Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6928/22.0T8VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA VIEIRA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
DESPEJO IMEDIATO
FALTA DE PAGAMENTO DE RENDAS
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
Nº do Documento: RP202306016928/22.0T8VNG-A.P1
Data do Acordão: 06/01/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Devido ao princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação não é automático, e admite a dedução pelo arrendatário de qualquer meio de defesa suscetível de demonstrar o pagamento ou a inexigibilidade das rendas vencidas na pendência da ação.
II - A obrigação de pagar tais rendas apenas se suspende ou extingue nos casos especificamente previstos no regime do arrendamento.
III - Esses meios de defesa terão de ser respeitantes ou estarem directamente correlacionados com a obrigação de pagamento da renda, para poderem ter a virtualidade de impedir, modificar o extinguir tal obrigação durante a pendência da acção, (nomeadamente a falta de exigibilidade das rendas, a mora do senhorio, a compensação, a excepção de incumprimento).
IV - A excepção de não cumprimento do contrato tem como pressuposto a correspectividade das prestações a que as partes estão vinculadas, sendo que no contrato de arrendamento existe correspectividade entre a prestação do senhorio de proporcionar ao inquilino o gozo da coisa locada e a prestação do inquilino de pagar o valor da renda.
V - Para que o inquilino possa deixar de pagar a renda com base na excepção de não cumprimento do contrato pelo senhorio, tem de alegar e provar que ficou privado do gozo do locado e que existe um nexo de causalidade entre a privação desse gozo e a falta de pagamento da renda.
VI - Deverá ser decretado o despejo imediato quando os fundamentos de defesa apresentados em nada afetam o cumprimento da obrigação de pagamento de renda
VII - Não constitui meio de defesa legítimo e eficaz em relação ao direito potestativo da autora de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da acção, a alegação de que se tem direito ao recebimento de uma indemnização decorrente de danos causados pela realização de obras no locado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 6928/22.0T8VNG-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, V.N.Gaia - JL Cível - Juiz 4,

Relatora: Ana Vieira
1º Adjunto Desembargador Dra. Deolinda Varão
2º Adjunto Desembargador Dr. Aristides Rodrigues de Almeida
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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I- RELATÓRIO

