Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
479/20.4T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
RECURSO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RP20240509479/20.4T8STS.P1
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O actual processo de inventário permite, além da regra geral, a interposição de recursos de determinadas decisões nos termos do art. 1123º, do CPC.
II - Por isso se a decisão era susceptível de recurso autónomo, como é o caso da decisão do incidente de reclamação de bens, e este não foi interposto a mesma transitou e formou caso julgado formal.
III - Caso os interessados tenham “desistido das reclamações” e esta desistência tenha sido homologada por despacho judicial transitado, ter-se-á de entender que esta não pode ser retirada, que por isso a respectiva instância se extinguiu e que esse acto processual vincula a parte.
IV - Caso a interessada pretende por em causa o teor da acta da conferência de interessados deve lançar uso da correcção dos erros de escrita e/ou da falsidade do acto judicial, não pretender que o tribunal de recurso altere o teor desse documento autêntico, não tempestivamente impugnado com a audição da gravação como um se existisse um recurso sobre a produção de prova.
V - Deve ser considerada nula a sentença homologatória da partilha, que não apreciou uma questão relevante, objecto de acordo das partes numa diligência oficiosamente determinada e que afecta o montante a partilhar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 479/20.4T8STS.P1

Sumário

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1. Relatório

Nestes autos de inventário facultativo intentados por óbito de AA que faleceu no estado de casada com o inventariado BB.

À sua morte sucedendo-lhe o marido, BB, e dois filhos, CC e DD, aqui interessados.

Foi elaborada a forma à partilha.

Realizou-se a conferência de interessados,

Foi elaborado o mapa de partilha e proferida sentença.

Finda a qual veio a cabeça de casal interpor recurso pedido que “SUBSTITUINDO-SE A SENTENÇA RECORRIDA POR ACÓRDÃO QUE ORDENE A CORREÇÃO DO MAPA DE PARTILHA NOS TERMOS REQUERIDOS”.

Esse recurso foi admitido, como dizendo respeito “a decisão final”, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.


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2.1. Foram apresentadas as seguintes conclusões pela apelante cabeça de casal

I- Por sentença, o Tribunal a quo homologou o Mapa de Partilha (referência 451880135), o qual, porém, tem que ser corrigido.

A) QUANTO AOS BENS “DINHEIRO”

II- Não obstante os extractos bancários e o teor do Despacho de 23.06.2022 (referência 437798549), a Secretaria colocou no quadro do “valor” a quantia de Eur. 176.677,87, quando deveria ter colocado a quantia de Eur. 120.000,00.

III- Resulta da prova documental junta pelo Banco 1... que à data da morte do Inventariado BB só havia em contas bancárias Eur. 120.000,00.

IV- A Cabeça-de-Casal aqui Recorrente assumiu funções apenas após a morte do Inventariado BB, pelo que não responde por quantias existentes em data anterior à sua designação para o cargo.

V- De acordo com o Art.º 2079.º do CPC, a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal.

VI- A Recorrente assumiu essas funções em 07.05.2020, quase 4 anos depois da morte da Mãe.

VII- Portanto, se dos elementos de prova resulta que na data em que a Cabeça-de-Casal assumiu funções havia apenas Eur. 120.000,00 em contas bancárias, no Mapa de Partilha devia constar essa quantia e não Eur. 176.677,87, pelo que deve ser rectificado.

VIII- No entender da Recorrente, há, assim, violação do Art.º 2079.º do CC e das restantes normas que regulam a administração da herança.

IX- Ao ser colocado o valor de Eur. 176.677,87 o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos em face dos meios probatórios existentes, mais concretamente os extractos bancários juntos aos autos, os quais impunham decisão diversa da recorrida.

B) QUANTO À NÃO CONSIDERAÇÃO DE EUR. 38.553,23

X- O Recorrido admitiu, na reclamação à relação de bens (referência 26056821), ter recebido a quantia de Eur. 38.553,23.

