Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9808/21.2T8VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: REQUERIMENTO DA INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
CRÉDITOS CONDICIONAIS
CRÉDITOS LITÍGIOSOS
CONTRATO-PROMESSA
Nº do Documento: RP202206089808/21.2T8VNG-A.P1
Data do Acordão: 06/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Não existe coincidência entre a figura da condição no domínio do direito civil e os créditos condicionais referidos no art.º 50º nº 1 do CIRE. Enquanto que no domínio civil a condição é estipulada pelos intervenientes no contrato, constituindo uma das suas cláusulas, no domínio do CIRE, o “acontecimento futuro e incerto” pode resultar de força da lei, decisão judicial ou de negócio jurídico. Por outro lado, enquanto no domínio civil, a condição respeita a eficácia do negócio, no domínio do CIRE ela foi concebida como atinente à constituição e/ou subsistência do mesmo.
II – Aos créditos litigiosos é absolutamente indiferente a noção de “acontecimento futuro e incerto”; basta-lhes o facto, já concretizado, de se tratar de um crédito bjecto de litígio judicial. A aleatoriedade do resultado duma decisão judicial não se pode confundir com uma condição; a sentença irá acontecer, mais cedo ou mais tarde, o resultado, o decidido é que se ignora.
III – O promitente vendedor que emite declaração resolutiva de um contrato promessa em que outorgou, e depois se vê confrontado com a interposição de acção em que o promitente comprador pretende obter a execução específica desse contrato, não assume por isso a qualidade de credor condicional para efeitos do art.º 20º nº 1 do CIRE, nem o crédito relativo à parte restante do preço a pagar (na hipótese de procedência da acção) assume a natureza de crédito litigioso.
IV - Nestas circunstâncias, o promitente vendedor carece de legitimidade para interpor o requerimento de insolvência do promitente comprador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 9808/21.2T8VNG-A.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – RESENHA HISTÓRICA DO PROCESSO
1. AA e BB intentaram ação pedindo a insolvência de “G..., Lda.”, com fundamento na existência de um crédito condicional.
Em resumo, alegaram ter celebrado com a Requerida um contrato promessa de compra e venda sobre determinado prédio urbano, bem como um outro sobre bens móveis; que, tendo-se a Requerida constituído em mora, resolveram esses contratos promessa; após a resolução dos contratos, a Requerida intentou uma ação de execução específica contra os Requerentes, que corre ainda os seus termos; nesse processo, a Requerida assume que deve, pelo menos, a quantia de € 1.466.250,00, embora reclame uma compensação do valor de € 1.041.576,66.
A Requerida deduziu oposição, sustentando a falta de fundamento da ação.
A M.mª Juíza proferiu então decisão, absolvendo a Requerida do pedido, por falta de legitimidade substantiva dos Requerentes.

2. Inconformados com tal decisão, dela vêm apelar os Requerentes, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A. Os Recorrentes intentaram uma acção em que peticionavam a declaração de insolvência da Recorrida G..., Lda.
B. Para o efeito alegaram que celebraram, no dia 6 de Janeiro de 2021, um contrato de promessa de compra e venda com E... sobre o prédio urbano sito em ..., E.N. ... ao Km 25,600, freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º ... da dita freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., cfr. doc. 1 da petição inicial.
C. Pelo referido contrato de promessa a Recorrida obrigou-se a comprar o referido imóvel pelo valor de € 700.000,00 (setecentos mil euros), cfr. doc. 1. A Recorrida por força do referido contrato promessa pagou a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de € 42.630,00 em 06.01.2021 e a quantia de € 62.422,50 a título de reforço de sinal, cfr. doc. 1.
D. O remanescente do preço, ou seja a quantia de € 594.947,50 (quinhentos e noventa e quatro mil, novecentos e quarenta e sete euros e cinquenta cêntimos), tinha que ser liquidada no dia da escritura pública de compra e venda.
