Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5614/22.5T8MTS-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DE MENOR
DIREITO À PRIVACIDADE
PROCESSO
CERTIDÕES
Nº do Documento: RP202406065614/22.5T8MTS-E.P1
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nem a letra nem o espírito da lei permitem a interpretação de que, por força da norma especial do art. 123.º da LPCJP, são irrecorríveis todas as decisões que não estejam aí previstas. Atenta a expressa remissão, efetuada no art. 126.º da LPCJP, para a aplicação subsidiária do regime dos recursos em processo civil, serão recorríveis designadamente as decisões de natureza interlocutória previstas no art. 644.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, a não ser que na LPCJP exista alguma restrição específica.
II - Da articulação do regime especial previsto no art. 88.º da LPCJP, em concretização do princípio da privacidade consagrado no art. 4.º, al. b), do mesmo diploma, com o regime legal previsto nos arts. 165.º e 170.º do Cód. Proc. Civil (aplicável subsidiariamente dada a natureza do processo como processo de jurisdição voluntária – art. 100.º da LPCJP e art. 549.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) e com o disposto nos arts. 16.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, e 26.º, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP) resulta afastado o entendimento da inadmissibilidade legal, tout court, de passagem de certidões do processo.
III - O que se encontra excluída é a possibilidade de extração de certidões sem controlo judicial, impondo-se uma ponderação dos motivos invocados para justificar o pedido de passagem de certidão, sendo a mesma admissível se subjacente ao requerimento estiver um interesse ou direito legítimo, sempre e apenas na medida do estritamente necessário para salvaguardar tal interesse e tendo ainda sempre presente a necessidade de proteção da reserva de intimidade da vida privada da criança.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 5614/22.5T8MTS-E.P1


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Sumário:

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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

Em 28-03-2023 (Ref. 35208176) o Ministério Público, por apenso a Processo de Regulação das Responsabilidades Parentais, instaurou processo de promoção e proteção a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Família e Menores de Matosinhos – Juiz 2, relativamente à criança (…), no qual foi aplicada, em 11-05-2023 (Ref. 448242209) medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a vigorar pelo período de um ano, sendo revista em seis meses, ou sempre que a situação o justificar.

Em 04-01-2024 (Ref. 37728384), em resposta a notificação que lhe foi efetuada, nos termos do art.º 85.º da LPCJP, para se pronunciar sobre a revisão da medida de promoção e proteção, o requerido progenitor (…), após exercer contraditório, além do mais, quanto ao Relatório de Acompanhamento Clínico do PIAC de 26-10-2023 junto aos autos, requereu a passagem de certidão judicial do referido relatório «(…) para os competentes fins disciplinares e penais.».

Em 26-01-2024 (Ref. 456187536) o Ministério Público promoveu o indeferimento do pedido de passagem de certidão, por considerar que «(…) tratando-se os presentes autos de um processo de promoção e proteção, os mesmos têm caráter reservado, nos termos do art.º 88º da LPCJP, em concretização do princípio da privacidade consagrado no art.º 4.º al. b) do mesmo diploma legal […], não sendo legalmente admissível a obtenção de certidões ou cópias do mesmo (…)».

Em 16-02-2024 (Ref. 456982625) foi proferida decisão de revisão da medida de Apoio Junto dos Pais aplicada nos autos a favor da criança, mantendo a sua execução.

Em 20-02-2024 (Ref. 38205911) o requerido/progenitor requereu novamente «(…) a emissão de certidão judicial do “RELATÓRIO DE ACOMPANHAMENTO CLÍNICO” do PIAC de 26.10.2023, dados os prazos de caducidade/prescrição, disciplinares e penais, em vigor.».

Em 21-02-2024 (Ref. 457209262) o Ministério Público promoveu o indeferimento da requerida extração de certidão, defendendo que «Tratando-se os presentes autos de um processo de promoção e proteção, têm caráter reservado, nos termos do disposto no art.º 88.º da LPCJP, em concretização do princípio da privacidade consagrado no art.º 4.º al. b) do mesmo diploma legal (…) [não é] legalmente admissível a obtenção de certidões ou cópias do mesmo (…)».

Em 23-02-2024 (Ref. 457257066) foi proferido o seguinte despacho sobre tal requerimento de emissão de certidão judicial do Relatório de Acompanhamento Clínico do PIAC de 26-10-2023 junto aos autos:

Os presentes autos de promoção e proteção revestem caráter reservado, nos termos do disposto no art.º 88.º da LPCJP, em concretização do princípio da privacidade consagrado no art.º 4.º al. b) do mesmo diploma legal.

Pede o progenitor que seja passada certidão do relatório de acompanhamento clínico do PIAC de 26.10.2023.

Este relatório contém informação relativa ao acompanhamento clínico realizado ao menor dos autos.

