Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17/18.9T8VLC.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: AÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
DIVISIBILIDADE
INDIVISIBILIDADE
PROPRIEDADE HORIZONTAL
Nº do Documento: RP2022101317/18.9T8VLC.P1
Data do Acordão: 10/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A divisibilidade ou indivisibilidade da coisa afere-se em termos jurídicos, e não físicos ou naturalísticos.
II - O juízo acerca da (in)divisibilidade da coisa comum deve reportar-se ao momento e estado em que se encontra a coisa, quando a divisão é requerida, isto é, ter-se-á que atender ao que o prédio é e não ao que poderá vir a ser.
III - Para que a propriedade horizontal possa ser constituída por decisão judicial impõe-se que, a par dos requisitos civis previstos no art.º 1415.º do Código Civil, se verifiquem os correspondentes requisitos administrativos, os quais terão de verificar-se no momento em que a divisão é requerida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 17/18.9T8VLC.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Competência Genérica de Vale de Cambra


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.
AA, divorciado, habitualmente residente em França e, quando em Portugal, na Rua ..., ..., ... Vale de Cambra, NIF ..., instaurou Acção Especial para Divisão De Coisa Comum, contra BB, viúva, residente na Rua ..., ..., ….-… Vale de Cambra, NIF ..., CC, divorciado, residente na Rua ..., ..., ... Vagos, NIF ...; DD, NIF ..., casada com EE, NIF ..., sob o regime da comunhão geral, residentes na Rua ..., ..., ..., ....-... Vale de Cambra; FF, solteiro, maior, residente na Rua ..., ..., ..., ....-... Vale de Cambra, NIF ...; GG e marido HH, casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens, residente na Rua ..., nº ..., ..., ….Vale de Cambra, NIF .........; II, solteiro, maior, residente na Rua ..., ..., ..., ....-... Vale de Cambra, NIF ..., na qualidade de únicos interessados na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de JJ, pela qual pede que seja decretada a extinção da compropriedade entre Autor e a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de JJ, procedendo-se à divisão em substância do imóvel identificado na petição inicial, de acordo com a divisão do uso que tem vindo a ser efectuado por cada uma das partes e, em consequência, à adjudicação a cada uma delas de uma parte especificada do imóvel.
Alega, em síntese, que Autor e a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de JJ são donos e legítimos possuidores em comum do prédio urbano, sito na ..., da união de freguesias ..., ... e ..., concelho de Vale de Cambra, destinado a habitação, inscrito na matriz sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra sob o nº ... de ....
Refere ainda o autor que adquiriu ½ do prédio por compra ao seu irmão KK mas que desde data anterior a 1964, o prédio encontra-se dividido de facto por uma parede interior ocupando cada família uma parte especificada da casa, e, ainda, que desde esse momento, o Autor por si e antepossuidores vêm ocupando a parte nascente do prédio, cuidando, habitando, conservando e fazendo obras, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ignorando lesar direito alheio, invocando que se não tivesse outro título (tem a transmissão derivada) teria adquirido a indicada parte por usucapião.
Mais alega que recorre ao processo de divisão de coisa comum por não ter conseguido proceder à divisão amigável e extrajudicialmente.
Defende que o prédio é divisível em substância entre os comproprietários tanto mais que há mais de 40 anos que a utilização se encontra dividida de facto.
Invoca que não consegue efectuar com rigor as medições de cada uma das parcelas ocupadas por si e pelos Réus porque o técnico contratado para o efeito teve de se afastar por oposição dos Réus.
Por sentença de 8 de Julho de 2019 foram habilitados GG, LL e MM como herdeiros de HH, prosseguindo os autos declarativos com aqueles no lugar deste.
Citados os Réus, não contestaram.
Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 926.º do Código de Processo Civil foi determinada a realização de perícia ao prédio com o objecto “área do prédio descrito no artigo 1.º da petição inicial e apurar da divisibilidade do mesmo nos termos expostos no artigo 15.º da petição inicial, devendo ser diligenciado o levantamento topográfico respectivo.”
Notificados do relatório pericial, vieram as partes requerer que o perito fosse notificado para esclarecer “se, no local cada uma das parcelas se encontra individualizada e já autonomizada” e para que “se pronuncie sobre a divisibilidade do prédio de facto”.