XI- Tal verba foi transferida pela Recorrente para partilha dos Eur. 120.000,00, deduzidas as despesas da herança.

XII- Por isso, tem de constar do Mapa de Partilha que o Recorrido já recebeu Eur. 38.553,23 por conta da parte que lhe cabe dos Eur. 120.000,00.

C) QUANTO À VERBA N.º 5/ “FALSIDADE DA ACTA DE 13.09.2023 (REFERÊNCIA 451601700)

XIII- A Recorrente, não concordando com os valores patrimoniais para efeitos de adjudicação e eventual licitação, requereu avaliação por perito.

XIV- O Perito designado pelo Tribunal avaliou o imóvel da verba n.º 5 em Eur. 93.559,10 (referência 36066263, documento 2):

XV- Como consta da acta da conferência de interessados de 13.09.2023, a verba n.º 5 foi adjudicada ao Recorrido, não pelo valor da avaliação, mas pelo valor patrimonial de Eur. 51.511,25.

XVI- No decurso da conferência, que demorou mais de 1 hora e 20 minutos, com fraco isolamento acústico da sala do Tribunal onde se realizou, o que dificulta seriamente a audição, embora tal não seja perceptível na gravação, uma vez que os microfones estão junto aos intervenientes, o Senhor Juiz a quo procurou ir ao encontro da vontade das partes, que oscilou entre a venda, a licitação e a adjudicação.

XVII- Se não se corrigisse o Mapa de Partilha, o Recorrido ficaria para si com um imóvel que vale, no mínimo, Eur. 93.000,00, pelo valor de pouco mais de Eur. 51.000,00.

XVIII- Na conferência de interessados, o que se passou consta da gravação, transcrita na alegação.

XIX- Terminou a conferência sem que a Recorrente tivesse expressamente aceite a adjudicação pelo valor patrimonial, uma vez que sempre insistiu nos valores atribuídos pelo Senhor Perito.

XX- Pelo que do Mapa de Partilha devia constar que a verba n.º 5 foi adjudicada ao Recorrido pelo valor de Eur. 93.559,10.

D) QUANTO AO VALOR DA CAUSA

XXI- Na sentença homologatória, o Tribunal fixou o valor da causa em Eur. 349.589,12, nos termos do n.º 3 do Art.º 302.º do CPC.

XXII- Ao ser dado provimento ao presente recurso, no seu todo ou em parte, tal implicará uma alteração ao valor da causa, que deverá ser corrigido de acordo com o que resultar do doutamente decidido pelo Tribunal da Relação.

XXIII- Foram violados, entre outros, os Art.os 369.º e ss, e 2079.º do CC, e 615.º do CPC.


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2.2. O Interessado apelado apresentou alegações, concluindo, em suma, nos seguintes termos:

Todas as questões que a Recorrente pretende sejam apreciadas no âmbito do presente recurso foram já objecto de decisões transitadas em julgado, sendo por isso irrecorríveis.

3.ª Por despacho datado de 06/04/2022, com a referência 435203018, na sequência de reclamação apresentada pelo Recorrido, o Tribunal Recorrido determinou que a Recorrente relacionasse “os dinheiros existentes em conformidade com os extratos bancários com referência à data do óbito dos inventariados.”, referindo-se aos 176.677,87 €, quantia de que a Recorrente diz agora discordar e pretende por isso seja apreciada neste recurso

4.ª Como a Recorrente não recorreu do despacho referido na conclusão anterior, a decisão tornou-se definitiva, não sendo mais passível de recurso, razão pela qual não pode agora ser apreciada, como pretende a Recorrente.

5.ª Finda a fase de instrução do processo, seguiu-se despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, ficando assim concluída a fase de saneamento, tendo ficado resolvidas todas as questões susceptíveis de influenciar a partilha e a determinação dos bens a partilhar.