Assim sendo e atento o referido Princípio da Privacidade, não vindo invocado pelo progenitor interesse legitimo para a passagem de certidão suscetível de prevalecer sobre o direito da criança à reserva sobre a intimidade da vida privada, indefere-se ao requerido.

Notifique.

Inconformado com esta decisão, o requerido progenitor interpôs recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões:

1. Salvo o devido respeito, não se compreende como pode o Dig. Tribunal, por despacho de 23.02.2024 (Ref.: 457257066), declarar que o progenitor não invocou “interesse legítimo para a passagem de certidão suscetível de prevalecer sobre o direito da criança à reserva sobre a intimidade da vida privada”, quando, por Requerimento de 04.01.2024 (Ref.: 47561397), o Recorrente se debruçou extensivamente sobre o relatório do PIAC de 26.10.2023, explicando que tal Relatório pouco se pronunciava sobre o menor, parecendo ter como fim último um exclusivo ataque ao progenitor.

2. O Relatório do PIAC de 26.10.2023 ultrapassou largamente o âmbito da crítica objetiva: (…) dirige-se diretamente à pessoa do seu progenitor, imputando-lhe graves factos, não comprovados (“o tempo que o (…) está com a mãe é totalmente invadido pelo pai”, “estando sempre sob supervisão do pai à distância”, “Ponho a hipótese, inclusive, de o pai incitar o filho a mentir, acusando a mãe, bem como de a criança se auto-agredir com o conhecimento do pai, para depois acusar a mãe”, “a mãe continua a ser exposta a violência verbal por parte do ex-marido e acusações que a acompanham desde a altura em que se encontravam casados e que se agudizou desde o divórcio, acontecimento em relação ao qual o pai não parece ter feito o luto”); formula juízos de valor sobre o mesmo (“desequilibrado do ponto de vista mental”, “comportamentos obsessivos graves (…), com tonalidade quase delirante”, “fanatismo religioso”). (…)

6. A crítica formulada pelas profissionais do PIAC não se restringe à atuação do progenitor no contexto das suas responsabilidades parentais, mas atinge a sua própria dignidade enquanto pessoa; desrespeita as mais elementares regras de adequação social e do risco permitido e atinge gravemente a honra e consideração pessoal do Recorrente.

7. Tais juízos de valor caem dentro da tipicidade de incriminações como a da injúria (art. 181.º do CP) e da difamação (art. 180.º do CP). (…)

14. Os direitos pessoais do Recorrente têm evidente consagração constitucional (art. 26.º da CRP).

15. O despacho recorrido, de 23.02.2024, não se pronunciou sobre o Requerimento do progenitor de 04.01.2024 (Ref.: 47561397), limitando-se a invocar o art. 88.º da LPCJP, sem confrontar o mesmo com os factos (injuriosos / difamatórios) em causa nos autos; o Tribunal “a quo” não realizou qualquer análise comparativa dos direitos em confronto, nem demonstrou ter recorrido a qualquer critério de equilíbrio para ponderação da situação.

16. O despacho recorrido é nulo, pois: (i) não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (art. 615, n.º 1, al. b) do CPC, ex vi art. 126.º do CPC); (ii) não se pronuncia sobre as concretas questões levantadas pelo progenitor, que justificam a sua necessidade de recurso à tutela disciplinar e penal para defesa de seus interesses e direitos constitucionalmente consagrados (art. 615, n.º 1, al. d) do CPC); (iii) pecando por uma ambiguidade e obscuridade que tornam a decisão ininteligível, face às soluções de direito plausíveis (art. 615, n.º 1, al. c) do CPC).

17. O processo de promoção e proteção de menores tem uma natureza reservada, de forte proteção da intimidade, do direito à imagem e reserva da vida privada da criança e do jovem em perigo, segundo o princípio orientador de intervenção enunciado no art. 4.º, al. b) da LPCJP.

18. Mas este nível de proteção não pode ser um obstáculo ao acesso, por parte dos pais do menor, aos elementos dos autos, mormente os de natureza probatória (através de emissão de certidão), para instaurar ação de responsabilidade disciplinar/criminal, em virtude de imputações gravemente desonrosas realizadas por intervenientes processuais.

19. Inexiste uma proibição absoluta de passagem de cópias ou certidões e, ocorrendo motivos justificados para aquela emissão, o tribunal deverá proferir despacho determinando a mesma. (…)

21. No caso dos autos, o invocado princípio da reserva da intimidade da vida privada contrapõe-se ao direito à realização de justiça pelo Recorrente.

22. Quando estamos perante o confronto de duas espécies de direitos com tutela constitucional, outros princípios importa ter em conta, porquanto tal decorre designadamente do comando constitucional ínsito no artigo 16.º da CRP, salvaguardando que os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras de direito internacional, devendo ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

23. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18.º, n.º 2, da CRP).