Indeferidos tais pedidos, foi ordenada a notificação das partes para informarem o tribunal se existe ou se foi pedida certidão camarária que se tenha pronunciado sobre se o prédio reúne as condições para ser constituído em regime de propriedade horizontal.
As partes informaram que não existe decisão camarária e que o que pretendem é uma sentença judicial que decrete a divisão de coisa comum.
Foram ouvidas as testemunhas arroladas pelo Requerente.
Após, foi proferida sentença com o seguinte Dispositivo:
“Pelo exposto, nomeadamente com os fundamentos de facto e de direito supra expostos, decido declarar que:
1. O prédio urbano, sito em ..., composto de edifício de rés-do-chão para habitação e logradouro, com 55 m2 de área coberta e 240m2 de área descoberta, a confrontar do norte com logradouro da Junta; do sul e do poente com NN e do nascente com caminho, inscrito na matriz sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra sob o nº... da freguesia ..., é compropriedade de Autor e da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de JJ de que os Réus são os únicos interessados, e definir as quotas na compropriedade na proporção de ½ para cada parte;
2. Decidir que a coisa imóvel identificada em 1. é indivisível em substância.
Custas pelas partes, na proporção de 1/2 para o Autor e 1/2 para os Réus na qualidade de únicos interessados na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de JJ (cf. artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Valor da acção: €9.240,00 – cf. artigo 306.º, n.º 1 e 302.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Registe e notifique”.

2. Por não se conformar com a referida sentença, dela interpôs o autor recurso de apelação para esta Relação, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A/ Resultando da matéria de facto que o Tribunal considerou provada que o prédio se acha de facto dividido entre as partes, tendo cada uma delas adquirido a respetiva parcela que ocupa por usucapião, esta, pode fundamentar a divisão de prédio em regime de compropriedade, maxime se os comproprietários dividiram verbalmente o prédio e passaram a exercer a posse exclusiva sobre a parcela ou quinhão que acordaram ficar a pertencer-lhe;
B/ Cremos que as normas adiantadas na decisão, designadamente o disposto no Artº. 209º do CC, ainda que de caráter imperativo, cedem, nomeadamente, se os interessados usucapiram, isto é, adquiriram a parte em causa de modo originário. (…), como é o caso dos autos;
C/ O estado de facto criado pela divisão amigável efectuada pelos comproprietários sem ter sido precedida de escritura ou auto público, pode converter-se em estado de direito, através do instituto da usucapião, se cada um dos comproprietários tiver exercido posse exclusiva sobre o quinhão que ficou a pertencer-lhe na divisão e tal posse se revestir dos requisitos legais;
D/ Para evitar todos os problemas associados a esta forma amigável de “divisão”, sem os problemas inerentes à prova das respectivas áreas e estremas das várias parcelas, os comproprietários podem lançar mão da acção de divisão de coisa comum, sendo e estando o prédio dos autos dividido e, por isso, é divisível, devendo, assim, ser atribuída a cada parte respetiva parcela que cada uma delas usucapiu, conforme a matéria de facto o revela.
Termos em que, nos melhores de direito cujo proficiente suprimento desse Colendo Tribunal se invoca, deverá o presente recurso merecer total provimento, revogando-se a decisão recorrida nos apontados termos, assim se fazendo justiça”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se o prédio urbano em discussão nos autos é ou não divisível em substância.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
1. Por escritura pública denominada “Compra e Venda” datada de 1 de Setembro de 2016, outorgada no Cartório Notarial .... OO, a folhas 123 e seguintes do livro ..., AA, divorciado, por si e na qualidade de procurador de KK, declarou:
“Que, pela presente escritura e pelo preço de quatro mil seiscentos e vinte euros, já recebido, pelo vendedor, vende em nome do seu representado, a si próprio, o seguinte:
Metade indivisa do prédio urbano, composto de casa de habitação de rés-do-chão, com logradouro, situado em ..., ..., união de freguesias ..., ... e ..., concelho de Vale de Cambra sob o número .../freguesia ..., onde a referida metade indivisa se encontra inscrita a favor do representado do outorgante, pela inscrição resultante da apresentação ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial correspondente à indicada fracção de €4.620,00.