AA, residente na Rua ..., ... ..., vem intentar, acção declarativa sob a forma de processo comum contra, BB, residente na Rua ..., ..., ... ..., nos termos e com os seguintes termos e fundamentos: No dia 26 de Março de 2018, por contrato de arrendamento escrito, o A. na qualidade de proprietária, deu de arrendamento à Ré que, por sua vez tomou de arrendamento o imóvel inscrito na matriz sob o artigo ...38 sito na Rua ..., ..., ... ..., conforme contrato de arrendamento junto, para habitação da Ré, pelo prazo de cinco anos, com início no dia 01/09/2019, ficou convencionado que a renda mensal é de 285,00€ e seria liquidada pela Ré por transferência bancária para o Iban da A. identificado na clausula segunda do contrato de arrendamento , vencendo-se a mesma, mensalmente, até ao dia 1 do mês anterior a que respeitar. Refere que a R. deixou de liquidar as rendas de, Janeiro, Fevereiro, Março e Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto e Setembro do ano de 2022, vencidas no primeiro dia útil dos meses, respectivos imediatamente anteriores, num total de 2.565,00€.
Conclui, peticionando: a. Ser declarada a resolução do contrato de arrendamento; b. Ser declarado o consequente despejo da Ré do imóvel objecto do presente contrato de arrendamento; c. Ser a Ré condenada no pagamento à A. da quantia de 2.565,00€, a título de rendas vencidas e não pagas e d. Ser a Ré condenada a liquidar as rendas que, entretanto, se vencerem até à entrega efectiva do locado.
A ré deduziu contestação nos seguintes termos: «1º A Autora propôs a presente acção contra a Ré, com o objectivo de resolver indevidamente o contrato de arrendamento urbano habitacional celebrado com a Ré,
2º Assentando a Petição Inicial em factos parcialmente falsos e omitindo outros factos importantes para a analise da questão sub judice.
3º Aceita-se, por ser verdade, o vertido em 1º, 2º e 3º da Petição Inicial,
Quanto ao mais,
4º Não é exacto tudo o alegado; Porquanto,
5º Aquando da celebração do contrato de arrendamento, a Ré fez obras de melhoramento e necessárias à habitação do imóvel, uma vez que o mesmo não tinha condições de habitabilidade, conforme clausula segunda, ponto 2 do contrato de arrendamento junto com a P.I.,
6º Assim, a Ré procedeu as seguintes obras: a) colocou os moveis de cozinha; b) aplicou o chão (tijoleira) na casa toda, uma vez que o mesmo se encontrava em cimento; c) rectificou algumas paredes com a aplicação de pladur, face as mesmas não se encontrarem direitas; e apresentavam humidade; d) colocou os azulejos na casa de banho; e) colocou as loiças da casa de banho, incluído o autoclismo e com excepção da banheira; f) aplicou um móvel com pedra mármore no lavatório da casa de banho; g) pintou a casa toda; h) refez a fiação elétrica da casa; i) substituiu a porta da casa de banho; j) substituiu todas as tomadas e interruptores; k) fez um quadro de luz novo, uma vez que o existente no local tinha os fios pendurados;
7º Tendo despendido o valor de €3.000,00 entre materiais, documentos que protesta juntar, e mão de obra.
8º Valor esse bastante mais elevado do que o valor de €570,00, que a A. deixou de receber pelos primeiros dois meses de renda e a R. deixou de pagar, conforme clausula segunda, ponto dois e três do contrato de arrendamento junto com a P.I..
9º Em Junho de 2021, em data que não pode precisar, mas que rondara o dia 14, tiveram início as obras de substituição do telhado no imóvel que é objecto do contrato de arrendamento já junto aos autos com a P.I.,
10º Obras essas a cargo da A. e a seu mando, tendo contratado um empreiteiro para o efeito, uma vez que chovia dentro do imóvel, que tinha como consequência a existência de humidade e bolor.
11º Assim, o telhado foi retirado,
12º Tendo a casa da R. ficado a descoberto por vários dias, devido a inexistência de placa.
13º Mas eis que o tempo se alterou e começou a chover e o trabalhador CC colocou um plástico,
14º Mas de pouco adiantou, pois, a água que se acumulou no plástico acabou por cair para dentro do imóvel, tendo causado danos na casa que tinha sido remodelada e em vários objectos.
15º Tendo o estuque começado a cair, devido a água, provocando danos vários, a que somou a falta de cuidado dos trabalhadores que estavam a fazer o serviço.
16º Tendo chegado ao ponto de o trabalhador CC, enquanto andava em cima dos barrotes de madeira, ter-se desequilibrado e caído, tendo aberto um buraco no tecto da casa de banho, conforme Doc. nº 1, quem aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
17º Por várias vezes a R. falou com a A. para esta resolver o problema do telhado e que contratasse alguém para terminar o trabalho,
18º E finalmente la apareceu o Sr. DD para terminar o trabalho de colocar o telhado.
19º No entanto os danos estavam à vista, e a R. viu-se com um prejuízo avultado, num valor aproximado de €1.800,00,
20º A R. falou com a A. para resolverem a situação, e esta última ainda lhe exigiu €1.500,00 para ajudar no pagamento do telhado,
21º O que a R. se recusou a pagar, pois já tinha gasto um valor muito elevado para colocar o imóvel com condições de habitabilidade e afinal o imóvel nem era seu,
22º E avisou a A. que suspenderia o pagamento das rendas, caso não chegassem a um entendimento quanto aos danos sofridos durante a “saga” que foi a substituição do telhado,
23º O que efectivamente não veio a acontecer,
24º Sendo a última renda que pagou a de Janeiro de 2022, conforme recibo que agora se junta como Doc. nº 2 e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, pelo que se impugna o artigo 4º da P.I. quanto a falta de pagamento do mês de Janeiro de 2022,
25º Assim como se impugna o artigo 5º da P.I pois o valor em divida à data da prepositura da acção é de 2.280,00.
26º A Ré, para todos os legais efeitos, invoca a excepção do não cumprimento,prevista no artigo 428º do C.C.
27º Motivo bastante para se recusar a pagar a renda, enquanto não for ressarcida dos danos sofridos provocados pela obra de substituição do telhado.
28º Estão, portanto, prejudicadas todas as rendas que se vencerem;
Agora, 29º Percebe a Ré, qual o intuito da Autora em não querer a manutenção do contrato de arrendamento,
30º Uma vez que lhe será possível, após a saída da R. proceder ao arrendamento do imóvel agora pelo dobro da renda,
31º Uma vez que nada gastou com a obras que deram ao imóvel as condições de habitabilidade necessárias para lhe ser possível arrendar o imóvel,
32º Ou seja, há um enriquecimento sem causa por parte da A., que lucrou €3.000,00 em obras, que lhe colocaram o imóvel com as condições de habitabilidade para ser habitado e arrendado,
33º E que fazem parte do imóvel, pois a R. não as pode levar consigo se sair do imóvel em consequência da presente acção de despejo,
34º E que lhe permitiu receber mensalmente o valor da renda, €285,00,
35º E que lhe ira permitir arrendar o imóvel por um valor superior,
36º E interpõe a presente acção para forçar a Ré a deixar o local arrendado,
37º Deixando a R. mais pobre, sem o valor das obras realizadas e que ficam com o imóvel e com os prejuízos causados no imóvel com as obras de substituição do telhado e sem casa.
Reconvindo 38º Por brevidade dá-se por reproduzido tudo quanto supra se alegou; 39º Fruto do contrato de arrendamento celebrado entre a A. e a R., criou esta última a legítima expectativa de manter de forma estável e permanente a sua habitação no imóvel arrendado, pelo menos durante os 5 anos de duração do contrato, Sendo certo que,
40º Que no espírito do contrato firmado, a R. investiu o pouco dinheiro que tinha na realização das obras e também o seu tempo,
41º E a saída do imóvel, sem a Ré contar, lhe acarretará um elevado prejuízo, pois, terá que procurar uma nova casa, por um valor superior, face ao valor das rendas actualmente em vigor, numa altura em que gastou todas as suas poupanças na realização das obras no imóvel da A.
42º E ainda os prejuízos sofridos, pelas obras do telhado, nomeadamente:
a) Pedra do móvel da casa de banho partida; b) Autoclismo em loiça partido; c) Os candeeiros da cozinha, sala, casa de banho e quartos partidos; d) Computador com o ecrã partido; e) Móvel da sala riscado; f) Jarrão e boneca de porcelana partidos; g) Televisor avariado.
43º As expectativas da Ré são legítimas e passíveis da protecção da lei, pois, os danos causados pelas obras são passiveis de reparação, devendo a A. ser condenada a pagar o valor de €1.800,00 (mil e oitocentos euros)
Nestes termos e nos melhores de direito a presente acção ser julgada totalmente improcedente por não provada e, em consequência, deve a Ré ser absolvida do pedido;
Deve o pedido reconvencional ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser a Autora Reconvinda condenada a pagar à Ré Reconvinte a quantia de €1.800,00, pelos danos patrimoniais sofridos, consequência das obras de substituição do telhado, acrescida de juros desde a data de citação/notificação até integral e efectivo pagamento, e ainda, em custas, procuradoria e demais encargos da presente acção.
A autora juntou réplica, no dia 11/1/2023 nos termos e com os seguintes fundamentos:«… 2º - A Ré foi citada no dia 16/9/22, dispondo do prazo de 30 dias para contestar, o qual, terminou no dia 17-10-22, sendo que a presente contestação deu entrada em juízo, no dia 18-10- 22, isto é, fora de prazo, pelo que, a mesma, deverá ser desentranhada e condenada de preceito, o que se requer. Artigo 567º C.P.C.
3º - À data da celebração do contrato de arrendamento o imóvel dado de arrendamento encontrava-se apto ao fim em causa, sendo que a Ré pretendeu fazer obras de melhoramento, decidindo: a) - substituir os moveis de cozinha existentes por outros a seu gosto; b) – o chão da casa estava revestido a madeira, e a Ré decidiu aplicar tijoleira no corredor, sala e quarto; c) a casa de banho estava dotada de azulejos, sendo que a Ré pretendeu colocar outros azulejos; d) a casa de banho tinha louças de cor e a Ré pretendeu substitui-los por outros de cor branca; e) a casa de banho tinha porta, sendo que a Ré decidiu substitui-la por uma porta de fole, sendo totalmente falso que a Ré tenha pintado a casa toda.
6º - De resto, relido o articulado da Ré , a mesma, não reclama qualquer valor resultante das alegadas obras que diz ter realizado, nem o disposto no artigo 6º do contrato de arrendamento o permite.
7º - A A., por sua iniciativa, decidiu colocar um telhado novo na sua casa, pois, o existente encontrava-se apandado, sendo, todavia falso que chovesse dentro do imóvel.
8º - Para o efeito, contactou a Ré dando-lhe notícia de tal facto e, sensibilizou a Ré para a necessidade de momentaneamente, por cerca de quinze dias, deixar a casa com vista à realização da referida obra.
9º - A Ré, pretendeu ficar na casa, dizendo que a habitaria com as obras do telhado em curso e que arranjaria maneira de proteger o seu recheio.
10º - Em Julho de 2021 o telhado foi concluído. 11º - Aquando da realização da obra, o empreiteiro tomou todas as medidas indispensáveis e procedeu à sua cobertura provisória, sendo falso o alegado no artigo 12º, 14º, 15, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º do articulado da Ré.
12º - É falso e fantasioso o alegado pela Ré nos artigos 29º a 37º, pois a A. não se opôs à renovação do contrato de arrendamento.
13 º - A A. impugna.por ser falso e não corresponder à verdade o alegado nos artigos 42º e 43º. 14º - Não se verificam os pressupostos para a Ré não pagar as rendas, aliás, cuja dívida reconhece e aceita.
15º - Na verdade, estamos na presença de um contrato sinalagmático, com obrigações recíprocas, consistentes, por banda da Senhoria/A., na de proporcionar o gozo da coisa; 16º - e, por banda da Inquilina/Ré a de pagar a renda.