24. No confronto dos direitos constitucionalmente protegidos em presença, afigura-se-nos que, no caso concreto, deverá prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa dos interesses do progenitor, porquanto o invocado direito à reserva da vida privada admite restrição constitucional.

25. Acresce que o princípio da reserva da intimidade da vida privada ficará sempre assegurado, dado que: (i) não só o presente processo reveste natureza sigilosa e reservada, nos termos definidos no art. 88.º da LPCJP; (ii) como o inquérito penal tem caráter secreto (arts. 86.º e 89.º do CPP); (iii) o processo disciplinar médico é de natureza secreta até ao despacho de acusação ou arquivamento (art. 29.º do Anexo ao Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo DL n.º 282/77, de 05 de Julho); (iv) e o conteúdo do processo disciplinar na Ordem dos Psicólogos Portugueses é secreto até ao termo da instrução (art. 19.º do Regulamento n.º 638/2021).

26. Nada obsta, aliás, à extração de certidão de peças do presente processo, desde que se impossibilite a identificação da criança ou do jovem visado (rasurando, por exemplo, os dados pessoais do mesmo). (…)

29. Deve-se deferir o mencionado pedido de extração de certidão, atendendo ao princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva vertido no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP (o direito de acesso à justiça comporta o direito das partes à produção de prova sobre os factos carecidos de demonstração - cfr. igualmente arts. 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 26.º, n.º 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, art. 13.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

30. O indeferimento do pedido do Recorrente de extração de certidão do Relatório do PIAC de 26.10.2023, para instrução dos competentes processos disciplinares e penais contra as profissionais autoras do parecer, equivale a um absoluto aniquilamento da possibilidade do exercício de defesa pelo progenitor, a uma autêntica violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no art. 20.º, n.º 1, da Constituição, assim como do princípio do Estado de Direito democrático, na vertente de “garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 2.º da CRP).

31. Considerando os direitos em confronto que urge salvaguardar, tendo presente o critério de equilíbrio que deve presidir à análise deste tipo de situações, no quadro legal em vigor, verifica-se que o invocado direito à reserva da intimidade da vida privada não é um direito absoluto e deverá ceder perante os direitos constitucionalmente consagrados do progenitor.

32. Relativamente a certos crimes (tais como os de injúria e de difamação denunciados nos autos), a existência de um procedimento criminal em tribunal está dependente de uma queixa apresentada (em regra) pela pessoa ofendida, dentro do prazo de 6 meses a contar (em regra) da data em que essa teve conhecimento (naturalístico) do facto e dos seus autores (art. 115.º do CP).

33. Tal prazo tem natureza substantiva, uma vez que (até haver queixa) ainda não existe sequer um processo (judicial); sendo esse um prazo de caducidade, findo o mesmo, extingue-se o direito de queixa da pessoa ofendida; o que desde já releva a necessidade de urgente tramitação do pedido de extração de certidão judicial formulado pelo progenitor.

34. Termos em que,

O douto despacho recorrido é inconstitucional, por violação expressa dos princípios do Estado de direito democrático (art. 2.º da CRP), da proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2), do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP) e da salvaguarda dos direitos pessoais (art. 26.º da CRP), contrariando o âmbito e sentido dos direitos fundamentais consagrados (art. 16.º da CRP).

Subsidiariamente, é, pelo menos, nulo (…)

Caso ainda assim não se entenda (…) sempre deverá ser revogado por ter violado, por erro de interpretação e/ou aplicação, o disposto nos citados preceitos e diplomas legais (designadamente, os arts. 4.º, al. b) e 88.º da LPCJP; 72.º, n.º 2, 115.º, 180.º e 181.º do CP; 86.º e 89.º do CPP; 2.º, 16.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1 e 4 e 26.º da CRP; 29.º do Anexo ao Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo DL n.º 282/77, de 05 de Julho; 19.º do Regulamento n.º 638/2021; 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 26.º, n.º 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; 13.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

Deverá ainda, sempre e em todo o caso, o despacho recorrido ser revogado e substituído por outra decisão que julgue no sentido antes exposto, determinando-se a emissão de certidão judicial do “RELATÓRIO DE ACOMPANHAMENTO CLÍNICO” do PIAC de 26.10.2023 (ainda que com rasura dos elementos de identificação do menor), para os competentes fins disciplinares e penais.

O Ministério Público apresentou resposta às alegações de recurso, pronunciando-se pela sua rejeição por inadmissibilidade legal e, subsidiariamente, pela sua improcedência.

Por despacho de 24-04-2024 (Ref. 459367989) o tribunal a quo admitiu o recurso interposto, atribuindo-lhe efeito devolutivo.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Objeto do recurso:

Face às conclusões das alegações de recurso e à invocação, pelo Ministério Público na resposta às alegações de recurso, da sua rejeição, são as seguintes as questões a apreciar:

Questão prévia: rejeição do recurso por inadmissibilidade legal.

Nulidade do despacho recorrido.