E pelo outorgante, agora por si, foi dito:
Que aceita a presente vendam, nos termos exarados e que o imóvel ora adquirido se destina exclusivamente a habitação.”.
2. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra sob o nº... da freguesia ..., o prédio urbano, sito em ..., composto de edifício de rés-do-chão para habitação e logradouro, com 55 m2 de área coberta e 240m2 de área descoberta, a confrontar do norte com logradouro da Junta; do sul e do poente com NN e do nascente com caminho, inscrito na matriz sob o artigo ....
3. Sobre a descrição identificada no ponto anterior incide a seguinte inscrição:
AP. ... de 2016/09/02 – Aquisição de ½ a favor de AA, divorciado por compra a KK.
AP. ... de 2017/05/05 – Aquisição de ½ em comum e sem determinação de parte por sucessão por morte de JJ:
CC, divorciado;
DD casada com EE na comunhão geral;
FF, solteiro;
BB, viúva;
GG casada com HH na comunhão de adquiridos;
II, solteiro.
4. No prédio identificado em 2., existe uma construção principal composta de edifício de rés-do-chão para habitação.
5. No edifício identificado no ponto anterior foi construída uma parede interior que separa uma parte a norte de uma parte sul.
6. No topo sul da construção existe, ainda, um arrumo/palheiro usado por BB.
7. A parte sul do edifício identificado em 4. é um espaço ocupado para habitação de II.
8. A parte norte do edifício identificado em 4. é constituída por um espaço devoluto.
9. No seguimento da parede interior identificada em 5. foi edificado um muro a partir dos limites do edifício identificado em 4. no sentido nascente e no sentido poente até ao limite do prédio.
10. As partes norte e sul identificadas em 6. têm saída própria para o logradouro.
11. Desde data anterior a 1964 que o Autor e antes dele o seu irmão e antes destes os seus pais, ocupam o espaço identificado em 8..
12. Desde data anterior a 1964 que a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de JJ por si e antepossuidores ocupam o espaço identificado em 6. e 7..
13. O Autor e antepossuidores sempre cuidaram da parte identificada em 8., habitando-a, fazendo obras, conservando-a.
14. O que fizeram à vista de toda a gente.
15. Sem oposição de ninguém.
16. Ignorando lesar direito alheio.
17. A divisão em substância do prédio identificado em 2. em duas partes correspondentes às identificadas nos pontos 6. e 7., por um lado, e à parte identificada em 8., por outro, não foi sujeita ao controle da Câmara Municipal.
18. O prédio identificado em 2. foi inscrito na matriz em 1948 e tem o valor patrimonial obtido em 2015 de €9.240,00.
III.2. E considerados não provados os seguintes factos:
a)- O requerente solicitou um licenciamento para obras e a ligação de abastecimento público de água para a parte nascente do prédio identificado em 1., na Câmara Municipal.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Instaurou o autor acção de divisão de coisa comum, pretendo com a mesma que se proceda “à divisão do imóvel identificado no item 1º desta peça processual, conforme vier a ser determinado por meio de perícia a realizar, adjudicando-se ao demandante a parcela identificada em 8º desta peça e aos demandados a parcela identificada em 9º do mesmo articulado, com as legais consequências”.
Regulada, como processo especial, nos artigos 925.º a 929.º do Código de Processo Civil, a acção de divisão de coisa comum comporta duas fases distintas: uma essencialmente declarativa – artigos 925.º e 926.º - e outra de natureza executiva – artigos 927.º a 929.º.
Tal acção faculta, na falta de acordo, a qual dos comproprietários o exercício do direito potestativo reconhecido pelo artigo 1412.º, n.º 1 do Código Civil, segundo o qual nenhum deles é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa.
Em comentário ao referido normativo, precisa Rodrigues Bastos[1]: “O nº 1 corresponde ao princípio fundamental, reconhecido pelo direito romano, segundo o qual “in communione nemo compellitur in vitus detineri” (…). A cessação da indivisão, por acordo entre todos os comproprietários pode verificar-se por vários modos: divisão da coisa, sua venda ou doação a uma ou mais pessoas, etc. Faltando o acordo de todos os participantes a lei indica como via normal para fazer cessar a comunhão, a divisão, que pode ser in natura ou divisão do preço. Segundo a doutrina dominante o direito de cada um dos participantes fazer cessar a comunhão é considerado um direito potestativo, através da divisão da coisa comum”.