7.ª Realizada a conferência de interessados foi elaborado o mapa de partilha, o qual foi objecto de reclamação por parte da Recorrente, incidindo a sua reclamação sobre questões que são também objecto do presente recurso, e são as seguintes: . - o valor da verba 1 do mapa de partilha, que a Recorrente entende não devia ter sido relacionada - o valor pelo qual a verba 5 do mapa de partilha foi adjudicada ao Recorrido.

8.ª A Recorrente desistiu da reclamação apresentada, tendo essa desistência sido homologada por despacho proferido no mesmo dia em que foi proferida a sentença homologatória do mapa de partilha que é objecto do presente recurso.

9.ª O presente recurso tem por objecto apenas a sentença homologatória do mapa de partilha, não tendo a Recorrente recorrido do despacho que homologou a desistência da reclamação, o qual, por este motivo também já transitou em julgado, tornando-se esta decisão definitiva e por isso irrecorrível. (…)

12.ª A acta da conferência de interessados constitui documento autêntico, fazendo prova plena dos factos que dela constam, pelo que a força probatória destes documentos só pode ser ilidida com base na sua falsidade


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3. Questões a decidir

1. determinar se a questão relativamente à inclusão da verba de 120 mil euros pode ser apreciada ou se formou caso julgado.

2. Apurar se a acta da conferência de interessados pode ou não ser alterada neste recurso apreciando depois a procedência do pedido de alteração do valor da verba nº 5.

3. Apreciar se o requerido sobre o valor da causa é ou não uma questão processual apreciável em sede de recurso.

4. Determinar por fim, se tem de constar do Mapa de Partilha que o Recorrido já recebeu Eur. 38.553,23 por conta da parte que lhe cabe dos Eur. 120.000,00, determinando para isso a validade da sentença proferida.


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4. Motivação de facto

1. Apresentada a relação de bens foi apresentado um incidente de reclamação da mesma, no qual após vicissitudes várias, foi proferido o seguinte despacho de 19.2.22: “Face ao teor do despacho de 14.11.2022, a sua notificação ao cabeça de casal e o seu silêncio considera-se que a última reclamação apresentada é procedente, devendo aditar-se uma nova verba à Relação de Bens que contemple o valor de €120.000,00”.

2. Esse despacho foi notificado às partes e não foi objecto de qualquer recurso.

3. Foi proferida a forma à partilha por despacho de 2.2.23.

4. Em 13.9.23 realizou-se a conferência de interessados cujo teor integral se dá por reproduzido.

5. Não foi requerida a rectificação da acta ou suscitado qualquer incidente.

6. Em 20.9.23 foi elaborado o mapa de partilha cujo teor integral se dá por reproduzido, no qual foram realizadas operações de partilha nas quais não consta que alegadamente “o Recorrido já recebeu Eur. 38.553,23 por conta da parte que lhe cabe dos Eur. 120.000,00”.

7. Esse mapa foi notificado às partes em 25.9.23.

8. Em 9.10.23 a apelante apresentou um requerimento, cujo teor se dá por reproduzido, no qual alega que “16- Assim, em primeiro lugar, tem que ser corrigida a verba 1 no sentido de constar Eur. 120.000,00, apurados à data da morte do Inventariado BB, e não Eur. 176.677,87. 17- Por outro lado, o Requerente já recebeu Eur. 38.553,23, como admitido, mas tal não consta do mapa de partilha e tem que constar”.

9. Respondeu o interessado, por requerimento, dizendo em suma que “A cabeça-de-casal não pode por isso vir agora na reclamação do mapa de partilha pôr em causa o que já foi dado como assente porque objecto de decisão já transitada em julgado”.