Mérito da decisão recorrida (violação dos arts. 4.º, al. b) e 88.º da LPCJP; 72.º, n.º 2, 115.º, 180.º e 181.º do CP; 86.º e 89.º do CPP; 2.º, 16.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1 e 4 e 26.º da CRP; 29.º do Anexo ao Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo DL n.º 282/77, de 05 de Julho; 19.º do Regulamento n.º 638/2021; 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 26.º, n.º 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; 13.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

Acresce a responsabilidade por custas.

III. Apreciação dos fundamentos do recurso

1. Questão prévia – inadmissibilidade do recurso

Defende o Ministério Público que o art. 123.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (doravante, LPCJP), aprovada pelo art.º 1 da Lei n.º 147/99, de 01 de setembro, na última versão dada pela Lei n.º 23/2023, de 25 de maio, constitui norma especial que fixa o elenco das únicas decisões recorríveis, no âmbito do processo de proteção e promoção, invocando que atenta a natureza e interesses do processo o legislador quis – conforme Ac. do TRG de 13-07-2022 que cita – «(…) restringir a possibilidade de recurso, limitando-o às decisões que aplicam, alteram ou fazem cessar medidas de promoção e proteção, de modo a que não se frustre o objetivo de uma decisão célere.(…)», face ao que a decisão que indefere a extração de uma certidão no âmbito de processo de promoção e proteção não pode ser impugnada por via de recurso, por a mesma não se enquadrar na previsão legal do art. 123.º da LPCJP.

A LPCJP contém as seguintes disposições relativamente a matéria de recursos:


Artigo 123.º

Recursos


1 – Cabe recurso das decisões que, definitiva ou provisoriamente, se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e proteção e sobre a decisão que haja autorizado contactos entre irmãos, nos casos previstos no n.º 7 do artigo 62.º-A.

2 - Podem recorrer o Ministério Público, a criança ou o jovem, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem.

3 - O recurso de decisão que tenha aplicado a medida prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º é decidido no prazo máximo de 30 dias, a contar da data de receção dos autos no tribunal superior.


Artigo 124.º

Processamento e efeito dos recursos


1 - Os recursos são processados e julgados como em matéria cível, sendo o prazo de alegações e de resposta de 10 dias.

2 - Com exceção do recurso da decisão que aplique a medida prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º e do recurso da decisão que haja autorizado contactos entre irmãos, nos casos previstos no n.º 7 do artigo 62.º-A, os quais têm efeito suspensivo, cabe ao tribunal recorrido fixar o efeito do recurso


Artigo 126.º

Direito subsidiário


Ao processo de promoção e proteção são aplicáveis subsidiariamente, com as devidas adaptações, na fase de debate judicial e de recurso, as normas relativas ao processo civil declarativo comum.

Nem a letra nem o espírito da lei permitem, a nosso ver, a interpretação defendida de que, por força da norma especial do art. 123.º da LPCJP, são irrecorríveis todas as decisões que não estejam aí previstas. O n.º 1 do art. 123.º diz que “Cabe recurso das decisões que (…)”; não diz que “Apenas cabe recurso (…)”. Acresce que o art. 126.º expressamente remete para a aplicação subsidiária do regime dos recursos em processo civil. Como refere António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil – Recursos nos Processos Especiais e Recursos no Processo de Trabalho, 7.ª Edição Atualizada, Almedina, pás. 667, em anotação ao artigo 123.º, “(…) o preceito não significa que sejam irrecorríveis todas as demais decisões. Pelo contrário, a aplicação remissiva das normas do processo civil, por via do art. 126.º, permite concluir que serão recorríveis designadamente as decisões de natureza interlocutória previstas no art. 644.º, n.º 2, a não ser que no RJPCJR exista alguma restrição específica. (…)”.

Improcede, assim, a pretendida inadmissibilidade do recurso interposto.

2. Nulidade do despacho recorrido

Invoca o apelante a nulidade do despacho recorrido por:

– Não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (art. 615, n.º 1, al. b) do CPC);

– Não se pronunciar sobre as concretas questões levantadas pelo progenitor, que justificam a sua necessidade de recurso à tutela disciplinar e penal para defesa de seus interesses e direitos constitucionalmente consagrados (art. 615, n.º 1, al. d) do CPC);

– Ocorrer ambiguidade e obscuridade que tornam a decisão ininteligível, face às soluções de direito plausíveis (art. 615, n.º 1, al. c) do CPC).

Dispõe o art. 615.º (Causas de nulidade da sentença) nos seguintes termos:

1 - É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Esta disposição legal aplica-se ao despacho recorrido, por força do disposto no art. 613.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil.

A nulidade por falta de fundamentação prevista na al. b) do n.º 1 art. 615.º do Cód. Proc. Civil está diretamente relacionada com o dever de fundamentação legalmente previsto no art. 154.º do Cód. Proc. Civil e com a consagração constitucional desse dever de fundamentação no art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, constituindo tal nulidade a sanção para o incumprimento do disposto no art. 607.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, que impõe ao juiz, na fundamentação da decisão, o dever de ‘discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes’.