17 º - Podendo a Ré suspender o pagamento da renda quando o gozo não for propiciado, o que no caso concreto, claramente, não sucede.
18 º - De facto a Ré não alega, em ponto algum do seu articulado, nem refere falta de gozo da coisa.
19º - Pelo contrário desde a celebração do arrendamento e até ao presente, mantém o gozo da coisa de forma constante e ininterrupta.
20º - Aliás, a Ré para legitimar a falta de pagamento de rendas que reconhece alega que: “os danos causados pelas obras são passiveis de reparação, devendo a A. ser condenada a pagar o valor de 1.800,00€”, constatando-se, pois, de forma clara e segura que a recusa no pagamento de rendas não obedece ao critério da correspectividade. Artigo 428º Código Civil.
21º - Deve, pois, a Ré face ao não pagamento devido das rendas reclamadas ser condenada no seu pagamento e decretado o despejo.
Termos em que e nos mais de Direito deve ser desentranhado o articulado da Ré, por extemporâneo e, consequentemente, ser condenada de preceito. Mais se requer que a Reconvenção deduzida seja julgada totalmente improcedente, concluindo-se como na p.i…».
No dia 6/1/2023 a autora juntou aos autos o incidente de despejo imediato, nos seguintes termos: «…1. A A. deu entrada da presente acção no dia 9-09-2022.
2. Na pendência da acção a Ré não pagou à A. as rendas que se venceram, respeitantes aos meses de Outubro, Novembro, Dezembro de 2022 e Janeiro de 2013, nem procedeu a qualquer depósito das mesmas que seja do conhecimento da A.
3. As rendas vencidas na pendência da acção que se mostram em dívida, ascendem ao montante de 1.140,00€.
Mercê do exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 14º n.ºs 3, 4 e 5 do NRAU, respeitosamente, REQUER a V. Exª se digne ordenar a notificação da Ré para proceder ao pagamento das rendas vencidas na pendência da acção sob pena de, omitido o seu pagamento, ordenar o despejo imediato da Ré, o que se requer…».
Nessa sequência foi proferido o seguinte despacho: « Notifique a ré
a) para se pronunciar, querendo, em dez dias, sobre a alegação que a contestação deu entrada após o prazo.
b) para se pronunciar, em dez dias, sobre o incidente de despejo imediato, nos termos e com os efeitos do artigo 14.º, 4, do NRAU.
* Sem prejuízo, tendo em vista evitar a realização de um julgamento, evitando a perda de tempo que daí decorre e prevenindo a possibilidade das partes não conseguirem fazer a prova das posições que assumem neste processo, notifique as partes para, no prazo máximo de dez dias, informarem se aceitariam transigir nos seguintes termos:
1) acordam na revogação do contrato de arrendamento.
2) o locado será entregue a autora no prazo de quatro meses a contar da data em que for homologado o acordo.
3) a ré prescinde de vir requerer o diferimento da desocupação do imóvel e de quaisquer valores, inclusive por benfeitorias que nele possa ter feito.
4) durante o período de 4 meses em que a ré poderá permanecer no imóvel, não terá de pagar a renda.
5) a autora desiste do pedido de pagamento das rendas vencidas.
6) as custas correm por ambas as partes, em partes iguais…»(sic).
A Ré nada veio responder ou alegar após a notificação do predito despacho.
A autora juntou o seguinte requerimento: «.., notificada do douto despacho (Refª
444679222) vem dizer o seguinte: Sem embargo de se manter o requerido pela A. sobre o incidente de despejo imediato e consequente despacho, a A. aceita da proposta apresentada os pontos 1), 2), 3), 4) e 6).
No que concerne ao ponto 5), a A. reduz as rendas em débito ao montante de 3.000,00€, aceitando a sua liquidação em seis prestações mensais, iguais e sucessivas de 500,00€ cada uma.»(sic).
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Seguidamente, no dia 2 de Março foi proferido o despacho recorrido, nos seguintes termos:
«Não tendo a ré respondido à sugestão de acordo do tribunal, vai a instância prosseguir. *
Na pendência da ação de despejo a autora AA veio requerer o incidente de despejo imediato contra a ré BB alegando que esta não pagou as rendas que se venceram após a entrada da ação, relativas aos meses de outubro de 2022 a janeiro de 2023.
Notificada nos termos e para os efeitos do artigo 14.º, 4, do NRAU, a ré não se pronunciou. Vejamos o que é alegado e pode ser dado por assente face aos documentos juntos e às posições das partes.
1) No dia 26 de Março de 2018, por contrato escrito, a autora deu de arrendamento à ré o prédio inscrito na matriz sob o artigo ...38 sito na Rua ..., ..., em ..., conforme termos do documento 1 junto com a petição inicial
2) O contrato de arrendamento foi celebrado para habitação, pelo prazo de cinco anos, com início no dia 01/09/2019, mediante o pagamento mensal de 285€, a pagar pela ré por transferência bancária, vencendo-se mensalmente, até ao dia 1 do mês anterior a que respeitar.
3) a ré não pagou, pelo menos, as rendas de fevereiro a setembro de 2022. 4) a ré foi citada a 16/09/2022.
5) na contestação a ré invoca que não paga as rendas por ter um crédito sobre a autora no valor de 3.000€ por danos que obras realizadas no locado provocaram em bens seus.
6) a ré não pagou à autora as rendas que se venceram, respeitantes aos meses de outubro de 2022 a janeiro de 2023.
Isto posto
As partes estão ligadas por um contrato de locação. A locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa mediante retribuição, aludindo-se a arrendamento quando a locação incida sobre coisa imóvel (artigos 1022.º e 1023.º, 1.ª parte, ambos do Código Civil - CC).
São, assim, elementos constitutivos deste contrato a obrigação de proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa, mediante retribuição e o carácter temporário.
Ora, veio a autora pedir a resolução judicial do contrato de arrendamento celebrado com a ré com fundamento na falta de pagamento das rendas. De facto, a retribuição do contrato de arrendamento urbano denomina-se renda, ou seja, a contrapartida da concessão do gozo temporário do prédio (artigo 1075.º, 1 do CC), sendo esta uma das obrigações do arrendatário (artigo 1038.º, a), do CC).
O artigo 1038.º do CC, indica os deveres principais ou secundários de prestação e os deveres acessórios de conduta a cargo de arrendatário, cuja violação pode acarretar, a requerimento do senhorio, a extinção do arrendamento.
No que releva para o presente caso, resulta do n.º 3 do artigo 1083.º do CC, que é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo seguinte.
Não pagando a ré as rendas, a autora intentou a presente ação de despejo, lançando agora mão do incidente de despejo imediato.
Este incidente está atualmente regulado no artigo 14.º, 3 a 5, do NRAU, constante da Lei nº 6/2006 de 27 de fevereiro, que preceituam o seguinte:
“3) Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas nos termos gerais.
4) Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.
5) Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no nº7 do art. 15º e nos artigos15º-J, 15ºK e 15ºM a 15ºO.”
Conforme se viu, a ré não pagou as rendas vencidas após a entrada em juízo da petição inicial, sequer aquelas que se venceram após ter sido apresentada a contestação, e notificada para se pronunciar nada disse, muito menos alegou ter pago as rendas em dívida com a indemnização.
O que a ré fez foi ter invocado na contestação que não paga as rendas por ter um crédito sobre a autora no valor de 3.000€ por danos que obras realizadas no locado provocaram em bens seus, invocando assim a exceção do não cumprimento do contrato.
A exceção de não cumprimento encontra-se prevista no artigo 428.º, do CC, que estabelece que se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
Conforme se expõe no acórdão da Relação de Guimarães de 03/0372016 (processo n.º 328/14.2T8VCT.G1, consultado em www.dgsi.pt), “o credor, em vez de optar por instar o devedor a cumprir, opta por uma outra atitude mais passiva, recusando-se apenas a cumprir a sua própria prestação se e enquanto o devedor não cumprir a sua ou não lhe oferecer esse cumprimento em simultâneo.
Esta recusa do credor justifica-se precisamente porque a sua própria prestação é o correlativo da contraprestação do devedor, porque as respetivas obrigações estão ligadas entre si por um nexo de causalidade – uma é o motivo determinante da outra – ou de correspetividade – uma é a contrapartida da outra. Logo, se o devedor não cumpre, não quer cumprir ou não pode cumprir, ainda que não imputavelmente, o credor pode suspender unilateralmente o cumprimento da sua obrigação, dada a ausência de contrapartida e reciprocidade que liga causalmente a prestação debitória e a prestação creditória.”
É então com base neste quadro que a ré se tem recusado a pagar a renda, mas, salvo sempre melhor opinião, sem razão.
Na verdade, a ré enquanto arrendatária não pode deixar de cumprir a obrigação de pagamento das rendas com fundamento no facto de poder ter um crédito sobre a autora, sua senhoria, porque a obrigação de pagar a renda é uma obrigação principal do contrato de arrendamento (artigo 1038.º, a) do CC) que não é correspetiva desta outra invocada obrigação da senhoria de indemnização, que assente numa relação jurídica completamente diferente.
O que a ré faz é invocar a compensação de créditos, simplesmente o crédito que alega não está ainda certo e determinado, tanto assim que na réplica a autora o impugna.
Aliás, a propósito da invocação a compensação para obstar ao incidente de despejo imediato, debruçou-se o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 24/11/2020 (processo n.º 2452/20.3T8LSB-B.L1-7, consultado em www.dgsi.pt), ali se entendendo que na vigência do contrato de arrendamento, a extinção da obrigação de pagar a renda mediante a compensação do inerente crédito do senhorio com crédito invocado pelo inquilino tem natureza excecional, e só é admissível nos casos expressamente previstos na lei, não obstando à procedência de incidente de despejo imediato.
Cabe ainda fazer mais uma pequena referencia para deixar nota que pela forma como a ré contesta a ação fica-se com alguma dúvida sobre se não e pode ainda entender que invoca a exceção de não cumprimento do contrato por ter feito obras no locado, se bem que, ainda que assim se venha a considerar, também neste ponto essa possibilidade não é coroada de êxito.
A natureza sinalagmática do contrato de arrendamento verifica-se entre a obrigação do senhorio de proporcionar ao arrendatário o gozo do imóvel e a obrigação do arrendatário de pagar a renda acordada, mas já não se verifica entre o pagamento de rendas e a mera realização de obras de conservação do locado a cargo do senhorio, sendo esta uma obrigação de natureza complementar que se mostra submetida a um condicionalismo que varia em função do teor do contrato, da sua natureza ou de outras circunstâncias que emergem de normas dispersas, designadamente do artigo 1036.º, do CC (cfr., acórdão da Relação de Guimarães de 21/1072021, processo n.º 8357/17.8T8VNF-A.G1).
Desta forma, o incidente de despejo imediato procede. Em face do exposto,
a) declaro resolvido o contrato de arrendamento celebrado pela autora AA com a ré BB relativo ao prédio inscrito na matriz sob o artigo ...38 sito na Rua ..., ..., em ..., Vila Nova de Gaia,
b) condeno a ré BB a entregar à autora o locado referido em a) livre de pessoas e bens.
Notifique, devendo o despejo ser efetuado por oficial de justiça nos termos do artigo 15.º-J, do NRAU, salvo se os autores ainda vierem indicar agente de execução, cumprindo-se o demais formalismo legal previsto no artigo 14.º, 5, do NRAU.»(sic).

