfr. A. Santos Justo, Direitos Reais, 8.ª ed., pp. 453-4 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30/6/2022, tirado no processo 1/16.7T8ESP.P2, da autoria de Isoleta de Almeida Costa, no mesmo sítio).
A análise destes requisitos não é bastante, todavia, para saber se, no caso dos autos, deve considerar-se constituída a servidão predial reclamada pela autora, mostrando-se ainda necessário para o efeito pesquisar a génese e o conteúdo de semelhante direito.
E, segundo pensamos, esses dois elementos são decisivos para concluir que aquele direito não pode ser reconhecido.
Quanto à génese da servidão predial, na sentença recorrida foi atribuída à usucapião, visto que há mais de 20 anos que a autora e seus familiares acedem ao prédio dos réus, junto ao muro existente na extrema do seu tereno, para aí procederem à poda e vindima de uma ramada de videiras plantadas no seu prédio que propende sobre o dos réus. Fazem-no e sempre o fizeram à vista de todos, sem oposição (até há cerca de 8/9 anos), na convicção de que o podem fazer. Não se tratou de passagem por mera tolerância dos réus. Na verdade, esta foi uma posse boa para a usucapião (…).
De acordo com o disposto no art. 1547.º do Código Civil, “as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família” (nº1), acrescentando que as servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos (nº2).
No entanto, dispõe o art. 1548.º/1 do mesmo diploma que “as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião”.
Por outro lado, o nº2 daquele preceito legal considera “não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes”.
Em consequência, apenas pode constituir-se por usucapião a servidão marcada pela visibilidade e permanência dos sinais em que ela se manifesta exteriormente e perante as demais pessoas.
Esta limitação à possibilidade de constituição da servidão por usucapião, quanto às servidões não aparentes, tem explicação, no plano histórico, na inviabilidade de, no regime anterior (Código Civil de Seabra), o direito em causa emergir da usucapião.
Com o Código de 1966, a lei passou a permitir a aquisição de servidões por usucapião, exigindo, porém, para tanto, que elas se manifestassem em factos inequivocamente demonstrativos da existência de situações duradouras e vinculativas (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/6/2018, relator: Alberto Ruço, proferido no processo nº417/15.6T8PMS.C1 e acessível em www.dgsi.pt).
Encontrando fundamento, agora no plano material, por um lado, no facto de que “se torna as mais das vezes difícil distinguir entre as servidões não aparentes e os atos de mera tolerância, consentidos jure familiaritatis, que não refletem uma relação possessória capaz de conduzir à usucapião”.
Por isso, a exclusão das servidões não aparentes daquela modalidade constitutiva tem por fim evitar “a usucapião como título aquisitivo deste tipo de servidões, não obstante a equivocidade congénita dos actos reveladores do seu exercício”, e prevenir, por outro lado, “o grave inconveniente de dificultar, em vez de estimular, as boas relações de vizinhança, pelo fundado receio que assaltaria as pessoas de verem convertidas em situações jurídicas de carácter irremovível situações de facto assentes sobre atos de mera condescendência ou obsequiosidade” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed, p 629).
No mesmo sentido, a jurisprudência vem sentenciando que “a exigência legal de que para a constituição de uma servidão por usucapião é necessária a existência de sinais visíveis para toda e qualquer pessoa, permanentes e inequívocos (cf. art. 1548º, n.º 2, a contrario, do CC) destina-se a afastar a ambiguidade que pode resultar das relações de vizinhança”.
Âmbito no qual “é admissível que o proprietário de um prédio, por simples razões de cortesia, consinta que o proprietário de outro prédio tire alguns benefícios daquele primeiro imóvel, sem que esse facto traduza uma relação possessória idónea a atribuir-lhe, com o decurso do tempo, um direito ao aproveitamento de determinadas utilidades”.