Compreende-se que assim seja, uma vez que a fundamentação consiste na explicação das razões pelas quais se toma determinada decisão, o que é essencial para que os seus destinatários possam perceber e acatar (designadamente, por a fundamentação os ter convencido do acerto da decisão) ou contestar a mesma, mediante a interposição do competente recurso.

Com efeito, «A nulidade da sentença carecida de fundamentação justifica-se por duas ordens de razões.

A primeira, baseada na função dos tribunais como órgãos de pacificação social, consistente na necessidade de a decisão judicial explicitar os seus fundamentos como forma de persuasão das partes sobre a legalidade da solução encontrada pelo Estado. (…)

A segunda liga-se directamente à recorribilidade das decisões judiciais.

A lei assegura aos particulares (…) a possibilidade de impugná-la, submetendo-a à consideração de um tribunal superior. Mas para que a parte lesada com a decisão que considera injusta a possa impugnar com verdadeiro conhecimento de causa, torna-se de elementar conveniência saber quais os fundamentos (…) em que o julgador a baseou.». – cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª Edição, págs. 688 e 689.

O cumprimento deste dever de fundamentação é, assim «(…) indispensável, do ponto de vista do convencimento das partes, do exercício fundado do seu direito ao recurso sobre a mesma decisão (de facto e de direito) e do ponto de vista do tribunal superior a quem compete a reapreciação da decisão proferida e do seu mérito, conhecerem-se das razões de facto e de direito que apoiam o veredicto do juiz. (…)» - cfr. Ac. do TRG de 02-11-2017, proc. 42/14.9TBMDB.G1.

Incontroverso, na nossa doutrina[1] e jurisprudência[2], que só a falta absoluta de fundamentação – e não apenas a fundamentação deficiente, incompleta ou não convincente – gera a nulidade da sentença.

Com efeito, a nulidade por falta de fundamentação prescrita na al. b) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil só ocorre quando a fundamentação de facto e/ou de direito seja inexistente ou tão deficiente que não permitam perceber a razão da decisão proferida – Ac. do TRG de 02-11-2017, proc. n.º 42/14.9TBMDB.G1. Conforme é referido no Ac. do STJ de 09-12-2021, proc. n.º 7129/18.7T8BRG.G1.S1, “(…) A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito (alínea b) do nº. 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil) está relacionada com o comando que impõe ao Tribunal o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.

Na verdade, a fundamentação das decisões é uma exigência constitucional - art.º 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa - e legal - artºs. 154º, 607º e 663º, todos do Código de Processo Civil.

É na fundamentação que o Tribunal colhe legitimidade e autoridade para dirimir o conflito entre as partes e lhes impor a sua decisão, sendo a fundamentação imprescindível ao processo equitativo e contraditório.

Só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do citado art.º 615º do Código de Processo Civil.

A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. (…)”.

Não se verifica a arguida nulidade por falta de fundamentação: apreende-se suficientemente do despacho recorrido a razão pela qual foi indeferido o requerimento de de passagem de certidão, tendo sido invocada a disposição legal fundamento da decisão proferida e as razões do indeferimento, e tendo a parte compreendido o fundamento do indeferimento, em moldes de o poder contestar através do recurso interposto. Não se enquadra nesta nulidade a arguida falta de “análise comparativa dos direitos em confronto”. Quando muito, tal ‘falta’ poderia configurar uma fundamentação deficiente da decisão, passível de integrar um erro de julgamento, mas nunca a sua nulidade.

Também não se verificam os outros dois fundamentos de nulidade invocados.

Quanto à nulidade prevista no art. 615, n.º 1, al. d), do Cód. Proc. Civil, a questão suscitada foi só uma: o requerimento de passagem de certidão para a finalidade, invocada pelo requerente, de instauração de processo penal e disciplinar contra as técnicas subscritoras do relatório de acompanhamento. Tal questão foi apreciada e decidida. No requerimento apresentado não são suscitadas quaisquer outras questões, não se confundindo com as questões a apreciar pelo tribunal a explanação, considerações e interpretação efetuadas pelo requerente quanto ao relatório apresentado no mesmo requerimento no qual deduziu o pedido de passagem de certidão.

No que concerne à nulidade prevista no art. 615, n.º 1, al. c) do Cód. Proc. Civil, não há qualquer indicação de qual é a obscuridade ou ambiguidade da decisão. No fundo, pretende o apelante que a imputada falta de realização de ‘qualquer análise comparativa dos direitos em confronto’, que – no seu entendimento – implica a falta de demonstração, na decisão recorrida, do recurso ‘a qualquer critério de equilíbrio para ponderação da situação’, argumentos que já serviram para fundamentar as arguidas  nulidades por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia, também consubstanciam a nulidade da decisão por ininteligibilidade.