Também em comentário ao referido preceito, esclarecem Antunes Varela e Pires de Lima[2]: “O facto de se falar na indivisão da coisa e na forma de lhe pôr termo não significa que o direito conferido ao comproprietário vise forçosa ou sistematicamente a divisão da coisa em substância.
A divisão pode ser impossível, quer em virtude das prescrições da lei, cfr. (art. 1376º, nº 1), quer pela própria natureza da coisa, cfr. (art. 209º), e nem por isso deixa de ter aplicação o direito que o artigo 1412º atribui ao comproprietário. (…).
Quer isto dizer, por conseguinte, que o direito de que trata o artigo 1412º é, no fundo, um direito de dissolução da compropriedade (dissolução da comunhão é precisamente a expressão usada na epígrafe do art. 1111º do Código Civil Italiano), que normalmente se opera mediante a divisão em substância da coisa, mas que também pode realizar-se através da partilha do seu valor (ou preço)”.
Segundo o artigo 209.º do Código Civil, “são divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor, ou prejuízo para o uso a que se destinam”.
Face ao conceito normativo de divisibilidade acolhido no citado preceito, converge a doutrina e a jurisprudência no entendimento de que a divisibilidade ou indivisibilidade da coisa se afere em termos jurídicos, e não físicos[3].
Segundo Pedro Pais de Vasconcelos[4], “As coisas são naturalmente divisíveis até ao infinito. Mas não é essa a divisibilidade que é relevante nesta matéria. O critério da divisibilidade jurídica das coisas assenta sobre três factores: a substância, o valor e o uso. Só podem ser tidas como divisíveis juridicamente as coisas que possam ser cindidas em partes, sem que percam a sua substância, sem que se reduza o seu valor e sem que o seu uso próprio seja prejudicado. Se faltar uma destas características, a coisa é juridicamente tida como indivisível”.
A questão controversa nos autos reconduz-se precisamente à da (in)divisibilidade do imóvel de que o autor é comproprietário juntamente com os demandados, concluindo a sentença aqui sindicada que se está “perante imóvel legalmente insusceptível de divisão”, sendo indivisível em substância, defendendo o recorrente, como seria expectável, entendimento contrário, referindo que “estando o prédio dos autos dividido e, por isso, é divisível, devendo, assim, ser atribuída a cada parte respetiva parcela que cada uma delas usucapiu, conforme a matéria de facto o revela”.
Da circunstância do prédio estar dividido, como afirma o recorrente, não se pode extrair que o mesmo é divisível, face, além do mais, à escassez de factos alegados – que viriam a integrar a matéria constante dos pontos 4.º a 10.º dos factos elencados como provados na sentença recorrida, não tendo sequer sido alegado, designadamente, quais as áreas de cada uma das “fracções” que integram o prédio, se cada uma delas dispõe de sistemas independentes de água, luz e esgotos. Ora, como refere o acórdão do STJ de 14.06.2011[5], “...só em concreto, caso a caso, é possível apreciar se a divisão da coisa implica alteração da sua substância, diminuição do seu valor ou prejuízo para o uso a que se destina. Ora, os elementos em que a Relação se baseou para decidir como decidiu - e que são os factos 1 a 14, acima elencados - não se mostram de forma alguma suficientes para fundar um juízo claro e seguro a respeito da verificação dos requisitos legais de divisibilidade que se apontaram. E sem uma especificação exacta e precisa - “no terreno”, se assim nos podemos exprimir - de cada uma das partes em que o prédio ficará dividido, a simples menção à respectiva área (137,5 m2) e a constatação genérica de que as entradas das casas e as instalações eléctricas, de água e esgotos são independentes, como se faz no acórdão impugnado, inviabiliza praticamente a formulação daquele julgamento”.
Como já se esclareceu, a natureza – divisível ou indivisível – da coisa avalia-se em termos jurídicos e não físicos. O mesmo é dizer que uma coisa ainda que seja fisicamente divisível possa não o ser do ponto de vista jurídico.
A acção de divisão de coisa comum pressupõe, como a própria designação aponta, a existência de uma situação de compropriedade em relação à coisa a cuja indivisão se pretende por termo através da referida via processual.