De modo que, “para tornar clara a situação é que a lei faz dependente, neste caso, a aquisição da servidão por usucapião, da existência de sinais visíveis e permanentes, cuja presença torne inequívoca a natureza, juridicamente relevante, da atividade desenvolvida” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/5/2019, tirado no processo nº2687/13.5TBLLE.E1.S1, relatado por Maria do Rosário Morgado e disponível no citado sítio).
Ora, segundo pensamos, esta limitação em tema de constituição da servidão não foi devidamente considerada na decisão recorrida.
Com efeito, vistos os factos provados, constata-se a inexistência de quaisquer sinais na faixa de terreno dos autos, visíveis e permanentes, que resultem da utilização, relacionada com a vindima e a poda da ramada de videiras, que lhe é dada pela autora.
Uma vez que, como resulta dos factos provados nº3 e 4, os únicos sinais que se detectam nessa parte do solo, com dois metros de largura (variável), resultam da existência centenária de um rego foreiro, ou seja, de um curso de água aproveitado por vários consortes.
Actualmente entubado, o curso de água ficava exatamente encostado ao longo do muro de suporte da extrema sul do prédio da autora, contíguo ao prédio dos réus, através do qual era canalizado por gravidade, dum tanque de lavar a roupa desde a aldeia de ..., deixando os vestígios de passagem inerentes à actividade centenária do acompanhamento, condução e recolha da água em tal local.
De modo que, resultante dos actos ali praticados pela autora, de fazer a vindima e podar as videiras, nenhum rasto próprio se produziu no terreno ou, pelo menos, dele não existe qualquer expressão nos factos demonstrados.
Para além disso, com os sinais visíveis e permanentes de utilização da faixa em causa não se confundem, se bem pensamos, a ramada de videiras existente há cinquenta (ou há dez, na versão dos réus) anos que sobre aquela faixa pende, nem os esteios de suporte que nela foram implantados.
Por um lado, porque eles têm de resultar de vestígios da própria utilização verificáveis no próprio terreno ou no seu solo, como sucede no exemplo paradigmático, recentemente analisado na jurisprudência, de “um trilho com marcas de rodado, que nunca foi cultivado, tendo parte do piso em alcatrão e parte em terra batida, parcela que é ladeada por paredes em granito e pedra” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2/3/2023, processo 6148/19.0 T8VNF.G1, da autoria de Rosália Cunha e acessível no referido sítio em linha).
Por outro, porque a permanência dos sinais não se compadece com as designadas actuações descontínuas, resultantes de actos fugazes ou precários, como tudo indica terá acontecido com a implantação dos esteios no caso em apreciação, e que inclusivamente podem ter sido levados a cabo na ignorância do dono do prédio supostamente serviente.
Por estes motivos, aliás, é que a sentença de primeira instância, não traduzindo, os esteios em questão, sinais de passagem permanente e incontestada, decretou o seu levantamento.
E por força deles também não pode ser considerado sinal, com as referidas características de visibilidade e permanência de utilização da autora e antepassados, a colocação do portão a que se refere o facto provado 9.
Desde logo, porque resulta dos factos provados que o portão foi colocado pelos antecessores dos réus e, em acréscimo, que tal ocorreu em data não apurada, sem associação, pois, a qualquer intuito de facilitar a entrada no imóvel, que já ocorria desde data muito anterior (facto nº8).
Para além disso, por força da localização do referido portão, que confina com a via pública ou estrada principal, quando, como reconhece a jurisprudência, com o acordo da doutrina, para sinalizar, “com evidência, uma passagem do prédio dominante para o prédio serviente (…), tal portão ou entrada terão que se situar na linha divisória que separa o prédio serviente do dominante, destinando-se a assegurar uma comunicação entre os dois” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4/4/2017, relatado por Sílvia Pires, citado em A. Santos Justo, Ob. cit., p. 462).
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Com o motivo exposto, porém, como se disse, outro concorre no sentido de, decisivamente, excluir a actuação da autora do âmbito da servidão de passagem reconhecida na decisão recorrida, agora emergente do objecto legalmente previsto para esse direito.