10. Foi proferido o despacho de 17.11.23 que designou data para audição dos intervenientes.

11. Essa diligência foi realizada 20.11.23, no decurso da qual após o Mmº Juiz ter exposto o motivo da presente diligência, foi dada a palavra aos ilustres mandatários presentes que, no seu uso, disseram excluir a quantia de €:120.000,00 dos autos e, desistir das reclamações apresentadas. o Mmº Juiz proferiu despacho a homologar a desistência e passou a proferir a seguinte sentença Nos presentes autos de inventário, em que são inventariados AA e BB, em que desempenha as funções cabeça-de-casal CC, homologo por sentença o mapa de partilha, nos seus precisos termos e que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, que vincula todas as partes, adjudicando a cada um os quinhões ali atribuídos e responsabilizando cada um pelos pagamentos ali determinados, nos exatos termos fixados (cfr. artigo 1128.º, do Código de Processo Civil).

12. Foi interposto o presente recurso em 5.1.24.

13. A procuração forense outorgada pela apelante foi junta aos autos em 7.5.20 e nela constam “poderes forenses gerais”, mesma menção que consta na procuração outorgada pelo interessado (junta com o requerimento inicial).


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5. Motivação jurídica

1. Da apreciação ou não da questão relativa à inclusão no mapa da partilha da quantia de 120 mil euros ou do valor descrito.

A actual tramitação do processo de inventário, já aplicável aos autos que deram entrada em 6.2.2020, pode ser descrita nos seguintes termos.

Uma fase inicial de articulados, com a relação de bens a partilhar e declaração de compromisso de honra.

Depois, uma fase de oposição, impugnação e reclamação nos termos dos arts. 1104.º. 3, do CPC e segs., com a decisão dos incidentes suscitados.

Seguidamente, fixados os interessados e o acervo de bens a partilhar uma fase de saneamento, forma à partilha e agendamento da conferência de interessados nos termos do artigo1110º, do CPC.

Nesta, que continua a ser o momento principal do processo, os interessados conhecem e fixam a quota concreta que lhes cabe na partilha, com as licitações na própria conferência, em caso de desacordo – artigo 1111.º

O mapa de partilha e a sentença homologatória (arts1120.ºa1122.º, do CPC) devem supostamente findar o processo concretizando o que ficou estabelecido em todas as anteriores fases.

Isto, porque naturalmente só se pode partilhar se o acervo hereditário estiver fixado.

Por causa disso, é que o regime de recursos do processo de inventário tem especificidades face ao regime geral.

Nestes termos o art. 1123º, do CPC admite a recorribilidade imediata (a ser processada como recurso de apelação autónomo com subida imediata e em separado) nas seguintes situações (nº2):

a) Da decisão sobre a competência, a nomeação ou a remoção do cabeça de casal;

b) Das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha;

c) Da sentença homologatória da partilha.


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Ora, in casu, a cabeça de casal pretende reagir contra a determinação dos bens a partilhar que findou com o despacho de 14.11.22.

O objecto da reclamação de bens era essa verba no valor de 120 mil euros (apenas quanto à sua partilha ou não) e ainda se “Na data do falecimento da inventariada AA existia uma conta no Banco 1... com o número ...43 de que eram titulares o inventariado BB e a cabeça-de-casal, a qual, na data do óbito da inventariada AA apresentava um saldo de 173.467,85 € (doc. 1)”.

Logo, se a decisão do mesmo é ilegal ou lacunar deveria ter sido tempestivamente objecto de recurso, já que não o tendo sido transitou e formou caso julgado o qual é obrigatório nos termos do art. 620º, do CPC para todos os intervenientes e este tribunal.

Nestes termos, ao pretender por em causa o mapa de partilha que se limitou a descrever o acervo hereditário nos termos do anterior despacho a cabeça de casal mais não faz do que por em causa um elemento processual relevante que já não pode sindicar.

Não se pode, pois, apreciar de novo, o objecto da decisão da reclamação de bens por esta não ter sido tempestivamente posta em causa.


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2. Da inclusão do mapa da quantia recebida pelo interessado

Teremos de notar que apenas depois da conferência de interessados é que a cabeça de casal lançou mão de uma nova “reclamação”, pretendendo que do mapa de partilha conste que o interessado já recebeu “Eur. 38.553,23, como admitido, mas tal não consta do mapa de partilha e tem que constar”.