Retira-se do sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.01.2008[6]:
1. É condição de procedência de uma acção de divisão de coisa comum a existência de uma situação de compropriedade.
2. Se, quando a acção foi proposta, a compropriedade já tinha cessado por se ter verificado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade singular de parte determinada do prédio, o pedido de divisão tem de improceder.
[...]”.
E pode ler-se no mesmo acórdão: “Como todos sabem, para se adquirir, por usucapião, um direito susceptível de ser adquirido por essa via, é essencial ter a posse correspondente ao direito de cuja aquisição se trata, por certo lapso de tempo (que varia, segundo as circunstâncias da posse), nos termos do artigo 1287º do Código Civil; no caso, da posse correspondente ao direito de propriedade (singular).
Como decorre do disposto no artigo 1251º do mesmo Código Civil, haverá essa posse quando se “actua por forma correspondente ao exercício” desse direito (corpus da posse), independentemente de se ser ou não titular do mesmo, e, segundo alguns (embora com diversas construções), quando essa actuação (ou seja, o exercício de poderes de facto sobre a coisa, salvo se se tratar de posse derivada, que se pode revelar por outras formas) seja acompanhada da “intenção de agir como beneficiário do direito” (artº 1253º, al.a), do Código Civil) – animus da posse.
A posse pode ainda ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, nas palavras do artigo 1258º do Código Civil, relevando as diversas modalidades, desde logo, para permitirem a aquisição por usucapião e, para além disso, para a determinação do prazo necessário para esse efeito (cfr. artigos 1294º e segs. Código Civil e, por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Fevereiro de 1999, disponível em www.dgsi.pt, processo nº 98B1043).
No caso presente, trata-se de determinar se o réu adquiriu ou não por usucapião, como alega, o direito de propriedade (individual) sobre a parte nascente do prédio que, por partilhas, foi adjudicado indiviso, em conjunto e em partes iguais, a ele próprio e ao autor marido.
6. Nenhuma dúvida se colocaria nos autos se estivesse em causa averiguar se o mesmo réu teria a posse correspondente à de comproprietário do prédio, seja resultante de apossamento (na sequência do contrato-promessa de partilhas) seja por via de sucessão na posse (em virtude da adjudicação nas partilhas subsequentes). A dificuldade encontra-se, antes, na oposição, pelo réu, da aquisição, por usucapião, da metade nascente do prédio, como proprietário individual (e não como comproprietário), em consequência da posse que, em seu entender, exerceu nessa qualidade, em termos de lhe permitir invocar, com êxito, a aquisição do direito de propriedade (individual) sobre essa mesma metade.
Com efeito, e independentemente da opção teórica que se adoptar quanto ao conceito de compropriedade, que, para a lei portuguesa (nº 1 do artigo 1403º do Código Civil), existe “quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”, a verdade é que, sendo certo que “os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular” e que são “qualitativamente iguais” os direitos dos comproprietários “sobre a coisa comum” (nº 2 do mesmo preceito), pode haver dificuldade em concluir se a posse que os recorrentes invocam deve ser considerada como correspondente à posse de comproprietário (em relação a todo o prédio, indiviso), ou à posse de proprietário individual da metade nascente do prédio.
É por isso que o nº 2 do artigo 1406º do Código Civil estabelece que, mesmo que um só dos comproprietários use a coisa comum – o que não significa qualquer infracção das regras da compropriedade, como resulta do nº 1 do mesmo preceito, ainda que quantitativamente seja diferente a quota de cada um –, tal uso “não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título”.
O mesmo se diga da modificação da coisa comum, que cada consorte pode fazer por si só, de forma a permitir-lhe melhorar as condições de uso da referida coisa, desde que respeite os limites também constantes do nº 1 do já citado artigo 1406º do Código Civil. É claro que o uso da coisa é susceptível de ser fixado por acordo dos comproprietários, e que uma das soluções encontradas pode justamente consistir em ficar convencionado que cada um tem a faculdade de usar uma parte (fisicamente) determinada da mesma, “sem chegarem a uma divisão da coisa, que ponha termo à compropriedade” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., Coimbra. 1984, pág. 357).