Dispõe o art. 1544.º do Código Civil que podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor.
Esta regra está relacionada, em primeiro lugar, com o conteúdo atípico das servidões prediais e com a possibilidade de os particulares definirem livremente o seu conteúdo.
No entanto, ela traz igualmente implícita a exigência de que as vantagens proporcionadas pelas servidões devam merecer a tutela do direito, como a jurisprudência tradicional tem considerado, sem oposição da doutrina (cfr. Ana Sofia Carvalho, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I., p. 183).
Nessa perspectiva, que temos por fundada, entende-se que “quando a lei, no artigo 1544.º do Código Civil, fala de quaisquer utilidades sem usar nenhum qualificativo, haverá de entender-se que se reporta à sua necessária conformidade com a lei ou com o sistema jurídico em geral, não bastando uma posse boa para usucapião” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/10/1991, citado in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 10.ª ed., p. 990).
Acrescentando-se, nessa linha de orientação, que “não pode constituir-se servidão”, por exemplo, “para escoamento de líquidos malcheirosos e conspurcantes, ainda que se tenham provado os elementos materiais e psicológicos da usucapião” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/5/1990, citado na mesma fonte).
No entanto, como se passará a expor, a vindima pelo proprietário vizinho de uvas que pendam em prédio alheio, como qualquer apanha de frutos nas mesmas circunstâncias, traduz uma actuação que, embora não revista natureza ilícita, não merece a tutela do direito.
E que, para além disso, conhece uma regulação legal específica que, em regra, é incompatível com o reconhecimento de uma servidão de passagem.
Vejamos.
Segundo o o art. 1366.º/1 do Código Civil, é lícita a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios; mas ao dono do prédio vizinho é permitido arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ele propenderem, se o dono da árvore, sendo rogado judicial ou extrajudicialmente, o não fizer dentro de três dias.
Por outro lado, dispõe o art. 1367.º do mesmo diploma que o proprietário de árvore ou arbusto contíguo a prédio de outrem ou com ele confinante pode exigir que o dono do prédio lhe permita fazer a apanha dos frutos, que não seja possível fazer do seu lado; mas é responsável pelo prejuízo que com a apanha vier a causar.
O que constitui manifestação das regras atinentes à designada passagem forçada momentânea, previstas no art. 1349.º daquele normativo:
1. Se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar andaime, colocar objectos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros actos análogos, é o dono do prédio obrigado a consentir nesses actos.
2. É igualmente permitido o acesso a prédio alheio a quem pretenda apoderar-se de coisas suas que acidentalmente nele se encontrem; o proprietário pode impedir o acesso, entregando a coisa ao seu dono.
3. Em qualquer dos casos previstos neste artigo, o proprietário tem direito a ser indemnizado do prejuízo sofrido.
Estão em causa, pois, normas que procuram promover a boa vizinhança entre donos de prédios contíguos e que, para semelhante efeito, estabelecem restrições e condicionantes ao direito de propriedade.
Ora, da conjugação dos referidos preceitos legais, resulta o seguinte:
1. É lícita a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios;
2. Porém, se os o tronco ou os ramos das árvores propenderem sobre terreno alheio, embora não esteja em causa uma actuação ilícita, a situação deixa de merecer tutela legal;
3. E deixa de merecer essa protecção porque o dono do prédio vizinho pode legitimamente cortar o tronco ou os ramos que se introduzirem no seu terreno, depois de o solicitar, em vão, ao dono das árvores e arbustos;
4. Todavia, enquanto o tronco ou os ramos não forem arrancados, pelo seu dono ou pelo dono do prédio vizinho, o proprietário da árvore ou arbusto pode exigir que o vizinho lhe permita a entrada no imóvel dele para fazer a apanha dos seus frutos que não consiga colher do seu lado;
5. Tal como, da mesma forma, tem direito de exigir a entrada para fazer os trabalhos necessários de reparação e para apoderar-se de coisas suas que acidentalmente se encontrem no terreno alheio, se não for viável que o dono deste as entregue.