Ora, se é manifesto que o recebimento de qualquer parte do quinhão é relevante, o certo é que o mapa de partilha só pode discriminar as quantias e bens que constarem dos autos.

Nestes termos o art. 1120º, do CPC é claro “Concluídas as diligências reguladas nas secções anteriores, procede-se à notificação dos interessados e do Ministério Público, quando este tenha intervenção principal, para, no prazo de 20 dias, apresentarem proposta de mapa da partilha, da qual constem os direitos de cada interessado e o preenchimento dos seus quinhões, de acordo com o despacho determinativo da partilha e os elementos resultantes da conferência de interessados”.

Ora, nessa data a cabeça de casal nada disse sendo certo que o Sr. escrivão não poderia, pois, incluir esse valor no mapa de partilha elaborado.

Depois, o cabeça de casal veio reclamar da elaboração desse mapa, tendo-se produzido uma diligência entre os Srs. mandatários, em cuja acta consta que: “Iniciada a diligência e, após o Mmº Juiz ter exposto o motivo da presente diligência, foi dada a palavra aos ilustres mandatários presentes que, no seu uso, disseram excluir a quantia de €:120.000,00 dos autos e, desistir das reclamações apresentadas.

Seguidamente, o Mmº Juiz proferiu despacho a homologar a desistência (…)”.

Ou seja, essa questão foi, antes de qualquer decisão judicial, objecto de uma conciliação entre os mandatários no decurso da qual a cabeça de casal “desistiu das reclamações” e a parte contrária aceitou essa desistência a qual foi homologada.

Podemos desde logo considerar que ocorreu uma tramitação, no mínimo anómala e lacunar[1].

Mas o certo é que da mesma parece resultar que o ilustre mandatário desistiu das reclamações apresentadas.

Estas, aliás eram como decorre dos factos provados precisamente a 1º e 2º questão contidas neste recurso.

Mas a realidade é que essa instância foi extinta a pedido das partes e por despacho judicial que, também mais uma vez a cabeça de casal deixou transitar em julgado.

Note-se que o art. 283º, nº 1 do CPC estabelece que o autor pode, em qualquer altura, desistir de todo o pedido ou de parte dele, como o réu pode confessar todo ou parte do pedido, sendo que nos termos do nº 2 da mesma norma as partes podem, em qualquer estado da instância, transigirem sobre o objecto da causa.

Depois, o art. 277º do CPC impõe que a instância se extingue (…) através de desistência, confissão ou transacção”.

Ora, foi isso que aconteceu nessa acta (que note-se não é posta em causa pela cabeça de casal), na medida em que a cabeça de casal e o interessado estabeleceram entre si um negócio jurídico processual, com vista a por termo à nova reclamação da cabeça de casal que incluiu esta parte do objecto do recurso.

Essa desistência foi homologada, não foi interposto qualquer recurso da mesma e por isso encontra-se estabelecido nos autos, que a cabeça de casal desistiu da processualização dessa reclamação.

Note-se, por fim, que poderia sempre ocorrer a emenda da partilha.

Mas esta nos termos do art. 1126 do CPC depende sempre “do acordo de todos os interessados”, que in casu não existe.

Depois, a anulação da partilha pressupõe a existência da preterição de um dos herdeiros (art. 1127, do CC), o que também não é o caso.

Acresce que essa situação nem sequer suscitará problemas práticos de maior, pois, a cabeça de casal sempre alegou que procedeu às transferências, logo terá documentos que comprovam essa realidade que, segundo a sua alegação “foi admitida”.

Concluímos, portanto, que a questão em causa foi objecto de desistência (da instância), a qual foi aceite e homologada e por isso não pode ser de novo suscitada em sede de recurso.[2]


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3. Quanto ao pedido de fixação do valor processual

Só por manifesto lapso se pode entender que num recurso a apelante pretenda que este tribunal profira ex novo um despacho sobre uma nova questão processual.