No dia 23 de Março a ré junta o seguinte requerimento:«..BB, Ré nos autos acima identificados vem requerer a suspensão do despejo, o que faz com base no artigo 6 da L. 1-A/2020 de 19 de Março.
E mais informa que não tem alternativa habitacional, uma vez que se encontra desempregada, com uma menor a cargo, e apenas tem de rendimento o valor do rendimento social de inserção. Pede e espera deferimento,.»
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Assim, compulsados os autos principais, cronologicamente, resulta o seguinte:
- A ré foi citada a 16-9-2022 e juntou contestação a 18-10-2022.
- A contestação da ré foi notificada á autora no dia 6/1/2023.
- No dia 6/1/2023 a autora juntou requerimento no qual deduziu o incidente de despejo imediato.
- A autora juntou dia 11/1/2023 a réplica.
- No dia 30/1/2023 é dado o despacho que determina a notificação para a ré contestar o incidente de despejo imediato.
- A ré não respondeu ao incidente de despejo imediato.
- No dia 2 de Março foi proferida a decisão recorrida.
- No dia 23 de Março a Ré junta o requerimento acima referido, não constando, nos autos, nenhum despacho ou decisão sobre o seu teor. Igualmente nesse mesmo dia a ré veio recorrer da decisão.
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Inconformada com a decisão que decretou o despejo imediato, veio a ré interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito suspensivo (artigo 644.º, 1, a),645.º, 2, e15.º-Q, do NRAU).
A ré com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes conclusões:«… CONCLUSÕES:
1.A Apelante entende desde logo que o despejo imediato decretado pelo Tribunal a quo se encontra suspenso, nos termos do artigo 6 da L. 1-A/2020 de 19 de Março, uma vez que tal despejo a coloca numa situação de fragilidade, uma vez que não tem rendimentos, a não ser o rendimento de social de inserção e tem uma menor a seu cargo.