Para concluir, à luz destas regras, que os trabalhos na vinha em prédio alheio traduzem uma situação precária, cuja permanência está destituída de tutela, porque pode licitamente cessar em qualquer momento, por iniciativa do proprietário do prédio vizinho, e que, mesmo perdurando no tempo, apenas concede um direito de passagem momentâneo.
Assim sendo, tais actividades, ou as correspondentes utilidades, não constituem objecto idóneo para a constituição válida de uma servidão predial, por um lado e, por outro, estão sujeitas a uma regulamentação legal específica e completa cujo conteúdo, baseado na precariedade da utilização, não é idóneo para fazer nascer o referido direito real.
Na verdade, a passagem forçada momentânea constitui uma restrição ao direito de propriedade, de carácter ocasional e precário, e que carece de ser conciliada entre o titular desse direito e o dono do prédio vizinho, desde logo quanto ao horário e modo em que é exercida.
Ao passo que a servidão, como encargo de natureza permanente, é susceptível de permitir o acesso irrestrito e sucessivo ao lugar sobre o qual incide, prescindindo, no seu exercício, de qualquer concertação com o dono do prédio vizinho, sem prejuízo das particularidades que possam resultar do conteúdo definido pela posse determinante da aquisição daquele direito.
A exclusão do caso em apreciação do âmbito da servidão predial, aliás, é mesmo especificamente reconhecida na doutrina. Nos seguintes termos:
“Tem sido também aflorado o problema de saber se o proprietário da árvore pode adquirir por usucapião o direito de a manter em prejuízo do proprietário vizinho ou, por outras palavras, de se libertar, pela posse, da obrigação de a cortar ou deixar cortar.
Parece evidente, a todos os títulos, a resposta negativa. Não há posse, neste caso, porque não há o animus possidendi. O dono da árvore limita-se (…) a exercer o seu direito de propriedade em conformidade com a lei, surgindo a emissão dos ramos ou das raízes como mero reflexo ou consequência natural desse exercício”.
“E à mesma conclusão, aliás, se poderia chegar por outro caminho. Tendo os donos dos prédios para onde propendem ramos de árvores alheias o direito facultativo de os cortar, eles não perdem tal direito pelo facto do seu não exercício, ainda que prolongado. Trata-se, com efeito, de uma faculdade inerente ao direito de propriedade que, como tal, goza da característica da perpetuidade inerente ao domínio, não sendo susceptível de extinção por via prescricional” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. cit., p. 232, citando no mesmo sentido Henrique Mesquita e Cunha Gonçalves).
Procedem, em atenção aos dois apontados motivos, as conclusões 5.ª, 20.ª e 23.ª do recurso, o que impõe a revogação da sentença recorrida, na parte em que reconheceu a existência da servidão predial, nas alíneas a), b) e c) do seu dispositivo, e prejudica, por inutilidade, a apreciação da questão do reconhecimento abusivo daquele direito.
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SOBRE OS DEMAIS PEDIDOS DOS RECORRENTES/RECONVINTES
De forma não inteiramente coincidente, porém, passam-se as coisas em relação à alínea d) do dispositivo da sentença recorrida, que condenou os réus a remover ou manter funcional (permitindo a sua abertura e fecho) o portão existente entre o caminho/estrada principal situado a nascente dos prédios das partes e a faixa de terreno mencionada em b), entregando, caso tal se mostre necessário, uma chave do mesmo à autora.
Sendo certo que, vistos os factos provados, é possível perceber que esse portão foi soldado e selado, com a colocação de um ferro, em data relativamente recente (há cerca de 9/10 anos, como resulta do facto 10), quando, confinando com a via pública (factos 8 e 9), foi sempre através desse portão que a autora e familiares entraram para apanhar as uvas e fazer a poda das suas videiras (facto 8, mesmo na redacção proposta pelos recorrentes).