Todos estes apontamentos demonstram a dificuldade atrás recordada, “dado (como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, Código cit. III, pág. 359) o carácter essencialmente equívoco em que a posse, em princípio, reveste em tais situações (dada a latitude dos poderes de uso conferidos ao comproprietário)”, motivo pelo qual o Código Civil português exige, caso se verifique que um dos comproprietários passa a utilizar toda ou parte da coisa comum como se fosse seu proprietário individual, e pretenda invocar a aquisição do correspondente direito de propriedade por usucapião, que se tenha verificado a inversão do título da sua posse, prevista no artigo 1265º do Código Civil”.
Escreveu-se na sentença recorrida: “a propriedade horizontal, embora seja, em regra, o resultado de uma declaração unilateral do proprietário ou dos comproprietários do prédio, pode ser constituída judicialmente em acção de divisão de coisa comum - cfr. artigo 1417.º do CC. Dispõe o n.º 2 do artigo 1417.º que “a constituição da propriedade horizontal por decisão judicial pode ter lugar a requerimento de qualquer consorte, desde que no caso se verifiquem os requisitos exigidos pelo artigo 1415.º.”, ou seja, para a constituição da propriedade horizontal seria necessário que um dos consortes o requeresse e que resultasse provado que as fracções autónomas a constituir eram distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública e, ainda, que cumprissem os requisitos para a aprovação de tal divisão pela entidade pública competente.
Ora, no caso concreto, nem Autor nem Réus requereram a constituição do prédio em regime de propriedade horizontal nem sequer alegaram factos suficientes àqueles primeiros requisitos (constituição de duas fracções autónomas distintas e isoladas entre si) nem requereram à Câmara Municipal que certificasse que a divisão em fracções autónomas obedece às regras administrativas impostas para as operações urbanísticas (ver artigos 62.º, n.º1, 66.º, 67.º e 77.º do RJUE; cfr. também o artigo 59.º, n.º1 do Código do Notariado). Tem-se entendido, neste âmbito, que a constituição da propriedade horizontal “(…) basta-se com um certificado municipal de que o edifício satisfaz os requisitos para a constituição da propriedade horizontal (…)” – cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, in “Processos especiais de divisão de coisa comum e de prestação de contas”, pág. 55.
Assim, no caso, o tribunal nunca poderia decidir pela constituição da propriedade horizontal – não só porque não foi requerida por qualquer dos consortes (princípio do pedido - artigo 3.º do CPC) – como também porque não sabemos se estão observados os requisitos legais, civis e administrativos necessários, já que o que “a Administração não pode conceder, não pode a Jurisdição autorizar” - acórdão da Relação de Guimarães no processo n.º 1197/13.5TBPTL.G1 de 04.10.2017, disponível em www.dgsi.pt.
Vem-se entendendo que “(…) em sede de operações urbanísticas de loteamento/destaque, deverão prevalecer as normas imperativas de ordem pública, ficando vedado às partes alcançar com recurso ao Tribunal (com invocação de usucapião ou da acessão industrial imobiliária) um resultado que lhes está vedado pelo direito substantivo, na medida em que o regime de direito privado está sujeito a condicionalismos de direito do urbanismo e do ordenamento do território que se lhe sobrepõem (princípio da submissão aos limites substantivos) (…)”- cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, em “Processos especiais de divisão de coisa comum e de prestação de contas”, pág. 68”.
Diz-se no acórdão da Relação do Porto de 16.10.2017[7]: “Sendo o prédio a dividir composto de duas habitações e terreno a logradouro, a sua divisibilidade em dois lotes distintos depende da demonstração de estarem verificados os requisitos de constituição de nova realidade jurídica e fiscal que a acção visa alcançar.
Por outro lado, os requisitos de fraccionamento do solo onde se incorporam as construções em causa terão de ser actuais, concorrendo no momento em que a divisão é requerida e se coloca a questão da divisibilidade.
A não ser assim, como supra se referiu estaria encontrado o expediente para, com o recurso à via judicial, serem alcançados objectivos que o direito substantivo não permite, violando-se os preceitos que regulam o licenciamento municipal e o urbanismo”.
Em idêntico sentido, já no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2008[8] se afirmava: “...cumpre ter em conta que a indivisibilidade, tal como é definida pelo artigo 209º do Código Civil, não esgota a indivisibilidade exigida como requisito de divisão de um prédio, em acção de divisão de coisa comum.