A decisão é perfeitamente inteligível: o requerimento de passagem de certidão do relatório foi indeferido por o tribunal a quo ter considerado que no requerimento apresentado pelo progenitor não é invocado interesse legítimo passível de prevalecer sobre o direito da criança à reserva sobre a intimidade da vida privada, atento o caráter reservado do processo, em concretização do princípio da privacidade, decorrentes dos arts. 4.º, al. b) e 88.º da LPCJP.

Improcedem as arguidas nulidades do despacho recorrido.

3. Mérito da decisão recorrida

Fundamentação de facto

A matéria de facto relevante para a apreciação do recurso é a referida no relatório que antecede.

Subsunção dos factos ao direito


a. Âmbito da questão

Recorre o apelante da decisão, proferida em processo de promoção e proteção de criança em perigo – o seu filho – que indeferiu o requerimento, efetuado pelo mesmo, para emissão e entrega ao apelante de certidão judicial do Relatório de Acompanhamento Clínico do PIAC de 26.10.2023, com vista à instauração de procedimentos disciplinares e penais contra as técnicas subscritoras do referido relatório, por o requerente e apelante entender que em tal relatório são cometidos crimes de difamação contra si.

Na decisão recorrida considerou-se que no requerimento apresentado pelo progenitor não foi invocado interesse legítimo passível de prevalecer sobre o direito da criança à reserva sobre a intimidade da vida privada, decorrente do caráter reservado do processo, em concretização do princípio da privacidade, decorrentes dos arts. 4.º, al. b) e 88.º da LPCJP.

Está-se aqui no âmbito de um processo ao qual se aplica a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro (alterada pela Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto, pela Lei n.º 142/2015, de 8 de setembro; pela Lei n.º 23/2017, de 23 de maio e pela Lei n.º 26/2018, de 5 de julho).

 Esta lei tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral (art. 1.º), legitimando-se a intervenção (das comissões de proteção de crianças e jovens e dos tribunais – art. 6.º) nas situações em que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança ou do jovem, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo – art. 3.º, n.º 1.

No art. 4.º são elencados os princípios orientadores da intervenção, sendo o primeiro – al. a) – o interesse superior da criança e do jovem – a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança (…), nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto.

Logo em seguida, na al. b), é indicado como princípio orientador da intervenção a Privacidade – a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada.

O art. 88.º da LPCJP, com a epígrafe Carácter reservado do processo, concretiza os termos de tal princípio orientador da privacidade no âmbito do processo de promoção e proteção nos seguintes termos:

1 - O processo de promoção e proteção é de caráter reservado.

2 - Os membros da comissão de proteção têm acesso aos processos em que intervenham, sendo aplicável, nos restantes casos, o disposto nos n.os 1 e 5.

3 - Os pais, o representante legal e as pessoas que detenham a guarda de facto podem consultar o processo pessoalmente ou através de advogado.

4 - A criança ou jovem podem consultar o processo através do seu advogado ou pessoalmente se o juiz ou o presidente da comissão o autorizar, atendendo à sua maturidade, capacidade de compreensão e natureza dos factos.

5 - Pode ainda consultar o processo, diretamente ou através de advogado, quem manifeste interesse legítimo, quando autorizado e nas condições estabelecidas em despacho do presidente da comissão de proteção ou do juiz, conforme o caso.

6 - Os processos das comissões de proteção são destruídos quando a criança ou jovem atinjam a maioridade ou, no caso da alínea d) do n.º 1 do artigo 63.º, aos 21 anos.

7 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a informação a que alude o disposto no n.º 1 do artigo 13.º-A é destruída assim que o processo ao abrigo do qual foi recolhida seja arquivado, pelo facto de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir.

8 - Em caso de aplicação da medida de promoção e proteção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º, deve ser respeitado o segredo de identidade relativo aos adotantes e aos pais biológicos do adotado, nos termos previstos no artigo 1985.º do Código Civil e nos artigos 4.º e 5.º do Regime Jurídico do Processo de Adoção, aprovado pela Lei n.º 143/2015, de 8 de setembro, e, salvo disposição especial, os pais biológicos não são notificados para os termos do processo posteriores ao trânsito em julgado da decisão que a aplicou.

9 - Quando o processo tenha sido arquivado nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 21.º, é destruído passados dois anos após o arquivamento.

Consagra aqui o legislador um regime especial para o acesso aos processos de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo, em persecução da finalidade de forte proteção da intimidade, do direito à imagem e reserva da vida privada da criança em perigo – no caso, o filho do aqui apelante –, segundo o princípio orientador de intervenção enunciado no artigo 4.º, alínea b) da LPCJP.