Assim sendo, tal comportamento dos réus está a prejudicar o direito que, enquanto as ramadas não forem cortadas, a lei concede à autora, nos arts. 1367º e 1349.º do Código Civil, de entrar, ainda que de forma momentânea, no prédio vizinho para colher os frutos que lhe pertencem, não alcançáveis do seu lado.
Na verdade, como acima se expôs, enquanto o tronco ou os ramos não forem cortados, o proprietário da árvore ou arbusto pode exigir que o vizinho lhe permita a entrada no imóvel dele para fazer a apanha dos frutos que não consiga colher do seu lado, tal como tem o direito de exigir a entrada para apoderar-se de coisas suas que acidentalmente se encontrem no terreno alheio se o dono deste não as entregar, como resulta do disposto nos arts. 1349.º e 1367.º do CC.
Trata-se, ademais, de um direito que a doutrina reconhece, e ao qual atribui, inclusivamente, natureza real, inerente à propriedade de prédios vizinhos.
Defendendo que “precisamente com vista a possibilitar a coexistência e o exercício harmónico dos direitos reais sobre imóveis limítrofes ou vizinhos, a lei estabelece uma regulamentação minuciosa dos conflitos a que tais direitos podem dar origem, integrando as normas respeitantes a esta matéria o chamado direito de vizinhança. Em certos casos, a lei como que amplia os limites materiais do objecto, permitindo ao respectivo titular intromissões no prédio vizinho (cfr., por. ex., os arts. 1349.º, nº1 e 2, e 1367.º) ou permitindo- -lhe praticar actos cujos efeitos vão repercutir-se noutros prédios (caso das emissões lícitas: cfr. o art. 1346.º)”.
De modo que, “quando a lei, por exemplo, permite que o proprietário entre no prédio vizinho para fazer a apanha de dos frutos das suas árvores (art. 1367.º)”, na verdade, “está, pura e simplesmente, a ampliar e a limitar, em termos correspondentes, o conteúdo do direito de propriedade sobre prédios vizinhos, estabelecendo que, para aquele efeito, os limites objectivos do domínio não coincidem com os limites materiais da coisa sobre que o direito real incide” (cfr. Manuel Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, pp. 95-7).
Em consequência, “se o proprietário de árvores situadas junto à extrema do prédio em que se integram só puder apanhar os correspondentes frutos, ou parte deles, através da entrada no prédio vizinho, o comportamento do dono deste que o proíba constitui violação do dever de não impedir o exercício de um direito real alheio” (cfr. M. Henrique Mesquita, Ob. loc. cit.)
Está em causa, pois, um limite aos poderes do proprietário do prédio vizinho, com a correspondente ampliação dos poderes do dono do prédio onde estão situadas as árvores, destinados a promover a boa vizinhança e a melhor rendibilidade dos imóveis, e que tem de ser respeitado como dever geral de abstenção e nos termos definidos pela lei.
Vale por dizer, assim, que infringe a devida configuração dos direitos em jogo, tal como o referido regime legal, o comportamento dos réus do qual, há cerca de 8 ou 9 anos, resultou a selagem da entrada, soldando o portão e colocando um ferro, impedindo assim a autora e seus familiares de acederem à faixa de terreno que usavam para fazer a poda e a vindima (facto 10).
Trata-se, por isso, de um facto ilícito, que infringe o dever de não impedir o exercício de um direito real alheio.
Em geral, a consequência legal prioritária para afastar a ilicitude é a reparação in natura, ou a reconstituição da situação existente sem o facto ilícito, nos termos do art. 562.º do Código Civil.
Todavia, no caso particular que tratamos, por força do regime desenhado nos arts. 1349.º, 1366.º/1 e 1367.º do mesmo diploma, é forçosa, segundo pensamos, uma forma diferente de pôr cobro ao facto ilícito em que se constituiu a referida conduta dos réus.
Com efeito, a reconstituição pura e simples iria afrontar excessivamente os poderes inerentes ao direito de propriedade de que os réus são titulares e o direito de murar o seu imóvel (arts. 1305.º e 1356.º do Código Civil).