Assim, e por exemplo, não é legítimo a um comproprietário utilizar uma acção de divisão de coisa comum para, com o concurso do tribunal, mas sem a concordância dos demais comproprietários e sem a intervenção das entidades administrativas competentes, obter o efeito equivalente, por exemplo, a um loteamento, a um destaque ou à constituição da propriedade horizontal num prédio que se encontra em regime de compropriedade.
Com efeito, e como se escreveu, por exemplo, no acórdão deste Supremo Tribunal de 5 de Junho de 2008, disponível em www.dgsi.pt como proc. nº 08A1372, também proferido numa acção de divisão de coisa comum, “qualquer que seja a possibilidade material de divisão da parte urbana [ou de um prédio urbano, como no caso presente] – casa de habitação e seu logradouro com aptidão construtiva –, não concorrem os requisitos de natureza administrativa, seja de loteamento, seja de constituição da propriedade horizontal. Na verdade, o nosso sistema jurídico sujeita ao regime de controlo ou licenciamento prévio das Câmaras Municipais as operações de urbanização e obras particulares, nomeadamente, e ao que ao caso interessa, as operações de loteamento, de construção, reconstrução a alteração de construções ou edifícios, em que se incluem, incontornavelmente, as de modificação das características físicas de um terreno para formação de lotes destinados à implantação de construções e a modificação de edificação destinada a habitação unifamiliar para um edifício em regime de propriedade horizontal (arts. 2º, 4º, 60º, 62º a 66º e 70º, todos do regime Jurídico da urbanização e da Edificação, aprovado pelo DL 555/99, de 16/12, entretanto alterado pelo DL nº 177/2001 e pela Lei nº 60/2007, de 4/9, mas sem reflexo no conteúdo das normas ora em aplicação). E a própria Constituição da República comete às autarquias a definição dessas regras urbanísticas (art. 64º-4)”.
No mesmo sentido, podem ver-se em www.dgsi.pt ainda os acórdãos de 14 de Outubro de 2004, proc. nº 04B2961 ou também de 5 de Junho de 2008, proc. nº 08A1432, este último relativo à pretensão de constituição da propriedade horizontal”.
E adianta o mesmo acórdão: “Quer o loteamento, quer o destaque estão dependentes da verificação dos requisitos previstos nas leis aplicáveis a este tipo de intervenções urbanísticas. Assim, e nomeadamente, o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro (alterado pelo Decreto-Lei nº 177/2001, de 4 de Junho, pela Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro, pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, pela Lei nº 5/2004, de 10 de Fevereiro, pelo Decreto-Lei nº 157/2006, de 8 de Agosto, pela Lei nº 60/2007, de 4 de Setembro, pelo Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro e pelo Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho) impõe a necessidade de licenciamento, de autorização ou de comunicação à Câmara Municipal competente, consoante as situações e os requisitos exigidos em relação a cada uma, de operações de loteamento ou de destaque de parcelas de terrenos.
No caso, seria condição da divisão do prédio das partes a demonstração de que a ou as entidades administrativas competentes para o efeito tinham tido a intervenção imposta por lei, quanto mais não fosse no procedimento correspondente ao pedido de informação prévia previsto nos artigos 15º e segs. do citado Decreto-Lei nº 555/99, o que não foi feito. Nunca seria, assim, admissível proceder à divisão do prédio nesta acção. Ainda que lhes coubesse optar por uma das utilizações possíveis das futuras parcelas, desde logo porque dessa opção depende o regime administrativo aplicável, – e não cabe –, não poderiam os tribunais substituir-se àquelas entidades para verificar os requisitos da divisão pretendida, impondo-lhes uma decisão com esse mesmo efeito.
Não é argumento a observação de que, adjudicado o prédio a um dos comproprietários ou vendido a terceiros, será então possível proceder, por exemplo, ao respectivo loteamento, ou ao destaque de uma parcela. A circunstância de um prédio estar em regime de compropriedade não impede, nem uma coisa, nem outra, nem dispensa a intervenção das entidades administrativas competentes; apenas impõe, como condição específica, a concordância de todos os titulares (ou o recurso a algum mecanismo de resolução de eventuais divergências, de forma a que se alcance uma vontade juridicamente imputável ao conjunto dos comproprietários) na realização de tais operações”[9].