2.O princípio do contraditório constitui pedra angular do processo civil, visando permitir que nenhuma decisão seja tomada sem que a parte/entidade por ela afectada possa pronunciar-se sobre a mesma.

3.O princípio do contraditório, ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, proíbe a prolação de decisões surpresa, mesmo que de conhecimento oficioso, e garante a participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
4.Assim a Apelante não apresentou as suas testemunhas e os seus documentos, que iriam produzir prova dos factos alegados na sua contestação e o Tribunal a quo não verificou elementos indispensáveis à apreciação do objecto do litigio, o que determina a nulidade da sentença, nos termos do artigo 636/3 C.P.C..
5.A prova documental, pode ser junta até ao 20º dia anterior à data em que se realize a audiência final (artigo 423/2 C.P.C.), e ainda poderia faze-lo até ao encerramento da discussão em primeira instância e o Rol de testemunhas pode ser aditado até 20 dias antes da realização da audiência de discussão e julgamento, pelo que ainda o poderia fazer se não fosse a decisão surpresa.
6.Estes dois meios de prova, iriam demonstrar que ao invocar a excepção do não cumprimento, pelos danos sofridos com a realização das obras de substituição do telhado, que se foram agravando com o tempo e iriam também demonstrar o estado em que o imóvel ficou impedem o gozo pleno do mesmo.
7.A Apelante não teve a oportunidade de juntar os seus meios de prova, e produzir prova que pudessem alterar a decisão do Tribunal a quo.
Termos em que, nos melhores de direito e com o muito douto suprimento de V. Exas., deve a decisão de primeira instância ser revogada e, em consequência, o processo seguir os seus tramites, assim se espera por ser de JUSTIÇA.»(sic).
*

A autora juntou contra-alegações, tendo pugnado em resumo pela improcedência do recurso.
*
Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre decidir.
***

II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objecto do recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo á estrutura das conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, resulta que em resumo o recorrente indica os seguintes pontos a analisar:

A- Suspensão do despejo imediato decretado pelo Tribunal recorrido, nos termos do artigo 6 da L.1-A/2020 de 19 de Março

B- Nulidade da decisão (violação Princípio do contraditório)

C- Aferir da verificação dos requisitos de que depende a procedência do incidente de despejo imediato.
***

III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A factualidade a ter em conta a que conta do relatório supra, que aqui se dá por reproduzida e integrada.
Os factos a considerar são os mencionados no relatório que antecede e os constantes na decisão recorrida, sem prejuízo de se dever considerar que a decisão recorrida padece de um manifesto lapso de escrita rectifícavel porque decorre do próprio contexto da declaração.
Assim, na parte em que a sentença recorrida refere que na contestação a ré invoca que não paga as rendas por ter um crédito sobre a autora no valor de 3.000€ por danos que obras realizadas no locado provocaram em bens seus, é manifesto que o valor não é de 3.000 Euros, mas sim é o valor do pedido reconvencional que é de 1800,00 Euros.
A autora alega que teria despendido o valor de €3.000,00 entre materiais, e mão de obra, para realizar obras no locado, mas não formulou nenhum pedido da condenação da parte contrária no pagamento desse valor, sendo que peticionou a condenação no pagamento do valor de 1800,00 Euros a titulo de prejuízos decorrentes de obras realizadas.
Portanto, a matéria a ter em conta decorrente da sentença recorrida é a seguinte:
1) No dia 26 de Março de 2018, por contrato escrito, a autora deu de arrendamento à ré o prédio inscrito na matriz sob o artigo ...38 sito na Rua ..., ..., em ..., conforme termos do documento 1 junto com a petição inicial
2) O contrato de arrendamento foi celebrado para habitação, pelo prazo de cinco anos, com início no dia 01/09/2019, mediante o pagamento mensal de 285€, a pagar pela ré por transferência bancária, vencendo-se mensalmente, até ao dia 1 do mês anterior a que respeitar.
3) a ré não pagou, pelo menos, as rendas de fevereiro a setembro de 2022.
4) a ré foi citada a 16/09/2022.
5) na contestação a ré invoca que não paga as rendas por ter um crédito sobre a autora no valor de 1.800€ por danos que obras realizadas no locado provocaram em bens seus.
6) a ré não pagou à autora as rendas que se venceram, respeitantes aos meses de outubro de 2022 a janeiro de 2023.
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IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO
A-
A recorrente nas suas alegações refere que considera que o despejo imediato decretado pelo Tribunal a quo se encontra suspenso, nos termos do artigo 6 da L.1-A/2020 de 19 de Março, uma vez que tal despejo a coloca numa situação de fragilidade, uma vez que não tem rendimentos, a não ser o rendimento de social de inserção e tem uma menor a seu cargo.
Alega que o art.º 65.º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito à habitação, o qual faz parte dos direitos sociais e que o direito à habitação está igualmente consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e na Carta Social Europeia, estando Portugal vinculado a ambas.
Assim, invoca que ao ser decretado o despejo imediato a Apelante fica numa situação frágil em termos de habitação.
Esta é uma questão ou pedido que nunca foi abordada na 1ª instância, sendo que de resto para além de invocar este pedido de suspensão do despejo em sede de alegações de recurso, a recorrente juntou requerimento nos autos devendo ser apreciado pelo tribunal recorrido.
Assim, tendo sido tal questão suscitada apenas em sede de recurso, estamos perante uma questão nova, não podendo o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas no tribunal recorrido porque os recursos visam o reexame da decisão proferida nos mesmos pressupostos do tribunal recorrido e não visam obter decisões novas.
As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas (Abrantes Geraldes (in Os Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., pág. 98).

Pelo exposto, cumpre referir que o peticionado quanto a se determinar a suspensão do despejo, se trata de uma questão nova, apenas suscitada no contexto no recurso (sem prejuízo de em requerimento autónomo a recorrente ter requerido essa suspensão a qual deverá ser apreciada e decidida no tribunal recorrido), e nessa medida não poderá ser apreciada por este tribunal de recurso.
Deste modo, não pode o este tribunal agora conhecer desta matéria ou deste pedido.
*
B-
Por outro lado, entende também a Apelante que existe uma violação flagrante do princípio do contraditório, uma vez que não foi permitido a Apelante produzir prova quanto as questões determinantes para a decisão a proferir.
Refere que o princípio do contraditório, ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, proíbe a prolação de decisões surpresa, mesmo que de conhecimento oficioso, e garante a participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
Assim, a Apelante não apresentou as suas testemunhas e os seus documentos, que iriam produzir prova dos factos alegados na sua contestação.
Conclui que, o Tribunal a quo deixou de verificar elementos indispensáveis à apreciação do objecto do litigio, o que determina a nulidade da sentença, nos termos do artigo 636/3 C.P.C.