E, identicamente, o direito da autora, embora possa ser configurado como uma conformação especial dos limites da sua propriedade, e também uma variante especial do direito de servidão, assume, todavia, natureza momentânea e precária (cfr. P. Lima e A. Varela, Ob. cit., 183-4), pelo que, a sua devida tutela não reclama nem justifica a reposição total geralmente prevista na lei para o afastamento da ilicitude.
Daí que esse desiderato, no caso dos autos, deva ser atingido tendo em conta as especiais características do direito concedido à autora e nos precisos limites consentidos pelo art. 1367.º do CC.
Assim, desde logo, a faculdade de entrada no imóvel por parte da autora ou de alguém a seu mando deve ser conciliada com os réus, assim harmonizando o seu exercício com os direitos deles e, mormente, com a sua privacidade e a normal fruição da propriedade.
Deste modo, como defende a doutrina, o exercício do direito de entrada no imóvel alheio “depende de uma notificação ao respectivo proprietário, dando-lhe conhecimento da necessidade de exercer o poder conferido por lei”, tendo “fundamentalmente por escopo possibilitar ao notificado a adopção das medidas que julgue adequadas à salvaguarda de interesses que o ingresso de estranhos seja susceptível de pôr em causa e, no caso de a entrada só poder ter lugar mediante um acto de cooperação da sua parte – proceder, v. g., à abertura de um portão de acesso ou facultar a respectiva chave ao notificante – faz nascer, para o notificado, a obrigação de praticar tais actos” (cfr. Henrique Mesquita, Ob. cit., pp. 97-8).
Essa interpelação, em segundo lugar, deverá fazer-se com a antecedência adequada à protecção dos direitos do proprietário do imóvel onde se pretende entrar, mostrando-se razoável e sistematicamente justificado, face ao disposto no art. 1366.º/1 do CC, fixá-la em três dias.
Uma vez que, sendo esse o prazo previsto na lei para que o dono das árvores proceda ao corte das plantas que invadam o prédio vizinho, sob pena de tal faculdade se devolver ao dono do imóvel invadido, também parece bastante para que este salvaguarde convenientemente os seus interesses na sequência da interpelação para permitir a entrada.
Por outro lado, a entrada deverá limitar-se, nos termos previstos na letra do art. 1367.º do CC, à apanha dos frutos, tomando-se ainda em consideração que o legislador não estabeleceu “um prazo fixo para a colheita, pela extrema variedade das situações que podem verificar-se e por se confiar, quer nas possibilidades de acordo entre os interessados, quer no estímulo do proprietário em efectuar a apanha em tempo útil” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. cit., p. 240).
Já relativamente ao pedido de condenação da autora a cortar os ramos e raízes das videiras que pendem sobre o prédio dos R.R. ou, pelo menos, a sua condenação a guiá-las para o próprio terreno, a primeira instância enfrentou a questão, novamente ao arrepio do que foi escrito no recurso, e recusou a pretensão por falta de fundamento legal.
O que fundamentou, por um lado, na circunstância de a autora ter adquirido o direito de guiar as videiras sobre o terreno dos réus e aí proceder à poda e vindima das mesmas, por usucapião e, por outro, porque o disposto no art. 1366.º do Código Civil confere directamente ao proprietário do prédio invadido a faculdade de proceder a tal corte, em princípio, pelo que, não cabe ao Tribunal condenar a autora a proceder ao corte das videiras em causa (ou a guiá-las para o seu terreno).
Embora não se subscreva o primeiro argumento, crê-se que, por força do segundo, a decisão recorrida, neste ponto, não merece censura.
Na verdade, a jurisprudência e a doutrina são praticamente consensuais no sentido de que o proprietário do prédio invadido por ramos ou troncos provindos de árvores plantadas na extrema do terreno vizinho, não pode obter a condenação deste no respectivo corte.