De facto, como precisa o já citado acórdão desta Relação de 16.10.2017, no qual nos revemos, “...existem requisitos administrativos de constituição da propriedade horizontal que, decorrendo da verificação das exigências arquitectónicas, de ordem estética e urbanística, de segurança salubridade, etc., são de satisfação exclusivamente deferida às Câmaras Municipais.
A esta entidade administrativa cabe sempre, como requisito prévio da constituição da propriedade horizontal por qualquer dos meios admitidos na lei, emitir certificado de que o edifício é dotado dos requisitos que o RJUE (Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16/12) exige para o efeito (artigos 62.º a 66.º e 74.º)
A tudo acresce que o conhecimento da indivisibilidade é oficiosamente imposto.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 29/11/2006[8], “não é possível conceber a constituição da propriedade horizontal sem a observância de todos os requisitos legais, incluindo os de natureza administrativa”.
Por conseguinte, não pode a questão da divisibilidade ficar à mercê da verificação de situações futuras e hipotéticas. Era ónus dos Autores recorridos, interessados na divisão, demonstrar estarem satisfeitos os pertinentes requisitos administrativos de constituição da realidade jurídica que a acção visava, mediante instrução dos autos com certificação municipal nesse sentido.
Trata-se, na verdade, de uma condição de procedência da pretensão, a demonstrar até ao momento em que o tribunal seja chamado a pronunciar-se sobre a questão da divisibilidade, irrelevando quaisquer outras provas ou diligências probatórias (nomeadamente de natureza pericial, inidóneas como substituição do documento camarário).
Aqui chegados, pode concluir-se que, indemonstrados os requisitos administrativos de constituição da propriedade horizontal, ou seja, do modo legalmente admissível de divisão de construções urbanas, a indivisibilidade do prédio em questão não pode deixar de ser, perante os elementos disponíveis, reconhecida”.

Dado o interesse público em matéria de ordenamento do território, e consabidas as sistemáticas violações nessa matéria, não pode a decisão judicial proferida em acção de divisão de coisa comum, reconhecendo a divisibilidade em substância de um prédio urbano em situação de compropriedade sem o controlo das entidades administrativas competentes, constituir meio de tornear ou defraudar a lei, dando, designadamente, cobertura a operações de loteamento ilegal, através de loteamento físico em violação ao regime geral dos loteamentos urbanos.
Não merece, por isso, qualquer censura a sentença recorrida que, pelas razões nela mencionadas, e às quais já se fez referência, concluiu pela indivisibilidade em substância do prédio urbano em discussão nos autos.

Como tal, mantém-se o decidido, improcedendo o recurso.

Síntese conclusiva:
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Nestes termos, acordam os juízes desta Relação, na improcedência do recurso, em confirmar a sentença recorrida.

Custas: pelo apelante.


[Acórdão elaborado pela primeira signatária com recurso a meios informáticos]

Porto, 13.10.2022
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
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[1] “Notas ao Código Civil”, Vol. V, 1997, pág. 183.
[2] “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., pág. 387.
[3] Cfr José Alberto Vieira, Direitos Reais, 1ª edição, pág. 184; Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6ª edição, pág. 229; Acórdão do STJ de 14.10.2004, Procº 04B2961) e de 5.06.2008, Pº 08A1372, ambos em www.dgsi.pt.
[4] Obra citada, pág. 201.
[5] Processo 1147/06.5TBVVD.G1.S2, www.dgsi.pt.
[6] Processo 07B2373, www.dgsi.pt.
[7] Processo 2506/15.8T8VFR-A.P1, www.dgsi.pt.
[8] Processo 08B2121, www.dgsi.pt.
[9] Cfr. no mesmo sentido, citado acórdão do STJ de 14.06.2011, e acórdãos desta Relação de 16.10.2017, processo 90/13.6T2VGS.P1, 28.10.2013, processo 1823/09.0TBSTS.P2, 2.07.2012, processo 261/09.0TBCHV.P1, 17.11.2011, processo 335/10.4TVPRT.P1; da Relação de Guimarães de 25.11.2013, processo 52/12.0TBCMN.G1; Relação de Lisboa de 18.05.2010, processo 4933/07.5TVLSB.L1-1, de 9.06.2009, todos em www.dgsi.pt.