O artigo 3º do CPcivil estabelece o princípio do contraditório que determina que o tribunal tem de atender á parte contraria e não pode decidir questões de direito ou de facto sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
O princípio do contraditório é um princípio fundamental de qualquer regime processual, o qual visa acautelar ou garantir a participação efectiva de ambas as partes na evolução da instância, permitindo influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais da causa.
Nos termos deste preceito o juiz pode decidir uma questão com base numa norma não invocada pelas partes, mas não sem antes dar a possibilidade de as mesmas se pronunciarem sobre esse enquadramento jurídico.
Conforme refere Paulo Faria e Ana Luísa Loureiro (in Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, pág. 27) o respeito pelo princípio do contraditório é o pressuposto de um processo equitativo estabelecido no artigo 20 da C.R. Portuguesa.
Compulsados os autos verifica-se no enanto que não existe nenhuma nulidade, nem omissão do princípio do contraditório, porque quando foi suscitado pela autora o incidente de despejo imediato, o tribunal recorrido, determinou a notificação da ré para exercer o contraditório.
Consta dos autos que na sequência da dedução do pedido de despejo imediato que o tribunal recorrido, respeitando o principio do contraditório proferiu o seguinte despacho (que se transcreve parcialmente): «« Notifique a ré
a) para se pronunciar, querendo, em dez dias, sobre a alegação que a contestação deu entrada após o prazo.
b) para se pronunciar, em dez dias, sobre o incidente de despejo imediato, nos termos e com os efeitos do artigo 14.º, 4, do NRAU…»(sic).
Assim, é manifesto que o tribunal a quo antes de proferir a decisão recorrida que determinou o despejo imediato, notificou de forma expressa a ré para exercer o contraditório para os termos do incidente do despejo imediato.
Nos autos a ré foi expressamente notificada para os termos do artigo 14 nº4 do NRAU e nada veio alegar ou suscitar dentro do prazo de dez dias quanto ao incidente de despejo imediato.
Portanto, a decisão recorrida não padece de nenhuma nulidade por violação do princípio do contraditório, porque o tribunal determinou de forma expressa a notificação da ré para deduzir oposição ao incidente de despejo imediato.
A ré no contexto do princípio do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes, apesar de notificada para deduzir oposição ao incidente de despejo imediato, optou por nada vir alegar quanto ao incidente de despejo imediato e a não deduzir oposição a este incidente.
A questão da alegada não produção dos meios de prova constantes da contestação ou os a deduzir ulteriormente não contendem com a decisão deste incidente, mas sim com a decisão final.
Pelo exposto, tendo a ré sido expressamente notificada para deduzir o contraditório e oposição ao incidente de despejo imediato., é manifesto que a decisão recorrida não padece de nenhuma nulidade por alegada violação do princípio do contraditório.
Neste sentido, vide o Ac da RP Processo: 2225/21.6T8MTS-A.P1
Relator: ISOLETA DE ALMEIDA COSTA, 04-05-2022, disponível na base de dados da DGSI, Sumário: I - O princípio da autorresponsabilidade das partes está intimamente relacionado com os ónus e cominações. Implica que as partes têm uma responsabilidade para consigo mesmas que lhes impõe a necessidade de agirem de determinada forma para atingirem um resultado, quer de não produção duma desvantagem, quer de produção de uma utilidade ou de uma vantagem para o titular.
II - A inobservância da conduta devida dá lugar a preclusões.
III - No incidente de despejo imediato, por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação, não tendo sido deduzida oposição, é aplicada a cominação consagrada no artigo 574º, nº 2, ex vi artigo 293º, nº 3, ambos do CPC, do que decorre que os factos do requerimento incidental estão admitidos por acordo.
IV - Os RR que não deduziram oposição, nem arrolaram prova ao incidente de despejo imediato, não podem vir invocar a negação do “direito à prova”, uma vez que a inobservância do ónus de impugnar e de propor provas precludiu esse direito que não exerceram tempestivamente.»
Pelo exposto, julga-se improcedente este segmento do recurso considerando-se que não existe nenhuma nulidade na decisão recorrida porque não foi violado o princípio do contraditório.
*
C-
Nesta fase cumpre analisar o mérito da decisão recorrida, na vertente da fundamentação de direito, analisando em resumo se devia o incidente de despejo imediato deveria ser julgado improcedente conforme pugna a recorrente.
Sem prejuízo da questão do princípio do contraditório, a recorrente invoca que a prova documental, pode ser junta até ao 20º dia anterior à data em que se realize a audiência final (artigo 423/2 C.P.C.), e ainda poderia faze-lo até ao encerramento da discussão em primeira instância. E que E a Rol de testemunhas pode ser aditado até 20 dias antes da realização da audiência de discussão e julgamento.
E que a Apelante apenas teve conhecimento da existência de documentos, comprovativos do estado do imóvel após a realização da substituição do telhado, dias antes notificação da sentença surpresa, e não os pode juntar.
Alega que estes dois meios de prova, iriam demonstrar que ao invocar a excepção do não cumprimento, pelos danos sofridos com a realização das obras de substituição do telhado, que se foram agravando com o tempo e iriam também demonstrar o estado em que o imóvel ficou impedem o gozo pleno do mesmo.
Mais refere que se a apelante tem a obrigação de pagar as rendas, nos termos do artigo 1038/a do C.C., também a Apelada tem a obrigação de proporcionar o gozo do imóvel, gozo esse que ficou limitado com as consequências que as tais obras de substituição do telhado provocaram.
Conclui que a Apelante nem sequer teve a oportunidade de produzir prova sobre os factos que alega na contestação e que a decisão recorrida deve ser revogada e o processo deve prosseguir os seus termos.
Cumpre decidir.

A decisão apelada foi proferida no âmbito de incidente de despejo imediato (e não em sede de decisão da acção principal).
Assim, a invocada questão relativa á ré não ter tido oportunidade de produzir prova sobre os factos que invocou na contestação, em nada contende com a decisão deste incidente.
O incidente de despejo imediato com fundamento em rendas vencidas na pendência da acção, reveste a forma duma acção autónoma, em que o réu tem de deduzir toda a sua defesa no articulado respectivo.
Portanto, os meios de prova deduzidos na contestação em nada condicionam a decisão deste incidente é independente da acção principal, devendo a ré ao ser notificada para deduzir oposição ao incidente juntar a sua defesa e meios de prova.
No caso a ré foi notificada para deduzir oposição ao incidente de despejo imediato e nada veio alegar nem juntou nenhum meio de prova e nessa medida, o tribunal não tinha, no contexto deste incidente, de produzir os meios de prova constantes na contestação.
Por outro lado, verifica-se que apenas nas alegações de recurso veio a ré invocar o seguinte: «… Alega que estes dois meios de prova, iriam demonstrar que ao invocar a excepção do não cumprimento, pelos danos sofridos com a realização das obras de substituição do telhado, que se foram agravando com o tempo e iriam também demonstrar o estado em que o imóvel ficou impedem o gozo pleno do mesmo.».
Neste ponto, quanto á invocação de que a realização das obras de substituição do telhado teriam impedido o gozo pleno do mesmo, verifica-se que se trata de matéria nova, que não foi suscitada nem na contestação, nem na eventual oposição ao incidente, e nessa medida, atento o principio da preclusão, não poderá a ré suscitar a questão da privação do uso do locado.
Como é sabido a defesa na presente acção deve ser apresentada na contestação ou resposta ao incidente de despejo imediato e nessa medida não tendo a ré alegado a referida factualidade atinente á impossibilidade de uso do locado, nesse momento processual está precludido, nesta acção, vir suscitar outros meios de defesa.