Assim, segundo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9/3/2010, “tem vindo a ser entendido, quase unanimemente, que o art.° 1366°, do C. Civil não atribui ao vizinho prejudicado com a invasão das raízes e ramos das árvores, o direito a pedir ao dono das mesmas qualquer indemnização, nomeadamente a destinada a compensar os danos causados por essa invasão no seu prédio”, pelo que, “sendo conferido ao proprietário, cujo prédio foi invadido pelos ramos ou raízes das árvores implantadas em prédio confinante, o direito de autotutelarmente os cortar, ele tem a possibilidade de evitar que eles causem danos no seu prédio, pelo que, verificando-se esses danos, os mesmos são-lhe imputáveis, não se justificando a responsabilização do dono das árvores que pode nem sequer ter a possibilidade de se aperceber da situação danosa” (cfr. processo 2899/05.5TBOAZ.P1, sendo relatora Sílvia Pires e estando o aresto disponível no mencionado sítio).
Tal como, de acordo com o Acórdão de Tribunal da Relação de Coimbra de 21/1/2014 (tirado no processo 32/12.6TBSBG.C1, da autoria de Catarina Gonçalves e acessível na mesma base de dados), “o art. 1366º, nº 1, do C.C. limita-se a conceder ao proprietário do prédio a faculdade – e não a obrigação – de defender o seu direito, mediante recurso a “acção directa” e independentemente da verificação ou não de qualquer prejuízo, arrancando e cortando as raízes, troncos e ramos das árvores existentes em prédio vizinho e que se introduzam no seu prédio, desde que previamente o solicite ao dono das árvores e este o não faça dentro do prazo ali referido”, de modo que, “se o proprietário do prédio invadido, podendo cortar – facilmente e sem grandes custos – as raízes, ramos e troncos que se introduzem no seu prédio, omite tal actuação, não poderá exigir ao dono das árvores qualquer indemnização dos danos que aquele facto lhe venha a causar, porquanto podia e devia ter actuado com vista a evitar a sua verificação”.
No mesmo sentido, a doutrina tem apontado que “o vizinho prejudicado com as árvores não pode pedir uma indemnização ao seu dono, porque pode evitar os danos exercendo a faculdade (de cortar as árvores que invadam o seu prédio) que a lei lhe concede” (A. Santos Justo, Ob. cit., p. 273).
Ressalvando-se apenas a situação em que o proprietário não tem a possibilidade de cortar as raízes, ramos ou troncos que se estendem para o seu prédio, bem como nas situações em que essa actuação, apesar de possível e mesmo sendo permitida pela norma acima citada, não lhe seja razoavelmente exigível, por ser demasiada onerosa.
Todavia, os nossos autos não evidenciam a verificação de qualquer uma das referidas excepções à regra da exclusão da indemnização.
Na verdade, na situação em que os ramos e os troncos pendam para o imóvel vizinho, não há sequer, como acima observamos, um facto ilícito.
Trata-se, ao invés, de uma consequência natural de uma actuação que a lei qualifica expressamente como lícita (é lícita a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios: art. 1366.º do CC) e cuja manutenção no tempo, embora não mereça protecção legal (e por isso que ao dono do prédio vizinho é permitido arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ele propenderem), de nenhum segmento da lei resulta que seja ilícita.
Tanto mais que dela podem resultar efeitos favoráveis legalmente admissíveis e, desde logo, como vimos, a entrada no terreno alheio para a colheita de frutos (art. 1367.º do CC).
Em consequência, na falta de ilicitude desses factos, não colhe motivo legal a pretensão de reposição natural que, no caso contrário, resultaria do disposto no art. 562.º do Código Civil, nem tal reconstituição a cargo do dono da árvore pode imputar-se a qualquer outro segmento da lei.
Acresce, se bem pensamos, que o art. 1366.º/1 do Código Civil, ao prever que ao dono do prédio vizinho é permitido arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ele propenderem, está a atribuir a responsabilidade pelos encargos do arranque e do corte, salvo as referidas situações excepcionais, ao dono do prédio invadido.