É na articulação entre este regime especial e as demais disposições legais cuja violação é invocada pelo apelante no recurso interposto que tem que ser apreciado o mérito da decisão recorrida.


b. (In)Admissibilidade de passagem de certidão

Há quem defenda que, face ao regime especial consagrado no art. 88.º da LPCJP, está excluída no âmbito do processo de promoção e proteção a possibilidade de obtenção de certidões do processo, dado que apenas se prevê e regula as condições de acesso ao processo, nada se estipulando quanto à obtenção de certidões do mesmo.

É esta a posição defendida por Tomé d’Almeida Ramião, Lei de proteção de crianças e jovens em perigo: anotada e comentada, Quid Juris, Lisboa, 2017, pp. 201, sustentando que “(…) este artigo apenas permite o acesso e consulta ao processo, não à possibilidade de se extraírem certidões de peças processuais, pelo que não é legalmente possível àqueles que o podem consultar obter qualquer certidão ou cópias de atos processuais.». Também neste sentido, Comentário à Lei de proteção de Crianças e Jovens em Perigo, da Procuradoria Geral Regional do Porto, Almedina – 2020, anotação ao art. 88.º, pág. 409.

Consideramos que, efetivamente, o regime do art. 88.º da LPCJP constitui um regime especial que, na parte aí expressamente regulada – ou seja, no que concerne ao acesso e consulta do processo de promoção e proteção – , afasta a aplicação do regime geral referente às limitações à publicidade do processo, na parte em que consagra soluções distintas – e mais restritivas – que as previstas no art. 164.º do Cód. Proc. Civil. Daí que no âmbito dos processos de promoção e proteção o acesso ao processo por parte dos pais se faça mediante a consulta pessoal, ou através de advogado, do processo na secretaria do tribunal (consulta física direta dos autos) e não por via da aplicação informática CITIUS, diferentemente do que sucede, designadamente, no âmbito dos processos com as limitações de acesso à publicidade previstas no art. 164.º do Cód. Proc. Civil. Neste sentido, cfr. Ac. do STJ de 23-02-2021, proc. 2335/06.0TMPRT-D.P1.S1.

Tal modo de acesso ao processo é o necessário e suficiente para assegurar o exercício dos direitos de contraditório legalmente prescritos, no âmbito de um processo cujo interesse e desiderato é a salvaguarda do interesse superior da criança, ao qual é inerente o caráter reservado do processo, enquanto princípios orientadores da intervenção consagrados nas als. a) e b) do art. 4.º da LPCJP.

Nada se diz expressamente, no entanto, neste art. 88.º da LPCJP sobre a possibilidade de obtenção de certidões do processo. Consideramos, deste modo, que da omissão de regulação expressa não se pode retirar a impossibilidade de emissão de certidões do processo.

Com efeito, da articulação do regime especial previsto no art. 88.º da LPCJP, em concretização do princípio da privacidade consagrado no art. 4.º, al. b), do mesmo diploma (princípio orientador da intervenção que segue na linha do disposto no art. 16.º da Convenção sobre os Direitos da Criança [3]), com o regime legal previsto nos arts. 165.º e 170.º do Cód. Proc. Civil (aplicável subsidiariamente dada a natureza do processo como processo de jurisdição voluntária – art. 100.º da LPCJP e art. 549.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) e com o disposto nos arts. 16.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, e 26.º, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP) resulta afastado o entendimento da inadmissibilidade legal, tout court, de passagem de certidões do processo.

O que se encontra excluída é a possibilidade de extração de certidões sem controlo judicial, impondo-se uma ponderação dos motivos invocados para justificar o pedido de passagem de certidão, sendo admissível a passagem de certidão se subjacente ao requerimento estiver um interesse ou direito legítimo, sempre e apenas na medida do estritamente necessário para salvaguardar tal interesse e tendo ainda sempre presente a necessidade de proteção da reserva de intimidade da vida privada da criança.

Seguimos, por conseguinte, a posição defendida por Beatriz Marques Borges, Promoção e proteção de crianças e jovens em perigo: perspetivas futuras do modelo, Revista Julgar, n.º 24 – 2014, Coimbra Editora, págs. 179 e 180, quando afirma que «Inexiste, contudo, uma proibição absoluta de passagem de cópias ou certidões. Ocorrendo motivos justificados para aquela emissão o tribunal deverá proferir despacho determinando a mesma. Duas ordens de razão sustentam esta opção. A primeira, por comparação com o regime instituído no processo civil para a passagem de certidões nos processos de divórcio, impugnação ou estabelecimento da paternidade, por não existirem razões mais ponderosas para garantir a reserva daqueles processos, comparativamente com o processo protetivo. Por outro lado, se, também, no processo adotivo, de natureza secreta, se encontra legalmente prevista a emissão de certidão não seria justificada essa não emissão em processos, tão só, de natureza reservada.»


c. Motivo justificado para a passagem da certidão

Pretende o apelante a passagem da certidão para o efeito de participação disciplinar e criminal relativamente às técnicas subscritoras do Relatório de Acompanhamento Clínico do PIAC de 26-10-2023 junto aos autos.