E. Simultaneamente no dia 6 de Janeiro de 2021, os Recorrentes e a Recorrida celebraram o contrato de promessa de compra e venda de bens móveis que se encontravam no Posto de Abastecimento de Combustíveis com zona de lavagens e estabelecimento de apoio, licenciado pelo Alvará n.º ..., emitido pelo Ministério da Economia, em 19-07-2020, e alvará de licença de utilização n.º ..., emitido pela Câmara Municipal ..., cfr. doc. 2.
F. O preço global de compra e venda dos activos ascendia a € 1.025.000,00 (um milhão e vinte e cinco mil euros), cfr. doc. 2.
G. A título de sinal e princípio de pagamento, a Recorrida entregou a quantia de € 62.370,00 no dia 6 de Janeiro de 2021 e a quantia de € 91.327,50 a título de reforço de sinal no dia 27.01.2021, cfr. doc. 2.
H. O remanescente, ou seja € 871.302,50 (oitocentos e setenta e um mil, trezentos e dois euros e cinquenta cêntimos) deveria ser pago no dia da celebração da escritura pública do contrato de promessa de compra e venda do bem imóvel (doc. 1).
I. Ambos os contratos (dos. 1 e 2) são indissociáveis entre si e têm que obrigatoriamente ser cumpridos em simultâneo, cfr. doc. 1 e 2.
J. Após a resolução de ambos os contratos de promessa (doc. 1 e 2), a Recorrida intentou uma acção de execução específica contra os Recorrentes que corre termos no processo n.º 2961/21.7T8STR, junto do Juiz 4 do Juízo Central Cível de Santarém, Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, cfr. doc. 5.
K. A Recorrida assume no aludido processo judicial que deve, pelo menos, a quantia de € 1.466.250,00 (um milhão, quatrocentos e sessenta e seis mil, duzentos e cinquenta euros), cfr. doc. 5.
L. Ou seja, a Recorrida ao intentar a referida acção judicial de execução específica assume que deve aos Recorrentes, pelo menos, a quantia de € 1.466.250,00 (um milhão, quatrocentos e sessenta e seis mil, duzentos e cinquenta euros), que corresponde ao remanescente do preço dos contratos de promessa de compra e venda.
M. Porém, é bastante para se demonstrar que estamos perante um crédito litigioso, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo. Ora, o que por sua vez significa que o crédito dos Recorrentes é condicional por se encontrarem sujeitos à verificação de um acontecimento futuro por força de decisão judicial.
N. Não existe outra solução legal, senão revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que ordene a prossecução dos autos e reconheça a improcedência da excepção dilatória de ilegitimidade.
O. Logo, os Recorrentes têm legitimidade para requerer a declaração de insolvência da Recorrida, nos termos do n.º 1 do artigo 20 e artigo 50.º do CIRE.
P. Ademais, atente-se ainda à oposição da Recorrida, e a mesma não juntou a lista dos cinco maiores credores nem juntou qualquer elemento contabilístico que prove a sua solvabilidade, motivo pelo qual deve a presente causa ser sujeita a audiência de discussão e de julgamento, bem como julgada improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade.
Q. Termos em que a sentença recorrida viola o disposto no n.º 1 do artigo 20.º e artigo 50.º do CIRE.
R. Face a todo o exposto, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa, ordene a realização de audiência de discussão e de julgamento, em virtude da sentença recorrida violar o disposto no n.º 1 do artigo 20.º e 50.º do CIRE.
Assim, nestes termos e nos demais de direito que V. Exa., doutamente suprirá, deve julgar o presente recurso de apelação procedente, revogando e substituindo a sentença recorrida, por outra que julgue improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa, ordene a realização de audiência de discussão e de julgamento, em virtude da sentença recorrida violar o disposto no n.º 1 do artigo 20.º e 50.º do CIRE, para que se faça a habitual JUSTIÇA!!!