O despejo imediato previsto no n.º 5, do artigo 14.º, da Lei n.º 6/2006, é um mecanismo antigo, já previsto no Decreto n.º 22:661, de 13 de Junho de 1933, que passou depois para o primitivo artigo 979.º do Código de Processo Civil de 1939 [1], e, mais tarde, para artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, revogado pela Lei n.º 6/2006.
Assim, estabelece-se para as acções de despejo, um incidente de despejo imediato, com fundamento na falta de pagamento de rendas, vencidas na pendência da acção.
Este incidente corre nos próprios autos e tem início com o requerimento do locador para que o locatário seja notificado nos termos e para os efeitos do artigo 14º, nºs 4 e 5, do NRAU.
O mesmo visa evitar situações em que o arrendatário, demandado em juízo pelo senhorio, poderia continuar a gozar da coisa arrendada sem pagar a renda estipulada na pendencia da acção.
O incidente previsto no n.º5 do artigo 14.º do NRAU, constitui expediente processual facultativo ao alcance do senhorio por forma a obter o despejo do local por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção.
O incidente de despejo imediato não é de cariz automático, e por isso importa a ponderação das circunstâncias do caso concreto.
Estabelece o artigo 14.º, 3 a 5, do NRAU, o seguinte:
“3) Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas nos termos gerais.
4) Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.
5) Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 7 do art. 15º e nos artigos15º-J, 15ºK e 15ºM a 15ºO.”
Decorre deste normativo que o legislador manteve a obrigação de pagamento ou depósito das rendas que se vençam na pendência de ação de despejo (Art. 14.º n.º 3 do NRAU) e determinou que, em caso de incumprimento dessa obrigação, o arrendatário deve ser notificado para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento ou depósito das rendas vencidas por um período igual ou superior a três meses, e ainda da indemnização devida (Art. 14.º n.º 4 do NRAU), sob pena de o senhorio ficar habilitado a pedir certidão relativa a esses factos, a qual constituía título executivo para efeitos de despejo do local arrendado, na forma de processo executivo comum para entrega de coisa certa (Art. 14.º n.º 5 do NRAU).
Entretanto, a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, alterou o Art. 14.º do NRAU, para reduzir a 2 meses o período a que se reporta o incumprimento da obrigação de pagamento da renda (Art. 14.º n.º 4) e determinou que o exercício desse direito pelo senhorio passasse a seguir os termos do “Processo Especial de Despejo” (Art. 14.º n.º 5 e Art. 15.º n.º 1).
O art.º 14º do NRAU faculta ao senhorio a possibilidade de obter o despejo imediato por falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da ação por período igual ou superior a dois meses.
O arrendatário para evitar o despejo imediato incumbe provar o pagamento ou depósito de rendas vencidas na pendência da acção ou alegar e provar que as rendas não são exigíveis, pelo que não tem que as pagar ou depositar.
Por outras palavras, o arrendatário, na sua oposição ao incidente para evitar o desejo imediato, pode alegar e provar que não há rendas vencidas na pendência da ação de despejo, que pagou as rendas ou que fez o respetivo depósito, acrescido da indemnização, mas por outro lado, pode invocar outros meios de defesa, nomeadamente alegar e provar que as rendas não são exigíveis, pelo que não tem que as pagar ou depositar.
Quanto aos meios de defesa invocáveis, no âmbito da vigência do R.A.U. o Tribunal Constitucional (ac. nº 673/2005, publicado no Diário da República n.º 25/2006, Série II, de 2006-02-03) julgou “inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida”.
E nesta senda, o Tribunal Constitucional (Ac. nº 327/2018, publicado no DR Série II de 2018-09-24) “interpreta o artigo 14.º, n.º 4, da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, o réu não deve ser impedido de exercer o contraditório mediante a utilização dos correspondentes meios de defesa”.
Neste sentido vide o Ac da RP 1344/20.0T8VRL-A.P1, Relator: ANA LUCINDA CABRAL, 11-05-2021 Sumário: I - Na actual redacção do nº 5, do artigo 14º, do NRAU, a falta de prova do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da acção não implica a procedência automática do incidente de despejo imediato.
II - Neste incidente, o inquilino pode opor outros meios de defesa para além da prova do pagamento ou depósito das rendas pretensamente em falta.».
Temos assim como requisitos de procedência do incidente:
1) não pagamento ou depósito das rendas na sequência da notificação a que alude o artigo 14.º, n.º 4, da Lei 6/2006.
2) pendência de acção de despejo.
3) não pagamento de rendas vencidas na pendência da acção.
4) inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção principal, quanto à existência e validade do arrendamento.
5) inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção principal, quanto à obrigação de pagamento das rendas e à mora do devedor.
No caso a ré foi notificada para deduzir oposição ao incidente de despejo imediato e nada veio alegar nos autos e nessa medida resulta demonstrado a falta de pagamento das rendas na pendência da acção.
Mesmo se se considerar o teor da contestação em sede de oposição ao incidente, resulta que a ré suscitou em sua defesa a excepção do não cumprimento do contrato tendo invocado que teve prejuízos devido a obras realizadas no telhado do locado, nos seguintes ternos: «…9º Em Junho de 2021, em data que não pode precisar, mas que rondara o dia 14, tiveram início as obras de substituição do telhado no imóvel que é objecto do contrato de arrendamento já junto aos autos com a P.I.,
10º Obras essas a cargo da A. e a seu mando, tendo contratado um empreiteiro para o efeito, uma vez que chovia dentro do imóvel, que tinha como consequência a existência de humidade e bolor.
11º Assim, o telhado foi retirado,
12º Tendo a casa da R. ficado a descoberto por vários dias, devido a inexistência de placa.
13º Mas eis que o tempo se alterou e começou a chover e o trabalhador CC colocou um plástico,
14º Mas de pouco adiantou, pois, a água que se acumulou no plástico acabou por cair para dentro do imóvel, tendo causado danos na casa que tinha sido remodelada e em vários objectos.
15º Tendo o estuque começado a cair, devido a água, provocando danos vários, a que somou a falta de cuidado dos trabalhadores que estavam a fazer o serviço.
16º Tendo chegado ao ponto de o trabalhador CC, enquanto andava em cima dos barrotes de madeira, ter-se desequilibrado e caído, tendo aberto um buraco no tecto da casa de banho, conforme Doc. nº 1, quem aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
17º Por várias vezes a R. falou com a A. para esta resolver o problema do telhado e que contratasse alguém para terminar o trabalho,
18º E finalmente la apareceu o Sr. DD para terminar o trabalho de colocar o telhado.
19º No entanto os danos estavam à vista, e a R. viu-se com um prejuízo avultado, num valor aproximado de €1.800,00,
20º A R. falou com a A. para resolverem a situação, e esta última ainda lhe exigiu €1.500,00 para ajudar no pagamento do telhado,
21º O que a R. se recusou a pagar, pois já tinha gasto um valor muito elevado para colocar o imóvel com condições de habitabilidade e afinal o imóvel nem era seu,
22º E avisou a A. que suspenderia o pagamento das rendas, caso não chegassem a um entendimento quanto aos danos sofridos durante a “saga” que foi a substituição do telhado,
23º O que efectivamente não veio a acontecer,
24º Sendo a última renda que pagou a de Janeiro de 2022, conforme recibo que agora se junta como Doc. nº 2 e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, pelo que se impugna o artigo 4º da P.I. quanto a falta de pagamento do mês de Janeiro de 2022,
26º A Ré, para todos os legais efeitos, invoca a excepção do não cumprimento,prevista no artigo 428º do C.C.
27º Motivo bastante para se recusar a pagar a renda, enquanto não for ressarcida dos danos sofridos provocados pela obra de substituição do telhado.
28º Estão, portanto, prejudicadas todas as rendas que se vencerem;..»(siC).
Na contestação a excepção de não cumprimento foi invocada pela ré devido a entender que não deve pagar renda até que a autora a indemnize dos prejuízos resultantes da obra de substituição do telhado no valor de 1.800,00 euros.
Apenas em sede de alegações de recurso veio a ré invocar a questão de as obras no telhado a terem privado do uso do locado, o que já acima se referiu, não poderá ser considerado dado que tal fundamento não foi invocado na contestação da ré.
A ré não invoca que entende dever não pagar renda devido ás obras no telhado terem impedido o gozo do locado ou a sua habitabilidade, sendo que objectivamente alega que pretende ser indemnizada dos prejuízos causados alegadamente pela predita obra no telhado.
Por outro lado, a ré não invoca que o locado não tenha actualmente falta de condições de habitabilidade, sendo que refere ter feito obras que permitiram que o locado fosse habitável.
A excepção do não cumprimento do contrato, tal como estabelecida no art. 428.º do C.C. só legitima o incumprimento do devedor relativamente a prestações principais recíprocas, ligadas entre si por um vínculo sinalagmático.
O inquilino não pode deixar de cumprir a obrigação de pagamento das rendas com fundamento no facto do senhorio não cumprir a obrigação de fazer obras no locado, ou porque não o indemniza devido a obras que fez no locado e teriam causado prejuízos ao inquilino, porque a obrigação de pagar a renda é uma obrigação principal do contrato de arrendamento (art.ºs 1022.º e 1038.º al. a) do C.C.) que não é correspetiva daquela outra obrigação, meramente acessória, a cargo do senhorio (art. 1074.º do C.C.).
Neste sentido e para outros desenvolvimentos, vide o Ac da RL 8176/21.7T8LSB-B.L1-8, Relator: TERESA SANDIÃES, 23-02-2023:
Sumário: - Ao arrendatário, para evitar o despejo imediato, incumbe provar o pagamento ou depósito de rendas vencidas ou alegar e provar que as rendas não são exigíveis, pelo que não tem que as pagar ou depositar. A inexigibilidade das rendas pode decorrer de diversas circunstâncias – estar em causa título de ocupação diverso do arrendamento, acordo de não pagamento de rendas, etc. - A exceção de não cumprimento invocada pela arrendatária não reside exclusivamente na falta de realização de obras pela A. – circunstância esta que isoladamente considerada configuraria obrigação sem vínculo correspetivo na obrigação de pagamento de rendas -, mas essencialmente na impossibilidade de gozo do locado pela não realização daquelas.
- A obrigação principal do arrendatário consiste no pagamento da renda (art.º 1038, al. a) do CC) e a do senhorio assegurar o gozo do locado para os fins a que se destina (art.º 1031º, al. a) do CC). Estas são as prestações que constituem o núcleo do sinalagma do contrato de arrendamento.
- O acionamento da exceptio visa a suspensão do pagamento das rendas enquanto persistir o impedimento do gozo do locado, pela falta de realização de obras. A R. opôs o não cumprimento da sua obrigação principal em relação à correspetiva falta de cumprimento da obrigação principal da A., e não em relação a mera obrigação acessória.»
O locatário só pode suspender o pagamento da totalidade da renda quando se trate de não cumprimento do locador que exclua totalmente o gozo da coisa” – Ac. RC de 22/05/2012, proc. nº 3536/10.1TJCBR-A.C1, in www.dgsi.pt
A obrigação de pagamento da renda é correspetiva da obrigação, a cargo do senhorio, de proporcionar o gozo da coisa (art. 1022.º, conjugado com os art.s 1031.º al. b) e 1038.º al. a) do C.C.), sendo que se o locatário sofrer uma privação ou diminuição do gozo da coisa, haverá lugar a uma redução da renda proporcional ao tempo da privação ou diminuição.
Mas na defesa apresentada pela ré não foi invocada a impossibilidade de uso do locado, sendo que de resto nunca invocou que tenha deixado de habitar o locado ou que as obras no telhado a hajam privado ou limitado quanto ao uso do locado, e nessa medida a ré não tem fundamento legal para recusar o pagamento da renda e permanecer no imóvel.
Por outro lado, a alegada indemnização decorrente das obras no telhado que lhe teriam causado danos, igualmente não permite recusar o pagamento da renda.
Neste sentido e para outros desenvolvimentos, vide título meramente exemplificativo a seguinte jurisprudência (disponível na base de dados da DGSI):
- o Ac da RL 273/20.2.T8AMD.B.L1-6, Relator: ANA DE AZEREDO COELHO, Data do Acórdão: 20-05-2021Sumário: I) No incidente de despejo imediato o Requerido tem disponíveis outras opções de defesa para além do pagamento ou depósito dos montantes das rendas vencidas na pendência da causa, sem o que se incorreria em situação de violação do princípio da proibição de indefesa.
II) O incidente de despejo imediato implica que a existência e validade do contrato de arrendamento e da obrigação de pagamento das rendas em causa pelo Requerido não sejam objecto de discussão na acção principal.
II) Todavia, a controvérsia que constitui obstáculo à procedência do incidente tem de ser uma controvérsia séria, susceptível de ser apreciada na acção principal.
III) A permissão de uma defesa que não coloque o requerido numa situação de indefesa vai de par com a necessidade de ponderar os termos desta defesa de modo a não colocar o senhorio, ao invés, numa situação de indefesa.
IV) Entre os valores da “proibição da indefesa” e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica existe uma relação de equivalência constitucional.
V) A mera invocação de que o Autor deixou de passar recibos, não é idónea a constituir uma controvérsia séria sobre a mora do inquilino quanto ao pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, não constituindo obstáculo à procedência do incidente.»;
- Ac da RL 2452/20.3T8LSB-B.L1-7, Relator: DIOGO RAVARA, 24-11-2020 Sumário: I- Na vigência do contrato de arrendamento, a extinção da obrigação de pagar a renda mediante a compensação do inerente crédito do senhorio com crédito invocado pelo inquilino tem natureza excepcional, e só é admissível nos casos expressamente previstos na lei.
II- Em acção de despejo, a invocação pelo réu / inquilino da compensação com fundamento na figura geral prevista no art. 847º do Código Civil e, portanto, fora dos casos expressamente previstos no regime do arrendamento não obsta à procedência de incidente de despejo imediato.
Uma tal conclusão não contende com a interpretação conforme das normas dos nºs 4 e 5 do NRAU tal como estipulado no acórdão do Tribunal Constitucional nº 327/2018, porquanto a mesma resulta apreciação, pelo Tribunal, da excepção de compensação invocada pelo réu, e não da consideração de que o único modo de obstar à procedência daquele incidente é a prova do pagamento ou depósito das rendas, acrescido de eventual indemnização pela mora.».
- Ac da RG Processo: 1683/21.3T8BRG-A.G1 ,Relator: RAQUEL REGO, 13-07-2022Sumário: I - Se é certo que, no incidente de despejo imediato, o arrendatário não está impedido de invocar qualquer meio de defesa com vista a demonstrar a inexigibilidade das rendas vencidas na pendência da acção, a existência de humidades/infiltrações no locado não dispensa o mesmo do seu pagamento, posto que a obrigação correspectiva do senhorio é a de proporcionar o gozo do locado, sendo acessória a de remover as humidades que, a existirem, poderão dar apenas lugar à redução da renda, ao abrigo do estatuído no artº 1040º do Código Civil.»;
- Ac da RP 27468/15.8T8PRT-A.P1 Relator: ANABELA DIAS DA SILVA, 14-03-2017 Sumário: I - Excepcionalmente, é legítimo, é um direito que assiste à ré, poder invocar contra o pedido de despejo imediato, outros meios de defesa para além da prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na pendência da acção, sob pena de violação do disposto no art.º 20.º da C.R.Portuguesa.
II – Esses meios de defesa terão de ser respeitantes ou estarem directamente correlacionados com a obrigação de pagamento da renda, para poderem ter a virtualidade de impedir, modificar o extinguir tal obrigação durante a pendência da acção, (v.g. a mora do senhorio, a compensação, a excepção de incumprimento).
III - Não constitui meio de defesa legítimo e eficaz em relação ao direito potestativo da autora/senhoria de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da acção, a alegação de que esta se encontra em situação de incumprimento quanto à obrigação de realização de obras de conservação e de reparação no locado.»;
- Ac da RP 4359/20.5T8MTS-A.P1 Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA,Data do Acordão: 14-12-2022
Sumário: I - O incidente de despejo imediato visa evitar o não pagamento de rendas na pendência da acção.
II - Esse incidente deve ser admitido, quando na própria tese da inquilina ocorreram factos que impediram a fruição, apenas parcial do locado.

Pelo que, falecendo os meios de defesa invocados pela Ré para fundamentar a inexigibilidade do pagamento das rendas em dívida, e verificando-se que, à data do requerimento de despejo imediato, estavam em dívida há mais de sessenta dias várias rendas vencidas na pendência da acção, é forçoso concluir pela verificação dos requisitos legais do despejo imediato.
Pelo exposto, e quanto á fundamentação jurídica, conclui-se que o presente recurso de apelação terá, por conseguinte, de improceder na sua totalidade.
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III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante (art. 527º, nºs 1 e 2).

Porto, 1/6/2023
Ana Vieira
Deolinda Varão
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.