Os recursos visam reapreciar questões decididas.

Este pedido/conclusão não foi objecto de qualquer decisão do tribunal recorrido, pelo que não pode ser objecto deste recurso.


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4. Da falsidade da acta

Pretende por fim a cabeça de casal que o tribunal altere a acta da conferência de interessados por forma a que nela passe a constar que o valor de uma das verbas é distinto conforme teria sido acordado ente os interessados.

E, para fundamentar esse seu pedido ambas as partes procedem à transcrição da gravação dessa diligencia como se estivéssemos perante uma questão de valoração da prova, nos termos da qual este tribunal pudesse alterar ou manter o teor desse documento atavés da produção de “prova”.

Salvo o devido sem razão.

Desde logo porque o que está em causa é um suposto erro de escrita ou uma falsidade do conteúdo da acta.

O primeiro deve ser processualizado por simples requerimento nos termos do art. 614º, nº1 do CPC (aplicável por analogia aos despachos judiciais).

O segundo, nos termos do Artigo 451.º do CPC que dispõe “(…) 2 - A falsidade de qualquer outro ato judicial deve ser arguida no prazo de 10 dias, a contar daquele em que deva entender-se que a parte teve conhecimento do ato. 3 - Ao incidente de falsidade de ato judicial é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 446.º a 450.º”.

Mas não nunca em sede de recurso sobre a matéria de facto.

Em primeiro lugar, porque o recurso sobre a matéria de facto visa, e diz respeito, à reapreciação da valoração da prova e não à forma de redacção das actas judiciais (art. 640º, do CPC). A gravação seria decisiva para se determinar, no decurso do incidente próprio, a existência de um erro intelectual e qual o seu sentido, mas não num recurso autónomo interposto muito depois do prazo legal de arguição desse alegado lapso.

Ou seja, esta é uma questão autónoma que poderia e deveria ter sido suscitada nesses termos específicos, como decorre do nº2, do art. 614º, do CPC que dispõe: “Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação”.

Daí decorre, pois, que este tribunal até poderia ouvir a gravação e precisar o sentido da acta, caso, essa retificação tivesse sido processualizada da forma e no tempo previsto.

Depois, porque estamos perante uma acta judicial que é um documento autêntico o qual faz prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (art.371º, do CC).

Logo, não pode este tribunal, sem ser suscitado o respetivo incidente, por em causa o conteúdo dessa acta.

Note-se aliás que esta foi lavrada em 13.9.23,  e que a cabeça de casal só coloca essa questão na reclamação ao mapa de partilha[3] (9.10.23), como tal decorridos mais de dez dias desse acto.

E, mesmo que se entenda que este lapso de escrita só foi cognoscível com a notificação do mapa de partilha, esta ocorreu em 25.9.23, pelo que na data da reclamação o prazo de dez dias já tinha decorrido (terminou em 6.10.23).

Logo é manifesto que essa questão é extemporânea e que o teor da redação da acta já há muito se tinha solidificado sem qualquer reclamação das partes.

Mas, mesmo que assim não seja, o certo é que esse objecto faz parte das “reclamações” que como vimos foram objecto de desistência pela parte em diligência posterior, realidade essa que transitou em julgado e não é objecto deste recurso.

Concluímos, por isso, que o teor do mapa de partilha não pode ser alterado com esse fundamento.


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4.1. Da nulidade da sentença homologatória

Dispõe o Artigo 1122.º que a Sentença homologatória da partilha é proferida “Depois de decididas todas as questões, o juiz profere sentença homologatória da partilha constante do mapa”.

Ora, in casu, nada foi decidido quanto à questão da existência e partilha da quantia de €170mil ou €120mil, nem quanto ao alegado recebimento da quantia de €38 mil pelo recorrido[4].