3. A Requerida contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. OS FACTOS
Para além do referido no relatório, a M.mª Juíza fez consignar ainda os seguintes factos na decisão:
«Na ação de execução especifica dos contrato-promessa interposta contra os Requerentes, a Requerida pede que:
I – Seja reconhecida e declarada a posse da Autora sobre o imóvel e sobre os bens móveis que constituem o posto de combustível, identificados nos respetivos contratos promessa de Compra e Venda de Bem Imóvel com E... e Contrato Promessa de Venda de Bens Móveis;
II – Declarada a culpa dos Réus no incumprimento dos contratos promessa de Compra e Venda de Bem Imóvel com E... e Contrato Promessa de Venda de Bens Móveis;
III - Sejam condenados os Réus a transmitir à Autora, por força da execução específica, do bem imóvel identificado supra sob o n.º 3 e dos bens móveis identificados supra sob o n.º 14.º;
Cumulativamente,
IV – Sejam os Réus condenados ao pagamento à Autora dos seguintes valores:
1) A título de dano emergente o valor de Eur. 101.729,66 pela falta de área do prédio prometido vender;
2) A título de dano emergente no valor de Eur. 337.775,00 correspondente à diferença entre o valor do preço do terreno prometido comprar pela Autora aos Réus, (na proporção da área descoberta) de Eur. 462.225,00 (4860 m2 X Eur. 95,11) e o valor que esta iria vender à sociedade T..., Lda.
3) A título de dano emergente no valor de Eur. 246.000,00 resultante da não colocação da máquina de “Jet wash”;
4) A título de dano emergente o valor de Eur. 10.500,00 valor já deduzido pela exploradora do Posto de Combustível ao valor mensal de retribuição previsto contratualmente, por referência à falta de colocação do “Jet Wash”;
5) A título de dano futuro, o valor de Eur. 345.572,00 com fundamento na perda de rentabilidade do imóvel.
V - Serem os Réus condenados ao pagamento de juros já vencidos sobre o valor peticionado em 4), que na presente data se liquidam em Eur. 12,76, bem como os juros vincendos até efetivo e integral pagamento.
VI - Serem os Réus condenados ao pagamento de juros vincendos sobre os valores peticionados em 1), 2) 3) e 5) a contar da data do trânsito em julgado da decisão da presente lide, contabilizados até efetivo e integral pagamento.»

5. APRECIANDO O MÉRITO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, uma única QUESTÃO é suscitada: se os Requerentes têm legitimidade para instaurar o pedido de insolvência da Requerida.

5.1. Da (i)legitimidade dos Requerentes
Em primeira linha, a lei refere que a apresentação à insolvência constitui um dever para o próprio devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas: art.º 3º nº 1 e 18º nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Para além do devedor, confere-se ainda legitimidade a “qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”, desde que se verifique algum dos chamados factos-índice: art.º 20º nº 1 do CIRE.
A decisão a tomar sobre a legitimidade dos Requerentes pressupõe que se decida sobre a sua qualidade de credores, o que implica a clarificação de alguns conceitos.

5.1.1. O crédito invocado pelos Requerentes pode classificar-se de condicional?
A M.mª Juíza fundamentou a sua decisão na consideração de que os Requerentes invocaram um crédito condicional.
Os Requerentes, porém, sem contrariar essa classificação, invocam ainda a natureza de crédito litigioso, “(…) estamos perante um crédito litigioso, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo. Ora, o que por sua vez significa que o crédito dos Recorrentes é condicional por se encontrarem sujeitos à verificação de um acontecimento futuro por força de decisão judicial” (conclusão M).
Mas compete também deixar consignado que, independentemente da qualificação/interpretação que a parte lhe dê, é ao juiz que compete a indagação, interpretação e aplicação das regras de direito: art.º 5º nº 3 do CPC.
Laboram os Recorrentes em erro quando pretendem fazer equivaler o conceito de crédito litigioso e/ou de crédito condicional, bem como quando colocam um e outro numa situação de causa-consequência (segundo alegam, um crédito litigioso seria sempre condicional porque ab initio nunca se saberia o que vai decidir o Tribunal).
Trata-se de conceitos diversos e com um âmbito de atuação bem concreto.
Resulta do art.º 20º nº 1 do CIRE que a lei aceita expressamente que seja tido em conta não só o crédito condicional, mas qualquer outro, independentemente da sua natureza, como sejam os créditos ilíquidos, os ainda não vencidos, créditos públicos ou privados, comerciais ou particulares, etc.