Sustenta o apelante, nas suas alegações de recurso, que o indeferimento do pedido de extração de certidão do Relatório do PIAC de 26-10-2023 “(…) para a instrução dos processos disciplinares e penais contra as profissionais autoras do parecer, equivale a um absoluto aniquilamento da possibilidade do exercício de defesa pelo progenitor, a uma autêntica violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no art. 20.º, n.º 1, da Constituição, assim como do princípio do Estado de Direito democrático, na vertente de “garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 2.º da CRP).

Não deixando de se afigurar paradoxal a pretensão do apelante – que, por considerar ofendido o seu bom nome e honra com um ato praticado num processo sujeito a reserva, com todas as limitações de acesso inerentes, pretende a extração de certidão desse mesmo ato para a sua inserção num processo que, diferentemente do processo em que o ato se insere, é tendencialmente público (art. 86.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal), assim lhe dando uma visibilidade que tal ato nunca teria –, os direitos de participação criminal e disciplinar invocados pelo mesmo são direitos, inclusive com assento constitucional, que lhe assistem, a despeito do efeito Streisand em que, na prática, podem redundar.

Tal pretensão do requerente não afetará o princípio da privacidade consagrado no art. 4.º, al. b), da LPCJP e a intimidade, o direito à imagem e à reserva da vida privada da criança desde que seja efetuada a anonimização da referida certidão do Relatório de Acompanhamento.

Deste modo, é de alterar a decisão de indeferimento da passagem da requerida certidão do Relatório de Acompanhamento Clínico do PIAC de 26-10-2023 junto aos autos, determinando-se, em ordem à salvaguarda do direito da criança à intimidade, direito à imagem e reserva da vida privada, que na certidão a emitir seja efetuada a eliminação de toda e qualquer referência que permita a identificação da criança beneficiária do processo de promoção e proteção, bem como da identificação da progenitora desta, com exceção da identificação do requerente/apelante.

4. Responsabilidade pelas custas

Nos termos do disposto no art. 1.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), aprovado pelo DL n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, todos os processos estão sujeitos a custas, considerando-se cada recurso como processo autónomo, desde que possa dar origem a uma tributação própria, como aqui sucede (ver arts. 529.º e 530.º do Cód. Proc. Civil e art. 6.º, n.º 1 e n.º 2, do RCP).

O art. 527.º do Cód. Proc. Civil estabelece a regra geral em matéria de custas, nos seguintes termos:

1 – A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

2 - Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

3 - No caso de condenação por obrigação solidária, a solidariedade estende-se às custas.

No caso em análise, o apelante interpôs recurso de um despacho judicial proferido relativamente a um pedido seu de emissão/passagem de uma certidão.

A revogação da decisão de indeferimento do requerimento do apelante, proferida pelo tribunal a quo, não consubstancia um vencimento de uma pretensão contestada por uma parte, uma vez que a intervenção do Ministério Público no presente processo é efetuada como promotor dos direitos das crianças e dos jovens, legitimidade que lhe é conferida pelo artigo 1º do Estatuto do Ministério Público e pelo artigo 72º da LPCJP.

Não existe, assim, no caso em apreciação, uma parte vencida, pelo que não atua o critério da causalidade, mas sim o princípio do proveito – cfr. Ac. do TRL de 11-02-2021, Proc. 1194/14.3TVLSB.L2-2.

Sendo o apelante que retira proveito do recurso interposto, as custas do mesmo ficam a seu cargo.

IV. Dispositivo:

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a decisão proferida pelo tribunal a quo, determinando-se a passagem de certidão devidamente anonimizada do Relatório de Acompanhamento Clínico do PIAC de 26-10-2023, dela se retirando todos e quaisquer elementos que permitam a identificação da criança beneficiária do processo de promoção e proteção, bem como da identificação da progenitora desta, com exceção da identificação do requerente/apelante.

Custas do recurso a cargo do apelante, atento o critério do proveito (art. 526.º, n.º 1, parte final, do Cód. Proc. Civil.

Notifique.


Porto, 6 de junho de 2024

Ana Luísa Loureiro

Judite Pires

Paulo Duarte Teixeira


_________________________
[1] Antunes Varela e outros, op. cit, pág. 687.
[2] Entre outros, Acs. do STJ de 03-03-2021, proc. 844/18.7T8NV.E1.S1 e de 18-02-2021, proc. 1695/17.1T8PDL-A.L2.S1; Ac. do TRC de 13-12-2022, proc. 98/17.2T8SRT.C1, todos acessíveis na base de dados de jurisprudência do IGFEJ.
[3] Aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, publicada no DR n.º 211/90, Série I, de 12/09/1990, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 29/90, de 12 de setembro.