Acresce que na diligência que terminou com a homologação de uma desistência[5], consta que os mandatários presentes disseram estarem de acordo em «excluir a quantia de €120.000,00 dos autos».

Logo, ao não se ter pronunciado sobre esta questão a sentença proferida, objecto deste recurso, padece de uma evidente omissão de pronuncia.

É certo que a mesma não foi alegada pela apelante.

Mas, essa nulidade é de conhecimento oficioso, nos termos do art. 615º, do CPC, nos casos limites ( e raros) em que além de assumir natureza ostensiva influa na boa decisão da causa, já que a mesma depende da concreta fixação da factualidade acordada pelas partes.[6]

Acresce que este Tribunal da Relação não se pode substituir ao Tribunal a quo nesta parte da decisão (art. 665º do CPC), porque esta depende do teor da desistência anterior, numa diligência presidida pelo juiz a quo, e na qual as partes, repetimos, disseram estar de acordo em “excluir a quantia de €120 000,00 dos autos”, sem que esse sentido, por manifesto lapso, tenha sido determinado.[7]

Logo, deverá ser o tribunal a quo a suprir essa nulidade com os elementos dos autos e com o conhecimento do que efectivamente visaram as partes com essa expressão que, sem qualquer outra explicação fez constar da acta.

Pelo exposto, impõe-se ao abrigo dos arts. 615, nº1, al d), e 665, nº2, do CPC do CPC determinar a nulidade da sentença homologatória do mapa, por omissão de pronuncia, e determinar que seja proferida nova decisão que se pronuncie expressamente sobre a questão de “exclusão da quantia de 120.000,00 euros”, conforme consta da acta de 20 de Novembro de 2023.


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6. Decisão

Pelo exposto este tribunal julga a presente apelação não provida, mas oficiosamente considera nula, por omissão de pronuncia, a sentença homologatória, determinando que seja proferida uma nova que expressamente se pronuncie sobre a questão da exclusão da quantia de 120.000,00 euros nos termos do acordo entre as partes obtido nessa diligência.

Custas a cargo da apelante porque decaiu totalmente, pois, a nulidade nem sequer foi por si alegada, e não configura, por ora, qualquer ganho de causa.

Porto, 9/5/2024
Paulo Teixeira
António Carneiro
Francisca Mota Vieira

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[1] Sem a menção de qualquer norma legal, sem a caracterização da natureza da desistência e sem a averiguação dos poderes dos intervenientes.
[2] O caso semelhante analisado pelo Ac da RL de 26.9.23, nº 109016/20.3YIPRT-A.L1-7 (Ana Rodrigues da Silva), com idêntica conclusão.
[3] Onde aliás alega que “a ideia da Cabeça-de-Casal é que se teve sempre em linha de conta o valor da avaliação pericial e não o patrimonial, daí ter solicitado a perícia”.
[4] no requerimento de 23 de Dezembro de 2023, expressamente confirma ter recebido esse valor.
[5] Não se sabe se do pedido ou da instância, mas que cuja validade não faz parte do objecto deste recurso.
[6] Entre vários Ac da RL de 20.12.2018, nº 78/14.0TBVFX-C.L1-7 (Diogo Ravara)
[7] Sobre este mecanismos, refere Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 4.ª ed., pp. 225 e 226), com referência ao art. 715.º do anterior Código de Processo Civil, replicado no art. 665.º do atual Código de Processo Civil que “a substituição da Relação ao tribunal de 1.ª instância pode ocorrer em dois casos: no caso de a decisão que põe termo ao processo ser declarada nula, e no caso de o tribunal a quo ter deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio. Como diz o referido autor, a regra da substituição ao tribunal recorrido quer nesta segunda hipótese, quer na hipótese de nulidade fundada em omissão de pronúncia, implica a supressão de um grau de jurisdição”, a qual porém, neste caso, não pode ser realizada pela supra referida omissão também no despacho que sem qualquer fundamentação homologou a desistência.