No capítulo da massa insolvente e classificação dos créditos, o art.º 50º nº 1 do CIRE apresenta a seguinte definição [1]: consideram-se créditos sob condição suspensiva e resolutiva, respetivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico.
Portanto, contrariamente ao domínio civil, em que a condição é estipulada pelos intervenientes no contrato, constituindo uma das suas cláusulas [2], no domínio do CIRE, o “acontecimento futuro e incerto” pode resultar de uma de 3 hipóteses: (i) força da lei; (ii) decisão judicial ou (iii) negócio jurídico.
Por outro lado, enquanto no domínio civil, a condição respeita a eficácia do negócio, no domínio do CIRE ela foi concebida como atinente à constituição e/ou subsistência do mesmo.
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda [3], a razão de ser deste alargamento terá sido a necessidade de compatibilização com outros preceitos do CIRE, designadamente os créditos resultantes da recusa de execução ou denúncia antecipada, por parte do administrador da insolvência, dos contratos bilaterais em curso à data da declaração da insolvência, ou da resolução de atos em benefício da massa insolvente, tais como os exemplificados nas diversas alíneas do nº 2 desse art.º 50º.
Já para os créditos litigiosos, não existindo no CIRE definição específica, é necessário recorrer ao Código Civil [4]. Nos termos do art.º 579º nº 3 do CC, “diz-se litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado”.
Fácil é de verificar que aos créditos litigiosos é absolutamente indiferente a noção de “acontecimento futuro e incerto”; basta-lhes o facto, já concretizado, de se tratar de um crédito objeto de litígio judicial. É certo que o crédito litigioso pode envolver a apreciação de alguma condição a que eventualmente tivesse sido sujeito; mas, em princípio, prescinde da noção de condicional.
Naturalmente, também, que perante um litígio em tribunal existe sempre alguma incerteza do resultado da decisão judicial, seja pelo risco da prova, seja pelas diversas interpretações jurídicas possíveis.
Contudo, o facto de não se saber ab initio qual vai ser o sentido da decisão judicial (procedência ou improcedência, total ou parcial), não transforma a decisão em “acontecimento futuro e incerto” nem é subsumível ao conceito de negócio condicional.
Dito de outra forma, a aleatoriedade do resultado duma decisão judicial não se pode confundir com uma condição; a sentença irá acontecer, mais cedo ou mais tarde, o resultado, o decidido é que se ignora. [5]
Por outro lado, enquanto o crédito litigioso se basta com uma contestação em juízo, o crédito condicional faz apelo já a uma sentença (“decisão judicial” no enunciado do art.º 50º nº 1 do CIRE), isto é, o tribunal já se debruçou sobre o crédito e já decidiu que a sua constituição ou subsistência está dependente dum determinado acontecimento.
Concluindo, o crédito aqui em causa não pode ser classificado de crédito condicional.

5.1.2. O crédito invocado pelos Requerentes pode classificar-se de litigioso?
Como atrás se disse, é ao juiz que compete a indagação, interpretação e aplicação das regras de direito: art.º 5º nº 3 do CPC.
Assim, em função da factualidade alegada, há que apurar da possibilidade de estarmos perante um crédito litigioso que, como vimos, se basta com a existência de um litígio em tribunal. Vejamos.
Os Requerentes foram outorgantes em 2 contratos-promessa, como vendedores, ocupando a aqui Requerida a posição de promitente compradora. Considerando que a Requerida se constituiu em mora e incumprimento definitivo, os Requerentes procederam à resolução dos contratos promessa, fazendo seus os sinais recebidos. Sucede que, logo após essa declaração resolutiva, a Requerida interpôs ação no Tribunal, efetuando vários pedidos, designadamente a execução específica dos contratos e a de condenação em outros créditos que sobre eles detém e vários montantes indemnizatórios. Nessa ação, a Requerida confessa dever aos Requeridos a quantia de € 1.466.250,00, correspondente à parte restante do preço das compras a efetuar.