O que faz como natural corolário da licitude da plantação de árvores e arbustos até às estremas dos prédios e da sua harmonização equitativa com o direito de propriedade do terreno vizinho, por um lado e, por outro, na promoção da maior rendibilidade dos prédios vizinhos.
Com efeito, como já se decidiu na jurisprudência e tem merecido pleno acolhimento na doutrina, “o que não pode, por a lei não lhe permitir, é exigir que o corte ou arranque seja feito pelo dono da plantação e à custa dele”, mostrando-se inexplicável, por isso, a orientação que afasta também o direito à indemnização, mas atribui “ao vizinho lesado o direito à despesa feita com o corte” a cargo do dono da árvores (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. cit., p. 231-2, em apoio à solução defendida em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Maio de 1962 que cita).
Por último, quanto ao pedido de condenação da ré a reconstruir/reparar o muro de suporte desmoronado em várias secções da sua extensão, no prazo de 30 dias, não foram apresentados nas conclusões do recurso, nem sequer nas alegações, e que igualmente não vislumbramos na lei, quaisquer motivos que justifiquem a alteração da decisão de primeira instância.
No que tange a custas, finalmente, deve atender-se a que, apesar do decaimento em larga medida das suas pretensões, a autora obteve vencimento parcial na importante questão da desobstrução do portão, sendo por isso justificado imputar-lhe a proporção de 2/3 da responsabilidade a esse nível.
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DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, concedendo-se parcial provimento ao recurso, decide-se: i) revogar a sentença recorrida quanto às alíneas a), b) e c) do dispositivo, julgando improcedente o pedido da autora de reconhecimento de servidão de passagem a seu favor, sem prejuízo do disposto nos artigos 1349.º e 1367.º do Código Civil, ii) em substituição da alínea d) do dispositivo de tal sentença, condenar solidariamente os réus a permitir a entrada da autora ou alguém a seu mando, para a apanha das uvas que não possa alcançar no seu prédio, através do portão existente entre o caminho/estrada principal e a nascente dos prédios, mantendo-o funcional para o efeito (permitindo a sua abertura e fecho) e mediante interpelação da autora ou quem a represente com a antecedência mínima de três dias úteis.
No mais, improcede o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas da acção, da reconvenção e do recurso pela autora, na proporção de 2/3, e pelos réus no restante (art. 527.º do CPC).
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SUMÁRIO
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Declaração: Elaborei o acórdão, apesar da discordância quanto a questão de menor significado, referente somente ao ponto ii) do segmento decisório, ao abrigo do art. 663.º/4 do CPC, por acordo dos Ex.mos Juízes Desembargadores Adjuntos e decisão do Ex.mo Juiz Desembargador Presidente. Nessa parte, diversamente do entendimento que fez vencimento, não limitaria a permissão de entrada da autora apenas à apanha das uvas, por considerar que está implícita no art. 1367.º do CC a autorização para a prática dos demais actos indispensáveis para o efeito, por um lado e, por outro, como resultado da ilicitude do facto praticado pelos RR., relativo ao bloqueio do portão, em conjugação com o princípio, emergente do disposto no art. 562.º do mesmo diploma, que impõe a reconstituição natural da forma mais próxima possível à anteriormente existente que não seja vedada por lei. Em contrapartida, para disciplinar a entrada da autora, e considerando aplicáveis regras de equidade, permitidas na medida em que o legislador optou por não estabelecer o prazo e demais condições da colheita, restringindo a procedência do pedido da autora, limitaria a entrada a um número certo de vezes (três) por ano, estabeleceria prazo (três dias) para cada uma e subordinaria a manutenção da autorização até ao momento em que os réus não cortassem, como podem fazer ao abrigo do art. 1366.º/1 do CC, os troncos e as ramadas que pendem para o seu prédio e que estão no cerne do litígio trazido a juízo.

(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)

Porto, d. s. (25/11/2024)
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Fátima Andrade
Carlos Gil