Face a este circunstancialismo, é possível perspetivar que os Requerentes venham a assumir a posição de credores, face à confissão declarada pela Requerida na ação declarativa?
Se, e na medida, em que a referida ação venha a ser procedente, os Requerentes terão de transferir a propriedade dos bens e, em contrapartida, terão direito a receber a restante parte do preço.
À data deste pedido de insolvência, a ação já tinha sido instaurada. Portanto, prima facie, parece que estaríamos perante um crédito litigioso. Mas não é de entender assim.
Na verdade, à noção do art.º 579º nº 3 do CC não é indiferente a posição que a parte ocupa no processo.
Ou seja, os Requerentes teriam de ser os Autores na ação, teriam de ser eles a arrogar-se credores de outrem, como decorre da expressão “tiver sido contestado em juízo”. Teriam de ser os Requerentes a arrogar-se um direito de crédito, que a contraparte contestava.
Ora, nos termos em que a referida ação foi configurada, os Requerentes ocupam a posição de Réus devedores. Como decorre da factualidade provada a ter aqui em conta, para além da execução específica ─ única situação em que lhes pode advir algum crédito ─, os demais pedidos são de condenação para pagarem à Requerida diversos montantes por danos emergentes.
A resolução do contrato consubstancia uma declaração de vontade (direito potestativo): mediante ela, uma das partes comunica à outra que pretende cessar a relação contratual que as unia. E, sendo convencional, efetua-se mediante simples declaração à outra parte: art.º 432º n.º 1 e 436º n.º 1 CC.
Daqui decorre que, nos casos de resolução convencional, em que surja litígio, o tribunal apenas irá verificar da existência dos fundamentos invocados ou da regularidade do respetivo exercício.
«A rescisão do contrato por inexecução reveste carácter extrajudicial. Significa isto que o credor, para a obter, não tem que recorrer ao tribunal. É ele próprio que rescinde o contrato.
Em caso de litígio o tribunal será chamado, não a decretar a rescisão, mas a verificar se ela juridicamente se deu, isto é, se se reuniam as condições necessárias para o credor poder romper o contrato por sua vontade unilateral.». [6]
O que os Requerentes alegam é que a resolução contratual que efetuaram foi válida e eficaz (por incumprimento da Requerida); portanto não detêm qualquer outro crédito, pois já fizeram seus os sinais recebidos.
Assim, como bem se vislumbrou na decisão recorrida, os Requerentes assumem uma posição contraditória. Segundo a sua alegação de facto, eles não se arrogam um direito de crédito sobre a Requerida.
Só no caso de o Tribunal vir a concluir que a resolução foi inválida, é que os Requerentes podem vir a assumir a qualidade de credores (melhor, credores-devedores), consoante o que se vier a apurar no processo. Estamos perante uma mera hipótese e não perante um crédito.
Para além de que, a vir a concretizar-se essa hipótese, nem sequer se trataria de um crédito litigioso; atente-se que a Requerida, ao pedir a execução específica, se confessa devedora da parte restante do preço; ou seja, quanto a esse potencial crédito derivado do preço restante, não existe qualquer litígio porque a Requerida desde logo o confessou.
Concluindo, não se trata aqui de um crédito litigioso.

5.2. Da legitimidade dos Requerentes
Como regra geral, a legitimidade das partes será apurada em função do pedido e da causa de pedir pois só em função desses dois elementos é possível averiguar do interesse direto, da utilidade ou prejuízo resultantes da ação.
Quer o interesse direto e a utilidade/prejuízo terão de ser aferidos em função da causa de pedir e pedido formulados pelo Autor, a versão fáctica por ele trazida aos autos.
No caso, estamos no âmbito de um processo de insolvência que, como lei especial, contém regras próprias a assegurar a legitimidade.
Neste âmbito, para além do mais, confere-se legitimidade a “qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”, desde que se verifique algum dos chamados factos-índice: art.º 20º nº 1 do CIRE. Ou seja, a legitimidade dos Requerentes derivava da demonstração da sua qualidade de credores da Requerida.
Que, pelo que vem de se dizer, já vimos que os Requerentes não têm a qualidade de credores.
Acresce que, face ao inusitado da situação descrita pelos Requerentes, sempre haveria de ter-se em conta as normas do CIRE sobre os “negócios em curso” e a especificidade de se tratar de um contrato promessa ainda em curso: art.º 102º, 106º e 104º nº 5.
Nesta perspetiva, e mesmo que tivessem a posição de credores, sempre seria de perspetivar que a motivação dos Requerentes ao pedir a insolvência da Requerida fosse a de evitar terem de contestar a ação que esta lhes moveu, contando, quiçá, com a recusa do administrador da insolvência em cumprir o contrato (art.º 102º do CIRE), tudo a encaminhar-nos para o uso anormal do processo, a sancionar nos termos do art.º 612º do CPC.
Terminamos em expressa concordância com Carvalho Fernandes e João Labareda: «Daí que, no melhor sentido que se extrai do nº 1 do art.º 20º, a atribuição de legitimidade ativa aos credores supõe que o processo não se constitua predominantemente como um expediente para atingir fins que não se traduzem, matricialmente, na realização do crédito.
Desta sorte, será de negar legitimidade ao credor litigioso quando o recurso à ação de insolvência se arvora como um instrumento para o fazer recuperar posições que o decurso do processo pendente lhe fez perder, ou até mesmo para inquinar o efeito de decisões desfavoráveis já ali produzidas, ainda que não transitadas.» [7]
Concluindo, os Requerentes não têm legitimidade para requerer a insolvência da Requerida.

6. SUMARIANDO (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo dos Recorrentes.

Porto, 08 de junho de 2022
Isabel Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
___________
[1] Atente-se que, sendo o CIRE e a matéria de insolvência uma matéria especial, o conteúdo a ter em conta pode não coincidir com o conceito geral do Código Civil, como expressamente se adverte no início do preceito, “para efeitos deste Código”.
[2] Para melhor desenvolvimento, cf. Manuel de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, Coimbra, 1983, pág. 355 e seguintes.
[3] In “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª edição, Quid Juris, anotação 5 e seguintes ao art.º 50, pág. 305-307.
[4] De acordo com o seu art.º 10º.
[5] Como se escreveu no acórdão desta Relação do Porto, de 08/11/2016 (processo nº 1006/13.5TYVNG.P1): «No caso do art. 50º do CIRE, que compreende já uma noção bem ampla do que possa considerar-se, para efeitos do código, um crédito sob condição, o respectivo titular, no caso de um crédito sob condição suspensiva, tem de revelar a titularidade de um crédito já consubstanciado num direito com conteúdo reconhecível, cuja concretização e vencimento podem estar dependentes de um evento futuro e incerto. Mas não assume tal qualidade um crédito relativamente ao qual a própria existência seja meramente hipotética, i.é, que possa nem sequer vir a surgir na esfera jurídica do pretenso credor.
É o que acontece no caso em apreço, onde a requerente não demonstra a titularidade de qualquer direito de crédito sobre a requerida, designadamente um com a dimensão aquele que invoca, cujos meros vencimento ou exigibilidade estejam dependentes da verificação de uma condição. A montante disso, o próprio surgimento do direito de crédito a que a apelante alude é, ele próprio, uma mera hipótese que poderá não se verificar, já que quanto à sua verificação não há mais do que uma mera expectativa ou receio. É o próprio crédito que não existe; não é a sua mera concretização ou a sua eficácia que estão dependentes de um acontecimento futuro e incerto.»
[6] Galvão Teles, “Direito das Obrigações”, Coimbra Editora, 5ª edição, pág. 438/439.
No mesmo sentido, Baptista Machado, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, “Obra Dispersa, I, págs. 130/131: «O direito de resolução é um direito potestativo extintivo e dependente de um fundamento. O que significa que precisa de se verificar um facto que crie esse direito - melhor, um facto ou situação a que a lei liga como consequência a constituição (o surgimento) desse direito potestativo».
[7] Obra citada, anotação 7, pág. 199.